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JOSE ORTEGA Y GASSET MEDITACGES D0 QUIXOTE Tradugao de Ronald Robson T= ost oRrEcA¥ Gasser Eainda uma tiltima palavra. O le se no me equivoco, até os tiltimos ensaios, o pulsar da preocupagio patri to quem os escreve como a quem se naram-se espiritualmente na negagio da Espanha descobriré, caduca, Ora bem: a simples negag&o € uma impie- dade. O homem pio ¢ honrado, quando nega, con- trai a obrigagao de edificar uma nova afirmacio; de tentar edificd-la, entenda-se. Assim nés, Tendo negado uma Espanha, vemo- -nos na gestal? de encontrar uma outra, Essa tarefa de honra nio nos deixa viver. Por isso, caso se pe- netrasse até as mais nas ¢ pessoais de nossas, meditagdes, serfamos surpreendidos fazendo com as mais humildes luzes de nossa alma experimentos de uma nova Espanha. Madri, julho de 1914. desafion a Grbigo entre Leto e Ascorga: quer n isco 6,a passar com honra, que trasse uma das luvs e, diante de todos, erurasse pela igua, Naerados por Peco Rodefguer de Lena, ‘0 feitos do nokve leonésoriginaram El bro del passo honreso, uma das grandes expresses do cespantiola —NE. pusesse ao embate, a MEDITACAO PRELIMINAR Ist etwas der don Quixote mur eine Posse? E porventura Dom Quixote s6 uma bufonaria? Hermann Cohen, Ethik des reinen Willens, p. 487 monastério de El Escorial se levanta sobre tum outeiro. A encosta meridional desse ou- teiro desce recoberta por um pequeno bos- que, composto ao mesmo tempo de carvalhos e de freixos. O local se chama “La Herrerfa”. O imenso volume arroxeado do edificio muda, segundo a esta- 0,0 seu carter de acordo com esse manto de mata espessa que se estence a seus pés, 0 qual é acobreado no inverno, éuureo no outono € yerde-escuro no ve- Ho. A primavera passa por aqui veloz, instantinea ¢ excessiva — como uma imagem erética pata a alma acerada de um cenobita. As drvores se cobrem #a- pidamente de copas opulentas de um verde claro e novo; 0 solo desaparece sob uma grama de esmeral- 8 1054 ORTEGAY GASSET da que, por sua vez, um dia se veste com 0 amarelo das margaridas, outro com 0 roxo das lavandas. Ha lugares de excelente siléncio — o qual nunca é si- lencio absoluto. Quando se calam por completo as coisas em torno, 0 vazio de rumor que deixam exige ser ocupado por algo, e ento ouvimos o martelar de nosso coragio, as chicotadas do sangue em nossas veias, a fervura do ar que invade nossos pulmées € que logo foge apressado. Tudo isso é inquietante por- que tem uma significagtio demasiado concreta. Cada batida de nosso coragdo parece que vai ser a dima, ‘A nova batida salvadora que chega parece sempre uma casualidade e nao garante a subseqiiente. Por isso é preferivel um siléncio no qual soem sons pu- ramente decorativos, de referéncias inconcretas. As- sim é neste lugar. Hé claras aguas correntes que vio rumorejando longe e ha, dentro do verde, avezinhas que cantam — verdelhdes, pintassilgos, papa-figos algum sublime rouxinol. ‘Numa destas tardes da fugaz primavera, vieram a0 meu encontro em La Herreria estes pensamentos: 1.A floresta Com quantas éryores se faz uma selva? Com quantas casas uma cidade? Segundo cantava o la- vrador de Poitiers, le hautor des maison empéche de voir la villa,’ 1s versos, fora de seu contexta original, podem ser teaduzidos 4 MEDTAQOES DO QUIRCTE ¢ 0 adagio germanico afirma que as drvores nio deixam ver a floresta. Selva e cidade so duas coi- sas essencialmente profundas, ¢ a profundidade est4 condenada de maneira fatal a converter-se em superficie se quiser manifestar-se. Tenho agora ao meu redor umas duas dezenas de graves carvalhos e de freixos gentis. E isto uma. floresta? Certamente que nao; estas so as drvores que vejo de uma floresta. A floresta verdadeira se compée das 4rvores que ndo vejo. A floresta € uma natureza invisivel — por isso em todos 0s idiomas seu nome conserva um halo de mistério. Posso agora levantar-me e tomar uma destas incertas veredas por onde vejo cruzarem as méru- las. As arvores que antes via serdio substituidas por outras andlogas. A floresta iré se descompondo, desmanchando em uma série de pedacos sucessiva- mente visiveis. A floresta foge dos olhos. Quando chegamos a uma destas breves clarei- ras que © verdor abandona, parece-nos que havia ali um homem sentado sobre uma pedra, com os cotovelos nos joelhos, as palmas das mios nas tém- poras, € que, precisamente quando famos chegar, mos que esse homem, a levantou-se ¢ foi-se. Sus} dando uma breve volta, foi colocarse 2 me postura nao muito longe de nds. Se cedermos ao wa J impede de ver @ sentido de sidade pequena, i Jou “a altura do casardo [no sentido, de casa nobre, refinada]/ impede de ve a casa de campo (simples, Inumilde)". O sentido do texto de Ortega autorira, parece, 2 primeira versio, Mas hs ai uma natural ambighidade como “a altura d 4s {JOSE ORTEGAY ASSET a desejo de surpreendé-lo — a esse poder de atracio que o centro das florestas exerce sobre quem nelas entra —,a cena se repetird indefinidamente. A floresta esta sempre um pouco mais além de onde estamos. De onde estamos acaba de retirar-se deixando apenas suas pegadas ainda frescas. Os antigos, que projetavam em formas corpéreas € vivas as silhuetas de suas emogdes, povoaram as selvas de ninfas fugitivas. Nada mais exato ¢ ex- pressivo. Conforme caminhais, voltai rapidamente a vista para uma clarcia em meio 4 mata espessa ¢ encontrarcis um tremor no ar como se houvesse pressa em encher-se 0 yazio que, ao fugir, deixou um ligeiro corpo nu. Tomado a partir de qualquer um de sens luga- res, a floresta é, a rigor, uma possibilidade. E uma vereda que poderfamos tomar; é um manancial de onde nos chega um rumor fraco carregado nos bra- gos do siléncio e que se poderia descobrir a poucos pasos; so versos de cantos que fazem ao longe os passaros em uns galhos sob os quais poderiamos chegar. A floresta é uma soma de possfveis atos nos- sos, que ao realizar-se perderiam seu valor genuino. O que da floresta se acha diante de nés de maneira imediata é s6 pretexto para que o mais se encontre coculto e distante. 2. Profundidade e superficie Quando se repete a frase “as drvores nao nos deixam ver a floresta”, talvez no se entenda seu 46 MEDiTAGOES 00 QUIKOTE rigoroso significado. Talvez a gozagao que nela se quer fazer volte sen aguilhao contra quem a diz. As Arvores nao permitem que se veja a flores- ta, € precisamente gracas a isso € que a floresta, de fato, existe, A misao das drvores patentes é fazer latentes 0 resto delas, ¢ s6 quando nos damos per- feita conta de que a paisagem visivel est4 ocultando outras paisagens invisiveis nos sentimos dentro de uma floresta. A invisibilidade, 0 ocultar-se no é uma qualida- de meramente negativa, mas uma qualidade positi va que, ao verter-se sobre uma coisa, transforma-a, a nova. Nesse sentido é absurdo — como afirma a frase supracitada — pretender faz dela uma c ver a floresta, A floresta é 0 latente enquanto tal. Ha aqui uma boa lico para os que nao véem a multiplicidade de destinos, igualmente respeitaveis e necessarios, que 0 mundo contém. Existem coisas ‘que, quando manifestas, sucumbem ou perdem seu valor ¢ que, a0 contrario, ocultas ou preteridas al- cangam sua plenitude. Ha quem alcangaria a plena expansio de si mesmo ocupando um lugar secun- drio, a0 passo que o afi de situar-se em primeiro plano aniquila toda a sua virtude. Em um romance contempordneo se fala de um menino pouco inteli- gente, porém dotado de notavel sensibilidade mo- ral, que se consola por ocupar o iiltimo lugar em todas as matérias escolares, pensando: “Afinal de contas, alguém tem de ser o iiltimo!”. E uma obser- vagao fina e itil para guiarnos. Pode haver tanta ” OSE ORTEGAY GASSET nobreza em ser o dltimo quanto em ser o p: porque os postos de um e outro extremo so magis- traturas de que 0 mundo igualmente necessita, um dependente do outro. Alguns homens se negam a reconhecer a pro- fundidade de algo porque exigem do profundo que se manifeste como superficial. Nao aceitando que as espécies de claridade, atém-se exclu- as superficies. Nao. m que é essencial ao profundo o ocultar-se atras da superficie e apresentar-se somente através dela, latejando sob ela. Desconhecer que cada coisa tem sua prépria con- digo, ¢ no a que nés dela exigimos, é a meu juizo 0 verdadeiro pecado capital, que chamo pecado cor- diaP: por ter origem na falta de amor, Nada existe de tio ilicito como apequenar 0 mundo por meio de nossas manias e cegueiras, diminuir a realidade, suprimir imaginariamente pedacos daquilo que é. Isso acontece quando se pede ao profundo que se apresente da mesma maneira que 0 super No; ha coisas que de si mesmas apresentam $6 0 estritamente necessério para que nos apercebamos de que estio por trés, ocultas. Para achar isso evidente no é necessario recor- rer a nada muito abstrato. Todas as coisas profun- das tém condigao anéloga. Os objetos materiais 2 Isto & “pecado do coragio". O autor estabelece um sagaz jogo “cordial”, conteapondo “cabega” a 48 MeDITAGCES DO QUITE que vemos ¢ tocamos, por exemplo, tém uma ter- ra dimensao que constitui sua profundidade, sua ridade. Todavia, essa terceira dimensio néo a tocamos. Encontramos, é certo, em ies alusdes a algo que jaz dentro delass mas este “dentro” nao pode nunca vir para fora e fazer-se patente da mesma forma que as faces do objeto. Seria vao se comecdssemos a seccionar em camadas superficiais a terceira dimenso: por mais finos que fossem os cortes, sempre as camadas te- riam alguma espessura, isto é, alguma profundida- gum “dentro” invisivel e intangivel. E se che- gissemos a obter camadas tao delicadas que a vista as pudesse atravessar, entdio no veriamos nem o profundo nem a superficie, mas sim’ uma perfeita transparéncia, a saber, nada. Pois, do mesmo modo* que profundo necesita de uma superficie para atras da qual esconder-se, necessita a superficie ou sobreface, para s¢-lo, de algo sobre o qual se esten- da e que ela acoberte. Isso é um truismo, mas nao de todo inttil. Porque ainda existem pessoas que exigem que Ihes fagamos ver tndo tio claro quanto véem esta laranja diante thos. E 0 fato é que, se por “ver” se entende, Jes entendem, uma fungo meramente sensi de seus juém jamais viram uma laranja. Esta ¢ um corpo esférico, portanto com anverso € verso. Pretenderdo ter & sua frente ao mesmo tempo 3 “Mas” na primeizaedigio, “sendo” na eligfo de 1922. 4 “Do proprio modo” no texto de 1922, 49 o anverso ¢ 0 verso da laranja? Com os olhos vemos uma parte da laranja, mas o fruto inteiro nao se nos 4 nunca de forma sensfvel; a maior porgio do cor po da laranja se acha latente aos nossos olhares. Nao € preciso, pois, recorrer a objetos sutis e metafisicos para indicar que as coisas possuem ma- neiras diferentes de se apresentars mas,’ cada qual 8 sua maneira, igualmente claras. somente aquilo que se vé. A claridade com que a terceira dimensio de um corpo se nos oferece é a mesma com que se oferecem as outras duas, e no entanto, se nao houvesse outro modo de ver que no 0 passivo da visio estrita, as coisas, ou certas qualidades delas, nao existiriam para nés. O claro nao é 3. Arroios e papa-figos E agora o pensamento um dialético fauno que persegue, como a uma ninfa fagaz, a esséncia do bosque. © pensamento sente uma fruigio muito parecida com a amorosa quando apalpa 0 corpo nu de uma idéia, Por haver reconhecido na floresta sua natureza fugitiva, sempre ausente, sempre oculta — um con- junto de possibilidades —, nao temos inteira a idéia da floresta. Se o profundo e latente ha de existir para nés, haverd de se nos apresentar; e ao se apre- sentar hé de fazé-lo de tal forma que nao perca sua qualidade de profundidade e laténcia. 5 Na edigio de 1922, apbs este “mas”, ha dois pontos; nas Obras Completa, virgula, 50 eDiTagdeS D0 QUITE Como dizia, a profundidade padece a sina irre~ vogiivel de manifestar-se em caracteristicas superfi- ciais. Vejamos como o faz. Esta 4gua que corre a meus pés faz um brando queixume ao tropegar com os seixos ¢ forma um, braco curvo de cristal que cinde a raiz deste carva~ tho. No carvalho entrou hi pouco um papa-figos como em um palicio o filho de um rei. © papa-figos faz sair um denso grito de sua garganta, tio musical que parece uma nota tirada do canto do rouxinol, um som breve e siibito que num instante preenche por completo o volume perceptivel da floresta. Da ‘mesma mancira preenche subitamente o volume de nossa consciéneia um pulsar de dor. Tenho agora diante de mim estes dois sons: mas, no esto ss. Sao meramente linhas ou pontos de sonoridade que se destacam por sua genufna pleni- tude e seu peculiar brilho sobre uma multidao de outros rumores e sons com eles entrelagados. Se do canto do papa-figos pousado acima de minha cabega ¢ do som da agua que flui aos meus pés faco deslizar a atencdo para outros sons, en- contro-me de novo com um canto de papa-figos eum rumorejar de agua que se afana em seu 4s- pero leito. Mas que acontece a estes novos sons? Reconhego um deles sem vacilar como 0 canto de um papa-figos, mas Ihe falta brilho, intensi- dade:* nao dé no ar sua punhalada de sonorida- 6 “Plenitude”, de acordo com o texto de 1922. st JOSEORTEGAYGASSET de com a mesma energia, ndo preenche o Ambito da mesma maneira que 0 outro, antes se desloca sub-repticiamente, medrosamente, Também reco- nhego 0 novo clamor da fonte: mas ai! Dé pena ouvi-lo, Ser uma fonte enferma? £ um som como © outro, porém mais entrecortado, mais solucante, menos rico de sons interiores, como que apagado, como que embaciado: as vezes nao tem forga para chegar ao meu ouvido: é um pobre rumor débil que cai pelo caminho, Tal € a presenga desses dois novos sons: so como meras impresses. Mas eu, ao escuté-los, no me detive a descrever — como aqui fiz — sua simples presenga, Sem necessidade de deliberar, tio logo os ougo, envolvo-os em um ato de interpreta- ‘do ideal ¢ lango-os longe de mim: ougo-os como, distantes. Se me limito a recebé-los passivamente em mi- nha audigio, estes dois pares de sons sio igualmente presentes e proximos. Mas a diferente qualidade so- nora de ambos os pares me convida a distancié-los, atribuindo-thes distinta qualidade espacial. Sou eu, pois, por um ato meu, quem os mantém em uma distenso virtual: se faltasse esse ato, a distancia desapareceria e tudo ocuparia indistintamente um mesmo plano. Disso resulta que é a distancia uma qualidade virtual de certas coisas presentes, qualidade que s6 adquirem em virtude de um ato do sujeito. O som no € distante, faco-o distante eu. 52 Meorragnes Bo QUOTE Cabe fazer reflexdes andlogas sobre a distancia visual das arvores, sobre as veredas que avancam buscando 0 coragao da floresta. Toda esta profun- didade de distancia existe em virtude de minha colaboragio, nasce de uma estrutura de relagdes que minha mente interpde entre umas sensagdes € outras, Hi, pois, toda uma parte da realidade que se nos oferece sem maior esforgo que 0 abrir dos olhos € ouvidos — 0 mundo das puras impresses —, tan- to que 0 chamamos mundo patente. Mas hé um transmundo constituido por estrururas de impres- 86es, que, se é latente com relagao Aquele outro, no é por isso menos real. Necessitamos, é certo, para que este mundo superior exista para nés, abrir algo mais que os olhos, realizar atos de maior es- forgo, mas a medida desse esforgo nao lhe tira nem acrescenta realidade. © mundo profundo é tio cla- ro como o superficial, apenas nos exige mais. 4. Transmundos Esta benéfica floresta que unge de satide meu corpo proporcionou ao meu espirito um grande ensinamento. E um bosque magistral, velho como devem ser os mestres, sereno ¢ miltiplo. Ademais ela pratica a pedagogia da alusio, tinica pedagogia delicada e fecunda.” Quem quiser nos ensinar uma verdade, que no no-la diga: simplesmente aluda 7 “Profunda” na edigio de 1922. 83 JOSE ORTEGAYGASSET a ela com um breve gesto, gesto que inicie no ar uma trajet6ria ideal pela qual deslizssemos, che- gando nés mesmos até os pés da nova verdade. As verdades, uma ver sabidas, adquirem uma crosta utilitarias no nos interessam j& como verdades ¢ im como receitas titeis. Essa pura iluminagao sti- bita que caracteriza a verdade, ela a possui s6 no instante de seu descobrimento. Por isso seu nome rego, alétheia — que originariamente significou 0 mesmo que depois a palavra apocalipsis —, quer dizer descobrimento, revelar, desvelar propriamen- te, tirar um véu ou cobertura. Quem quiser nos en- sinar uma verdade, que nos situe de modo que a descubramos nés. Ensinou-me esta floresta que hé um primeiro plano de realidades © qual se imp&e a mim de uma maneira violenta; so as cores, os sons, 0 prazer € a dor sensiveis. Ante este plano, minha situagio é passiva. Mas atrs dessas realidades aparecem ou- tras, como em uma serra os perfis de montanhas mais altas quando chegamos aos primeiros contra- fortes. Erigidos uns sobre os outros, novos planos de realidade cada vez mais profundos, mais suges- tivos, esperam que ascendamos a eles, que penetre- mos até eles. Mas essas realidades superiores sio mais pudicas: nao se atiram sobre nds como sobre presas. Ao contrério, para fazerem-se patentes nos cobram uma condigdo: que queiramos sua existén- cia e lutemos por elas. Vivem, pois, de certo modo apoiadas em nossa vontade. A cigncia, a arte, a jus- sa EDITAGDES 00 tiga, a gentileza, a rcligido sto érbitas de realidade que nao invadem barbaramente nossa pessoa como faz a fome ou 0 frio; s6 existem para quem tem vontade delas. Quando o homem de muita fé diz que vé a Deus na campina florida e na face obtusa da noite, nto se expressa mais metaforicamente do que se fala se ter visto uma laranja, Se nao existisse algo além de uma visto passiva 0 mundo ficaria reduzido a um caos de pontos luminosos. Mas existe, acima do ver passivo, um ver ativo, que interpreta vendo ¢ yé interpretandos um ver que é olhar, Patio soube encontrar para essas visées que so olhadas uma palavra divina: chamou-as de idéias. Pois bem, 2 terceita dimensio da laranja néo é mais que uma idéia, e Deus € tiltima dimensio da campina. \Nisso no ha mais misticismo do que quando dizemos estar vendo uma cor desbotada. Que cor vemos quando vemos uma cor desborada? O azul que temos & nossa frente n6s 0 vemos como ten- do sido outro azul mais intenso, ¢ esse ver a cor atual junto ao pasado, através do que ela foi, € uma visio ativa que nio existe para um espelho; € uma idéia, A decadéncia ou o esmaecer de uma cor é uma qualidade nova ¢ virtual que lhe sobrevém, dotando-a como que de uma profundidade tempo- ral. Sem a necessidade do discurso, em uma visio nica ¢ momentinea descobrimos a cor € sua his- toria, sua hora de esplendor e sua presente ruina, E algo em nés repete, de uma maneira instantnea, ss JOSE ORTEGA GASSET esse mesmo movimento de cafda, de mingua; é 0 que diante de uma cor desbotada encontramos em nés como uma espécie de tristeza. A dimensao de profundidade, seja espacial ou temporal, seja visual ou auditiva, se apresenta a nds sempre em uma superficie, de sorte que tal superfi- cie possui, a rigor, dois valores: um, quando nés a ‘tomamos como o que realmente ela 6; outro, quan- do a vemos em sua segunda vida virtual, No dlti- mo caso a superficie, sem deixar de sé-lo, dilata-se em um sentido profundo. f a isto que chamamos escorgo. O escorgo & 0 6rgao da profundidade visuals nele encontramos um caso limite onde a simples vi- do esta fundida com um ato puramente intelectual. 5. Restauragao e erudicao ‘Ao meu redor a floresta abre seus profundos flancos. Em minha mao tenho um livro: Dom Qui- xote, uma selva ideal, Eis aqui outro caso de profundidade: a de um livro,a deste livro maximo. Dom Quixote é 0 livro- -escorgo por exceléncia. Houve uma época da vida espanhola em que se queria reconhecer a profundidade do Quixote, Esta época est recolhida na histéria com o nome de Restauragao. Em sua duracio, o coragao da Es- panha chegou a dar o menor nimero de batidas por minuto. 56 NeDiTagoeSDO QUOTE Pego licenga para reproduzir aqui algumas pala- vras sobre este instante de nossa existéncia coletiva, ditas em outra ocasiao: Que & a Restauraco? Segundo Cinovas, a con- tinvagéo da histéria da Espanha. Mau ano para a histéria da Espanha, se legitimamente valesse a Res- tauragio como sua seqiiéncia! Felizmente se dé 0 contraio. A Restauracio significa a interrupgio da vida nacional. Nao houve nos espanhdis, durante 05 primeieos cingiienta anos do século XIX, compl: xxidade, reflexao, plenitude de intelectos mas houve coragem, esforgo, dinamismo. Caso se queimassem iscursos € livros compostos por esse meio sé culo ¢ fossem substituidos pelas biografias de seus autores, saiiamos ganhando cem por cento. Riego ¢ Narviez, por exemplo, so enquanto pensadores — um par de desventuras; mas cenuanto seres vivos so duas altas labaredas de esforgo. Por volta do ano de 1854 — que é quando no subterraneo se inicia a Restauragio —, comegam a apagar-se sobre essa triste face da Espanha 0s es plendores daquele incéndio de ener - ‘mos vio logo caindo por terra como projéteis que tivessem cumprido sua parabola; a vida espanhola se recolhe sobre si mesma, faz-se aca de si mesma. Este viver 0 oco da prdpria vida foi a Restauragao. Em povos de énimo mais completo ¢ harméni- 60 que © nosso, pode a uma época de dinamismo suceder fecundamente uma época de trangiilidade, de quietde, de éxtase. © intelecto € 0 encarrega- cdo de suscitar ¢ organizar os interesses trangiilos € estiticos, como sio © bom governo, a economia, ‘aumento dos recarsos, da tenica. Mas tem sido caracteristico de nosso povo o brithar mais como esforcado do que como inteligente. — cis a verdas 7

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