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st 2 a oO oO sg g oo 1 os a s °O q & & ~S 9 ~~» sg a ° uv 3 <4 6 ‘ & a a . a q &e a & s uu 6 ee FRANCESCA CRICELLE i oD 4 eG OM SO SCHHAHSHHOHICHEEPOH DWH ' Encontrei minha rmorada mune territ6rio de fronteiras incertas, 4 Somdtta, | i la guar gu | com as quats normalmente defina 0 pats oe | da minha tmaginagdo igi \NURUDDIN FARAM, REFUGIADOS OE GREU ® POTOGOSHSHGOHES © desenho, ou seja, a terra que no existe ‘Sheeke shecko sheeko xartr. ‘Hist6ria histéria ch histéria de seda... Assim comegam todas as faébulas somalis. Todas as que minha mae me contava quando eu era crianga. Fa- Dulas que, principalmente quando torcidas, jorravam sangue, Fibulas faraniinadas de um mundo nomade que nao se preocupava com as-rendas e crinolinas, Fabulas mais duras do que um batt de cedro. Hienas ‘com baba gosmenta, criangas evisceradas e recom- postas, astticias de sobrevivéncia, Nas fabulas da ma- mie no havia princesas, palécios, bailes nem sapa- tilhas, Suas hist6rias refletiam o mundo em que ela nasceu, os matagais da Somélia oriental onde homens e mulheres moviam-se continuamente & procura de pocos d’igua. “Leviivamos a casa nas costas’, dizia- -me sempre. F, se nao era realmente nas costas, era quase. © melhor amigo do homem, o nobre drome- dario, muitas vezes levava-a por eles. 1 Tarantinaio 6 um adjetivo italiano forjado pela autora para ‘Gescrever fabulas nas quals preponders o elemento irracional 0 adjetivo deriva do substantivo tarantim, fendmeno difuso 1a regio italiana da Puglia desde « Ldade Mecta que se refere ‘um tipo de malestar que se manifestava especialmente nas raulhotes. Segunda a tradicéo popular, quem era picado por ‘uma tarantula cala num profundo estado de cre peicofisica {a qual s6 conseguia saie mediante o abandono do corpo & «danga ©€ repetigdo de movimentos histéricose convulsos com ‘a finalidade de expeliro veneno. It. a partir daw.A] Era uma vida dura a que mamie Kadija levou até os seus nove anos. Ainda jovem, ja era uma boa pastora, ‘Ordenhava cabras e vacas, culdava dos camelinhos, co- zinhava o arroz com care ¢ nunca reclamava dos calos nos pés que Ihe surgiam a cada migrago que fazia com sua enorme familia. As hist6rias eram a melhor forma de no pensar nas dificuldades da vida real. Os fins pe- rigosos e endiabrados, as bestas ferozes ¢ sedentas de sangue, os herdis com qualidades magnificas serviam para esquecer que a vida nao cra uma dadiva ¢ que de- via ser preservada todos os dias com grande forga de vontade. “Porque a forca de vontade € a tinica coisa que realmente nos torna livres” dizia 0 vov6, 0 senhor Jama ‘Hussein, o pai da minha mae a quem nunca conhect. Avida da familia um longo ato de vontade. Quando mamie me contava suas histérias, cuynas- cida ¢ criada em Roma, tremia mais do que uma vara verde. Mas nao fugia, porque eu sempre queria chegar 20 final, Ver 0 mal punido ¢ o bem entronizado. Um mundo maniquefsta que me tranquilizava, Um mundo cruel, mas claro. Além disso, como toda crianga que se preza, eu também era um pouco sédica. ‘Nio, no pensem mal demim, Sou uma mulher doce e sensivel, sou de mel e gengibre, sou canela ¢ carda- momo, Sou aciicar de cana. Sei que as palavras que acabo de dizer me pintam como uma dhigmiirad, uma devoradora de sangue humano, Mas € que nas fabulas escolhemos um sistema de vida ¢ de morte, Juntamo- snos a0 mundo ancestral dos nossos antepassados. Quando li numa antologia escolar a fabula da Branca de Neve, entendi que a Europa c a Africa tém, 12 Entidades sobxenatarais infertores aos anjos, mas principal: ‘mente malignas, dpieas da cultura prétslimica stm. (sa) ‘muita coisa em comum, Na versio original dos irmios Grimm, o final é bem diferente do que todos nds co- nhecemos. A pérfida madrasta € convidada para 0 ca samento, Mas 6nessa propria ocasido que a rainha mé aga por todas as suas maldades. “Nas brasas jé esta~ ‘vam prontas duas pantufas de ferro: quando estavam incandescentes levaram-nas até ela, foi entdo obrigada acalgar os sapatos ferventes e a dangar com eles até queimarem-se miseravelmente seus pés.e cair no chao, morta." Justica feita! Grimilda queimada! Queimada! Grimilda ¢ como a implacdvel devoradora de ho- ‘mens Aarawelo, ¢ Wil Wal parece safdo do mundo de Andersen. Nossas Mébulas so mais proximas do que se possa imaginar. E talvez também nos o sejamos. ‘Roma c Mogadiscio, minhas duas cidades, so como ‘gemeas siamesas separadas no nascimento. Uma in- clui a outra e vice-versa, Pelo menos é assim no uni- vorso dos meus sentidos. Entendi isso numa tarde, ha quatro anos, numa co- ina bagungada da Barack Street em Manchester. O Barack que dava nome a rua nada tem a ver com o Obama. Hé quatro anos, Obama ainda no era nin: guém, era so um mero senador que sonhava o impos- {3 Aaraweloe Wit Wal sio personagens ds febulas somali, Aa ‘wel cra uma rainha muito temlda e queria preservar as mu Inetee da maldade dos homens. A lends narra gue tera eriado lum reino s0 de mulheres, no qual os homens estan ausentes ‘ou, Id vivessem, cram castrados para nio perturbar a paz da- {quele mundo feminino. Porém, a rena foi aseassinaca por uma [Parente homer, Wil Wal (garote lonco"), que ela mesma hava ppoupado de ser castrado, Seu corpo fol quelmade eas cinzas ¢s- pPalhadaspor todo oreino somali no qual, até hoje, tixmulos de ‘pedra conbecidos como “tumbas de Aarawelo" Conta-setambéra ‘que, 2p6s a sus morte, como vinganca, os homens teriam insti ruldo pritics da infbuagdo, a muulago genial feminina x4) »® oe sivel O Barack da rua fazia-me pensar em outras coisas, ha quatro anos, principalmente no étimo di palavra arabe “benzer” Ba Ra Ke, trés letras da sorte que formavam a bendita palavra. Eu intuia que naquela cozinha bagungada da Barack Street, ou seja, arua da éngio, algo havia acontecido, De fato, aconteceu. Ao descrevé-lo agora, parece algo corriqueiro eno funds banal. Mas olhando a posterior, foi o comego de wm per- curso coletivo na histGria familiar que nao tem igual. Nura, minha cunheda, tinha preparado um frang> suntuoso. Foi assim que tudo comegou, Um anime] comum, grasnante e com penas, ¢além do mais mort>, recheado de guloscimas ¢ espalmado com unguen- tos. Eu odelo frango. Como-o apenas por habito, mas sempre me pareceu um prato supervalorizado, Nao tem gosto de nada, lembra-me um corzedor de hospi- tal owafila de refeitorio de empresa, repleta de frus- tragdes. E nutrigéo, néo é prazer. Assim, quando Nura, com seu jelto hilério, anunciow Maania doaro macaan, hoje um bom frango, eu me disse, “Pronto, hoje nao se come. Mas ao conttario, ew estava errada. Nao sci bem que prodigio Nura fizera com aquele frango, ms © fato € que nao s6 estava muito bom, estava divine. Desfazia-se na boca ¢ cada um de nés comensais tere, Por um dtimo, a visio paradistaca do seu proprio jer- dim de Eden. Por um momento, a terra desapareceu Aebaixo dos nossos pés. F foi depois desse frango que as histOrias se encontraram e se abragaram. De ber- tiga cheia, nos abandonamos as lembrancas da nosta antiga terra, jé distante,jé desaparecida. A partir disso, 4. Minin casa é onde estou fo langado na Ilia em 2010, por- ‘tanta, a autora se refere a Barack Obama antes de 2006, 011 sa, ‘quando cle ainda era somente senador nos gas. (x-7) um sentimento dificil de explicar ocupou nossas al- mas, Nao era melancolia, nao era tristeza, nao cra choro, ndo era alegria. Bra algo na fronteira de todos esses impulsos. Chico Buarque, o poeta e cantor bra- sileiro, teria certamente definido 0 sentimento como Saudade, Que linda palavra! Uma palavra intraduzfvel noutras linguas, mas téo clara, como somente 0 nosso nome numa noite de lua cheia consegue ser. Um tipo de melancolia que se sente quando se esté ou se foi muito feliz, mas na alegria se insinua um leve sabor amargo. E € nessa saudade de exilados da nossa pr6 pria terra mae que acontece um dos comegos dessa histéria. Digo um dos comegos, pois ela néo se ini cla nunca uma s6 vez na vida. Nunca num s6 lugar, Shecko sheeko sheeko xariir. Hist6ria historia, oh histGria de seda... Waxoa layin, waa isa socday laba rin, wil yar igo naag Dhallingaro ah, kooxati waxay bilaaben tn ap sawiraan Whariidada mogeladooda, Dizem que estavam juntos, dots homens, um garoto ‘euma mulher jovem. O grupo comecou a desenhar sua propria cidade, Aquele grapo era formado por mim, meu irméo Ab- dulcadir, seu filhinho Mohamed Deq € 0 primo O. Estévamos todos reunidos ao redor de uma mesa de madeira. Diante de n6s, uma xicara fumegante de chi com especiarias. Ao nosso redor, os fios das nossas viagens e dos nossos novos pertencimentos. Fazia: mos parte da mesma familia, mas nenhum de nés tinha feito um percurso comum ao outro. No bolso, cada um de nés, tinha uma cidadania ocidental dife- rente, Porém, no coragao, traziamos a dor da mesma perda. Chordvamos a Somélia perdida na guerra que tentiivamos entender com dificuldade, Uma guerra iniciada em roo da qual ninguém entrevia o fim. Eramos um pouco como aquelas antigas piadas. Um inglés, um italiano e um finlandés entram num bar... Meu irmio é inglés. Abdul, depois de ter dado a volta 20 mundo, fixou-se no Reino Unido, onde se ca- sou c onde nasceu scu filho. £ cidadio de Sua Majes tade e hi alguns anos é simpatizante dos trabalhistas ‘Aiinica coisa que ndo suporta da sua amada Albion* é o cheiro de fritura que emana dos restaurante fastfood. Todas as vezes que vai aré Piccadilly com o Gnibus da linha 36, tapa o nariz. com os dedos 0 mais forte que consegue. Mas o fedor de fritura chega até ele mesmo assim, deixando-o aturdido, Para pagar os boletos faz, como todos os somalis, mil trabalhos. O seu preferido é dirigir taxi. Preferido porque ama o desconhecido, ou seja, carregar pela cidade gente que no conhece sem saber de antemao: no fundo, hé dentro dele uma alma nomade. Dirigit deixa-o manso feito um cor- deirinho. Além disso, € um business nada mal, ele diz. ‘Todo final de semana, os ingleses brancos e anglica- nos (ou ateus) embebedam-se, mas depois pegam um téxi nos quais tantos Abdul abstémios mugulmanos sunitas cumprem seu dever com grande pericia. primo O., pelo contrario, tem uma hist6ria inert vel. Ele tem cidadania finlandesa. Assim como sua es- ;posa e seus sete filhos. Chegou ao Reino Unido quase poracaso, Talver.s6 por desespero. Seu passaporte tem ‘uma cor 4spera, € quem pousa 0 ouvido sobre aquele 45_Alln, antigo nome do Reino Unido, atestado no sécalo vt ‘AC, e ainda presente no uso literrio. bx. papel rigido consegue ouvir o sibilar do vento do Norte. (Oprimo O. nunca engoliu Helsinki nem sua cidadania Sinlandesa. Do seu pafs de adogio, ndo gostava nem do gelo nem da lingua, A esposae os filhos, assim que che- garam, aprenderam rapidamente aquela lingua cheia de sons guturafs, mas ele sentia um prurido. A Finlén- dia era uma terra de oportunidades, o primo O. tinha nogio disso, mas mesmo assim seguia nio gostando nada daquele pats, Por varios meses, para o primo O., a Finlandia continuou sendo apenas a terra dos skin- heads. Nas ruas do subGrbios de Helsinki, onde vivia, sentia sobre si ols ferozes e maldosos: uma sensaciio que tinha experimentado somente em Mogadiscio em 1g9rna véspera da eclosio da guerra civil. primeiro indicio de que algo nao ia bem foi quando viu um par de botas pretas cravejadas expos- tas na vitrine de um sapateiro do bairro em que vivia. Depois, notou uma suéstica no muro. Uma hora mais tarde jé nao havia uma suéstica. A prefeitura, diligente © equipada, jé havia se mexido para apagar todos os vestigios daquela inffimia. As sudsticas surgiam e de- sapareciam na velocidade da luz, Mal dava tempo de vé-las ¢ alguém jé intervinha prontamente para apagé- las. Apareciam no somente nos muros, mas tam ‘bém nas pessoas, nas roupas, nos bracos, no peito, ‘nas mochilas escolares, raspadas no cranio ou nos ‘abelos curtissimos. Uma noite, alguém ligou para a casa do primo O.: era a esposa de um antigo amigo. primo O. ndo entendeu muito bem aquela ligagtio 140 agitada, £6 entendeu que alguém havia ferido 0 seu amigo. Quando chegou ao hospital, entendeu tudo. Um grupo de skinheads decidira usar 0 amigo ‘como saco de pancadas ¢ bateram nele até desmaiar. Prognéstico de internacio, dois meses. A pior coisa % foi uma sudstica na testa, no raspada, mas cravada mum local cm que néo tinha cabelos. Nenhuma prefe:- tura, por mais diligente que fosse, conseguiria apagar aquela perfidia, pensou o primo ©. Porém, no fim das contas, 0 amigo teve sorte. A esposa poderia estar cho: rando um cadaver, iquela altura, e nao um ferido. No peito do primo O., aquela noite, firmou-se uma decisao. Decidiu que iria se.mudar para o vizinho Reino Unido. 1d havia varios familiares seus, 0 que seria ideal para recomegar (pela terceira ver) a sua vida. Seu cora- Go sobrevivera a uma guerra e ele néo tinha a menor intengo de enfrentar outra em solo europeu. Eu, a0 contrario, era a italiana da piada. Os somalis do Reino Unido nao entendiam essa minha obstinagao em permanecer na terra dos nossos ex-colonizadores. “Mas 0 que & que vocé esti fazendo 16?” perguntavam-me todos. Alguns acrescentayam com maldade: “Vocé nera tem um marido”. A Itélia era vista pelos somalis do Reino ‘Unido como a pior escolha posstvel. Um pais em que ura refugiado somali néo tinha nenhuma ajuda do governo, nada de casa, nenhum subsidio, nenhum sistema de mi- tuo socorro, Um pais em que o racismo serpenteia tor- pemente once menos se espera. E onde invariavelmente ‘a gente acaba casando com um branco. Isso, para mti- tos somalis, era uma vergonha absoluta. “Mas nao quer alguém bonito, alto, do seu povo? O que quer fazer, ser madame, como aquelas pobres mulheres durante 0 col>- nialismo? As amantes dos italianos que, invariavelmente, a0 final da missZo, eram abandonadas com a prole € cs problemas? Vocé quer ter o mesmo fim?” Claro que nao! Mas era dificil explicar 0s meus m>- tivos. A Ttdlia era o meu pais. Cheia de defeitos, claro, mas meu pats. Sentia-a profundamente minha. Como também é a Somilia, que abunda em defeitos. Dizer “eu amo a Itélia” nfo teria funcionado. Nao teria sido ‘uma boa defesa. Explicar que eu trabalho com a lin- gua italiane ¢ que isso também é uma tarefa titénica, Bera melhor nio revelar minha complicadissima vida sentimental, Portanto, eu aprendera a falar sobre a Itélie somente com quem era capaz de entendé-la. De resto, eu me limitava a resmungar em ver. de respon- der. Mas quanto a algo eles tinham razo para dare ‘vender: a Itélia se esquecera do sew passado colonial. Esquecera de haver criado um inferno aos somalis, 0s eritrets, aos Iibios e aos etfopes, Apagara com fa- cilidade aquela hist6ria simplesmente passando um ano por cima Isso nao significa que os italianos tenham sido pio. res que outros povos colonizadores, Mas eram como os outros. Os italianos estupraram, mataram, zombaram, poluiram, depredaram, humilharam os povos com 03 ‘quais estiveram em contato. Agiram como os ingleses, ‘03 franceses, os belgas, os alemaes, os norte-amert- canos, os espanh6is, os portugueses. Mas em muitos desses paises houve, ap6s a segunda guerra mundial, ume discussio, houve brigas, as trocas de pontos de vista foram asperas ¢ impetuosas; questionou-se o im: perialismo e seus crimes; estucios foram publicados; 0 debate influenciou a producao literéria, ensaistica, ci- nematogrifica e musical. Na Ilia, ao contrério, houve silencio. Como se nada tivesse acontecido, Isso. La estivamos 0s trés com o frango da Nura em nossas barrigas ¢ tinhamos nossas trés cidadanias no bolso, todas diferentes. A digestiio em andamento. Meu sobrinko fazia avidezinhos de papel 20 n0380 ado. Talvez fosse um momento de pura felicidade, Nao sei qual de nds se Jevantou e rompeu a magia. ‘Com certeza fui cu: néo sei ficar parada muito tempo. Tive vontade de comer algum doce. Peguei uma caixa de bolachas, abri e a coloquei no centro da mesa. © primo O. ¢ Abdul comecaram a pegar aos punha dos, eu peguel s6 uma. O garotinho nao deu nem uma olhadinha para a caixa. Estava muito entretido com of seus avidezinhos de papel. ‘Tudo comegou com uma pergunta minha. Eu era a tinica com a boca vazia, sem biscoitos para saborear e sem avidezinhos pata me ocupar. Ainda hoje nio sei por qué fiz aquela pergunta. Nzo sel se fot ditada pela simples curiosidade ou se eu me tornara 0 mo- tor inconsciente de um destino. A pergunta nao era para ninguém cm particuler, talver eu s6 estivesseme questionando em voz alta, “Como se chama 0 cemitério onde a vov6 Auralla esti enterrada?” ‘Os dois homens ¢ o garotinho me olharam con- fusos. Um olhar torto, um pouco perpleso, parado no melo. “E entdo”, insist, “onde esta enterrada?” © primo O. foi o primeiro a procurar uma resposta: “No cemltério Sheik Sufi, aquele dos tiimulos azuis... lembro-me... lembro-me... 1d que ela estd en- terrada. Com certeza”. “Mas 0 que voce esta dizendo?” meu irmao Abdul quase gritou. “Dada esta enterrada com 0 vovd, no ce- mitério geral Dau.” “Nao € verdade, mentiroso!” aqueceu a voz o primo (0. “Eu sou mais velho do que vocé ¢ lembro-me me Thor de Mogadiscio. Vow6 esta enterrada em Sheik Sufi” 6 “Mentira! Vocé nao lembra nada de Mogadiscio... estava sempre trancado com os seus livros ¢ a sua sa bedoria. Nao via o mundo. Eu sim, andei muito por Mogadiscio. Eu era maroto. Nao por acaso todos me chamavam de bérbaro. Eu faltava a escola. Aquelas ruas cram a minha sala de aula. Aquela cidade entrou- -ine no sangue. Lembro-me dela melhor do que voce. Poderia até desenhé-la. F isso, cu poderia até fazer um desenho de Mogadiscio para vocé, primo, ago- rinha mesmo.” “Que boa ideia, papai’, disse 0 garotinho, tirando: “nos dos eixos. “Vamos descnhar?” Os dois homens olharam para Mohamed Deq como se ele estivesse louco, Depois, lembraram que ele era apenas um gatotinho, ¢ bem excéntrico, entre outras coisas. Deq..” disse o pai. Meu irmao Abdul me deu aguela olhada incerta. Talver sentisse pena por me ver em minorla. Decidiu seguir a mim e seu filhinho naquela estranha loucura do desenho. “Vocé tem razio, meu amor, vamos desenhé-la agora” ‘Naquele momento, eu queria dar um beijo em meu irmao mais velho. “No meu escrit6tio ha de tudo”, murmurou baixi- nho meu irmio, um pouco acanhado. Amar o desenho € quase uma macula. Poderia ter se igualado a Picasso ‘em competéncia, se tivesse desejado, se tivesse estu- dado. Mas depois, nos anos, quase todos tinham dito a cle que desenhar era coisa de crianga, uma coisa 7 ® @ e ® 2 = a ® = ® e Ss s eS e S Se @ 6 2 ® e e esttipida. F ele acreditou. “Voce é um homem grande e creacido, precisa encontrar um trabalho”, diziam, E ele o encontrou. Jé tinha feito mil tipos de trata- Iho. Taxista em Londres, atendente do Seven Eleven em Bristol, vendedor de sapatos nas banquinhes dos mercados de bairro, até acabar em Manchester como mediador cultural’ numa repartigio precdria da pre. feitura, dirigindo o taxi no final de semana. “E un bom trabalho, sabe, irma?” Porém, ainda hoje, ao vol- tar para casa, sempre desenha 4 noite. Desenha suas Jembrancas de quando cra crianga. Os pombos de ¢s- timagéo, os camelos fazendo amor, os babuinos bobos que brincam com o ar, a areia do mar de Jazeera, as lagostas que levavamos de coleira para casa. Desenha ‘seu filho Mohamed, a sua mulher Nura, desenha a simesmo, a nossa mie, 0 nosso pai me desenha com meu pescogo longo. E elas também, as gémeas Moga- disclo e Roma. Enguanto isso, Mohamed havia encontrado 0s lé- pis de cor. Tirei da mesa tudo 0 que nfo vinha 20 caso. Abri bem o papel ¢ perguntei: “Entio... por onde co- megamos?” © primo 0. tinha um olhar diferente. Parecia mzis Jovem, Foi ele quem deu a partida: “E claro que deve ‘mos comegar por Maka al Mukarama”. “Sim’, disse Abdul, “Maka al Mukarama.” Ele tam- bém tinha um olhar diferente, ‘Met irmao comegou a tragar uma linha azul no pa- pel imaculado, Arua, a coluna, Maka al Mukarama, 6 Mediedor cultural €e pessou que temo trabalho de feciltar ‘ag relagdee entre os moradores de um determinado pais com cs cidados estrangeiros, com a Intendo de promover um co- hecimonto reefproco © comproensio mtu x.) 7. Praia préxima a Mogadiscio.(t.4 8 Desenhavamos Maka al Mukarama porque as nos sas lembrancas estavam esmaecendo. Nossa cidade havia morrido apés @ guerra civil; os monumentos destruidos, as ruas dilaceradas, as consciéncias en: ‘cardidas. Precisavamos daquele desenho, daquela ci- dade de papel para sobreviver. Maka al Mukarama era um evento, Era a artéria pul- sante de Mogadiscio, sua coluna vertebral. Bra uma rua comprida que atravessava a cidade de um lado ao outro. Os passos dos mogadiscianos, querendo ou nio, sempre terminavam em Maka al Mukarama. O nome era arabe, naturalmente, como o nome de tantas coisas na Somalia: Maka, Meca; Mukarama, @ favorita. & assim que os islamicos chamavam a c dade mais sagrada de todas. Meca, a favorita de Deus, como Medina, que acolheu profeta Mohamed (que Deus 6 tenha em sua gloria) era a iluminada de Deus. Antes de se chamar Maka al Mukarama, a rua tinha ‘um nome italiano, um nome dado pelos fascistas e do quel ninguém gostava; agora ¢ até dificil recordé-to. ‘Talvez avenida Fulano? Na época dos fascistas tudo era avenida Mogadiscio. A cidade era disposta ao redor dessa artéria pulsante. Os bairros tinham um sentido (ou nao o tinham) segundo a sua distancia dessa nascente de vida. Maka al Mukerama ainda existe. Hé uma Maka al ‘Mukarama até na Somalia da guerra civil, mas agora & um fantasma, Nao parece a rua do passado. Nao pulsa mais. Nao é animada pelo alarde das buzinas, pela algazarra dos dromedarios, dos gritinhos das jovens mulheres apaixonadas. Agora, 05 tinicos sons io surdos ¢ estrondosos: ordens c bales; siléncio ¢ » | morte, Nem os muezins* chamam os fiéis para a reza ‘como no passado. Scu chamado assola quem 0 ouve. Parece hesitante, sem convicgio. As ajuzas, velhas ‘comadres, que sempre sabem de tudo, dizem que & “Iblis? em pessoa que murmura as palavras erradas 08 ouvidos atentos do muezim”. Acho que elas tm yazao, a guerra é um Iblis, um Satanés que murmura sempre a palavra errada para aos homens. Allah, cle- mente ¢ misericordioso, revela no Alcordo que Sata nas, Iblis, waswasa, sussurra ao coracao dos homens € 0s enlouquece, os cega, torna-os intitels. A voz do auezim perde-se num borbulhar desconexo, E os mogadiscianos, até mesmo os da diéspora, como eu, convertem-se em pobres seres desconexos. Para ndo esquecer Maka al Mukarama, naquela noite, eu, meu primo O. e meu irmao mais velho Abdul (um irmao que parece um desenho animado pela forma como ri ¢ como sabe ser bom com todos), tentamos desenbé-la, Tragamos uma longa linha azul. Depois,o primo O, comegou a enumerar nomes a gra- nel. Nomes, nomes, e mais nomes. Apontava os espa- G08 ent branco no papel de desenhar e amalgamava-os com suas lembrangas, como os ovos na massa. “Aestatua de Xaawo taako,o teatro, ahhhhhhh, olha © ex parlamento, 14, estéo vendo... sim ali, ali esté 0 ‘meu cinema preferido, o cinema Xamar... nunca mais viuma sala de cinema assim, Durante 0 colonialismo, os italianos no permitiam a entrada de somalis. Ah, eles implicavam conosco pois nos recusvamos 8 Naliturgia islémica, ¢ omuezim quem deve pronunciar, do alte de um minarete, a formula para chamar os Hes 8s cinco preces esiabelecdas pelo Alcorio em cinco horérios diferentes durante o dia. (a 9 Nome peto qual o disho & conhecido no islamismo. (8.4) a fazer a saudacio fascista. Nisso, fomos os tinicos da Africa oriental, Pessoas iniiteis, os fascistas. Mas aguele cinema era bonito, dois andares, poltronas vermelho-sangue, veludo, Era todo macio, como 0 corpo de uma mulher. Depois, quando os italianos foram embora, meu pai, que viveu sob o fascismo, ia sempre ao cinema com seus amigos. Eu também tinha amigos na Somalia antes dessa guerra infame que esté devorando nossas recordages. Os meus amigos, oh! 0s meus amigos: Osman, Nur, Abdi, lembro-me de to- dos eles. Nés também famos ao cinema Kamar. Mas ja éramos independentes, estvamos livres do colonia lismo, No cinema Xamar, nao havia mais 0 apartheid. Havia filmes norte-americanos dublados em italiano, caubois contra fndios, tantas hist6rias de amor. Ava Gardner, Marilyn Monroe, belas mulheres, tantos so- nhos. O cinema Xamar, era mesmo." Estava entusiasmado, o primo O. “Marque-o em nosso mapa", cu disse peremptoriamente, “pega um lapis vermelho-fogo e marque-o.” Foi estranho, para mim, ouvir 0 primo O. falar tanto daguela maneira, Fle nunca fala, normalmente limita-se a concordar e muitas vezes nem isso. E um viajante come todos nés. Os scus pés tem tantas hist6rias para contar. Mas na cabeca, sempre teve Mogadiscio. Uma cidade morta... ‘Tantas cidades morrem. Da mesma forma que a gente. Morrem como qualquer organismo, Morrem ‘como os gnus, as zebras, os bichos-preguiga, as ove- Ihas e 08 seres humanos. Mas ninguém nunca faz tum funeral para uma cidade, Ninguém fez. o funeral de Cartagena. Ninguém o fez para Nova Orledes. Nin- guém 0 fez para Cabul, Bagda ou Porto Principe. E a ninguém nunca pensow em fazé-lo para Mogadiscio. Ela morreu. E algo diferente surgiu dos escombros. ‘Nem tivemos tempo de elaborar 0 luto. Quando uma cidade morre, nao lhe dio nem 0 tempo para pensar. Mas a dor é um cadaver, decom- pOe-se dentro de sie Ihe infesta de fantasmas, Meu irméo continuava colorindo, colorindo, colo- indo. Eu sentia um n6 no estmago. Nao era o frango da Nura, era a saudade dé Chico Buarque. Depois, meu irmio se deteve, ficou parado nun ponto preciso do papel. “O que vocé esta olhando?” perguntel, com umia estranha reveréncia. “£ a Guglielmo Marconi”, o primo se adiantou. “Sim, primo, como que voc® adivinhou?* © primo ©, sorriu. Perguntei-me se essa risada inesperada teria Ihe paralisado o rosto. Por um timo preocupei-me com a sua felicidade. Depois, enten3i ‘que era a felicidade do exilado, que nao provoca qual- ‘quer paralisia facial. “A Guglielmo Marconi era a minha escola primé- ria, depois com a chegada da ditadura de Siad Barre” mudaram-the 0 nome para Yaasin Cusman. Isso me fez lembrar da minha professora. Era uma freira ita- liana, sabe? Chamava-se Maria, como todas as freirss, e adorava Pascoli."* To. Siad Barre 1919-1995), comandante do exércitoa partirde 1965, fo presidente e ditador da Soma, aps dar um golpede Estado em 1969, mantendo-re no poder a8 1991 [¥.4.) 18 Giovanni Pascoll (855-2022) fo um poeta Htaliano e tn cestudioso da literatura clissica. Teve uma infincia trdgica. ormoue na Universidade de Bolonhs em 1889 ¢ foi um cos principals expoentes do decadentismo na poesa allan (1.1 Eu também tinha lido Pascoli na escola. Tinhamos cxescido em dois paises diferentes, eles em Mogadts- cio, eu numa periferia de Roma, ¢ tinhamos lido Pas- coli. Os mesmos poemas tristes. Feiuras da hist6ria, ‘Talves tanto eu como ele deviamos ter lido outras cot sas: a nossa hist6ria africana, por exemplo. Mas, pelo contrdrio, os africanos sempre tiveram que estudar a historia dos outros. E assim nos convenciamos de que éramos descendentes dos romanos ou dos gauleses ¢ nio dos iorwbas e dos antigos egipcios. A escola colo- nial semeava dividas e dilaceragdes na gente. ‘A Guglielmo Marconi... indo engano! Depois voltamos a nds. Voltamos ao desenho. “Precisamos de um método, meninos’, comecei a tagarelar como um velho general aposentado, “preci- samos dar a cada coisa uma cor. E depois fazer listas.” Concordaram, déceis. E sempre uma boa ideia, acho, colocar ordem no caos. Ficamos nessa durante uma hora ¢ ninguém de- monstrou qualquer sinal de cansago. Fizemos uma lista das escolas, outra dos cinemas, uma dos hos- pitais, outra dos cemitérios, uma dos monumentos, outra das embaixadas, uma dos ciirceres, outra dos aeroportos, uma lista de cada coisa, Catalogamos a cidade. E para cada coisa atribuimos uma cor. Depois repartimos as listas, Cada um ficou com a tarefa de marcar nomapa os nomes de sua lista. ‘Deq nos observava estupefato. Adultos debrugados sobre papéis como ele € seus coleguinhas da escola, Mohamed Deq nos ajudow a colorir aquela insélita ci- dade de papel. Era tudo tio estranho, mas também tao familiar. ‘Muitos nomes italianos dos monumentos somalis me faziam rir, eram tio antiguados. Bu fiquel com os restaurantes € os hospitais. Mal ‘me lembrava dos restaurantes, mas forgava a minha memiria para nao ter que pedir informagées a Abdul acada dois segundos, nem ao primo ou mesmo a Nura ¢ & mame que estavam noutro comodo, Claro, eu ti- nha mais conhecimento sobre Roma. Garbatella, Tes: taccio, Trastevere, Esquilino, Primavalle, Torpignattara, il Quadraro” cram regides bem mais familiares para mim. Mas naquele mapa havia uma parte das minhas raizes. Eu tinha que me esforgar para relembrar aque- Jas ruas, vistas com os olhos de crianga. Eu tinha que me esforcar por aquele filho que eu sonhava ter um dia. Faria listas. Sentia-me inundada por sensagOes estra- ‘nhas. Lembrava-me repentinamente do vento leve de Mogadiscio. Eu gostava da rua Roma com suas lojinhas, gostava da feira de animais em Wardhigleey e gostava daquela espécie de circulo dantesco que era Buur-Ka- roole cm Xamar Ja-jab, local em que era facil topar com 0s vapores téxicos do Alco! etilico. Em Buur-Karoole vivia minha tia Faduma, que jd nao esté viva. Era obs- tetra, e muito respeitada. Foi ela quem me contou que ‘0 buarr, o monte, chamava-se Karoole devido ao nome dc um italiano. A Itélia estava por todos os cantos nas ruas, nos rostos dos mestigos renegados. E a Italia nao sabia nada daquilo, nao sabia das nossas ruas com os ‘cus nomes, dos nossos mestigos com o seu sangue. Na 12 Todos beirros de Roma com uma identidade bastante po- pular, Garbatella, famosa pelas casas balxas fol construide ea: tne 08 anos 1920 ¢1950. Testaccio é conhecido pelo seu grande mercado, enquanto Trastevere 6 um dos bairros mais antigos t-combeckdos de Roma. Fsquilino e Torpignattera sio bairros ‘multicularais ¢ multiétalcos, enquanto Primavalle e Quadraro ‘do bairros periferices em que 0 suréntico dialeto de Roma ainda vive. I-A] Italia, algumas ruas tm os nomes da Africa. Em Roma, hi até o baitro africano. Na rua Libia, te diré algum ro- mano, ha belas lojas de roupas, pode-se fazer um bom negocio, E depots? Depois nada. Vao para rua Libia para comprar um moletom. Vivem na rua Migiurtinia ou beljam-se na rua Somélia, Mas ignoram a hist6ria colonial. Nao é culpa deles: ndo se aprendem essas col- sas na escola. Fomos bons, dizem, construimos pontes € fontes. O resto ignora-se, porque nao € ensinado. ‘As minhas listas: os restaurantes ¢ os hospitais. Nunca havia ido aos restaurantes, mas quando era pequena sonhava com esses lugares de gala, Havia o La Pergola, proximo a embaixada norte- americana, 0 Cappuccerto Nero, no qual os italianos sempre se encontravam, mesmo ap6s ter perdido as coldnias, o bar Fiat, a Croce del Sud, o Caffé Nazionale, a Lucciola, 0 Hotel Juba e 0 Avan préximos & Casa Italia, Havia ido varias vezes aos hospitais, pois, mais cedo ou mais tarde, alguém sempre acaba no hospi- tal, Havia 0 Rava, 0 velho hospital dos italianos ricos, © Forlanini, onde tratavam a tuberculose, 0 hospital Banaadir, 86 para mulheres, cujas funcionérias eram freiras italianas, construido pelos chineses, 0 Digteer, onde me operaram o pé. Sim, eu realmente conhecia melhor os hospitais que os restaurantes. Depois de duas horas desenhando, estévamos exaustos. Deg nao. Seus olhos pareciam dizer: “Pintem, pin- tem mais”. Tantas cores, tanto desenho. “Esse mapa € belissimo”, pens Estava orgulhosa, Mas nao o demonstrava. “Bssa cidade existe, mamic?” Deq perguntou a Nura, © que dizer? e 2 Ss 6 € @ q é € t Eu queria abracar o meu sobrinko ¢ explicar-the que aquela cidade 4 no existia hd dezenove anos. ‘Nem aquelas escolas, nem as casas, nem os bairros, mais nada, A guerra destruiu tudo, $6 escombros. Agora lé ha coisas diferentes. Nao essas que esto no mapa. Aque las coisas s6 esto nas lembrangas, nas fotos antigas, nas hist6rias contadas, em preto e branco, nas pagiras da Internet. Jé néo hi mais nada, Mas ninguém tem ‘a coragem de dizé-Lo. Vocé é um garotinho. & lindo. ‘Nenhuma das pessoas presentes nessa sala sabe como dizer algo tdo terrivel a um garotinho tao lindo. “Essa cidade existe?” Minha mae, chegando do cdmodo 4o lado, olhou- -me. Depois olhou 0 sobrinho. Olhou meu irmic, a mulher dele, Depois, sorriu como 86 ela sabe fazer. Com seus dentes branquissimos. “Existe”, disse mamée, simplesmente. “Chama-se Mogadiscio.” Sorri. “Ba sua cidade, tia Igiaba?” Eu néo sabia 0 que responder. A pergunta era re- pentina. Inesperada. Um contra-ataque. Eu nfo con- seguia voltar para meu meio-campo. Embaraco. Minha mie balangou a cabeca. Refletia. “Nao basta” disse quase resmungando. “O qué? “Isso”, respondeu, indicando um ponto entre ea 6 ohorizonte. “Isso 0 qué?” perguntel enti, um pouco irritaca. “Maabia, 0 mapa", suas palaveas misturavam-se, lingua materna e italiano. “Nao basta para tornar sua aquela cidade” 26 “Nao? De verdade?” Eu nfo sabia se estava fazendo ‘uma pergunta ou uma afirmagio. “Claro que niio. Aquela no mapa nao a sua cidade. ‘Nao pode mentir para a crianga.” “io quero mentir para a crianga. Nao poderia nunca. Mas.” “Mas.” “Digamos que é minha de certa forma, Mas tam. bém nao €, Entende, flha?”, ela disse, e depois acari- ciou-me docemente a cabega, Ainda hoje nao sel se entendi diretto aquelas pala- vras. Meu rosto se transformou num ponto de inter~ rogagdio suspenso ne vazio, Ea minha cidade? Ounio &? Eu estava numa encruzilhada. Mamie também disse outras palavras. Nao cap- tei todas, Havia ficado distratda. Mas a Gltima frase era um soco na cara, Um nocaute do qual nao sei se conseguiria me levantar novamente, Alias, naguele ‘momento, eu no queria levantar. Mamie, com a do ura de sempre, havia me provocado. Me aplicara um golpe duro, e sabia bem. Mas sua intengio nao era ‘me destruir ou me humilhar. Tinha me acossado por- que nio sabia fazer de outro jeito. Queria que eu acor- dasse, que comecasse realmente a viver. “Vocé precisa terminar o mapa. Falta vocé li den- tro.” Eu nfio consegui reagir, Nascia em mim uma baita vontade de desistir. Quoria tanto continuar naquele nocaute. Nao levan- tar, Tergiversar. Era melhor ficar estendida, acabada, derrotada, Vegetar. 7 Melhor? Algo, no fundo da minha consciéncia, gritou. “Minka filha, vocé precisa terminar o mapa”, minha mae repetiu. “Por onde comecar?” Fra o que eu queria ter per- guntado ¢ nao o fiz. Sabia que teria que encontrar aquela resposta sozinha. Congelei. Por que aquilo me acontecia? Sou o qué? Quem sou? Sou negra ¢ italiana. Sou também somali e negra. Entdo sou afro-italiana? {talo-africana? Segunda geracao? Geragao incerta? Meet kale?® Um estorvot? Negra sarracena’ Negra suja? ‘Nao 6 politicamente correto chamé la dessa forma, sussurra alguém da sala de roteiro. Ento, como voce ‘me chamaria? Ok, entendi, voc diria de cor. Politicamente cor- eto, diz, Para mim, € humanamente insignificante. Qual é a cor da sua graca? Preto? Ou mais pra mar- ronzinho? Canela ou chocolate? Café? Cevada: em xicara pequena? Sou uma encruzilhada, eu acho. Uma ponte, uma equilibrista, alguém que est sempre no limiar ¢ 1g Um outro lugar k.9. 4 partir da wa 14 Sarraceno ¢ um termo genérico que se refere aos arabes 1nOmades € aos murulmanos, priacipalmente os que se estabe- leceram ne costa do Mediterrineo centro-orlental,na Eapanha coma Sicilia durante a Tdade Média cris. ix.a) 5 Em italiano, orz, bebida feita de cevada que substitul 0 café e€ servida em todos os bares italianos. (x. nunea esté. No fim, sou somente a minha hist6ria. Sou uc os meus pés. ‘Sim, os meus pés... Lembrei-me dos meus pés numa tarde romana néo especialmente interessante, meses ap6s 0 frango da Barack Street. Talvez estivesse entediada ou pensativa, O othar distraido caiu sobre minhas extremidades i feriores ¢ foi uma revelacdo. $6 entdo entendi com clareza 0 que fazer com aquele mapa. Eu nao havia me esquecido daquilo que a mamae Kadija me dis- sera, Sabia no meu coragdo que deveria terminé-lo. Do contrario, tudo seria em vo. Teria traido a mim ‘mesma ¢ especialmente a quem amo. io foi fiicil entender o que fazer. Demorei um pouco, Porém, quando entendi, me apressei. Ful cor- rendo até a senhora Cho, originalmente de Wenzhou, que vende tudo por um euro aqui atras de casa. Fui quase arquejando. Sentia uma leve falta de ar. Com- prei trés pacotes de pust-ir e comecei. Naquele dia, 0 vento soprava de leve. O sol era uma ilusao de pri- mavera. Os pissaros cantavam felizes como nos de- senhos animados de Walt Disney. A atmosfera era bu- Célica ¢ serena. S60 meu coragao desafinava com os batimentos fora de compasso. Parecia também que eu havia recém acabado de correr uma maratona, como Abebe Bikila. E talvez o meu coracio tivesse razio: de fato eu também era uma maratonista. $6 que o meu 16 Abrbe Bitte 1gg2-1973)etletaetfope, duas vezes campedo olimpieo ds maratona - em Roms em: 1960, quando tornou-se o simbolo da Africa que se Uberava do colonialismo europe, em Téqaio em 396... 29 percurso era doze veres a circum-navegacio da terra. Doze vezes a viagem de Magalhaes.” Chegando em casa apoiei os post-it sobre a mesa. Depois, comecet a procurar freneticamente o mapa que eu, meu irmao Abdule meu primo O. tinhamos tra gado na Barack Street. Néo lembrava exatamente onde tinha enflado o fruto daquela estranha tarde, mas sen- ‘tia-me confiante, Em até uma hora devo encontri-o. E de fato, depois de muito revirar, foi o que aconteceu Estava um pouco acabado, 0 mapa, todo abzrro- tado, cianciate; como iriam os romanos. Desamas- sei-o um pouco com as mos, ao maximo que pude. Depois, peguei um varal de roupas, estendi num canto da quitinete onde moro ¢ pendurei o mapa como uma saia recém-lavada com trés pregadores em forma de joaninha. Assim que ficou bem estendido, observei bem aguele mapa bastardo, Quase como um desafic. La estava a Mogadiscio de que nao nos lembrdvanos mais. Tinha o irmio Abdul e o primo O. com os seus amores, suas paixdes, suas tretas, as aulas cabuledas, as rebeldias, Se me aproximasse do mapa com 0 na- riz, conseguiria sentir o aroma de café com gengibre © perfume que emana dos pratos repletos de beer ro rmunfe-® Que alegria, toda aquela comida fragrente! Porém, se me aproximasse assim, emanava tam>ém 17 Fernio de Magalhies (1480-1521), navegador portugues ‘que se impés de chegar ao Oriente navegando em sentide Oci- ‘Gente. Fm x52rtocou as thas Marianas e depois chegou ste at Filipinas, onde fol assassinado num conilito com a popuagio autOctone, it, a partir daw.) 18 Clenctae: amassado, mal dobrado, no éialeto de Roma (3.2. partir da. 19 Beer jorauufe, pratotipico somall: picadinho de figado dé vaca acompanhado de pio tipo feces bs.) ‘@ algum cheiro ruim. Havia as fossas negras carrega- das de excrementos ea carcaga de algum dromedario morto de alguma doenga e abandonado a beira da es- trada. Aquele cheiro despreaivel de morte era com- pensado pelas esséncias usadas pelas mulheres que se desprendiam do papel num brilho de jibilo infinito. Em algum rincio daquele mapa, estava eu também. Eu era pequens, cheia de espinhas, um pouco gor- ducha, com o ar vacilante que eu sempre tinha naque- les meus dias distantes passados na bela Mogadiscio. ‘Eu era subterriinea. Escondida. As vezes me compor- tava como visita, as vezes & paisana. Eu brincava in- terpretando papéis diferentes: zagueira e atacante; africana e europeis. Eu nao nasci naquelas ruas. Nao cresci nelas. Nao fot lé que me deram meu primeiro beijo. Nem me de- siludiram profundamente. Mesmo assim, sentia que aquelas ruas eram minhas. Eu as havia percorrido também reivindicado. Reivindicava os becos, as ¢s- ‘tétuas, 08 poucos postes, Eu também tinha algo em comum com o primo O. e com Abdul. Claro, a expe rigncia deles e a minha nfo era comparavel. Mas eu reivindicava aquele mapa de forma enérgica, como reinvindicaret meu Gitimo dia de vida. Aquela Moga’ discio perdida era tao minha quanto deles. Era minha, ‘minha, minha. E 6 ento que entram em cena os posit comprados da senhora Cho, que vende tudo por um euro perto de casa. Fu nfo queria uma folha de papel: queria algo provis6rio e decompontvel. Os post-it pareciam- -me perfeito, Peguei um alaranjado. Uma cor quente, aconchegante, de bom auspfcio. Ideal para comegar uma aventura, Escrevi em cima em letras de forma, bem grande: “noma”. Nos outros, escrevi nome de bairros, pragas, mo numentos: Estédio Olimpico, Trastevere, estagao Ter- mini e assim por diante. Colei tudo ao redor da minha Mogadiiscio de papel. Depois eu, que néo sei desenhar, tentei desenhar as minhas lembrancas. Trabalhei durante horas. Tracei Lnhas, contornos, sombras. Recortel jornais. Sinalizei algumas coisas por escrito. Disso tudo, saiu.o desenho de uma garotinha. Bra engracado ver o resultado. Era inapresentivel. Mas o mapa estava finalmente com- pleto. Agora, a mamée nao teria mais do que reclamar. 2 Teatro Sistina (O teatro Sistina estd na rua ihoradnima, Estames no coragdo daurbe, exatamente entre a praca Trinita dei Monti ea praca Barberini. A rua que junta estes dois mundos s6 na aparén- cia ta distintas, Por um lado, a rua esté no bairro de Campo Marzio, que vai da praga Trinita dei Monti a rua Francesco Crispi, enquantoo resto da ra, por sua vez, jd est no bairro de Colonna. Era 0 reino da revista, no paleo desse teatro jd estiveram os maiores, de Totd™ a Renato Rascel, de Mar- cello Mastroianni a Walter Chiart% Foi aqui que Garinei 20 Revue espetdculo devariedade consistente de cenas ctenicas ‘irdnicasinspiradas pela realidad, nas quals misturam-e prosa, ddanga e canto, Nasee a partir do waridé francés edo musi ill in sfse teve seu momento de auge durante a Bale épaue entre 0 f- nal doséeul0 xno infeio dosécalo xx) e nosanosig20 na Buropa ‘enos Estados Unidos. Apds a segunda guerra mundial ese tipo de speticulo se transformou no genero de coméatia musica...) No Brasil, chamado simplesmente "revista" houve produgies des ‘companhias de Walter Pinto e Carlos Macnado,revelando talents, ‘como Cararem Miranda, sua ir Aurora, até chamadas vedetes, Ae tmenso sucesso como Suzy King, Wilza Caria, Dercy Gongales, ‘iva Paga, Mara Robiae Luz cel Fuego, (s.r) 1 Antonio de Curts :898-1967) fo! um ator italiano simbelo do entretenimento cOmico no pais. Era conhecldo como 0 “prineipe da risada” mas também interpretou. papéis dos mais draméticos no cinema ¢ no teatro. Fol também drematurgo, ‘poeta, compositor e cantor. [xn] 22 Renato Rasvel, pseudOnimo de Renato Raucci Massa 912 1991), cantor ¢ ator italiano que se consagrou junto ao publico internacional ao atuar ao lado de Marlene Dietrich em "Monte carlo” e de Mario Lanza em “Arrivederci Roma’. Is.) 43 Walter Chiari, pseudonimo de Walter Anniechiatico (924 1992), tor, comediante apresentador de televisioallano, Urn {dos comediantes mais conhecidos da Ida, atuou, entre outros, ao lado de Alberto Sordi, Ugo Tognazn, Vittorio Gaseman, Mar. cello Mastroianni ¢ Nino Manfredi, [y-7] SOOO OC ooo @ @ @ a ¢ Giovannin’* estrearam com a comédia em dois ates Ag sgiungi un posto a tavola.® “Acrescente um lugar & mesa”, dic a canpéo que do t- Ilo d cométia, “que tera um amigo a mais. Se racver ura ‘potco a sua cadeira, ved também ficaré d vontade’, e eatio ‘continua: “os artigos servera para isso: ficar ene compaahia, Sorria para o novo convidado, no o deixe ir embora, dividaa mistura, redobre a alegria.” E por aquela alegria que eu c os meus pés nos lan- gamos por Roma. Um lugar ideal para comegar um sonho, Onde reconstruir uma vida. ‘No mapa marco unta rua cheia de cadeiras. Para todcs os amigos que virao, Meus pés € eu nascemos em Roma porque meu pai apaixonou-se pela vor de Nat King Cole. ‘Aquele homem lindo de Chicago determinou, de al- gum modo, minha vida. Yor célida, de baritono, mmca agressiva. © velho Nat usava de modo bizarro acucla sua bela voz. Sempre sussurrada, sempre suave, mar- cando as palavras uma a uma, Meu pai gostava muito da forma de se comunicar de Nat. “Olhava-te nos olhos e ndo tinhas mais said” Nat cantava quase sem- pre tocando piano, mas fazia-o do seu jeito. Virava-se para o puiblico e se retorcia todo como um junconum 24 Garinel e Glovannini, nome com que € conhecide aduple de comediantesitelianos Pistro Garinel (1919-2006) e Sandro Giovannini (015-1977), protagonistas do mundode espetéculo popular italiano, Entre as comédias musicais mais memeriveis fem que a dupla atuou, destacam-te Ragantin (1962) e Azgtungt sam pasta a tala (1974) [4.82 ‘25. Atradugio iteral do titulo do espetéculo €Acrescente um Togard mesa’ [s.r dia chefo de vento que sopra do norte. E fot assim que ‘meu pai o viu: todo torto, virado para o seu piblico, com um olhar que, segundo papai, parecia enfocado nele. Estavam ambos no teatro Sistina de Roma, Os dois negros ¢ lindos. Os dois lutando com scus des: tinos. Mas por que meu pal estava longe da Somalia? Em algum momento da década entre 1950 € 1960 ‘meu pai fez uma viagem a Roma. Nao era a primeira ‘vez que estava na Cidade Eterna a trabalho. J4 era um politico sério, e o futuro que o levaria ao cargo de mi- nistro das relagdes exteriores nos anos de 1960 j4 es tava batendo & porta. Aquela noite, papai se dew um presente, ou seja, tm show do seu cantor preferido, Nat King Cole. Mas naquela escolha de lazer estava inserito um pouco do seu futuro e, por consequencia, também do meu, Papai (assim como toda a familia Scego) estava li- gedo a um destino do qual era muito dificil conseguir subtrair-se. Aquele destino se chamava politica e nem ‘meu pai nem meus tios deram para trés. Mas também acabaram pagando um prego alto. Papai nasceu em Brava’* (ou Barawa, como se escreve em somali), perto do mar, assim como 0 vovb ¢ todos ‘08 nossos antepassados. Passou a infancia ¢ os pri meiros anos da adolescéncia nessa cidade fantéstica construida numa bala que desemboca no mar. Em. 26 Brave: cidade portuéria da costa meridional da Somé: lin, localized na regio de Benadir. A populzgio tradicional cconstitu-se da ctu bravanesa, um grupo étaico distinto que fala um diaeto da Lingua bantu muito semelhante ao sue, ‘ns, diferentemente deste, € sado somente pelos habitantes a cidade, sendo conhecido como chine. I.

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