You are on page 1of 19
CAPITULO 3 IDENTIDADES INDIGENAS NO NORDESTE Mariana Albuquerque Dantas No Nordeste, «3 grupos indigenas contempordineos se constitul- ram através de longos processos histéricos de transformacao de suas identidades e culturas, A regio Nordeste, atualmente, possui grande diversidade de povos indigenas. Cerca de 232.739 individuos se consideram indios, ‘© que corresponde a 25,9% da populacao indigena do Brasil, segundo censo do IBGE de 2010. Essa situacdo se explica, principalmente, de- vido 20 aumento do mimero de individuos que se reconhecem como indigenas ¢ que assim sao identificados pelo grupo no qual esto in- seridos. Esse crescimento demografico em pleno século XXI contrasta com 0 discurso sobre o desaparecimento éa populacio indigena no Nordeste, consirufdo em finais do século XIX. Politicos, autoridades e intelectuais reafirmavam a ideia de que os indigenas desapareceriam Cilufdos na soctedade no indigene, pasando a atuar como trabalha- cores rurais e deixando para sempre de viver nas terras das aldeias. Com esse discurso, as aldeias foram sendo extintas ao longo do século XIX, | que 0s indics “puros” nao existiriam mais, restando apenas Seuls remanescentes 9u os “caboclos”, No entanto, as agdes indigenas durante e apés o processo de extingdo das aldeias no século XIX nos mostram que os grupos contiauaram iaterferindo ra administracdo de suas terras e rei- vindicando seus direitos. Com essas aces, chegaram ao inicio do 81 a2 Ensine (d}e Astoria Indigens século XX e conseguiram ser reconhecidos pelo érgéo indigenista oficial, o SET, antecessor da Fuaai. Durante muitos anos esses grupos Jevaram ac SPI reclamagées sobre as invases realizadas em suas tetras por ndo indios e teivindicaram a necessidade de delimitar seus territérios de acordo com as aldeias constituidas ainda no perfodo colonial. Neste capitulo iremcs entender como ocorreu esse processo de desaparecimento e ressurgimeato de grupos indigenas na regiéo Nor- deste. Vamos analisar como se deu a extingéo das aldeias no final do século XIXe como foi elaborado, por intelectuaise politicos, o discurso sobre o desaparecimento dos indios. Por outro lado, também vamos compreender as aces dos préprios indigenas para manter 0 uso cole- tivo de suas terras ¢ comoeles zonseguiram o reconkecimento de sua identidade diferenciada frente ao estado brasileiro no inicio do século XX. Para elucidar algumas questdes mais pontuais, iremos abordar uum caso em particular, ode Pernambuco, e também: vamos retornar rapidamente a meados do século XVIII, quando os habitantes das aldeias sofreram profundas transformacées, que foram intensificadas nos séculos posteriores. i Continuidades e descontinuidades na formacdo das aldelas Conflitos por terras dos aldeamentos ne século XIX remontavam 4s relagdes entre indios ¢ nao indios incentivadas por leis de finais doséculo XVII Os indigenas sofreram um sério golpe ao final do século XIX, com a extingao de seus aldeamentos, justificada através de leis discursos do periodo, Um importante indicador desse proceso sao as relajdes entre indios e nao indios estabelecidas nas aldeias, nies povoados e nas vila durante a formagio desses espacos. Por isso, 6 importante compreender come as aldeias se estabeleceram e como se dew a formacao de aliancas e rivalidades entre os diferentes Capitulas Identidades indignas no Nordeste 83 Figura 1, Populacae indigena no Nordeste Esse mapa, produzido por Tomas Pzoliello (2012), apresenta t localizagio dz Populasao inclgena no Nordeste. Fol feito a partir dos dados do Censo 20t0 do IBGE e das classificagoes construldas pelo antropdlogo Joio Pacheco de Oliveira De acordo com as legendas, verios que o= ndmeros sobre os, Indigenas ste considerados através de tres clasificagdes: os “que habitam ‘municipios com Terra Indigena’; os "que residem em cidades com + de 100,000 habitantes’, ou seja, aqueles indigenas que yivem em grances cidades; ‘€05 que estio “a margem de politicas piblicas especificas",considerando uma populagio dispersa, Esses sto dados rnuito importantes, pois presenter a ampla presercz indigena ra regito na stualidads 34 Ersino (@)e Histéria Indigena ‘Ao longo do periode colonial, as relagdes dos indigenas entre sie destes com o territério de suas aldeias foram profundamente ‘modificadas com as eis de finais do século XVIUL, que estabeleceram novos pardmetros para a vida nas aldeias, Essas leis estenderam seus refexos durante todo o século XIX, ao incentivarem a instalagdo ¢ a germanéncia de nao indigenas no intericr das aldeias através de afcramentos de terras e cesamentos. ‘A administragao das aldeiasa-partirde 1757 foi beseada no“D- cetbrio que se deve observar nas povoacées de incios do Paré, € Maranhio, enquanto Sua Majestade ndo mandar o contrério”. Uin ano depois o Diretorio foi estendido a outras regides da colénis. lei determinava a implantagio de uma série de medidas relatives 20s indios e a seus costumes, com 0 objetivo de transformé-los em vasselos do rei, nepando sua diversidade cultural através de processos que tentavam assimil-los completamente & socieda- de colonial, Uma das mudencas implantada pelo Diretério fot | ainsergio da figura do diretor de fndios, servidor do Estaco que deveria substituir os misstondrios na administragio das. aldeias. Jé ne século XIX, 0 Governo Imperial manteve muitas ages ainda pautadas pelo Diretério dos ‘fndios, embora ele ji estivesse extinto. Apencs a partir de 1845 implementou-se uma legislagio mais empla, elaborada no periodo imperial: 0 | Regulamento das Missoes. ‘Na provincia de Pernarsbuco, em 1861, existiam otto aldeias indigenas: Escada, Barrsiros, Cimbres, Aguas Belas, Baixa Verde, Brejo dos Padres, Assungio e Santa Maia, Todas passavam por sérios ‘problemas elativos As teas, eja devido & ocupegio de posseiros, seja em fungdo de disputas com as cémaras municipais, a eae Be ros Ipojuica e Una, as aldeias da Zona da Mata Sul, Escada e Barreiros, estavam em grande parte ocupadas por enge- ‘nhos de agiicar dos foreiros de suas terras. Os donos dos engenhos, por sua ver, nio pagavam os aforamentos com regularidade, criginando graves problemas aos indigenasaldeados, Os aforamentos constituiam Caprulo 5 [dentidades indigenas no Nordests 85 um tipo de contrato para o uso de partes de terras da aldeia por néo indios. O uso da terra era concedido por meio do pagamento de um valor estipulado pelo diretor de aldeia, que deveria administrar tais rendas em beaeficio da aldeia e ce seus habitantes indigenas. Contudo, za maioria des casos, 0s aforamentos nao eram pagos com frequéncia, «0s indigenas via diminuir seu acesso 2s terras coletivas sem, tam- pouco, teremas rendas devidas. Existem varias peti¢des dos proprios indios reclamando da forma como os aforamentos eram feitos, uma ‘vez que as condigdes para o uso da terra e de seu pagamento eram e3- tabelecidas pelo dizetor da aldeia em comum acordo com os posseires. Asaldeias de Cimbres ¢ Assungao pessavam por sérios conflites com as cémaras municipais, que recorriam a todos os meios para usurpar as terras das aldeias. Os indios de Aguas Belas e do Brejo dos Padres tinham suas terras tomadas por posseiros que, em muitos casos, se negavam a pagar as rendas. Jf os indios de Santa Maria, devido & invasdo de suas terras e a perseguicao sofrida, passeram a se refugiar na Serra Negra, local préximo e de dificil acesso, onde encontravam terras férteis. x Assim, grosso modo, aolongo do século XIX cabiam: aos indigenes poredes muito restritas dos territérios de seus aldeamentos, tendo em vista o fato de que nio indigenas possuiam grandes partes de suas terres ‘sem pagar as rendas provenientes dos aforamentos. Sendo perseguidos, muitas vezes os indigenas prefe-iam fugir das aldeias e se esconder em locais férteis ¢ de dificil acesso. Nesse contexto de disputas per terras, eles utilizavam outras estratégias além das fugas, como 0 envio de petigdes asautoridades ea participagdo na vida politica local. Tais estratégias serdo vistas mais & frente, No momento, cabe ressaltar que as mudancas nos usos dados aos territérios dasaldeias, que permitiam a presenga de nao indigenas em seu interior, bem como as transformagies nas culturas e identidades indigenas, foram baseadas no Diret6rio dos Indios, criado em 1757, ‘Com 0 Diretério tornaram-se obrigatérias uma série de intervengdes nas aldeias, ta's como o uso obrigatério da lingua portuguesa, a ado- ‘40 pelos {ndios de nome e sobresome portugueses ¢ a construgio de casas no estilo portugués. Além dessas medidas, também se tornow 6 Ensino (de Histra Indigena obrigatéria a criagio de vilas e povoados préximos ou inseridos no territério das aldeias, once deveriam ser pramovidos a comunicagao€ ‘ocomeércio entre indios endo indios. Com oincentivo as relagdes com nio indiose a imposisao 4e costumes europeus, os indigenas aldeados passaram por grandes mudangas em suas culturas ¢ identidades. 0 Diret6rio fazia parse de uma politica mais ample do gover: no lusitano encabecaco pelo rei D. José I (1750-1777) e por seu primeito-ministro Sebastio José de Carvalho e Melo, Conde de Oeiras (1759) e depois Marqués de Pombal (1770). Durante administracio do gabinete pombalino, Portugal esuas possessoes | coloniais passaram por reformas profundas, com o intuito de fortalecer o poder absoluto do rei, institvindo um dominio mais | rigoroso sobre a colénia. Os indigenas tinham um papel funda- ‘mental no processo de demarcagio das fronteiras da possessdo portuguesa na América com as coldnias espanholas. Disso resulta 0 interesse em tornar os indigenas vassalos, sem distingoes em relacio aos demais, pira que povoassem 0 territério sob domt- nio portugues através dos novos lugares e vilas. Por sia vez, 03 ind{genas conseguiam obter alguns beneficios ao se envolverem | nos conflites e através da prépria legislacao, que Ihes garartia __ alguns direitos, ee) Em Pernambuco ¢ Diretério foi adeptado, sendo criada uma Iegislagao propria para a capitania, em 1758. Através da aplicagio dessas leis, foram criacos lugares e vilas com nomes portugueses, agrupando aldeias diferentes e reun:ndo indigenas que nao viviam ldeados. No sertio do rio Sio Francisco foram criadas as vilas da Ilha de Santa Maria e da Tha de Assungao. No sertéo do Ararobé foram erigidos o lugar de Aguas Belas e a vila de Cimbres. Finalmente, na Beira Mar (ou Zona da Mata) foi criado o lugar Barreiros. ‘Ao comparar as v:las ¢ 0s lugares criados na década de 1760 com as aldeias descritas nos relatérios de 1861 e de 1873, € possivel perceber tanto a continuidade de algumas aldeias quanto 0 desa- parecimento de outras Isso indica a dinimica de reconstrusao de Captule 3 Identidadesindigenas ne Nordeste ‘espacos e territdrios, na qual indigenas e nfo indigenas criaram e ‘mantiveram estreitas relacdes, Tabela 1, Aldeias, vilase lugares Vilas e lugeres em 1760 | Aldelasem 1861 | Aldetas em 1873 Vila da tiha de Santa eee Santa Maria Santa Maria Via da llhade Assuncao| Assungao Assungao Vila de Cimbres Cimbres Cimbres Lugar de Aguas Belas | Aguas Belas Aguas Belas Escada Riacho do Mato a aia Verde Brejo dos Padres | Brejo dos Padres Fonte: Medeiros (2007, p39), Relat6rio (18), Relatero (873) As aldeias transformadas em vilas passaram a conter todo 0 aparato de administracio portuguesa, como casa de cimara,cadeiae pelourinko, 0 espaco fot remodelado: foram abertas ruas planejadas eer linha retae construfdas casas no estilo portugués, com fachadas uniformes e regulares “ Dentro cesses novos elementos territoriais, continuaram a existir. «espagos recorhecidos como alicamentos,e seus habitantes continua- rama ser idertificedos como indigenas. Esses grupos mantiveram, de alguma form, suas terras coletivas ¢ suas identidades. & importante fazer a ressalva de que esses aldeementos e vilas passaram por comple- +08 processos de transformagao espacial e que os indios protagonize- ram um longo caminho de adaptagio aos novos parametros, Mesmo 87 38 Ensina (@)e HistéraIndigena sendo dificil perceber tais raudangas tdo subjetivas na documentagio, podemos deduzi-las a partir de outras questdes, Um exemplo é arrelacéo dos indios com o territSrio das aldeias, que se transformou devido as modificacées nashabitagoes e ne estrutura do espago durante a ctiagéo das vilas e também por meio da existéncia de trechos apossados por nio indios. Outras mudancas se deram em decorréncia das adapta- ges protagonizadas pelos indigenas através das relagdes estabelecidas com nio {ndios e das trocas conflituosas ou amistosas entre indigenas provenientes de grupos diversos que passaram a conviver reunidos no espaco comum de uma nova vila. ‘Assim, podemos afirmar que as aldeias que foram extintas 20 final do século XIX, sob a justificativa de que ali nao haveria indios “puros', cram o resultado de processos de transformagio do territério ¢ das préprias identidades indigenas vivenciados no século XVII e nos perfodos anteriores. Como demonstrou Maria Regina Celestino de Almeida (2003, p. 102), no perfodo colonial os diferentes grupos indigenas procuraram se adaptar as novas situagées em busca da manutengic das aldeias, pois elas significavam 0 acesso & terrae @ protecio que esta oferecia. Os indigenas se modificaram ¢ tomaram para si costumes diferentes dos seus, se casaram com nao {ndios, fizeram aliangase se envolveram em conflitos. © discurso sobre a extingio Aextingdo das aldeias no Nordeste foi articulada a partir de leis e do discurso sobre a mestigagem indigena. O longo proceso de extingio das aldeias indigenas, intensificado emfinais de século XIX, ji havia se iniciado no século XVIII, com a criegao de lugares e vilas, como vimos na se;o anterior. Ainda que 0s indigenas tenham utilizado varias estratégias para permanecer em. seus territérios, é importante entender como os politicos das vilas e das provincias viam esses grupos e como conseguiram extinguir as aldeias por meios legais. Ciptulo 3 Identidades indigeras no Nordeste ‘Aldaamontoe © mes cum tthe feces oe ofa eh cocoa © senscrrnion © Aarecotizo © tanr'mcniininey ZA Wrcinossras Figura. Aldeamentos indigenas de Pernambuco em 1873 Fonte: Relat6rio sobre os aldeamentos de indios 1a provincia de Pernambuco. In; Mello (1973). Varios aspectes da politica imperial e das dindmicas viven- ciadas nas previncias e nas viles contribuiram para a supressio dos aldeamentos no Nordeste. As justificativas usadas para isso estavam baseadas nas legislacdes indigenista e fundidria da época ~ 0 Regulamento das Missées (-845) ea Lei de Terras (1850), Ao mesmo tempo, as atoridades locais forjaram uma imagem nega- tiva sobre a pepulacao indigena, considerando-a indesejavel nas vilas e nos povoades, o que ficou registredo nas fontes da época. As relagdes estabelecidas entre indios e no indios, bem como questées sobre o cotidiano das aldeias, tais como envolvimento em disputas de partides politicos e crimes supostamente cometidos pelos indios (roubos de gado, et:.), também contribuiram para a extingao das aldeias. 89 90 Ersino (d}e Histérla Indigena ‘Ao lado da imagem de populagdo indesejada, também se articu- lowo discurso de que os grupos indigenas scriam remanescentes ou mesticos dos indios “puros’, seus antepassados. Segundo esse discurso, chegaram ao século XIX como uma gente “degenerada” e misturada & pofulacio nio indigena e, For isio, nao poderiam tera posse ou utilizar aterra de maneira coletiva, O territério das a.deias deveria ser, entio, dividido em lotes concedidos &s farnilias dos “remanescentes”. As au- torkiades da época também consideravam que grande parte das terras das aldeias eram improdutivas por no serem bem cultivadas pelos “indigenas misturados”, As terras improdutivas, portanto, deveriam ser revertides ao Estado nacioral ou 20s posseiros que jé estivessem ali instalados. Esse argumentc sobre a imp:odutividade das terras indigenas ainda é utilizado com muita frequéncia nos dias de hoje, 0 gue indica a permanéncia de imagens congeladas eesteredtipos sobre 0s grupos indigesas e sobre os usos que dao as terras de suas aldeias importante lembrar que as aldeias indigenas estavam localizadas em reas fér‘eis as margens de riose serras que despertavam interesse e cobiga nos grandes proprictérios da regiac, Em meados do século XIX tornou-se muito comum ainvasio das aldeias por plantagdes de cam-de-agiicar, fazendas de gado e de algodao e também por rogados. Muitas vezes, essas invasées eram realizadas de maneira violenta, ‘Assim, a ideia de que as 4reas ocupadas pelosindigenas eram impro- dutivas cortesponde & visio dos proprietérins locais e dos politicos da época que produziramas fontes documentais. Como autoridades locais (juizes, prefeitos, diretores de aldeie), esses politicos estavam ligados a posseiros, senhores de engenho e donos de fazendas, sendo muitas vezes eles mesmos vizinhos dos zldeamentos, interessados em englobar terras das aldeias as suas prop-iedades. Das disputas entre indios e nao indios percebemos que havia ex- pectativas diferentes em relacdo aos usos dados as terras das aldeias. Os indigenas tiravam daqueleterri:ério sua subsisténcia, nele realizavam_ seus préprios rituais, viveado de acordo com seus costumes. Eles 0 percebiam como um lugar de preservacao de seu modo de vida e de protecdo em relacio aos demmanios dos rroprietarios e das autoridades da regio, Entendiam que aterra deveria ser usada de maneira coletiva, Cptule 3 Identidades indigerss no Nordeste deacordo coma area que lhes fora concedida no periodo colonial. Foi ‘a partir dessa compreensio que fizeram suas reivindicagbes. também importante ressaltar que a relagio dos grupos indgenas com seu territério coletivo jé fora muito modificada em fungio das leis que estimulavam a presenga de nao indigenas nos aldeamentos desde meados do século XVIIL © fato de os indigenas defenderem 0 aldeamento nao significava que eles desejavam interromper suas interagées corm os nao indigenas, mas apenas que queriam interferir diretamente na administrasdo das terras. Afinal, as terras coletivas ainda lhes davam alguma proteséo e subsisténcia, sendo, portanto, essencial decidir as formas de sua utilizacio. JA os senhores de engenhos ¢ donos de fazendas viam nas terras das aldetas a possibilidade de aumentar seus ganhos, ampliando a3 reas para a ctiacdo de animais co cultivo de cana e algodio. Assim, percebemos que a questdo do uso das terras dos aldeamentos era com- plexa, na media em que havia diferentes manelras de compreendé-la, ‘Vamos definir melhor algumas questées a partir de um exemplo. Uma comissio organizada em 1873 na provincia de Pernambuco, com o objetivo de car um parecer sobre a situagio dos aldeamentos, produziu um relatério no qual descreveu as sete aldeias existentes € sugeriut agdes a serem tomadas pelo governo. As aldeias foram descritas como decadentes ¢ usurpadas de grande parte de suas terras, principalmente pela invasio de nao indios, que se apropriavam de porgdes do terreno, e pelo abandono dos prdprios indios, que fugiam das aldeias. Apesar de estarem localizadas ema areas férteis com potencial agricola, segundo o relatério as aldeias nio produzian. 0 suficiente para sustentar seus habitantes. De acordo com 0 mesmo documento, essa situagdo era resultado, em parte, da desorganizagioe da mé administragio realizada pelos diretores das aldeias, Ble ressalta também a situeeio de “degredasio” dos indios e sua mesticagem com no ind{genas. Diante disso, « comissdo nao via nenhum beneficio para a provincia em manter as aldeias nesse estado e propunhasua extingao, Era retomada, assim, uma argamentagio j& desenvolvida em outros momentos. Em1851, por exemplo, o presidente da provincia de Pernam- buco empregou ume expressio muito utilizada em virios documentos a 92. Ensino ce Histéra Indigena da epoca para indicar a mis:ura dos indios dosaldeamentos, afitmando queestavam “dispersos e confundidos na massa da populagio civilizada” (RetaTORI0, 1851). Ele nao seria o tinico a utilizar essa expresso. Em 1863, outro presidente da provincia informou que uma aldeia fora extinta, pois “os poucos indios que ali habitavam achavam-se jé confundidos nna massa geral da popula¢io” (REL atoRr0, 1869). Para construir seus argumentos, esses presidentes se apropriaram dasja citadas leis sobre terras ¢ da legislacdo indigenista: 0 Regulamen- to cas MissCes, de 1845, ez Leide Terras, de 1850. O Regulamento de 1845 mantinha ¢ adminis:rac4o das aldeias por um funcionério do Estado e a divisto de suas terras de modo que algumes partes fossem arrendadas para nao {ndics. © Regulamento de 1845 criou o cargo de diretor-geral de indios da provinciz e manteve 0 cargo de diretor de aldeia, sendo um admi- nistrador em nivel provinc.al e outco emnivel local. Ambos detinham largos poderes sobre a disposicdo das terras das aldeias, pois entre suas atribuigdes estava a decisio de quais partes do aldeamento poderiam ser utilizades para plantacées coletivas dos préprios indios ¢ quais seriam arrendadas para néo indios. A Lei de Terras, por sua vez, foi a primeira a regulamentar os pracessos de compra e venda de terras no Império, bem como as possibilidades de reconhecimento da posse sobre terras. A lei, po- rém, ndo fazia referéncia aos modos de utilizagao e regularizagao do territério das aldeias que jé estavam estabelecidas e, em sua maioria, ‘ocupadas por posseiros nao incios. Ela, por outro lado, legitimava as posses “marsas e pacificas” das terras jé cultivadas ou com prinefpio de cultura e morada habitual do respectivo posseiro. Dessa forme, 0 governo permitia a contimaidade do uso de terras dos aldeamentos pornao indios através de rrendamentos ou simples ocupacio. Um miés apés a promulgacao da Lei de Terras foi editada a De- cisio n. 92, definindo a incorporagao ao tesouro do governo imperial das terras dos indios que “jd néo vivem aldeados, mas sim dispersos e confundidos na massa da populagio civilizada” (Cunwa, 1992b, p. 213), Dai veio a jé mencionada expressao utilizada com frequéncia nas fonces da época e que impés o destino a ser dado ao territério coletivo dosindios considerados mestigas. Jo Identidades indigeras no Nordeste Alei de 1850 foi concebida como uma fentativa de regularizar a Posse e a propriedade sobre terras, em vista da confusao criada com a extingéo das doagies de sesmarias pela Coroa portuguesa com a Indepencéncia, em 1822. Os debates para a implantacao dessa lei estavam centrados nanecessidade de rever oconceito de “terra”, Antes elaera concebida como uma doagio do rei e indicava ostatus social doindividuo quearecebia, A partir da Lei de 1850, “terra” passou a ser percebida como uma mercadoria, que poderia ser comprada e vendida, no sendo determinante a posigao social do individuo, Pela Lei de Terras, as sesmarias concedidas até 1822 seriam martidas, contamo que tivessem: cultura efetiva ¢ fossem morada hatitual de seu sesmeiro, Este teria de registrar sua posse e teria preferéncia na aquisicao de terrenos devolutos vizinhos, Dessa manecira, ¢ lei permitia a continuidade da grande lavoura, E necessdrio lembrar que a legislacao sobre terras foi elaborada era um momento de rees:ruturagao do governo imperial apés 0 perfodo regencial (1831-1840) e marcado por varias revoltas em todo o Brasil. Nesse contexto de mudances, as leis de emancipacdo gradual do -rabalhador escravizado (leis de aboliao do tratico, do Ventre Livre e dos Sexagendrios) apontavam para o grave problema do provimento de mao de obra para os proprietérios deterras. E interessante perceber que essas modificagdes sobre 0 ‘acesso & mio de obra e as terras ocorreram no mesmo periodo em «que se ealizou a extingao dos aldeamentos indigenas no Nordeste Nessa regio, onde também houve uma perda de cativos para as reas produtoras de café, a emancipagao do trabalhador esctavo nao leyou a completa desarticulagdo da economia. Os grandes proprietarios puderam centar com a méo de obra livre de seus ag:egados, cos mroradores de suas propriedades e de indigenas da regido. Q trabalho de indigenas na época da safra de cana nos engenhes nos leva a perceber que a politica de extingao das aldeias estava relacionada & necessidade de obter mais bragos para alevoura na ¢poca em quea escravidao era gradualmente abolida. Eee 93 4 Ersira (@)e Histeria Indigena As legislagées indigeniste e fundidria da segunda metade do século XIX embasavam a argumentagio a favor da extingio das al- deias, Nessas leis foram tratadas em conjunto a situagao dos indios ~ considerados como “degenerados”, “remanescentes”, “mesticos” ~ ¢ a questo da invasdo de suas terras coletivas. Ao desconsiderar a identidade ciferenciada dessas populagées, airmando que ndo eram mais “indios puros”, as attoridades imperiais passaram a perceber suas terras como abandonadas ou devolutas. Desse forma, apés a extingZo dos aldeamentos, as terras das alde:as ficariam dispontveis para 0 préprio Estado ou para a ocupagdo por nfo indios. Nesse sentido, por terem sido percebidos como “confundidos na massa da populacio civilizada”, os indigenas tiverim seu acesso as terras coletivas restringido. Pensar em como as leis que tratavam das populacées indigenas e de suas terras foram elaboradas ¢ aplicadas permite o desenvolvimento de um senso critico acerca do que era “ser {ndio” no século XIX. possivel, a partir de leis e documentos da época, entender como os politicos eos intelectuais percetiam os grupos indigenas no Nordeste, Para que os considerassem “Indios verdadeiros’, exigiam deles uma “pureza” de identidade que os remetesse a seus antepassados. Tal posicionamento ado levava em consideragao os processos histéricos nos quais os diversos poves indigenas se envolveram, adaptaram-se ou combateram, Diante disso, nossa intzrpretagdo deve se orientar a pariir do entendimento das transformazoes nas culturas e identida- des indigenes intensificadas no século XVIII, quando os indios eram incentivados pelas politicas portuguesasa estzbelecerem relages com no indios. Podemos afirmar, entio, que as mestigagens fazem parte dashist6riasindigenas e devem ser entendidas como tm componente importante de suas culturcs e identidades étnicas, Fontes para a escrita da participacao indigena na historia Classificagies e discursos sobre os indigenus devem ser entendidos a partir dos contextos de producito clas fontes histéricas. Cactoloa Identidaces indigense no Nordeste © trabalho com fontes do século XIX sobre a perticipacdo in- digena na historia exige um posicionamento critico do leitor. Como vvimos na segéo anterior, a 7isdo estereotipada sobre os indigenas era produzida pelas autoridades que ocupavam cargos administrativos das aldeias e provincias. A maior parte dessa documentagao era pro- Guzida por no indigenas que tinham interesses os mais variados sobre a terra ¢a mio de obra indigenas, Ao mesmo tempo, sabemos que séo pouguissimas as fontes produzides pelos préprios indios. As poucas escritas no século XIX das quais temos conhecimento sio abaixo-assinados e petigéies muttas vezes elaboradas com a ajuda de no indios. Per isso, temos ditvidas sobre sua autoria, ou seja, se foram escritas pelos indios ou por seus aliados nao indios com sua aprovacio. Assim, amaioria das fontes com que trabalhamos foram escrites por diretores de aldeias, diretores gerais, presidentes de provincia, jui- es de érfa0s, ouvidores de comarcas, prefeitos, membros de cAmaras, etc. Esses textos foram constituidos a partir da visio de seus autores acerca das populacées indigenas, forjada a partir do conkecimento ‘que se tinha, dos interesses dos agentes hist6ricos e dos jogos politicos vivenciados pot indios e nao indios nas localidades. Por isso, é impor- tante compreender os contestos social, politico e econémico nos quais 05 discursos sobre os indigenas se legitimavam e ganhavam fora. ‘Tais contextos no devem ser entendidos como simples enume- racdo dos fates histéricos ocorridos no periodo estudado. E preciso conectar ques:des histéricas, sociais, econémicas e politicas desenvol- vidas nos niveis local, regicnal e nacional para explicar as agées dos diferentes sujeitos histérices. Com isso, podemos analisar as fontes historicas e en:ender seu contexto de produséo. Por exemplo, ao lermos um relatério sobre um detsrminado grupo indigena, é importante ppesquiisarmos quem foi seu autor e que interesses possufa ao escrever aquele documento. Ao fazernos isso, podemos verificar se era proprie- trio de engenhos de acticar, fazenda de gedo ou de algodao, se tinha interesse nas terras da aldeia e quais eram os seus aliados, o que nos ajuda a comp:eender as questées locais que o envolviam. Também podemos tentar conhecer seu posicionamento politico, saber se tinha relagbes na Corte, se assumira outros cargos ou, ainda, se era membro 95 96 Ensina (dhe Fistora Indigens de um determinado partido, conectando, assim, seus interesses com quest6es mais amplas. Essetipo de conexio pede ajuder a explicar por que os indios se colocaram cortra ou apoiaram o autor da fonte, se mantinham comele relagées amigiveis cu conflituosas. Os relaciona- :mentos com membros das dites locais poderiam motivar os indigenas wadirem engenhos e fazendas, a participarem de alguma revolta, a seenvolverem em conflitos armados, a fazerem peticdes e abaixo- -assinados. Dessa forma, as questdes locais e nacionais se conectam, as relagées entre indios e ndo indios ganham sentido, contribuindo pare a construcdo de um significado para as aces indigenas. ‘Torna-se importante, entdo, entender como as relagGes entre {n- dios, diretores de aldeia, dcnos de engenho e de fazendas vizinhas As aldeias (que ocupavam as fungdes da administeacao local) e posseiros que viviam dentro dos tersitérios indigenas foram estabelecidas 20 longo dos anos nos espacosde vilas, cidades e municipios. Coma ané- lise dessas relacSes, podemos perceber também como as classificacées atribuidas is populagSes indigenss eram criadas em didlogo com as leis €comas politicas mais gerais do Impéric, leis muitas vezes utilizadas em detrimento dos interestes dos indigenas, caso da ja mencionada Lel de Terras de 1850. Quando realizamos uma andlise critica das fontes e das classifi- cages nelas presentes, os irdigenas passam a ser vistos como agentes ativos nas disputas em defesa de seus interesses, movidos por suas proprias motivagées. Esse tipo de anilise permite entender como as populagbes indigenas conseguiram manter seus territ6rios coletivos através de vérias estratégiase vivencias. Ademais, tal abordagem Lhes confere importancia e participacio no desenvolvimento da historia de suas localidades e regides. Essa perspectiva ¢ a base da andlise dos processos que veremos nas sees a seguir. | Vemnos analisarum trecho de um documenta escrito pelo diretor | de aldeamento do Ipaneraa, em Pernambuco, em 1864: “[.] nao hd nesta missdo ind'os genuinos, porque esta raca tem- -se de tal modo cruzado com outras, que quase todos os indios Cipttte 3 Identidades indigenas no existentes sio mesticos e por conseguinte a sua disperséo seré conveniente que a sua concentracao, porque no tiltimo caso néo abandonario a madracatia [sic] em que vivem, ¢ nem perderao os seus maus hébitos que se irdo transmitindo de geracao em geragio” (Osicic, 1864). ‘Ao cruzar fontes variadas sobre a historia de formacio da aldeia € da cidade vizinha, Aguas Belas, percebemos que o autor do, documento suprécitado, Lourenco Bezerra de Albuquerque Ma- ranbio, fazia parte de uma das familias mais poderoses da regiao « que tinha propriedades vizinhas ao aldeamento do Ipenema. Através dessa investiga¢ao, foi possivel compreender que seu pai teve cargos politicos e militares importantes e que jd desejara se apossar de terrenos da aldeia, tentando interferir em sua admi- nistragio. Nio é de se estranhar, portant, que o dizeto: Lourengo tentasse descaracterizar os fndios do Ipanema, chamendo-os de mestigos, jd que, de acordo com as leis da época, ao nao serem | considerados “indios genuinos’, eles nao teriam direito a posse coletiva das zerras do aldeamento. Por isso, na perspectiva desse diretor, era mais interessante dispersé-los do que manté-los con- centrados na aldeia, Por sua vez, 9s indios do Ipanema passaram a solicitar a demis- sio de Lourengo do cargo de diretor, através de uma peticéo do ‘mesmo ano: “Nés, abaixo assinados, indios da Aldeia de Ipanema, vimos submissa e confiadamente perante Vossa Exceléncia representar contra o atual Diretor parcial; e6 de Vossa Exceléncia, como n03- so Diretor Geral eprotetornato dos infelizes curatelados, que ora se echam em presenga de Vossa Exceléncia, podemos encontrar remédio do mal que nos aflige,e atencao a siplica que fazemos, € as razdes que nos mover a pedir merecidamente a demisséo do atual Diretor parcial deita aldeia” (ABA1x0-assiNADo, 1864). Poresse trecho peroebemos cue osindios do Ipanema tinham conhe- ‘cimento dos trimit legais para reivindicar seus direitos:enviaram iy 98 Ensino (d)e Hist6ea Indigena um abaixo-assinado 20 diretor-geral da provincia e se mostraram submissos lei, obedientes e necessitacos de protegio. ‘Ao fazer 0 cruramento ce dados, contextualizando a fonte, passa- mos a compreender por que os indfgenas pediram a demissio de Lourenco Maranhao do cargo de diretor doaldeamento. Também percebemos que os indigenas nao constitufam uma populagéo isolada, sem conhecimento da politica e da administracao do Império, Na verdade, eles se apropriavam dos instrumentos legais ¢ administrativos, utilizanco-os da sua propria maneira para alcangar seus interesses € objetivos, ae Seek sane) Estratégias indigenas diante da supressao de seus tertitérios Aliangas com nao indios, abaixo-assinados e peticdes foram es- tratégias utilizadas pelos indigenas para interferir na administragio de suas aldeias e defender seus interesses. A imagem da mestigagem dos indios muitas vezes descrita na documentagio da época representava as sociedades e suas tradigbes como iméveis, rigidas e .ncapazes de softer transformagoes. sso pode ser percebido através das classificacoes conferidas 4s pessoas que poderiam ou ndo ter ¢ acesso as terras dos aldeamentos, pois ser identificado como “indio” garantia 20 individuo ow ao grupo 0 uso co- letivo desse espaco. Jd ser visto pelas autoridades e pela sociedade local como caboclo ou “indio misturado” significava nao possuir tal direito, No eatanto, como j vimos nas segdes anteriores, é essencial per- ceter as transformagies das identidades e culturas indigenas através dos processos historicos pelos quais passarara. Essas mudangas ocor- reram devido aos contatos entre indios e no indios e entre indigenas de grupos diferentes que passaram a viver juntos nas aldeias e vilas, 0 que resultou em mestigageas culturais e identitarias. -Esses contatos entre indios eno indios promoveram transformagbes nna relagéo com o ferritério, nas culturas e nas tradigdesindigenas. Diante Ciptulo3 Identidadesindigenas no Nordeste disso, é preciso entender a mestigagem como aspecto constitutive da ‘dentidade indigene e como resultante de processos histéricos. Pode- “nos, entdo, questionar a ideia de “pureza” usada como modelo pelas autoridades e pelos intelectuais do século XIX. Mesmo intensamente transformados, esses grupos ndo deixaram de se perceder como in- ddigenas nem de buscar 0 reconhecimento de seus direitos coletivos sobre terras concedidas no perfodo coloniel. A constante reelabora¢io de suas identidades e 0 dominio que pretendiam manter sobre o territério do aldeamento dependiam da utilizaglo de estratégias incorporadas pelos indigenas em cerca de 200 anos de contatos e relagdes. Fodemos citar como exemplo dessas estratégias as reivindicagdesem petigdes e abaixo-assinedos que fize- 1am defendenco a manutengio de suas terras coletivas, solicitando a demissio de dicetores ea melhoria na administracio de seu territério, ‘Também fizeram, refizeram 2 desiizeram aliangas com nfo indigenas conforme os contextos locais de disputas politicas em busca da con- cretizacdo de suas expectativas. Nesse sensido, podemos afirmar que a defesa dos direitos que possuiam sobre as terras das aldeias em situagdes de conflito con- tribuia para reafirmar 0 sentimento de pectenca a um grupo. Com isso quetemos dizer que a defesa de um objetivo politico comum ~ a manttengio da aldela ~ frente as invasdes de nao indios fazia com que os indios se sentissem como parte de uma coletividade e, assim, construfssem e recoastrufssem sua identidade diferenciada ao longo co tempo. Ao compreendermos a etnicidade eas culturas indigenas de ma- reira mais dindmica histérica, percebemos que, embora na maioria dos casos a extingdo dos aldeamentos tenha sido inevitével, durante ‘anos elguns grupos conseguiram adiar esse processo, Hles continuaram aviver nos espacos dos “antigos aldeamentos de indios” até o inicio do século XX, mantendo, assim, viva sua relagio com o territ6rio, transformando-se e adaptando-se aos novos contextos de disputes. Para melhor compreender as estratégias utilizadas pelos indigenas para manter seu tertitério, fez-se necessério 0 acompanhamento de um exemplo elucidativo, como o dos indios Carnijé do aldeamento 99 100 Ensino (dje Histria Indigena do Ipanema, noagreste pernambucano. Blestiveram seu aldeamento extinto, mas foram o primeiro grupo aser reconhecido como indlge- na pelo Estado brasileiro, no infcio do século XX, Assim, a parti: de suas vivéncias, podemos ter uma perspective mais detalhada sobre as aliangas e reivindicagdes ‘ndigenas. ‘© aldeamento do Ipanema fot extinto em 1875, como havia sido proposto pelo relatério de 1873, Suas terras foram demarcadas em lotes, eos posseitos receberam suas porgdes conforme a ocupacio que reelizaram. Aos indios restaram outros lotes em menor quantidade, tendo sido o restante das zerras considerado devoluto. No entanto, a extingéo desse aldeamento jé havia sido solicitada formalmente em 1861, emdecerréncia de seu suposto abandono pelos indios. Também foi apontida como motivo para a supressio da aldeia a farticipacao dos Carnijé em uma disputa eleitoral em Aguas Belas, cicade que cresceu no interior da aldeia. Em dezembro de 1860, os Carnijé tinham se aliade a membros do partido liberal em Aguas Belas, fazendo cposigao aos conservadores nas eleigdes daquele eno. A dispute deitoral, a alianga dos indios coms liberais ea quebra da urna com 0s votos que dariam a vitéria aos conservadores resultou em varios feridos, alguns mortos, alguns {ndios presos e a anulago dacleigao. Essa alianga interétnica entre indios ¢ liberais servi para con- fetir visibilidade aos primeiros, Isso ocorreu devido & denominagao de “indigena” conferida 10 grupo nos textos produzidos na época sobre 0 acontec:mento, apontando a existéncia de elementos que os diferenciavam da populagdo nao indigena. Embora nio saibamos 0 que exatamente motivou os Carnijé a participarem dessa disputa, podemos perceber que eles construiram estratégies politicas para melhor lidar com a sociedade na qual estavam inseridos e com a realidade ra qual vivian. cotidianamente. Esse epis6dio langa luz sobre a complexidade das relacdes entre indios e no {ndios, pois a dlianga realizada nesse contexto de disputa politica, ao mesmo tempo que servit para conferit visibilidade aos indigenas, também recultou em: problemas que repercutiriam, dali em diente, diretamente no destino da aldeia, Cipkulo 3 Wentidades indigenas no Nordeste Entrea solicitaggo de 1861 eaefetiva extingéo, em 1875, 0s Carnijé interferiram na administragio das terras do aldeamento do Ipanema, como demonstram as petigdes ¢ os abaixo-assinados entregues as autoridades, que refletem os conflitos ocorridos com dois diretores do aldeamento. Em 1864, 0s Carnijé encaminharam um abaixo-assinado para o presidente da provincia solicitando a demisséo de Lourenco Bezesra de Albaquerque Matanhio do cargo de diretor do aldeamento, come vimos na segio anterior. No abaixo-assinado foram descritas, algumas situacées de embate entre os indios e o referido diretor ot. pessoas de sua familia, como acusagdes de que 0 diretor teria quei mado “ranchos” de indios, de que nfo teria cumprido o antigo acordc de reservar tertas para as at.vidades dos indios e de que ses tio teria solicitado medidas para dissolver 0 aldeamento para que pudesse se apossar livremente dos terrencs. Devido a esse quadro de perseguigae descrito no absixo-assinado, grande parte dos {ndios teria deixado a aldeia por causa da administragao de Lourengo Maranhio, Esse abaixo-assinado téo significativo sobre a relagdo entre os in- dios ¢ 0 diretorlange luz sobre algumas questoes. Em primeiro lugar, 0 documento demonstra a atuagao dos indios em relagio & administracio de suas terras, como jé afirmemos anteriormente. Além disso, também indica a construgio de aliangas com nao indios como estratégia dos indigenas para alcancar seus interesses, como demonstra 0 fato de 0 documento também ser assinado por 26 ndo indios. Outro exempla importante sobre a articulacio dos indigenas nesse periodo é 0 oicio de 1871 enviado pelo Lider dos indios, José Roméo de Vasconcelos, a outro ciretor do aldeamento, Adrio Ro- érigues de Araijo, O lider informou ao diretor que a revista no aldeamento nao poderia ser realizada. Esse tipo'de revista consistia em uma chamada dos indios pelo nome para certificar que eles se encontravam na aldeia. An‘es, afirmava o Ider indigena, era ne- cessirio reunir todcs os ind’os pertencentes aquela aldeia para que Adritio de Aratjo fosse reconhecido por eles como seu diretor. Esse posicionamento demonstra necessidade de aprovacio pelos indios do individuo cue fosse incumbido do cargo de diretor do aldea- ‘mento. Assim como ocorreu com Lourenco Maranhéo, a desavenca 101 12 dos indios com: o diretor Adrido Araiijo se estendia a familia deste 108 interesses sobre as terras do aldeamento, pois ele possuia um engenho de rapadura no interior deste tersit6rio. Esses exernplos de aliangas entre indios e nao indios e as petig6es 9s abaixo-assinados deronstram os caminhos que os indigenas ut: Iizaram para reclamar de abusos de autoridades locais e para garantir seus direitos sobre um territdrio que jé fora extremamente modificado, Por meio da apropriagao de significados, simbolos ¢ também de bu- recracia imperial, fica evidente a utilizagéo de estratégias pelos indios para contestar agdes de diretores da aldeia ndo reconhecidos por eles devido ao histérico de perseguigies e conflitos. ‘No momento de intensificago do processo de extingao dos alde- amentos, varios grupos indigenas articularam maneiras de interferir na administragio de suas terras, mesmo vivenciando fortes pressbes € ‘0 desmantelamento desses territ6rios. Nas primeiras décadas do século XX, grupos indigenas considerados extintos conseguiram relevantes gunhos quando o quadro politico nacional se modificou, coma criagéo do SPI. No Nordeste, esses grupos voltaram a ser identificados como irdigenas devido a um longo e tortuoso caminho em direcio a seu reconhecimento pelo Estado, Caminhos para 0 reconhecimento oficial Oreconhecimento como “indigenas” frente ao Estado brasileiro significou o inicio de umcaminho de reconquista de direitos sobre as terras coletivas. A supressto oficial das aldeias néo significou o desaparecimento de seus habitantes, Pelo contririo, através de articulagdes entre virios ‘grupos indigenas e destes com diferentes instancias do governo, houve um movimento pelo reconhecimento dos indigenas no Nordeste nas primeiras décadas do século XX. Esse movimento ocorreu através da apresentacéo das demandas indigenas sobre terras aos governos estadual e federal. Tais demandas foram feias através de aliangas dos indigenas com nao indios, o que, come vimosanteriormente, erauma estratégia jé conhecida e utilizada desde o século XIX. Captus Identidadesindigenas ro Nordeste ‘Com o recon ecimento das demandas indfgenas, pouco a pouco foi iniciado o processo de regularizagao de suas terras. Teve inicio, assim, uma relagao de caréter tutelar com o érgio indigenista oficial, © SPI. O primeiro passo foi a implantacio de postos indigenas nos espagos das antigas aldeias, que passaram a ser identificadas pela nomenclatura de Terras Indigenas, ‘Aideia detutelaé baseada ne percepyao de que os indigenas teria ‘um conhecimento parcial ou deturpado dos padroes de conduta “dominantes”, Segundo essa perspectiva, eles ndo seriam capazes, de condiuzir por iniciativa propria 0 processo de assimilagio a ‘uma nova cultura, jé que possuiriam cédigos sociaise de conduta diferentes. Além do mais, sua cultura era vista como “primitive™ A relacio ce tutela seriajustificada pele suposta necessidade dos indigenas de serem instrsidos acerca dos cédigos de condita da sociedade brasileira pelo drgio indigenista do Estado, Esse érgao tutor estabeleceria uma relacio de cardter paternalists, pautade | ra protesio e na educagio dos indfgenas. O conceito de tutela é alualmente muito criticedo pelos estudiosos da temtica ind{gena, ‘mas ainda € reccrrente no senso comum e em algumas praticas de instituigdes governamentais e nfo governamentais, As idefas de “cultura primitiva’, “cultura dominante” e de “assimilacdo”, nas quais se baseia o conceito de sutela, devem ser problematizadas. A propria experiéncia hist6rica indigena nas situagdes de conflito ‘em torno do uso das terres éas aldeias, como vimos até agora, demonstra que os indigenas agiram por motivagées préprias, em busca da realizacdo de seus interesses, embore estivessem em uma posicao social e econémica desfavorsvel e suscetivel a diversas press0es. E imporiante termos em vista que o movimento pelo reconhe- cimento de grupos indigenas ne Nordeste frente ao Es:ado brasileiro foi um processo lento que teve lugar a partir da movimentagio dos préprios indios, Para tanto, eles se valeram da construcio de uma rede complexa de ajuda entre sexs diferentes grupos, que implicowa troca 103 104 Ensino (d)e HistriaIncigens deconhecimento entre as varias populagSes indigenas dos estados do Nordeste. Ao mesmo tempo, esses grupos apresentavam elementos internos que mantiveram sua coesdo como coletividade. Esse processo no ocorren sem conflitos. As disputas se deram com maior intensidade entre os indios e os posseiros havia muitos anos instalados nas aldeias, assim como entre eles e alguns governos municipais ¢ estaduais, que relutayam em perceber aqueles grupos como indigenas e, portanto, em restituir seus direitos sobre as terras. As disputas em torno das classificacdes relativas is populagées indigenas marcaram todo o final de século XIX e o inicio do XX. Diante desse contexto de aliangas e de entrelacadas redes de trocas de conhecimento, analisaremos agora 0 caso do primeiro gru- po indigena no Nordeste a ser reconhecido pelo SPI, os Carnijé, ou Fulni-6, como passaram aser cenominados ap6s a instalagéo do posto indigena em suas terras. Podemos apontar trés elementos que ajudam a compreender como esse grupo manteve a coesdo interna, mesmo depois da desestrutura- gaa de seu territbrio, Em primeiro lugar, 03 indigenas se organizaram peliticamente como grugo em torno de um objetivo comum, nesse caso, 0 acesso 4 terra coletive. Segundo, continuaram vivendo nas terras do “antigo aldeamnento de {ndios’, mesmo apés sua extingao. esse sentido, ndo foi qualquer pedago de terra que reivindicaram, ‘mas sim aquele onde fora estabelecida a aldeia no periodo colonial e nc qual viveram no século XIX. Em terceiro lugar, realizavam um ritual especifice do grupe, proibido para nao indios, ‘Apés a extincZo do aldeamento do Ipanema, habitado pelos Car- nif, suas terrascontinuaram aser objeto de dispute entre o munic{pio de Aguas Belas, o govern do estado de Pernambuco, posseiros in- digenas, No inicio do sécalo XX, o prefeito de Aguas Belas concedew o arrendamento de todo o terreno da antigaaldeia a um politico local pdo periodo de sete anos, de 1908 a 1914. Ao final desse perfodo, 0 governador de Pernambuco decidiu pela devolugao das terras aos in~ digenas que ainda a habitavam, Esse posicionamento do governo do es:ado contrariou o pleitc do prefeito de Aguas Belas de que esses ter- reaos fossem arrendados 2ovamente e suas tendas fossem concedidas Ceptule 3 Identidades indigenas no Nordeste 20 municipio, Além dessa disputa, houve uma tentativa de destruir 08 “casebres” dos indios ¢ de retiré-los do local sob a justificativa de manutencéo da higiene piblica, j4 que, segunde depoimentos da época, 0 ‘antigo aldeamento de indies” era um “local infecto” € ropenso a epidemias (AUTO, 1914), Além ds falte de higiene, das perseguigées ¢ da destruicéo dos casebres, varias avtoridades passaram a realizar ataques também 2o principal ritval dos Carnij, o Ouricuri, ritual de reclusio religiosa proibido paranao ‘ndios. Devido 20 mistério que envolve essa pritica, varias autoridades policiais da cidade passaram a acusar 0s {ndios de enyolvimente em crimes durante 0 perfodo do ritual, chegando varias vezes a proibir sus tealizagdo, A descri¢éo sobre esse ritual feita na documentagio produzida por policiais demonstra que, mesmo dian:e de proibigées expressas, os Carnijé continuaram a desenvolver seus rituais longe do olhar curioso éos nao indios. O fato de a proibicao ter sido feita repetidas vezes demonstra que os indios nao deixaram de se reunir 2 de reafirmer alguns dos elementos internos que 0s fariam manter o sentimento de coletividede. Aqueles indios permaneceram ocupando 0 mesmo territ6rio, Nao por coincidéncia esse espaco correspondia ao do aldeamento do final do século XTX. Como vimos, os indgenas possufam uma relagéo muito estreitae forte com aquelas terras. Assim, embora inseridos em graves conflitos, os Carnijé permaneceram ocupando e habitando ‘um mesmo espago, que continuava a ser identificado como o lugar do “antigo aldeamento de indios’, Esse territ6rio continuow a ser iden- tificado com 0 aldeamento do Ipanema, e, por conseguinte, quem a hhabitasse em casebres de palha, praticando o ritual misterioso, seria identificado como indio Carnjé, A docun:entaséo do inicio do século XX aponta para a conti- nuidade desse grupo indigena, « despeito do discurso sobre seu de- saparecimento, Esses indios leveram suas demandas sobre as terras a nova instincia governamental responsével pela administragao de seus bens, 0 SPI. ‘Os mesmas Carnijé estabeleceram uma alianga com um padre da localidade, Alfredo Damaso. Entre 1921 e 1923, esse padre viajou a0 105 105 Ensino (de Histéa Indigena Rio de Janeiro, onde estava a sede do SPI, para entregar solicitagdes, reafirmando asnecessidades Cos Carn:}é relativas 4s terras do antigo aldeamento. Solicitou também o estabelecimento em Aguas Belas do sezvico de protecio e tutela dos indios. O padre Alfredo Damaso, a fira de conseguir um maior apoio institucional, também entrou em contato com 0 governador de Pernambuco, fazendo deniincias sobre a ocupagao irregular das terres dos Cernijé. No entanto, nao obteve resposta do governador. ‘Mesmo com o pouco, ou nenhum, interesse do governo do estado nese momento, o primeito posto indigena aser instalado no Nordeste fo. 0 de Aguas Belas, em 1924, para assisténcia aos Carnijé. Todavia, a instalagio do posto e o deslocamento de funcionérios do SPI para a cidade nfo implicaram na imediata identiicagdo ¢ demarcagio das terras reivindicadas pelos indios. Os conflitos continuariam, a partir deentéo, com aintermediagio do SPI e, posteriormente, da Funai no processo de regularizagio dos arrendamentos dos posseiros, ‘Apés a instalagao do posto indigena em Aguas Belas, outros foram estabelecidos devido & troca de conhecimentos entre os gru- pes indigenas e & reufirraagdo de suas aliangas ou da constituigéo de novas: em 1937 foi instalado nas terras dos Pankararu (Brejo dos Padres, PE) e nas dos Pataxé (IIhéus, BA); em 1944, nas dos Kariri- -Xocé (Porto Real do Colsgio, AL); na década de 1940, nas dos Truké (Cabrobé, BA); em 1949 nas dos Atixum (Floresta, PE); em 1952, nas dos Xukuru-Kariri (Palmeira dos Indios, AL); em 1954, nas dos Kambiwa ([najé, PE); e em 1957, nas dos Xukuru (Pesqueira, PE). Apesar do reconhectnento conquistado e da instalagéo de postos indigenas em virios territ6rios, os problemas e conilitos pelas terras dcs antigos aldeamentos nao se encerraram. Na verdade, as disputas com posseitos emunicipics continuam até os dias de hoje. Os conflitos, aitas vezes armados, entre indios e nao indios pelo uso das terras so recorrentemente veiculados em diversos tipos de midie, demons- trando a lentidio do processo de regularizagio de terras indigenas encabegado pela Funai. ‘Tentamos demonstrar até aqui que os estudos mais recentes sobre o periodo compreeadido entre o final do século XIX e o inicio Captlo 3 Identidades incigeras no Nordeste 107 Figura 3. Mapa do extrto aldeamento co Ipanema, em Aguas Belss, Pernambuco, 1877 Fente: Esbogo (1877). Essa €a plantada extintaaldela ce Ipanema, em Aguas Gelas, Pernambuco, er 1877. Nela possivel perceber a divisdo em lotes realizada apds 0 fin do aldeamento, Atualmente essa localidade estd inserida na Terra Indigena Fulni-d, ¢ 05 uses dedos por Indios e nfo Indios a esse teritério corresponde, fem grande parte, a loteamento demonstrado nessa planta. Fazer a relagio enive 0s teritérios identificados como uma aldeis no século XIX e como uma Terra Indigera nos séculas XX « XX! é importante para compreender como esses espacos foram transformados e aproprlados pelos préprios indigenas « pelos posseiros ndo Indios, tornando possivel estabelecer conexdes lene 0s processos histéricas de passado e do presente. do XX apontam que os indigenas no Nordeste, apesar de terem sido identificados como “misturados” e de terem seus aldeamentos extin- tos, continuaram atuando para interferir na politica local e na forma como as terras das aldeias sram administradas. Compreenderam as 108 Ensine (d}e HistéiaIndigena situacdes & sua maneira, tomaram para si osaparatos da administra- 40 piiblicae construfram estratégias com o objetivo de garantir seus direitos. Tendo em vista que esses indics nac desapareceram, mas, 20 coatririo, permaneceram ativos, é necessario ter uma visio critica sobre as clasificages - como “nisturados’, caboclos, “indio genuino”, “{ndio puro” - que constroem estereétipos sobre os indigenas e que so usadas inclusive atualmente. Através de uma perspectiva histbrica, toxna-se possivel compreender que os grupos indigenas passaram por muitas transformagbes, aprenderam a flexibilizar suas ages e culturas deacordo com as situagdes e relagdes que construfram e que tudo isso faz parte de suas identidades. Com essas questdes em vista, os indios assumem um papel ative na historia, levando-nos « reafirmar sua importncia para a formagao da sociedade brasileire. Sugestio de atividade 1 Professor(a), vocé pode trabalhar o video Os primetros brasileiros, disponivel no exdereso , de acordo com suas possibilidades e a realidade escolar, com especial atengao ao trecho iniciado em 09min12. Ao passar o video, voce pode chamar a atengao. dos alunos para o trecho sugerido, quando ¢ tratada a “morte do in- dio” no século XIX e sua relagéo com a extingao dos aldeamentos no Nerdeste. F interessante estimular o debate entre os alunos demons- trando ques elaboracao da identidade do Bresil ocorreu nesse mesmo periodo, como explicado no video. O debate sobre o documentirio pode ajudé-lo(a), professor(a), a desconstrui: junto com os alunos os esterestipos relativos aos grupos indigenas que passaram por longos processos de misturas e a reafirmar a importancia da presenga indigena na formacao da sociedade brasileira. Texto de apoio para o(2) professor(a) © documentério Os orimeiros brasileirs fol elaborado a partir de uma visita guiada a exosigio de mesmo titulo em cartaz no Mu- ‘seu Nacional (Rio de Janeiro) entre setembro e novembro de 2009, © objetivo da exposicao era produzir uma narrativa sobre a importancia Captule 3 Identidades Indigenas no Nordeste da presenga indigena na formacio do Brasil do periodo colonial até a atualidade, bem como desconstruir esterestipos e contribuir pera ‘uma visZo trais plural sobre o pais. Por isso, so trebalhadas algumas ‘questdes mais especificas, tais como o primeiro momento de encontro entre indios ¢ europeus e oencantamento destes com o “Novo Mundo”, © uso da forza de trabalho indigena, a formacio dos aldeamentos ¢ a catequese, a traasformagao das aldeias em vilas nos moldes portu- gueses no século XVIIL Jd sobre o século XI, & ilustrativa e didética a forma como a “morte do indio”, ou seja, a construgao do discurso sobre seu desa- parecimento gracual na sociedade brasileira, é construfda no video, sendo representada por meio de pinturas, discursos politicos, obras académicasclitersrias. Assim, torna-se possivel perceber as conextes entre essas representages, a a¢io do governo em extinguir as aldeias Indigenas e « formagio da imegem sobre a nacao brasileira através das representagées do indio como her6i nacional. O indio que era contemporaneo aesse discurso, 0 que ocupava as aldeias que conse- guiram se mantereram vistes como degradados, mesticos, e, por isso, serviriam ap:nas como mio de obra barata em fazendas e engenhos. O individuo nnestigo nao serie considerado “indio puro” e, assim, nio teria o direito as terras coletivas das aldeias, Enquanto isso, 0 indio aliedo, que ajudara no processo de colo- nizagdo nos séculos XVI ¢ XVII, seria eleito como representante da nacionalidad: em construgéo no pais. F interessante perceber que, nas charges, 0 individuo que representa o Brasil esta sempre caracterizado com tragos que seriam “tiicamente ind/genas”, tais como 0 uso de ppenas e outrcs materiais naturais em suas vestimentas, Conveniente- mente, esse seria « indio do passado, Em umanarrativa critica & imagem de inevitével desaparecimento dos indios no Brasil edo seu opesto comoherdi nacional, o documen- tario vai aos pouces afirmando as grandes mudances pelas quais essas populagdes passaram devido aos intensos contatos entre indigenas de grupos diferentes, e destes com nao indigenas. Essas mudangas so compreendidas enquanto reelaboracdes de identidades coletivas fazendo parte, assim, do que é ser indfgena no século KIX e também 103 no Ensho (¢)e Histéra Indigena 1a contemporaneidade. O individao miscigenado pode ser considerado nndfgena se assim de se identificare for identificado pelo seu grupo, por sua coletividade, independentemente de suas caracteristicas fisicas ou culturais, Dessa forma, vérios grupos indigenasno Nordeste passaram a reivindicar 0 direito As suas terras coletivas no inicio do século XX, um movimento que tem continuidade até 0s dias atuais. Esses grupos mantiveram, de alguma forma, alguns rituais imprescindiveis para a reafirmagio do sertimento ce coletividade, bem como z continuidade «lo uso de espagos situados nes éreas dos antigosaldeamentos coloniais, ‘Sos poucos, os indlividuos fozam perdendo a vergonha (ou medo} de se ‘mostrarem como indios e reclamarem seus diteitos, chegando 4 arti- culagio politica percebida nos dias de hoje na regido. Ficha técnica Os primeiros brasileiros Ano: 2011 Diresdo: Bruno Pacheco de Oliveira ecuradoria da exposigdo: Joio Pacheco de Oliveira Laboratério de Pesqtisa em Btnicidade, Cultura e Desen- volvimento (LACED); Museu Nacional; UFRJ. Duragdo: 17min20 Sugestio de atividade 2 Existem duas imagens xnuito comuns em relacio aos indigenas xno Brasil, e no Nordeste em particular: 0 indio do passado, idealizado com caracteristicas fisicas e culturais especificas; e 0 indio do presente, mestigado, indolente e sem terre. Os textos abaixo descrevem berm essas duas rep:esentacdes. Por um lado, temos c indio Peri, com as ca- racteristicas iCealizadas do povo Guarani, guer-eiro, porém submisso 20 partugués e a seu projeto colonizador. Por outro lado, temos Joao Mundu, caboclo pernambucano, remanescente mestigo dos fndios do pesado. Ao comparar os dois personagens, voce, professor(a), pode orientar um debate entre osaltunos, conforme as possibilidades de que dispoha para seu trabalho escolar, apontando as diferengas Capitulo 5 Idersidades indigenas no Nordeste e semelhangas entre Peri e Jodo Mundu. £ interessante essaltar que um dos personagens, o indio Peri, era visto como uma representaco da nagao brasileira segundo os ideais das elites intelectuais de finais do século XIX, enquanto o outro rersonagem, 0 caboclo Joéo Mundu, era a imagem do indio misturado, destituido de seus direitos sobre as. terras das aldeizs. © debate sobre as duas imagens pode contribuir para seu trabalho em sala de aula no intuito de dirimir preconceitos em relagio as culturas e identidades indigenas transformadas ao longo de séculos. Com isto, vocé itd ajudar aconstruir um olhar meis agucado ¢ critico entre os alunas sobre os precessos histéricos de transformagao ereconstrugdo de identidades e culturas indigenas. O guarani —José de Alencar “Em pé, no meio do espago que formava a grande abébada de rvores, encostado a um yelho tronco decepado pelo raio, via-se ‘um indi na ‘Jor da idade, Uma simples tiinica de algodéo, a que s indigenas chamavam aimaré,apertada & cintura por uma faixa de penas escarlates, cafa-lhe dos ombros até ao meio da perna, ¢ desenhava otalhe delgado eesbelio como um junco selvagem, Sobre aalvura diéfana de algodio, a sua pele, cor do cobee, brilhava com reflexos dourados; os cabelos pretos cortados rentes, a tez lisa, 0s | olhos grandes com os cantos exteriores exguidos pata a fronte; a pupila negra, mébil, cintilaate; a boca forte mas bem modelada e guamecida de dentes alvos, davam ao rosto pouco aval a beleza inculta da graga, da forca eda inteligéncia, Tinha a cabeca cingida poruma fita de couro, a qual se prendiam do lado esquerdo duas plamas matizadas, que descrevendo uma longa espiral, vinham rogar com as pontas negras} pes:ogo flexivel. Era delta estaturas tinha as méos elicadas: a perna dgil e nervosa, ornada com uma axorca de frutos ariarelos, apoiava-se sobre um pé pequeno, mas firme no anda-e veloz na corrida. Seguravao arco eas fechas coma | mic direita calda, ecom a esquerda mantinha verticalmeate diante | de si um longo forcado de pau enegrecido pelo fogo.” (ALaNcar, [1857] 1996, p. 14) mm m Ensino (d)e HistiaIndigena “O caboclo” — Estévao Pinto “Joao Mundu, em se acordando, cuspia, bocejava e estiracava-se, | Quem era Joio Mundu? O caboclo pernambucano, o cruzado | de elementos dispares c formadores, a soldagem que se diluia na fluidez multiplice dos termos ~ cariboca, mamaluco, ‘tapanhu- ma’, carijé... [..] Vivia entre os picumas... Seus avés, cariris ou | sucurus, ocupavam.se em fazer 0s ar

You might also like