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EprroRiAL Do Dossié CRS Os PROFISSIONAIS DE SEGURANGA PUBLICA COMO SUJEITOS DE DrREITOS - POLiTICAS PUBLICAS, QUALIDADE DE VIDA E DEMOCRACIA GUILHERME BORGES DA SILVA UnrvinsipAbr FeDieat- 8 Gords, GorANta/GO, BRASIL guidhu@gmailcom heeps//orid.org/0000-0002:5992-5251 HerToR PaGuiaro Unrversipape Feperat oF Gorks, Goranra/GO, BRAst bicor@heitonpagliara.com bhexps/forid.ong/0000-0001-6431-930% PABLO ORNELAS Rosa Usivenstape ne Vina Vata, Vita Vetwa/ES, Baasiz pablorosal 3@gmailcom beeps! forcd.orgbr/0000-0002-9075-3895 ‘RESUMO Asrclagies entre a idcia do projeto politico dos diritos humanos cas poiticas de se guranca publica plangjadas pela classe politica e conduzidas por instiuigses policiais ppossuem tensdes que dificultam a consolidagio de um Estado democratico de direito ipios de dirctos humanos. Um» dos prncipais desafios dessa relaca anca piblica sjam inspicado por princip é-construir um estado de coisas que permita que os agentes des no apenas considerados como atores socias responsiveis pela linha de frente na lizagio dos direitos humanos, mas também entendidos como sujeicos desses proprios direicos humanos, uma vez que sio participes ¢ imtegrantes da mesma sociedade & qual sua atuagio policil se destna, Este artigo analisa criticamente e discute dados relat vos i violencia conera policiais ea saide cesses agentes puiblicos kz das politicas que De REISE Basreemea ne Crtxctas Porscrars 13 Beast 1 13% 7,8 13-28, JastBe /2022 Issn 21780013 ISSN Eners6n1co 2518-6917, utps://doi.orgbr/ 10.3141 2rbep13i7.927 sujitos de dietos humanos ¢,a0 mesmo >tempe, se sto perecbidos como tl pelaso- ciedade da qual sio partcipes c por fin, quais io as consequéncia dessas percepyes paraa realizacio do Estado democrtico de direc especialmente em um contexto de redemocratizagao, no Brasil, a partir da década de oitenta do século vinte. PALAVRAS-CHAVE: Policiais. Sujeitos de Direito. Direitos Humanos Estado de Direito. As mudangas decorrentes do processo de aprofundamento da industrializagao, da expansio demogrifica, do crescimento das cidades cde uma urbanizacio precéria ¢ desigual vieram acompanhadas tam- bém do agravamento de muitos problemas sociais, dentre cles a vio- lencia urbana, observando-se inclusive um significativo aumento no ntimero de crimes violentos ¢ do uso da arma de fogo no Brasil. Nes- se periodo, saltamos de 13.911 mortes violentas registradas em 1980 para 47.773 no ano de 2019, Isso se deu, especialmente, em razao das condigdes macroccondmicas, de politicas de seguranga militarizadas, das dinimicas periféricas do trifico de drogas, das associagdes entre criminosos nas prisdes por todo pais e da formagao de grupos para- militares ¢ de milicianos (ADORNO, 1998, 1999; ZALUAR, 1999; SOARES, 2000; MISSE, 1999, 2006; CALDEIRA, 2001; LEM- GRUBER, 2002; MACHADO DA SILVA, 2004; SAPORI, 2007; LIMA, 2008; BORGES, 2019) Além de considerar 0 século vinte como o “breve século”,o his- toriador Eric Hobsbawn (1995) ressaltou que a década de 1980, especi- ficamente, foi uma “década perdida’, sobretudo em termos econdmicos, pois foi um perfodo em que o sistema econémico mundial atravessou uma longa ¢ profunda crise. As economias periféricas, dependentes daquelas altamente industrializadas, softeram sobremancita os efeitos dessa crise, De acordo com Soares (2015), as dificuldades e problemas decorrentes desse contexto propiciaram 0 avango da violencia como fe- némeno estrutural na sociedade brasileira. A hiperinflagio, 0 aumento das desigualdades socioccondmicas ¢ étnico-raciais, assim como 0 alto nivel de desemprego, funcionaram como dinamos desse processo. Observa-se também, o desenvolvimento da criminalidade or- ganizada, especialmente em decorréncia do incremento das politicas de encarccramento ¢ de guerra is drogas, das limitagdes também estru- 14 Revere Brasreema or Creneras POLICTAi CE Beasts 613,878 13-28, Jade 2022 Guilherme Borges da Silua, Heitor Pagliaro e Pablo Omelas Rosa turais do sistema prisional c do fortalccimento dos mercados ilicitos de drogas c de armas de fogo por todo territorio nacional, impactando de forma ainda mais intensa nas dreas de maior concentragio de pessoas em condigao de pobreza nas cidades! © dado objetivo acerca do crescimento da violéncia se associa a0 dado subjetivo referente ao sentimento de inseguranga que 0 acom- panha e podem ser compreendidos a partir da constituigio de proces- sos de “incivilidades” (ZALUAR, 1999) e de “desnormalizagio” da il (MISSE, 1999, 2006), que deflagram uma ‘sociabilida- de violenta” que aos poucos foi se tornando parte central das relagdes sociais (MACHADO DA SILVA, 2004). sociedade ci Nesta esteira, nem mesmo as mudangas produzidas no proces- so de redemocratizagao a partir da década de 1980 foram capazes de redirecionar 0 curso desse processo de sedimentagio da violéncia es- trucural no ambito da sociedade, Como analisa Adorno, [...] no terreno da criminalidade comum, os efeitos do am- plo processo de reordenagao das relagdes sociais e politicas em torno do regime autoritario foram bem demareados [...] O policiamento preventivo e ostensivo ¢ militarizado, tor- nando-se frequentes as inspegdes policiais arbitrarias nas ruase sobretudo nas habitagSes populares através de opera- 1A gue is drogas nasceu nos Estados Unidesem 1971, como uma politica de seguranga nacional ‘mplementads durante o overno Nixon. Tal politic, baseuda em axpectos moralisas ede inereses cscusos, desenvolcu-se no sentido de fizer frente a0 atmento do consumo de substincisiiias ‘no pals em busca de combater o narcoteifico, sobretudo conta os paises produtore situados na Amésica Latina. A pollia de gucea is deogas se consti a parcir de eatin de carter mili, por isso altamenerepreninas, autora, punitivsas volenas. Apés a Convengio de Viena, em 1988, qu tnha por tema Tae “cone fico icto de enonpecenese substneas pcos 2 politica de guetta deogasganha forga imtemacional, motvado pelo poder pollco-econdmica ddox EUA e de sua capacidade de incervisem leilagbesnacionais ede promover sangdes contra os pales que no adrissem o trata. Nos pases que cantém alas tras de desiguaade social, como €ocao do Bail es polities, alm de no diinuir nem a oferta nem a demands por substincss desea narurezs, acabou por agravar produit virios ours problemas sci, como o aumento da violénla wana poi ofortalecimentodacriminaldae organizadsoencaceramento em massa ea matana ca populago pret perils, colocouo usuiro dance dos rscos dos meveados legis «A merct de substincias sem nenhum tipo de contol, dfieultou a construc e implementasio de polices pablica de cua eque melhor condizem com realidad des consumos, rem impedido © desenvolvimento cienefico relacionado As potencaidades das substincis que foram proibidas, cote tants outes quests (SILVA, 2019). 2 Segundo Misse (1999, p59.) "Na modernidade, acusagio se emancipa da tranagressio [que se toma, no minimo moralmenteambivalente ou duvidosa) para se disgir&subjecvidade do ransgressor, sua esnormalizagio, sua inci Iidade, as suas « faquezas > SN REIS Basreerea ne Crtxctas Porscrass 15. Beastie 13,8 7.8. 13-28, Jada 2022 utps://doi.orgbr/ 10.3141 2rbep13i7.927 g6es do tipo “tira da cama’, sem prévia autorizagao judicial. Nas delegacias ¢ distritos policiais, rorturas ¢ maus tratos contra presos, snspeitos da pritica de crimes, constituiam rotina nas investigagées policiais, Alm do mais, o perfodo é caracterizado pelo acitramento da “guerra” entre policiais ¢ delinquentes, na origem da qual surgiram esquadroes da morte, organizacGes paramilitares, envolvendo policiais € civis, cujos objetivos eram climinar bandidos comprome- tidos com trifico de drogas, contrabando e assalto a ban- cos como também liquidar testemunhas que pudessem denuncié-los & justiga publica. Por sua vez, os tribunais de justiga penal mantiveram-se aparentemente alheios a esse processo. Nao esbogaram resisténcias & imposigao das re- gras arbitrérias ao controle repressivo da ordem piblica, Suspeita-se que, no periodo, tenham sido mais rigorosos na distribuicao de sangoes penais, sobretudo nos crimes contra o patrimdnio, uma das modalidades de agio delituosa mai frequentes nas estatisticas policiais e, via de regra, come da por cidadaos das classes populares. Quanto 3s prisdes, assiste-se a erescente intervengao de drgios normativos fe- derais, como o Conselho Nacional de Politica Penitenciria ¢ 0 Departamento Penitenciirio Federal, preocupados com a gestio administrativa de amplas massas carceririas que se acumulavam, notadamente nas grandes capitais brasileiras (1999, p. 132-133). Na anilise realizada pelo autor supracitado, assim como em outras demais ponderacoes proferidas por outros estudiosos des- te campo (MESQUITA NETO, 1999; PINHEIRO, 2001; LIMA, 2008), obscrva-se que nao houve altcragies significativas em relagio as cstruturas do aparato de seguranga do sistema de justiga criminal no pais, que continuaram com fortes tragos do regime militar. Quando um regime politico é alterado em um pais, nem sem- pre as modificagées sao totais ¢ radicais, pois a forca da tradigao in- fluencia a continuidade de certas praticas, ainda que com outras rou- pagens, sendo que 0 “novo regime promove uma ruptura institucional, mas mantém algumas raizes com a tradigio (se néo de fato, a0 menos em nivel de discurso)” (PAGLIARO, 2020, p. 118). A tradigio de pro- ximidade entre governo e militares é historica no Brasil e antecede 0 governo militar da década de 1960 — a Repiblica da Espada ¢ o pré prio Estado Novo de Vargas sao exemplos disso. Assim, a redemocra- 16 Revrera Brasreems or Creneras POLICtAi CT Beasts 613,878 13-28, Jade 2022 Guilherme Borges da Siloa, Heitor Pagliaro e Pablo Ornelas Rosa tizagdo nao implicou total abandono de praticas autorita do periodo do governo militar. s, proprias Nesse sentido, conforme sugerem Souza ¢ Batibugli, as insti- tuigdes fundamentais do Estado democritico brasileiro mantiveram 0 status quo politico e resistiram as mudangas consignadas pela nova Constituicio promulgada em 1988, especialmente no que se refere a0 poder judiciario, & administragao de justiga e As instituigdes que com- poem a Seguranca Publica. Por essa razdo, entende-se que as resistén- cias encontradas “refletem os limites da democratizagao da sociedade brasileira, em termos da adesao aos valores democraticos € da aceitagao da universalidade dos direitos fandamentais” (2014, p. 294) © crescimento da sensagio de inseguranga, além de produzir transformagées na arquitetura urbana das cidades, tem levado i emer- géncia de demandas por maior restrigao de direitos, seja por reivindi- car a redugio da imputabilidade penal dos adolescentes, o aumento da duragao de penas ¢ a adogao de regimes mais severos de penalizagao seja pela concordancia técita ou pelo incentivo aberto ao emprego da violéncia policial (CALDEIRA, 2001; FRATTARI, 2013). Violéncia aqui entendida como a violéncia nao autorizada pela lei, isto é, aquela que nao ¢ expressio da institucionalidade do monopélio da forca pelo Estado, mas que se trata de uma violéncia extrajuridica, sem autoridade legal ¢, por isso, antoritaria. ‘Tudo isso tem levado ao aumento das taxas de encarceramento € mais demandas pela construgio de presidios, sem que se produzam impactos positivos na percepgio social acerca das condigées gerais da seguranga pitblica no pais como um todo, Ea respeito desse cenério gue Lima (2011) se dedica a pensar a questo da accountability na se- guranga piblica, argumentando que as organizages policiais no Brasil sofreram forte influéncia do regime militar, sendo ainda muito recente 05 esforgos para remodeli-las sobre os pilares e valores democrdticos, Outro aspecto levantado pelo autor diz respeito as dificulda- des de gestéo integrada de uma politica nacional de seguranga publica. Isso porque em cada unidade da federagao, a Secretaria de Seguranga Publica — ou drgio similar - tem sido a organizagao responsavel por administrar ¢ gerir os scus profissionais. Esse aspecto € problematico, Da Revises Beasreemea ne Crtxcras Porscrars 17 Beastie 13,8 7.8. 13-28, Jada 2022 utps://doi.orgbr/ 10.3141 2rbep13i7.927 porque os gestores (cstaduais, municipais, federais ¢ distritais) acabam cnredados nos intcresses ¢ relagdes inscritas na esfera dos conflitos lo- cais, tornando ainda mais complicada nio sé a execugio de uma politi- ca nacional de seguranga, muitas vezes pensada ¢ colocada em ago por opositores politico-partidatios nas esferas mais ampliadas de poder, mas também a consolidagao de politicas de Estado ao invés de politicas de governo (SOUZA E BATTIBUGLI, 2014). Nesse sentido, as poli- ticas de Estado seriam aquelas baseadas na autotidade da lei, perenes ¢ a longo prazo, ao passo que as politicas de governo seriam as sazonais, baseadas no interesse de governos transitorios e de curto prazo. Os esforgos em busca de superar essas dificuldades se intensi- ficam a partir da década de 1990, quando o governo federal criow a Secretaria de Plancjamento de Ages Nacionais de Seguranga Piblica (SEPLANSEG), sucedida, em 1997, pela Secretaria Nacional de Se- guranga Publica (SENASP). Essa secretaria nasce com o objetivo de planejar e gerenciar uma politica nacional de seguranga publica como forma de enfrentamento da violencia na sociedade, A partir dai, nos anos subsequentes, [..] novas iniciativas de reforma emergiram no contex- to do amplo debate em torno da persisténcia da violéncia policial, das campanhas nacionais de desarmamento, do aumento dos sequestros € da viruléncia das rebelides no sistema prisional ¢ de internagdo de jovens infratores. O governo federal langou nova agenda para a elaboragio de priticas inovadoras de policiamento ¢ de politicas de se- guranga pliblica pelas unidades da federagio. Exemplo da nova agenda foi a criaga0 do Plano Nacional de Seguranga Pablica (PNSP), do Fundo Nacional de Seguranga Piiblica (FUSP), do Sistema Unico de Seguranga Publica (SUSP), de 2003, e do Programa Nacional de Seguranga com Cida- dania (PRONASCI), de 2007. (SOUZA, BATTIBUGLI, 2014, p.298-299). Destacamos aqui o PRONASCI, pois esse Programa, cujo pir blico-alvo prioritério ¢ formado por profissionais de seguranga publica ¢ jovens de 15 a 24 anos vulneraveis 4 criminalidade ou que ja tenham sido presos, nasceu com a funcio de efetivar as diretrizes do SUSP e de articular ages de seguranga e politicas sociais com protecio ¢ respeito a0s direitos humanos no ambito federal, estadual ¢ municipal, a par- 18 Revers Brasreema or Creneras POLICTA CE Beasts 613,878 13-28, Jade 2022 Guilherme Borges da Siloa, Heitor Pagliaro e Pablo Ornelas Rosa tir de agées realizadas nas proprias comunidades. As principais metas deste programa sio: a valorizagao dos profissionais de seguranga publi ca; a reestruturagio do sistema penitencirio; 0 combate & corrupgio policial; ¢ o envolvimento da comunidade na prevengao da violéncia. Nio obstante, como resultado de sua implementagao, comecaram a ser desenvolvidos planos de seguranga nas esferas federal, estadual ¢ muni- cipal. Assim, a estruturagio do SUSP, com o estabelecimento de dire- trizes nacionais a serem observadas por todos os entes federados, abrit possibilidades efetivas para a estruturacio de uma politica nacional de seguranga publica. O senso comum costuma associar discussées sobre seguranga piiblica as ages dos agentes das forcas de seguranga piiblica, em es- pecial os policiais civis ¢ militares. Contudo, faz-se necessario ter em mente que a prépria concepgio de seguranga publica que emergiu com a Constituigao Federal de 1988 e que orienta a montagem do SUSP é bem mais ampla, envolvendo também a promogio da satide, da educa- io, da moradia, da cultura, do lazer, entre outros direitos sociais, Apesat da visibilidade e centralidade ocupada pelos profissio- nais da seguranga publica na execucio das politicas especificas dessa Area, esses agentes nado podem ser tomados como tinicos responsiveis pelo fracasso do Estado na promogio de direitos e da propria seguran- a publica, Mais ainda, esses profissionais, ao operat a prestagio desses servigos, passam a softer cotidianamente os efeitos desse contexto ma- croestrutural desigual, injusto ¢ violento. Essa tendéncia, propria do senso comum, conduz & atribuigio de responsabilidade individual ¢ particular de determinados sujeitos ¢ essa visto é problemitica, na me- dida em que dilui a responsabilidade do proprio estado de coisas poli- tico. Esse desvio de perspectivas acaba promovendo alguns problemas decorrentes de certa confusio entre a parte ¢ 0 todo, ou seja, entre 0 particular ¢ o geral ou, ainda mais, entre 0 campo individual de atua- ao destes profissionais ¢ suas condigdes sistémicas, caracterizadas pelo contexto institucional especifico no qual estes estio inseridos. De acordo com os dados produzidos pelo Férum Brasileiro de Seguranga Piblica, divulgado no 13° Anudtio Brasileiro de Segu- ranga Publica (FBSP, 2019), 343 policiais civis e milicares da ativa fo- ram mortos em confronto ou por lesio nao natural no ano de 2018 Da Reise Beasreemea ne Crtxcras Poracrars 19. Beastie 13,8 7.8. 13-28, Jada 2022 utps://doi.orgbr/ 10.3141 2rbep13i7.927 no pais’, Sendo que destes, 256 foram mortos fora de servigo ¢ 87 em servigo. O estudo revela ainda, que, durante o mesmo periodo, 106 po- liciais da ativa cometeram suicidio. Nesse mesmo sentido, o relatorio Uma anilise critica sobre suicidio policial, realizado pela Ouvidoria da Policia do Estado de Sao Paulo, em parceria com 0 Conselho Federal de Psicologia (MARIANO, 2019), aponta que 0 suicidio entre esses profissionais no Estado de Sao Paulo pode ser considerado como uma situagio epidémica‘. De acordo com os niimeros apresentados pelo es- tudo, a taxa bienal de suicidio entre policiais do Estado de Sao Paulo entre os anos de 2017 e 2018 foi de 23,9 para cada 100 mil habitantes, enquanto a taxa média de suicidio entre toda populacio daquele Esta- do, durante o mesmo periodo, foi de 5 para cada 100 mil habitantes, ou seja, quase cinco vezes maior. Apesar dos riscos ¢ perigos inerentes ao trabalho policial, os imeros apresentados, por si s6, sio alarmantes ¢ revelam entre esses profissionais a intensidade desse grave problema de saiide mental. O primeiro estudo, por exemplo, demonstra que os policiais no pais pos- suem mais chances de morrerem em decorréncia de suicidio do que nna prestagio de servigo & comunidade. Ja 0 segundo estudo, por sua vez, evidencia que as chances de um policial ter cometido suicidio no Estado de $40 Paulo durante os anos de 2017 ¢ 2018 foi quase 5 vezes maior do que o restante de toda populacéo daquela unidade federativa. No processo de construgao e consolidagio de uma Politica Na- cional de Seguranga Publica, o grande desafio que se coloca é o de in- serir na praxis das instituigdes mecanismos ¢ estratégias de promogio dos Direitos Humanos, possibilitando, com isso, a construgao de uma politica de seguranga puiblica articulada com os prineipios do Estado democratic de direito ¢ que dialogue amplamente com a sociedade. Portanto, é preciso que a figura do agente de seguranga publica (tra- balhador/a) deixe de operar somente como instrumento de poder do Estado, para ocupar também o lugar de swjeiso que se reconhece como promotor de politicas de seguranga péblica no sentido amplo, que in- clui a estreita relagio entre a praxis dos agentes ¢ a promogio e garantia dos direitos humanos ¢ do Estado democritico. Isso implica tratar os 3. estes mimeros,descarta-se asos de acidente de wnsito esucidio, 4. Segundo a Onganizagio Mundial da Saide (OMS), a partir do momento em se atinge a taxa de 10 suicidios para cada 100 mil habitantes a conjungio dessas mortes pode ser classi sitmagio epidémica ada como uma 20 Revesra easter ox Crtncras POrietais CE Beasts 613,878 13-28, Jade 2022 Guilherme Borges da Siloa, Heitor Pagliaro e Pablo Ornelas Rosa policiais nao apenas como meros profissionais que exercem violéncia legitima por parte do Estado em suposta defesa da sociedad, mas tra- télos como potenciais construtores de direitos humanos, enquanto atores sociais principais da seguranca publica. A nnccessidade de assumir esse protagonismo foi diagnosticada na Pesquisa Nacional sobre Seguranga Publica e Direitos Humanos, financiada pelo Ministério da Justiga (2013), em que os resultados do estudo evidenciaram problemas estruturais, tedricos ¢ técnicos en- frentados durante 0 proceso de formagio de operadores de seguranga publica. A partir de entrevistas realizadas com diferentes profissionais vinculados as forcas da seguranga publica, concluiu-se que grande par- te desses profissionais possui uma compreensio de como deve ser a sua pratica profissional muito distanciada da questao das defesas das li- berdades e garantias cidadas que constituem um dos pilares do Estado democritico de direito. Assim, os desafios de pensar politicas puiblicas ¢ implementé-las se impoem diante da necessidade de se desenvolve- rem medidas e agdes que coloquem profissionais de seguranga publica como sujeitos de direitos, visto que muitos deles, de acordo com o es- tudo, sentem-se desvalorizados nas relagées interpessoais, inclusive no interior das instituig6es que integram. Alem desse sentimento de desvalorizacéo, outros virios proble- mas institucionais foram assinalados, como, por exemplo: a falta de estrutura, a auséncia de condigdes dignas de trabalho ¢ de salatios sa- tisfatérios, o desrespeito da sociedade com relagio a atividade policial, afalta de especializagio ¢ tratamento psicoldgico, dentre outros, Todas essas questdes levantadas, de acordo com o relatério do estudo, tor- nam “a atividade do profissional de seguranca publica uma atividade precarizada, onde existe uma quase total dissociagio dentre 0 que seja direitos humanos ¢ o que seja seguranga ptiblica” (MINISTERIO DA JUSTIGA, 2013, p. 121). A questio do perfil do profissional, do seu preparo ¢ capacita- 40, da estrucura ou condigdes de trabalho colocados & sua dispo: sio aspectos apontados como raizes de grande parte das situagoes de inseguranga e violencia. Segundo dados do Observatorio da Secretaria de Seguranga Publica do Estado de Goias, entre 2011 ¢ 2016 foram mortos 46 policiais militares ¢ 134 foram feridos em razio de sua fan- Da REFIT Beasrcemea ne Crtxcras Porscrars 21 Beastie 13,8 7.8. 13-28, Jada 2022 utps://doi.orgbr/ 10.3141 2rbep13i7.927 gio profissional. No horario de servigo, neste mesmo espago de tem- po, foram mortos 6 policiais, enquanto no hordsio de folga foram 40. ‘Além disso-, neste mesmo perfodo, 22 policiais militares cometeram suicidio (BERNADES, 2018). De acordo com Olga Matos (1998), quanto mais se aprimora a democracia, mais se amplia também a no- gio de qualidade de vida, o grau de bem-cstar da sociedade e a necessi- dade de acesso a bens materiais ¢ culturais. Nesse sentido, a gravidade da questio da satide dos profissio- nais de Seguranga Publica pode ser evidenciada pela apreciagio ripida de alguns dados produzidos no ambito da Junta Central de Saitde do Hospital da Policial Militar de Goids. Foram aplicados 375 formu- larios junto aos policiais militares do Estado de Goids.> Destes, 291 apresentavam problemas diagnosticados como psiquitricos, associa- dos & reagio ao estresse (75), & depressio (66), a0 transtorno bipolar do humor (49), ao transtorno de ansiedade, & episédios de depressio recorrente (27), a uma relagio problematica com 0 uso de alcool (23) € 8 disfungao cerebral (17) (BORGES ef all, 2016). Dito isso, entende-se que a vida desses individuos, no que tan- ge A sua imporeincia humana e profissional, é uma questo central para a sociedade brasileira e no avango dos valores democriticos. Sen- do assim, faz-se necessitio formar profissionais de seguranga publica enquanto sujeitos de direitos ¢ trabalhadores piiblicos submetidos aos principios da promogio dos direitos humanos. A relagio entre os setores vinculados & promogio, garantia ¢ defesa dos Direitos Humanos e 0s atores vinculados & Seguranga Pai- blica, segundo Ricardo Balestreri (2006), esta marcada por visdes equi- vocadas ¢ preconceituosas, criando dificuldades ¢, até mesmo, duras barreiras para a construgio de parcerias entre essas duas dreas. Reali- zada essa constatagio, entende-se que ha uma necessidade urgente de gue tais barreiras sejam quebradas e, a partir disso, seja possivel avangar na claboragio e no desenvolvimento de ages ¢ politicas publi esses dois setores, com medidas que considere a necessidade de trans- versalidade e da especificidade dos de formagio dos profissionais de seguranga publica quanto na consti- sentre iteitos humanos tanto no processo 5) Este extudo foi realizado no periodo de abril a setcmbro de 2014, Foram analisados 375 casos de mileares que se apresensaram Junta Cental deSaide/ PMGO (JCS) com diagnésticos psiquiericos, 22 Reveera easter ox Crtncras POrsetdis CE Beasts 613,878 13-28, Jade 2022 Guitherme Borges da Silwa, Heitor Pagliaro e Pablo Ornelas Rosa tuigio destes como pessoas que também possam nio s6 se perceberem como sujcitos de direitos, mas também screm perccbidos como tai Isso porque o processo de construgio de identidades passa tanto por um mecanismo de sujei¢o quanto por um de subjetivagio, o que sig- nifica, em pouicas palavras, que um arquétipo de sujeito ¢ socialmente construido pela heteroimagem e pela autoimagem. Sendo servidores piblicos que lidam diretamente com a po- pulagio, os policiais tém a sua identidade forjada pela forma como os demais os vem, jé que esto constantemente submetidos ao escrutinio q publico direro, mas também pela forma como eles préprios se com- preendem. Diante di io da defesa dos Direitos Humanos em articulagao com a ampliagio acerca do entendimento sobre Seguranca Piiblica pode resultar em um novo perfil de profissionais que foram produzidos e se produziram en- quanto sujeitos a partir de valores orientados pela garantia de direitos € nao por sua violagao. 0, & possivel presumir que 0 sucesso na conjuga- GumLHERME BORGES Da SiLva Enrron pr Srgio Dovron sx SoctoLosta (UFG),Pos-DouroRANDO Hat Dintrros Honeasos (PPGIDH/UFG), Pescersapon D0 Nocieo pr Estupos sonar Caintwarroape# VioctNcia (NECRIVD eo Noctxo Ds Esruvos IvrenpisciruNanss sour Pstcoarivos (NEP). HErTor PAGLIARO Eprror pe Srgxo Dovrow em Dinsrto (USB) & rR0FesSOR DA UFG, ONDE -VICE-COORDENADOR DO MESTRADO f BOUTORADO EX ‘Dinurros Humaxos, PaBLo ORNELAS Rosa EDITOR DE SEGAO Douron eat Citneras Sociass (PUC/SP), com rsr4c10 ‘Dp P6s-DouroRApO EM SoctoLocia (UFPR),£M SAUDE Coteriva (UFES) 1 ew Psicovocta Insr11 UCIONAL (UFES). PRotessox PexouaNENTENOS PROGRAMAS DE Pés-Gnapusgio sat Socrorocia Poufriea (MesrxaB0 [ACADEMICO)£ £6 SEGURANG& PUBLICA (MesTRADO REFIT Beasreeea ne Crtxctas Porscrass 23 Beastie 13,8 7.8. 13-28, Jada 2022 utps://doi.orgbr/ 10.3141 2rbep13i7.927 Protisstonal) pa Untveastpans Vita Vetta (UVV), PROFESSOR COLABORADOR DO PROGRAMA DE POS GRaDUAGAO EM CIENCIA, TRENOLOGIA F EDUCAGAO (Mrsrrano PRortsstowat) Na FaCULDADS VALE DO Crrcant (EVC) £ No CURSO DE ESPECIALIZAGAO BM Danurro Penat & Csnsorocta ba Poxcta Unrversmpan CaTética Do Bro GRANDE Do Scr (PUC/ RS). REFERENCIAS ADORNO, Sérgio. 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