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Psicologia USP, 2021, volume 32, €190162 Artigo Quatro condi¢ées para a pesquisa em psicanalise Daniel Coelho" © Eduardo Leal Cunha* © “Universidade Federal de Sergipe. Sao Cist6vdo, SE, Basi “Universidade Federal de Sergipe. Sao Crist6vdo, SE, Basil Resumo: Este artigo discute o uso da psicandlse - em especial da técnica psicanaiica baseada na associacio livre ~ em investigacdes no campo da psiologia social a partir da experéncia dos autores em um programa de 65-graduagio, Para tanto, tentamos produit uma reflexso sobre as condicées os impactos do deslocamento de Eoncetos entre a clinica do sofimentopsiquico individual ea pesquisa empirica envolvendoinstituigdese grupos. CCentrando-se na afiemacio do primade do inconsciente, os autores procuram ordenaraslinhas de aproximacao ede afastamento entre cli cae pesquisa empiica Parte-seda iscussio sobreascondicdesnecessirias ore do setting terapéutico) & escuta do inconsciente, 20 estabelecimento do vinculo transferencial, ao trabalho de interpretacao {dos discursos dos sujeitos, , por fim, a elaboracio de conteiidos e desejos inconscientes ~seja por parte dos sujeitos ‘escutados da pesquisa, seja por parte do préprio pesquisador em seu trabalho de elaboragio teérica Palavras-chave: psicologia; psicanilise; metodologia de pesquisa. Introdugao 0 tema da pesquisa em psicanilisefrequentemente aparece resrito sua dimensio clinica (Lo Bianco, 2002), centrado numa interrogagio sobre a eficécia da psicanalise como método terapéutico e na busca da comprovagao dessa eficdci e sua vinculagio com aspectos particulares da técnica, Parece, aids, ser esse o sentido mais usual da expressio pesquisa em psicandilise (Malan, 1981), A clinica € certamente © campo empirico inaugural da psicandlise, em que sio forjadas suas regeas téenicas e sua reflexio ética; mas nfo € 0 campo exclusivo do inconsciente. Assim, a reflexdo sobre os, procedimentos na clinica pode produzir uma direc3o para os procedimentos de pesquisas que nao so clinicas. Retomamos, dessa forma, questdes sobre as, possibilidades eos limites do que se denomina, muitas vezes, “psicanilise aplicada” — que se distinguiria de uma psicanilise pura, idealmente submetida ao setting e & pratica da clinica privada (Birman, 1994); ou, na terminologia lacaniana, questdes de uma psicanslise om intensio ou extensio (Aragio, Calligaris, Costa, & Souza, 1991); ou, ainda, de uma psicanélise extrammuros como a clinica implicada politicamente (Rosa, 2016) A discussio sobre a técnica psicanalitica, que sustentaria a enunciagdo de um possivel método de pesquisa, diz respeito, sobretudo, as condigdes de reconhecimento do inconsciente. Ela aponta para a suspensio das fungées do eu — tanto no discurso que se pede do paciente como na escuta que se exige do analista (Cunha & Coclho, 2015) -,e para a interdico 7 Treo pare coresponléaci: net 371@xmailcom Gas das satisfagdes do cu, na abstinéncia exigida em relagdo & transferéncia e no controle sobre o qual se deve manter a contratransferéncia, numa discussdo que parte da eritica dde Freud ds préticas de hipnose e sugestio de seus mestres, © debate no envolve apenas a reflexio sobre a eficécia clinica dos métodos, mas também o desenho de uma ppostura ética e politica (Coelho & Birman, 2014), Freud narra, por exemplo, seu desconforto com a pritica de Bernheim de interditar, com veeméncia, a resisténcia de seus pacientes & sugestio; para o autor isso era uma “evidente injustiga e uma violencia”, uma vez que 0 paciente “tinha direito a contrassugestdes [isto & a resistir] certamente, se tentavam sujeité-lo com sugest6es” (Freud, 1921/2011, p. 41). Em seu percurso, a sugestdo ~ a influéneia do médico sobre o paciente ~ é reduzida a um minimo: a0 invés de exortar a rememorar, convida a associar (Freud, 1925/2011, pp. 120-121), Assume-se um lugar de escuta, indiferente quanto ao destino da fala, ¢ qualquer intervengao é justificada e medida apenas pela produgo de novas associagdes ~ logo, pela continuagio do discurso do paciente (Freud, 1911/2010, 1937/1968), Fazer prosseguir o trabalho de associagio é a tarefa principal do analista; qualquer outra deve estar subordinada a ssa, inclusive aquelas ligadas aos interesses cientifico ¢ terapéutico (Freud, 1912/2010, 1915a/2010). Subordinar esses interesses & pritica da associagao livre produz, na verdade, suas redefinigdes, colocando-os a servigo da descoberta do inconsciente, Desse modo, a pesquisa psicanalitica deve fundamentar-se na possibilidade da cnunciagZo do inconsciente, ¢ sua reflexiio metodolégica pode ser descrita como a discussao sobre as condigSes dessa enunciagao, http://éx doi org/10.1590/0103-564e190162 Daniel Coelho & Eduardo Leal Cunha ‘Tomando como ponto de partida os achados, uestionamentos e preocupagées acumulados no decorrer de alguns anos de trabalho em um programa de pés- graduago em psicologia social, no qual orientamos alunos em pesquisas de campo com grupos e instituigbes sociais e tendo como referencial tedrico e metodologico a psicanilise, organizamos uma discussie dessas condigies ‘em quatro blocos: Partiemos das condigdes deescuta,apropriando-nos das regras de ouro — associagao livre ¢ escuta flutuante ~ como principios de pesquisa, organizadores dos seus procedimentos, e, portanto, de sua empiria e de sua ética, Isso molda 0 tipo de interlocugio estabelecido com os sujeitos da pesquisa e direciona algumas preocupages com a coleta de dados, como o registro do material, Nas condigdes de transferéncia, discutiremos as implicages do pesquisador no objeto de sua pesquisa, apontando para a ética da abstinéncia frente ao fenémeno transferencial. Nas condigdes de interpretacio, definiremos a interpretago na clinica como uma operagio de resttuigo da palavra. Levantaremos os problemas da implicaggo do pesquisador em suas interpretagdes ¢ de seu papel preliminar as elaboragdes. Finalmente, nas condigies de elaboracao, discutiremos a nogio de trabalho (Arbeit) em Freud, em seus aspectos de disfarce do material inconsciente ede transformago psiquica, problematizando 1 possibilidade de elaboragio por parte dos participantes da pesquisa, Também situaremos a elaboragio teérica em articulagio & elaboragZo psiquica, discutindo, com isso, a produgao do texto que finaliza a pesquisa. Essas condigdes interferem umas nas outras ¢ no apresentam limites muito claros, mas, ainda assim, serve como pontos de ancoragem para operacionalizarmos, nos termos da pritica da pesquisa de campo, a postura tica que possibilita o reconhecimento do inconsciente, Condigées de escuta Jé defendemos, em outros lugares (Batista & Cunha, 2012; Cunha & Coelho, 2015), que as regras de ouro da associagio livre e da escuta flutuante devem ser 0 ponto de partida para a discussao dos procedimentos de qualquer pesquisa apoiada no método psicanalitico. Isso implica a suspensio das funcdes do cu, refletida nas dicas priticas que Freud dé ao analista iniciante em 1912: ndo é preciso memorizar nem anotar 0 que o paciente diz; devemos abrir mao de qualquer tentativa de ordenamento sobre o material; a0 contririo, devemos deixar que o material conduza a atengo, que, de outro modo, permanece difusa, e deve poder acompanhar também as cadeias inconscientes do analista. As fungSes de ordenamento do eu so deixadas de lado, suspensas, para que se produza uma comunicagdo entre inconscientes, segundo a imagem proposta por Freud (Freud, 1912/2010). Apontamos, também (Cunha & Coelho, 2015), que a transposigdo das regras que organizam a clinica para a pritica da pesquisa de campo esbarra em uma série de dificuldades. A situagdo de pesquisa ¢ diferente da situagdo clinica que Freud aponta como ideal, © pesquisador nio vai a campo sem antes ter passado por uma revisio bibliogrifica e pela elaboragio de um projeto— ao contrrio do elinico, que recusa qualquer meio sistemiético de obter informagdes sobre seu paciente, assim como qualquer tentativa de articulagio teérica do caso antes que esteja terminado, O pesquisador, a0 contrario, tem, de antemio, interesse em seu objeto de estudo ¢ também uma grade teérica a partir da qual pode delimitar uum problema especifico de pesquisa que Ihe sugere uma hipotese de trabalho. A pesquisa frequentemente busca apenas a corroboragio dessa elaboragio teérica prévia, Estamos, portanto, distantes das condigdes que Freud acreditava ideais para o trabalho analitico, longe de podermos exercer com rigor a escuta flutuante, No entanto, ¢ preciso considerar que as regras freudianas no sdo protocolos rigidos; elas indicam pardmetros minimos de ago e indicam uma postura tica que norteia o psicanalista. A escuta flutuante afasta a ppossibilidade de encaixar apressadamente um paciente no que a teoria prevé, mas ela propria é dependente de uma teoria, que presume que uma escuta desse tipo podetia levar a uma interpretago que decifre o sintoma como ‘uma formagio do inconsciente, A associago livre do paciente, a seu passo, jamais érealmente livre—mas, como tarefa colocada no horizonte, leva ao reconhecimento ¢ A superagio das resistencias, Ademais, é falso que 0 analista receba seus pacientes no consultério de modo neutro, desimplicado e ateérico, o que Freud acreditava sero ideal. O analista do setting cldssico tem, obviamente, uma grade tedrica que o orienta ~ é um psicanalista, c talvez um lacaniano ou um winnicottiano— assim como bvios interesses e desejos implicados em seu trabalho, (© que afastaria o trabalho de pesquisa da situagao elinica ideal, dessa forma, nfo seria a diferenga propriamente dita entre a clinica e a pesquisa, mas sim a diferenga entre uma proposta ideal e sua colocagio em pritica, Dessa forma, éno horizonte, como ideais que nos fornecem pardmetros minimos de agao, regulados por uma postura ética, que a associagdo livre ea escuta flutuante guiam nossa pritica de coleta de dadas. Deixamos os roteiros de entrevistas de lado, preferindo a colocago de perguntas mais vagas e mais abertas, que sirvam come disparadores do discurso dos sujeitos; as perguntas subsequentes virio, também, a reboque desse discurso, Nisso, aproximamo-nos do modelo que podemos destacar dda pesquisa de Ana Cristina Figueiredo (1997) sobre o trabalho do psicanalista no ambulatério pablico. Ela conta que, no decorrer de sua pesquisa, foi levada a deixar de lado rotciros de entrevista em prol de uma conversa com tom mais espontineo, encadeada e continuada pelos assuntos que surgissem, sendo a diregao da entrevista deixada a cargo do entrevistado, ¢ ndo do entrevistador. Quanto ao registro do material, ele deve atender a alguns requisitos que Freud indica em sua Psicologia USP | wwwscielolbe/pusp pequena discussdo sobre o mesmo problema na clinica (Freud, 1912b/2010; Cunh & Coelho, 2015), Sua recusa a pritica de fazer anotagdes & embasada em alguns aspectos: ‘a anotagdo toma a atengdo do analista, e & preciso que ela esteja disponivel e dispersa, “uniformemente suspensa’ as notas comportam sempre uma dose de elaboragao secundaria, pois selecionam, ordenam ¢ fixam o que se escutou, A pritica de notas 6 recusada, portanto, na medida em que reintroduz as fungdes secundrias do eu que a regra da atengo flutuante tenta suspender, ‘A gravagio, por outro lado, é um meio de registro que dispensa a atengdo do entrevistador registra sem elaborar. Assim, a gravago integral ¢ sem cortes, que registre tudo 0 que for dito, é nossa estratégia de preferéncia. Ao mesmo tempo, alertamos que a fidedignidade de registro da gravaydo nao afasta a consideragao de que ela também funcione, no decorrer dda pesquisa, segundo o descrito pela teoria freudiana da Jembranga. Do gravado até o transcrito e publicado, temos, evidentemente, muita selegdo e elaboragdo de material, © essa iltima é sempre oportuna ao esquecimento ¢ & Jembranga encobridora (Freud, 1899/1969) (© que dissemos sobre a entrevista e a gravagdo procura definir padrdes minimos de agio, e nao devem ser tomados com rigidez. As condigdes nas quais acontece a pesquisa — seu setting — so determinants, No caso de uma pesquisa sobre um grupo de adesio ao tratamento para portadores de HIV, as entrevistas foram substituidas por conversas informais em salas de espera, nos setores administrativos, ou antes & depois das reunides habituais do grupo (Santos, 2012). No caso de uma pesquisa com pacientes candidatos a cirurgia baridtrica, a coleta de dados, inicialmente pensada sob a forma da entrevista semiestrurada, também tomou a forma de conversa informal na sala de espera, situagio em que a pesquisadora encontrou uma chance melhor de nfo ser confundida com um membro da equipe responsivel por mais uma avaliagdo (Sobral, 2013). 0 cotidiano do trabalho de uma psicéloga em um Centro de Referéncia de Assisténcia Social (CRAS) tornou-se campo de uma pesquisa sobre as politicas piblicas de assisténcia social (Souza, 2012). Em todos esses casos, foi imposto um ‘modelo mais préximo da etnografia, ea confecgao de notas feitas a posteriori, de meméria, A elaborago secundaria implicada foi retomada na reflexio metodologica como feito contratransferencial (Souza & Coclho, 2014), ‘Ainda sobre o setting, em uma pesquisa sobre adolescentes que, a atingitem a maioridade, sio desligadas dos abrigos institucionais nos quais estavam alojadas, ‘a pesquisadora foi recebida na instituigdo e encaminhada ‘uma sala na qual deveria aguardar o fim de uma reuniio dda cquipe técnica ~ era a sala em que cram arquivados 0s prontuérios das adolescentes, Ali estavam suas fichas, 08 registros de seus atos, ocorréncias, procedimentos, Muito do que, certamente, as adolescentes teriam motivos para ndo quererem que outros tivessem acesso. Assim, a pesquisadora encontrou, no siléncio eventual das Psicologia USP, 2021, volume 32, €190162 Quatro condigées para a pesquisa em psicandlise entrevistadas, um limite incansavelmente desrespeitado, presentificado na propria sala em que foram alocadas (Santana, 2015) Outra pesquisadora relatou sentir-se encarcerada quando ia a0 abrigo para mulheres vitimas de violéncia

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