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ee aS 5 Por Marx p A7AECH Esta coletanea de artigos, publicada pela primeira vez. em 1965 pelas Editions Maspero, teve um sucesso cexcepcional para uma obra tedrica, ‘Como notava Elisabeth Badinter no jomnal Combat de 25 de abril de 1974: “Os estudantes € os intelectuais marxistas descobriram Althusser e, por seu intermédio, se nfo um novo Marx, ao menos uma nova maneira de o ler. Desde a Critica da raxio dialética de Sartre, Althusser € 0 tinico fil6sofo a propor ‘uma interpretagio verdadeiramente original das obras de Marx”. A partir da década de 1960, 08 estudos marxistas no puderam ignorar essa abordagem que estabelecia um “corte epistemolégico” na obra marxiana, separando os textos ideolégicos do Joven Marx da obra cientifica da maturidade. Ela oferecia também outra avaliagao do aporte de Hegel a ‘Marx e nfo hesitava em se inspirar ras reflexdes filoséficas de Mao ‘Teé-Tung para alimentar sua propria filosofia. Raros so 0s livros tendo suscitado tantas paixdes tedricas e provocado tantos debates. Univenstoaoe Estanvat be CANES Jost Tape Jorsr CCoanadr Ger da Unive Concho Eel Prisiense Eouanno Cunuastss uawron Anda Cain Espns RopnicuEs Siva Grea Gnne Dene = Jose Crsan HaDtra NiO Luiz nascreco Dias ~ Marco aunt Caznasco ICARDO ANTUNES ~ Seb HIRANO COLEGAO MARX 21 Comise Edo Ansawna forr9 Jonton (ooedenaor) [Atemsoo Sano Fito ~Joxo Cantos Kraun Quant 2: MoRass Conslho Consaliva Teanet Lovnerna ~Lectaio Cavin Manronaso Luiz Ebuaaoo Motta Retsaing Cancasmone - Rov BRAGA LOUIS ALTHUSSER POR MARX TRADUGAO Maria Leonor F. R. Loureiro REVISAO TECNICA Marcio Bilharinho Naves Celso Kashiura Jr. raf ean segundo Acoso Ong te Lingua Poeogic de 90 Ba gone paride inrvonta DETRATAMERTO Da INFORDAGAO Aluusier, Lous 191-1950 avzay “pan Lol Alka nadagte Mac Leonor R Loar; evita sees let Blbaciho Nae, Cleo Kasur Je Caplan SP Esra ds Unica, 1. Mac Kai 91619852. Capnatans, 3 Flonase < Hemanize 5. ae medica Lowrey Ma Ceanor FRET com 84 Sasa. sug gs.6 1201 ss ladies pines dene ar Ka 118.188 ise 2 Comin sass 3. asin ss i Honaione 77 Stine do 163 “Tien gi Po Mar (Lica Faye Map / Elon La Décor Fa Fe, 1965 9562005, UNIDADE - IFCH Cop by Loui Abus Copyght 2015 by Eo Unomp Dieters pedo pli 9 610 de 182198, ‘dado wl ou ple ran, ovo ero Soin Protea Bea Fellenos deo el Dg vemma cence: OMMIE cer ene og he een Ue PAP ‘wn Cg a eon a Sentra is cperstacns a asa psicds oun do Pog de Apo Pb Une PAP Uni ‘Conan gens ara oor pedo Maco aed Res "Ean edo Denson ac [AED Dedico estas paginas d membria de Jacques Martin, ‘nosso amigo, que, nas piores provas, sotinko, descobriu a vie de acesso a flosofia de Mars — «me guiou por ela LA | | | | : i I SUMARIO PREPACIO A EDIGKO BRASILETRA 2 = rReFActo: HOI. B (08 “MANIFESTOS FILOSOFICOS" DE FEUERBACH. 33 1 "SOBRE 0 1OVEM MARX” (Questdes de teoi). 2° 0 problema poiti¢o.rurnnnnnsnsnsns wl 0 problema teorico.. 2 0 problema histérico. sa I~ CONRABICAO E SORREDETERNENAGKO (Novas para uma pesquisa} n Anexo. Se v2 IV=0 “niccouo”, BERTOLAZZ! E BRECHT (Notas sobre um teatro materialist). 10 ‘V—05 “MaNUSCRITOS DE 1844” DF KARL MARK (Economia politica € a floséfca) ‘VI~ SOBRE 4 DIALETICA MATERIALISTA (Da desigualdade das origens).. 4. Solugdio pratica e problema tebrico: For que a teoria?.. see 134 1a as 2, Uma revolugdo teérica em acto. 3. Processo da prética 8eOriCd nnn 4. Um todo complexo estruturado “jé dado”. ie 5. Estrutura com dominante: Contradicdo e sobredeterminaga nnn 162 ‘Vit ~ MARKISMo E HUMANISM. 183 NOTA COMPLEMENTAR SOBRE 0 “HUMANISMO REAL osuennenntnnennne 108 209 PREFACIO A EDICAO BRASILEIRA POR ALTHUSSER Armando Boito Jn Em 1965, o filésofo marxista francés Losis Althusser publicava a primeira cedigo de sua célebre coletinen de ensaios® qual deu o titulo singelo e cortan- te de Pour Marx (Por Marx). Os ensaios dessa coletanea propiciaram uma ampla e diversificada renovacio do marxismo. Na filosofia, na sociologia, na economia, na ciéneia politica, na linguistica, na antropologia e na andlise his- ‘rica, diversas autores inspiraram-se nas ideias inovadoras de Althusser para desenvolver a teoria marxista em diferentes dominios e também para realizar pesquisas empfricas de ponta. O trabalho de Althusser eriou escola e serve até hoje de referéncia fundamental para aqueles que se dedicam & tarefa de desen- volver e renovar a teoria esbogada por Karl Marx. Neste ano de 2015, quando & comemorado 0 cinquentensrio do langamento de Pour Mars, a colegio Marx 21 coloca 2 disposicio do leitor brasileiro esta nova tradugio do livro de Althusser. O livro nao é inédito no Brasil, mas @ tradugio Tangada pela Zahar na década de 1970 ~ que recebeu © titulo de A favor de Marx ~esté fora de catflogo hé muitos anos. Nessa nova traducio, realizada por Maria Leonor Loureiro, optamos pelo titulo Por Mars, que nos. parece mais fil ao estilo do titulo origina. Por Marx pertence & primeira fase da obra de Althusser como fil6sofo mar- xista. Nesse perfodo, que se situa na décaca de 1960, Althusser publicou, além desse livro, a obra coletiva Lire le capital, traduzida no Brasil pela Zahar com © thtulo Ler O capital e também fora de eatSlogo, O trabalho dele e de sen ‘grupo estava voltado para o desenvolvimento do materialismo histérico e para 1 discussio da relagio do marxismo com @ filosofia. Desenvolver 0 materia- lismo hist6rico significava trabalhar, com base na heranca tedrica de Marx, na formulago das leis que regem a reprodugao da vida social e também das leis que possibilitam a mudanga histérica, Esses trabalhos da década de 1960 so, espaco para se pensar a complexi- dade dos processos sociais com o conceite de sobredeterminagiio, Esse sitio cconceito propicis aos intelectuais e dirigeates do movimento operério ¢ popa- lar uma ferramenta apropriada para aborcar multiplicidade de contradi atuantes nas diferentes conjuaturas ¢ que devem ser Jevadas em conta para que se possa definir a estratégia correta do mevimento socialista, As polémicas de Por Marx nfo sio um assunto do passado. A recusa do ccaniter cientifico do marxismo, o reduciorismo economicista, o voluntarismo, © humanismo teérico oriundo de uma leisura ingénua dos escritos do Jovern ‘Marx e tantos outros alvos da critica inteligente e fina de Louis Althusser esta muito presentes e tuantes no marxismo brasileiro deste século, Esto presentes ce atuantes também os equivocos politicas que vém associados a esses equivocos teéricos. A nova geragio de marxistas brasileiros poder encontrar nessas n polémicas ¢ nos conceitos inovadores de Por Mars instrumentos eficientes para as suas reflexes teéricas, para as suas pesquisas e para a sua orientagao na luta pelo socialismo. Nota 1 Na presene waduto, mantivemos sempre a refertncia As esigbes utiliza pelo proprio utr trdvzindo do original francs 0s echos citados, 2 PREFACIO HOJE ‘Tomo a liberdade de publicar a compilaro destas notas, que safram, durante 0s dltimos quatro anos, em diferentes revistas. Alguns destes artigos esto, esgotados: eis a primeira razlio, de ordem prética. Se eles contém, em sua pesquisa e sua incompletude, algum sentido, este deveria advir de sua reunio: cis minha segunda razo, Dou-os enfim pelo que so: 0s documentos de uma certa historia, Estes textos nasceram, quase todos, de alguma conjuntura: reflexio sobre uma obra, resposta a uma critica ou objegGes, andlise de um espeticulo ete. ‘Trazem a data e a marca de seu nascimento, até em suas variagdes, que no Guis retocar. Retiei algumias passagens de polémica demasiado pessoal; resta- beleci palavras, notas ou paginas que enti tive de reservar, fosse para poupar a sensibilidade de certas prevengOes, fosse para reduzir meus desenvolvimentos, medida acordada; precise slgamas referéncias, [Nascidos cada um de alguma ocasido particular, estes textos so, no entanto, ‘o produto de uma mesma época e de uma mesma hist6ria. Sto, 2 sua maneira, testemunhos de uma singular experiencia, que todos os filésofos da minha dade, ¢ que tentaram pensar com Marx, tiveram de viver: a pesquisa do pen- samento filoséfico de Marx, indispensével para sair do impasse tebtico @ que ‘hist6ria nos relegera. B A histéria: ela se apoderara de nossa adolescSncia desde a Frente Popular ea Guerra da Espanha, para nos imprimir, durante a Guerra nua e erus, ater riyel educagio dos fatos. Ela nos surpreendera ali onde tinhamos vindo ao ‘mundo, e dos estudantes de origem burguess ov pequeno-burguesa que éramos, fizera homens instruidos da existéncia das classes, da Tota destas e de suas implicagbes. Das evidéncias que ela nos impusera, haviamostirado a conclusdo, aderindo & organizaglo polftica da classe operétia, o partido comunista. ra oimediato pés-guerra. Brutalmente, fomos jogados nas grandes batalhas politicas e idealdgicas que o Partido conduzia: precisamos entio avaliar a medida de nossa escotha ¢ assumir suas consequéncias. Em nossa meméria politica, esse tempo permanece o tempo das grandes ‘ereves e das manifestagbes de massa, o tempo do apelo de Estocolmo e do Movimento pels Paz, quando cafram por terra as imensas esperangas nascidas dda Resisténcis e comegou a aspera ¢ dura luta que devia fazer recuar no ho- rizonte da guerra fria, repelida por intimeros bragos humanos, a sombra da catéstrofe. Em nossa meméria filos6fica, esse tempo permanece o dos intelec- tuais armados, petseguindo o erro em todos os covis,o de fl6sofos sem obras, {que éramos, mas fazendo politica de toda obra, ¢ cortando o mundo com uma \inica Kamina, artes, literaturas, filosofias ¢ cifneias, com 0 impiedoso corte das lasses ~ 0 tempo que em sua caricatura estas palavras resumem ainda, alta bandeira desfraldada no vazio: “cincia burguesa, ciéncia proletitia”. Alguns dirigentes, para defender contra o furor dos ataques burgueses um marxismo entio perigosamente aventurado na “biologia” de Lyssenko, relan- ‘garam essa velha férmula esquerdista, que fora outrora a palavra de ordem de Bogdanov e do Proletkult. Uma vez proclamada, ela dominon tudo, Sob sua linha imperativa, os flésofos com que contivamos entlo nio tiveram escolha ano ser entre o comentério ¢ 0 siléneio, uma convicslo iluminada ou coagida, © 0 mutismo do embarago. Paradoxalmente, foi preciso nada menos que Stalin, cujo contagioso e implacavel sistema de gaverno e de pensamento provocava cesses deliros, para trazer a essa Joucura um pouco de razdo. Entre as linhas de algumas paginas simples em que ele censurava 0 zelo daqueles que pretendiam 2 forga fazer da lingua uma superestrutura, entrevimos que o uso do critério de classe no era sem limites, ¢ que nos faziam tratar a ciéncia, cujo titulo cobria, até mesmo as obras de Marx, come a primeira ideologia. Foi preciso recuar, ¢, meio perturbados, retomar os rudiments. “ pareve: wore Escrevo estas linhas em meu nome ¢ como comunista, que busca em nosso passado apenas © que venha esclarecer nosso presente, em seguida iluminar nosso futuro, [Nao evoco nem por prazet nem por azedume esse episédio, mas para 0 sancionar com uma observagiio que o ultapassa. Estivamos na idade do entu- siasmo e da confianga; vivéamos num tempo em que 0 adversério se mostrava implacéwvel, falando a linguagem da injtria para apoiar sua agress2o. Apesar «isso, ficamos muito tempo confundidos por essa peripécia, a que certos diri- ggentes, em vez de nos segurarem na encosta do “esquerdismo” te6rico, nos arrastaram vigorosamente ~ sem que, aparentemente, 0s outros fizessem algo para moderé-os, nos avisar ou nos prevenir. Passavamos entio a maior parte do tempo a militar, quando deviamos ter também defendido nosso direito e nosso dever de conhecer, e de simplesmente estudar para produzir. Ou seja, ‘flo tinhamos nem mesmo esse tempo. Ignorévamos Bogdanoy e o Proletkult, ealutahistérica de Lenin contra o esquerdismo, politico ¢ te6rico; ignorivamos. a letra mesma dos textos da maturidade de Marx, demasiado felizes e com pressa de encontrar na chama ideolégica de suas obras de juventude nossa pt6pria paixto ardente, E os mais velhos do que nés? Os que tinham a respon- sabilidade de nos mostrar os caminhos, como viviam também eles na mesma ignorncia? Toda essa longa tradig&o te6rica, elaborada através de tantos com- bates ¢ provas, testemunhada por tantos grandes textos, como podia ser para cles letra morta? Dai, viemos a reconhecer que, sob a prote¢o do dogmatismo reinante, outza tradipo negativa, esta francesa, prevalecera sobre a primeira, outra tra- digo, ou antes, o que poderfamos chamar em eco A “Deutsche Misere” de Heine, nossa “miséria francesa”: a auséneia tenaz, profunda, de uma real cul- tura tedrica na hist6ria do movimento operévio francés. Se o Partido Comunis- ta Francés pudera avancar a esse ponto, dando & teoria geral das duas ciéncias «forma de uma proclamagio radical, se pudera fazer disso o teste e a demons- trago de sua incontestavel coragem politica, também porque vivia de magras reservas te6ricas: as que Ihe deixou de heranga todo o passado do movimento ‘opersrio francés, De fato, sem contar 0s utopistas Saint Simon e Fourier, que Marx gosta tanto de evocar, sem contar Prowdhon, que niio era marxista, € Taurés, que o era poueo, onde estio nossos te6ricos? A Alemanha teve Marx € Engels, ¢ 0 primeiro Kautsky; a Polénia, Rosa Luxemburgo; a Russia, Plekha- nov e Lenin; a Ttélia, Labriola, que (quando tfnhamos Sorel!) se correspondia Is de igual para igual com Engels, depois Gramsci. Onde esto nossos teéricas? Guesde, Lafargue? Setia preciso toda ums andlise hist6rica para prestar contas de uma pobre- 2a, que contrasta com a riqueza de outras tradigBes. Sem pretender enveredar por essa anélise, fixemos 20 menos algumas balizas. Uma tradiglio redrica (teoria da hist6ria, teria floséfica), no movimento operdrio do século XIX e do injcio do século XX, ndo pode prescindir das obras dos trabalhadores inte lectuais. Foram intelectusis (Marx e Engels) que fundaram © materialismo hist6rico e o materialismo dialético, foram intelectuais (Kautsky, Plekhanov, Labriola, Rosa Luxemburgo, Lenin, Gramsci) que desenvolveram sua teoria, [Nao podia ser de outro modo, nem nas origens, nem muito tempa depois; no pode ser de outro modo nem agora, nem no futuro; o que péde mudar e muda- 4 € a origem de classe dos trabathadores intelectuais, mas no sua qualidade de intelectuais.' Fi assim por razdes de principio que Lenin, depois de Kaut- sky, nos permitiu compreender: de um lado, a ideologia “espontanea” do mo- vimento operério no podia, entregue a si mesma, produzir seni 0 socislismo utépico, o trade-unionismo, anarquismo € 0 anarco-sindicalismo; de avtro Jado, 0 socialismo marxista, supondo o gigantesco trabalho teérico de instau ragdo e de desenvolvimento de uma ciéncia ¢ de uma filosofia sem precedente, 6 podia ser realizado por homens com uma profunda formacio histsrica, ttficaefilos6fica, por intelectuais de grande valor. Se taisintelectuais aparece ram na Alemanha, na Réssis, na PolOnia e na Ita, seja para fundar a teoria, ‘marxista, seja para se torarem seus mestres, nlo foi em razo de acasos iso- Iados: reinantes nesses paises tor imtelectuais, a quem as classes dominantes (feudalismo e burguesia compro- ‘metidos ¢ unidos em seus interesses de classe e apoiados nas Igrejas) nfo ofereciam, no mais das vezes, senlio empregos servis ¢irisorios. Ali 0s inte- Jectuais 56 podiam procurar liberdade e futuro ao lado da classe operdria, a \inica classe revolucionéria. Na Franca, ao contrévio, a burguesia fora revolu- cionaria, soubera e pudera, de longa data, associar os intelectuais & revolugao ue fizera, e manté-Ios a seu lado depois da tomada e da consolidacio do poder. € que as condigdes sociais, politicas religiosas, ideolégicas e morais wvam simplesmente imposstvel a atividade dos AA burguesia francess soubera e pudera realizar sua revolugo, uma revolugo iitida e franca, eliminar a classe feudal da cena politica (1789, 1830, 1848), ‘consolidar sob seu reinado na prépria revolugio a unidade da nagio, combater a Igreja, depois adoté-la, porém, chegado 0 momento, separar-se dela, ¢ cobrie- ‘se com as palavras de ordem de liberdade e de igualdade. Ela soubera utilizar, 1 a9 mesmo tempo, suas posigtes de forgae todos 0s ttulos adquiridos no pas- sado para oferecer aos intelectunis suficiente futuro e espaco, funcbes bastan- tehonrosas, margens de liberdade e de ilusBes suficientes para reté-Ios sob sua Ici, e manté-los sob 0 controle de sua ideslogia. Salvo algumas grandes exce- ‘9Bes, que foram justamente excesses, os intelectuais franceses aceitaram sua ccondicio e nfo sentiram a necessidade vital de procurar a salvagio ao lado da classe operdria; e quando aderiram a ela, nfo souberam desfaver-se da ideolo- gia burguesa que os marcava e que sobreviveu em seu idealismo e seu refor- ‘mismo (Jaurés) ou em seu positivism. Também ndo foi por acaso que o par- ‘ido francs precisou consagrar corajosos e pacientes esforgos para reduzir e destruir 0 reflexo de desconfianga “obreitista” contra os intelectusis, que ex: primia & sua maneira a experiencia e a decepedo, incessantemente renascentes, dde uma longa histéria. Foi assim que as formas mesmas da dominago burgue- sa privaram por muito tempo 0 movimeato operério francés dos intelectuais indispenséveis a formacdo de uma auténtica tradigSo tebrica, Serd preciso acrescentar aqui ainda una razo nacional? Bla se deve & la- ‘mentvelhist6ria da flosofia francesa nos 130 anos que se seguiram & revolu- fo de 1789, 2 sua obstinago espiritualista ndio somente conservadora, mas reacionéria, de Maine de Biran ¢ Cousin a Bergson, a0 seu desprezo pela hist6ria e pelo povo, a seus vinculos profundos ¢ limitados com a religizo, a0 seu encamigamento contra 0 Gnico espitito digno de interesse que produziv, i, H4 30 anos as coisas tomaram outra dirego, Mas o peso de um longo século de embruteci- Auguste Comte, ¢ & sua inacreditével incultura ¢ ignord mento filos6fico oficial contribuiu muito, também, para o esmagamento da teoria dentro do préprio movimento operieo. (© pattido francés nasceu nessas condigdes de vazio tedrico, ¢ crescen 8 despeito desse vazio, preenchendo, o melhor possfvel, as lacunas existentes, alimentando-se de nossa tinica tradico nacional avténtica, pela qual Marx. tinha 0 maior respeito: a tradigdo politica, Permanece marcado por essa tradi fo politica, alids, da teoria politica e econdmica que da teoria filoséfica. Se conseguit por isso, por certo desconhecimento do papel da teoria ~ menos, ccongregar em tomno de si intelectuais célabres, foram, antes de tudo, grandes escritores, romancistas, poetas, artistas, grandes especialistas das ciéncias da rnatureza, e também alguns historiadores e psicdlogas de alta qualidade ~ ¢ sobretudo por raz6es polfticas; mas muito raramente homens com formacdo {filosédfica suficiente pata considerar que © marxismo devia ser nao s6 uma doutrina politica, um “método” de anélise e de acto, mas também, enquanto ” citacia,o dominio tebrico de uma invesigapdo fundamental, indispensével 0 desenvolvimento no apenas da cigncia das sociedadese das diversas “ciéncas hhumanas", mas também das cineias da natureza eda filosfia, O partido fran cés precisou nascar e ereeer nessas condigdes, sem a heranga e 0 aul de uma tadigio nacional fdrica e, 0 que € sua decorténciainevivel, sem ume escola terica da qual padessem sar mestres ‘Tal € arealidade, fomos obrigados« aprender, ea aprender sozinhos. So- zinhos, pois nfo tivemos entre nés, em flosofa marxista, verdadeitos e aran- ds mestres para guiae-nos os passos. Politzer, que podria fr sido um, se nfo tivesse sacrificado a grande obra filossfica que trazia em s a areas econémi- cas urgentes, deixara-nos apenas os eros geniais de sua Critica dos funda ‘menos da psicologia. Morters, assessinado pelos nazstas. Nio téohamos mestres. Néo flo dos homens de boa vontade nem de esptitos muito eultos, cruitos, letrados e outros. Falo de mestes de flosofia marxista,saidos de nossa hstdria, acessveise proximos de nés. Esta tltima condigao nto é um detalhe sopécuo,Pois herdamos, a0 mesmo tempo que ese vazio teérico do nosso passado nacional, esse monstruoso provineianismo floséficoe cultural (n0880 chauvinism} que nos faz ignorar as Linguas estrangeirase paticamen- te desconsiderar 0 que se pode pensar e produrir para slém de uma cadeia de rmontanhes, do curso de um rio ou do espago de um mar, Seri acaso gue 0 astudo e 0 comentério das obras de Marx tenam permanecido tanto tempo entre nés obra de alguns germanistas corajosos e tenazes? Que o tinico nome {ue podemos exporalém de nossa froneiras€0 de wm pacifico hei solité- rio, ue, ignorado pels Universidade Francesa, prosseguiu, durante anos, mi- rciasosestudos sobre o movimento neo-hegeliano de esquerda eo Jovem Marx: Auguste Cornu? Essis eflewes podiam escarecer-nos sobre nossa pensia, mas no aboli- -Ia. Ea Stalin que devemos, no seio do mal cujo maior responsvel & ele, 0 primeiro choque. E & sua morte que devemes 0 segundo choque ~ a sua morte a0 XX Congrasso. Mas entrementes Vida entre nés também fizra sua ob. 'Nio se ria, de um ds para 0 outro ou or simples dereto, nem uinaorga- nizago pottica,nom uma verdadeira cultura teérica. Quantos, entre os jovens fil6sofos chegados @ idade adulta com a guerra ou 0 pés-guera, se tisham o-em tarfas polities extenuantes, sem tempo para o trabalho cien- ambém um trago de nossa hiséra social que os intelectuas de orgern ‘Pequeno-hurguesa que vieram ento para o partido se sentissem obrigados & vida imagingria 1B {que pensavam ter contrafdo por ndo ferem nascido proletdrios. Sartre, & sua ‘maneira, pode servir-nos de honesta testemonha a esse batismo da historia: nds também fomos de sua raga; e é sem divida um ganho dos tempos que nossos camaradas mais jovens parecam livres dessa Divida, que pagam talvez de contra maneira. Filosoficamente falando, rossa geragio sacrificou-se, foi sacri ficada nos combates unicamente politices ¢ ideol6gicos, quero dizer: sacrifi- ceada em suas obras intelectuais ¢ cientficas. Muitos cientistas, e as vezes mesmo historiadores, ou até alguns rarosliteratos, puderam safar-se, sem danos on evitando o pior. Nao havia saiéa para 1m filésofo, Se escrevia ou falava de filosofia para o partido, estava imitado aos comentérios ea pequenas variagbes no uso interno das Célebres Citagdes, Nao tinhamos audigncia entre nossos pares. O adversério jogava-nos na cara que no passdvamos de poltticos; nos- sos colegas mais esclarecidos, que deviamos comesar por estudar nossos au- tores, antes de julg4-los, e por justificar objetivamente nossos prinefpios antes de proclama-los e aplica-los. Para incitar os melhores de seus interlocutores @ hes dar ouvidos, certos fl6sofos marxictas viram-se constrangidos, e cons- trangidos por um movimento natural no qual no entrava nenhuma tética refletida, a se disfarcar ~ a disfargar Marx de Husserl, Marx de Hegel, Marx de Jovem Marx ético ou humanists ~, com o risco de confundir num momento ‘01 noutro a mAscara eo rosto, Nao exager, conto os fatos. Vivernos ainda haje suas consequencias. Estévamos politica e filosoficamente convencidos de ter aportado na tinica terra firme do mundo, mas sem saber demonstra flosofica- mente sua existéncia e finmeza; em verdade, j4 ninguém acreditava que tinha- mos terra firme sob os pés € no apenas conviegdes, No fal da irradiago do marxismo, que felizmente pode nascer de outras esferas que nflo a do astro filosético; falo da existéncia paradoxalmente precéria da filosofia marxista como tal, N6s, que penssivamos deter os princfpfos de toda flosofia posstvel, da impossibilidade de toda ideologia filossfica, néo conseguiamos sustentat 4 prova objetiva e publica da apodicticidade de nossas convicgbes. ‘Uma ver posta & prova a vacuidade teSriea do discurso dogmitico, restava 8 nossa disposig&o um nico meio para assumir a impossibilidade de pensar verdadeiramente nossa filosofia: pensar a prépria flosofia como impossive. Conhecemos entao a grande e sutil tentagio do “Yim da filosofia” de que nos falavam textos enigmaticamente claros da Juventude (1840-1845) ¢ do corte (1845) de Marx. Os mais militantes ¢ 08 mais generosos chegevam ao “fim da filosofia” por sua “realizagi em sua realizagio politica e sua realizaglo sroletaria, pondo sem reserva a seu ", e celebravam a morte da filosofia na agi 19 servigo as famosas “Teses sobre Feuerbach”, em que ume linguagem teorica mente equivoca opde a transformagio do mundo & sua explicagio, Dai a0 pragmatismo te6rico nfo havia, jamais hd, sentio um puso, Outros, de espirito ais cientfico, proclamavam o “fim da flosofia” no estilo de certas férmulas positivistas de 4 ideotogia alema, onde nifio so mais o proletariado ea ago revolucionatios que se encarregam da realizago, logo, da morte da filosofia, ‘mas a ciéneia pura e simples: Marx nao nos incita a cessar de filosofar, on se, de desenvolver devaneios idealégicos, para passar ao estudo da propria rea- Jidado? Politicamente falando, a primeira leitura era a da maioria de nossos filésofos militantes que, entregando-se totalmente & politica, faziam da floso- fia arligifio de sua agi; a segunda leitura, aa contrétio, era a dos crticos, que cesperavam do discurso cientifico acabado que ele cobrisse as proclamagées -vazias da filosofia dogmstica, Mas uns e outros, se se punham em paz ou em seguranga com a politica, pagavam-no forgosamente com mé conseineia a respeito da filosofis: uma morte pragmstico-religiosa, uma morte positivista, da filosofia néo so verdadeiramente mortes filosdficas da flosofia. ‘Empenhamo-nos entao em dar& filosofia uma morte digna dela: uma mor- te filoséfica. Ainda a esse respeito, apoivamo-nos noutros textos de Mars, € numa tereeia leitura dos primeiros. Avancévamos a partir do entendimento de que o fim da filosofia ndo pode ser, como o subtitulo dO capital proclama quanto & Economia Politica, sendo critica: que é preciso irs coisas mesmas, acabar com a ideologia floséfica, e empenhar-se no estudo do real, mas, ¢ era ‘que parecia nos proteger do positivismo, voltando-nos contra a ideologis, a qual viamos constantemente ameagar “a inteligéncia das coisas positivas”, sitisras cincias, turvar os fatos reais. Confidvamos entdo 3 filosofis a perpétua redugto critica das ameaces da ilusao ideol6gica, e, para lhe confiar essa tare fa, faziamos da filosofia a pura e simples consciéncia da ciéneia, reduzida em tudo a letra e ao corpo da ciéncia, mas simplesmente virada do avesso, como sua consciéneia vigilante, sua conscineia do exterior, para esse exterior ne- _zativo, para reduzi-lo a nada, Era o fim da filosofia, visto que todo seu corpo e seu objeto se confundiam com o da cigncia, e, no entanto, ela subsistia, como sua consciéneia critica evanescente, apenas o tempo de projetar a esséncia positiva da ciéneia sobre a ideologia ameacadora, apenas o tempo de destruir 08 fantasmas ideolgicos do agressor, antes de retomar seu lugar, eencontrar os seus. Essa morte ertica da filosofia, idéntica & sua existéncia flosdtica evanes: cente, dava-nos enfim as razses ¢ as aleprias de uma verdadeira morte filos6- fica, realizada no ato ambiguo da critica. A filosofia entio nio tinha por desti- 20 prerhcio: wore no mais do que realizar sua morte critica no reconhecimento do real, e na volta a0 proprio real, 0 real da historia, mie dos homens, de seus atos e pen- samentos. Filosofar era recomecar por nossa vez. a odisseia critica do Jovem ‘Marx, atravessar a camada de ilusGes que nos oculta 0 real, ¢ tocar na nica terra natal: @ da hist6ria, para Id encontrar enfim o repouso da realidade e da ciéncia em harmonia sob a perpétua vigilancia da critica. Nessa leitura, n30 ‘hd mais historia da filosofia: E como podria existir uma histéria dos famtasmas dissipadas, uma hist6ria das trevas peroorridas? $6 existe a hist6ria do real, {que pode silenciosamente fazer surgir no adormecido incoeréncias sonhadas, sem que jamais seus sonhos, ancorados na continuidade dessa profundeza, possam compor efetivamente o continente de uma hist6ria. N'A ideologia ale ‘ma, 0 proprio Marx nos dissera: “A filosofianfio tem hist6ria”. Quando se ler 9 texto “Sobre o Jovem Marx”, julgar-se-8 se ele no esti ainda preso, em parte, a essa esperanga mitica de uma filosofia que atinge seu fim filos6fico na morte continua da consciéneia critica Se evoco tais pesquisas tais escolhas, & porque, & sua mancira, elas tém a marca de nossa hist6ria. E é também perque o fim do dogmatismo stalinista ‘io as dissipou como simples reflexos de eircunstancia, porque elas ainda so nossos problemas. Aqueles que imputarn a Stalin, al&m de seus crimes e seus erros, © conjunto de nossas decepgbes, de nossos erros & de nossos inforttinios, ‘em qualquer dominio, correm o tisco de vir a ficat muito desconcertados 20 cconstatarem que o fim do dogmatismo filos6fico no nos devolveu a filosofia ‘marxista em sua integridade. Afinal, nose pode libertar, nem mesmo do dog- rmatismo, senio aquilo que existe. O fini do dogmatismo produziu uma real liberdade de pesquisa, e também uma febre, em que alguns tém um pouco de pressa de declararflosofia o comentétio dealégico de seu sentimento de liber- tagilo ¢ de seu gosto pela liberdade, As febres caem tio seguramente quanto as pedras, O que o fim do dogmatismo nos devolve foi o direito'de fazer a con- ta exata do que possumos, chamar pelo nome nossa riqueza e nossa pentiia, pensar e colocar em voz alta nossos problemas ¢ empreender com rigor uma verdadeira pesquisa. Seu fim permitin sair em parte de nosso provineianismo te6rico, reconhecer e conhecer aqueles que existiram ¢ existem exteriormente .n6s, €, vendo esse exterior, comecar 3 ver-nos a nés mesmos do exterior, cconhecer 0 lugar que ocupamos no conherimento e na ignorancia do marxismo, 2 ‘eassim comegar a nos conhecermos. O fim do dogmatism nos colocou diante desta realidade: a filosofia marxista, fundada por Marx no ato mesmo da fun- agi de sua teoria da historia, esté ainda em grande parte por constituir, visto ue, como dizia Lenin, s6 as pedras angulares foram colocadas; as dificuldades tedricas, nas quais nés nos debatéramos na noite do dogmatism, néo eram totalmente dificuldades artifciais, mas se deviam também em grande parte 20, estado de no elaboracdo da filosofia marxistas melhor, nas formas rigidas © ccaricaturais que havfamos suportado ou mantido, até na monstruosidade te6- rica das duas ciéncias, algo de um problema no resolvido estava, com uma Presenga cega c grotesca, realmente presente, bastam-me como testemunhas as obras do esquerdismo te6rico (o jovem Lukées e Korsch) recém-publicadas; «, finalmente, nosso destino ¢ nossa tarefa hoje € simplesmente colocar ¢ en- frentar esses problemas 2 luz do dia, se queremos dar um pouco de existéncia © de consisténcia teérica 3 filosofia marxista i Permitam-me indicar a que caminho levam as notas que se seguem. O texto "Sobre o Jovem Mar, ainda preso ao mito de uma filosofia critica ‘evanoscente, continhs, no entanto, a questa essencial, que nossas experiéncias, nossos fracassos e nossas impotncias haviam feito se levantar em n6s: emt que ponto esté a flosofia marxista? Ela tem teoricamente direito & existéncia? E se existe por direito, como definir sua especificidade? Essa questio essencial achava-se colocacia praticamente numa questao de aparéncia histériea, mas que 6, na realidade, te6rica: a questio da leitura da interpretagao das obras de juventude de Marx, Nao foi por acaso que pareceu indispensével submeter a "um exame critico s6rio esses textos famosos com os quis se defenderam todas as banderas ¢ todos 0s usos, esses textos abertamente filoséficos nos quais acreditéramos, mais ou menos espontaneamente, ler a filosofia de Marx em. pessoa, Colocatr a questio da filosofia marxista e de sua especificidade no to- ‘ante As obras de juventude de Marx era necessariamente colocar a questo das relagbes de Marx com as filosofias que ele desposara ov percorrera, as de Hegel ¢ de Feuerbach, logo, colocar a questio de sua diferenga, Foi o estudo das obras de juventude de Marx que me levou inicialmente & leitura de Feuerbach e & publicagdo de seus textos teéricos mais importantes do petiodo 1839-1845 (ef. meus considerandos pp. 33-38), Foi essa mesma razio 2 ‘ 5 que devia naturalmente conduzir-me a comecar a estudar, no detalhe de seus respectivos conceitos, a natureza das relagSes da filosofia de Hegel com a filo- sofia de Marx. A questio da diferenca expecifica da filosofia marxista tomou assim a forma da questo de saber se existia ou niio, no desenvolvimento intelectual de Marx, um corte epistemolégico marcando 0 surgimento de uma nova concepeio da flosofia ~ e a questéo correlative do lugar preciso desse corte. Foi no campo dessa questo que o estudo das obras de juventude de Marx tomou uma importincia teGrica (existéncia do corte?) ¢ histérice (lugar do corte?) decisiva. Bvidentemente, ndo se podia aceitar, para afirmar a existéncia de um corte ce definir seu lugar, sentio como uma declaracdo 2 ser testads, para infirmar ou confirmar, a frase pela qual Marx atesta e situa esse corte (“a liquidagao de nossa consciéncia de outrora”) em 1845 no Ambito d’A ideologia alema. Para experimentar 0s teores dessa declaracao, era preciso uma teoria e um :método — era preciso aplicar ao pr6prio Marx os concettos tedricos marxistas ccom os quais pode ser pensada a realidade das formagdes teéricas em geral Cideologia filos6fica, ciéncia). Sem a teoria de uma histéria das formagoes te6ricas,ndo se poderia efetivamente apreender e estabelecer a diferenca espe- cifica que distingue duas formagbes tebricas diferentes. Acreditei poder, para cess fim, tomar emprestado de Jacques Martin 0 conceito de problematica para designar a unidade especifica de uma formaciio te6rica e, por conseguinte, 0 ugar determinado dessa diferenga especifica, ede G. Bachelard o conceito de corte epistemolégico para pensar a motarao da problemstica tedrica contem- porfinea da fundago de uma diseiplina cientfica. Que fosse preciso construir tum conceito ¢ tomar outro emprestado nio implicava que esses dois conceitos fossem arbitrévios ou exteriores a Marx; muito pelo contrétio, pode-se demons- ‘rar que estio presentes e em aco no peasamento cientifico de Marx, mesmo «que sua presenga fique na maior parte do tempo em estado pritico.* Nesses dois conceitos, eu estabelecera o mfnimo teérico indispensével para autorizar uma andlise pertinente do processo da transfotmacao tedtica do Jovem Marx, e para chegar a algumas conclusGes precisas. Permitam-me resumir aqui, de forma extremamente suméti tados de um estudo que se estendeu por longos anos e dos quais os textos que publico sko apenas testemunhos parciais. L = Um corte epistemolégico inequtvoco intervém, na obra de Marx, no ponto em que © préprio Marx o situa, na obra no publicada em vida, que Cconstitui a eritica de sua antiga conscitneia flosbfica (ideolbgica): A ideologia alguns resul- 23 calema, As “Teses sobre Feuerbach”, que so apenas algumas frases, marcam «a borda anterior extrema desse corte, o ponto onde, na antiga consciéncia e na antiga linguagem, portanto em formulas e conceitos necessarlamente desequi- librados e equivocos, aponta js a nova consciéncia teérica 2— Esse corte epistemolégico refere-se conjuntamente a duas disciplinas te6ricas distintas. Foi fundando a teoris da historia (materialismo histérico) que Marx, num tinico © mesmo movimento, rompeu com sua conseiéneia ideo- 1égica anterior e fundou uma nova filosofia (materialisme dialético). Retomo ‘expressamente a terminologia consagrada pelo uso (materialismo histérico, materialismo dialético), para designar essa dupla fundacio num tinico corte, E assinalo dois problemas importantes inscritos nessa condi excepcional. ‘Que uma nova filosofia tenha nascido da fundago mesma de uma cigncia, & que essa ciéncia seja a teoria da histéria, coloca naturalmente um problema capital: por qual necessidade de principio a fundagio da teoria cientffica da hist6ria devia implicar e envolver ipso facto uma revolugo teérica na flosofia? ‘A mesma circunstancia acarretava também uma consequéncia pritica que no pode ser negligenciada: a nova filosofia estava tho bem implicada pela e na nova ciéncia, que poderia ser tentada a confundir-se com ela. A ideologia ale- ‘md consagra mesmo essa confusio, fazendo da filosofia, como notiramos, apenas & frégil sombra projetada pela cigncis, ov até a generalidade vazia do positivismo. Essa consequéncia pritica é uma das chaves da histéria singular da filosofia marxista, de suas origens aos nossos dias. Examinarei em breve esses dois problemas, 3 -Esse “corte epistemoldgico” divide assim o pensamento de Marx em dois grandes periodos essenciais: 0 perfodo ainda “ideolégico”, anterior a0 corte de 1845, e 0 perfodo “cientifico”, posterior ao corte de 1845, Esse segundo petiode pode, igualmente, ser dividido em dois momentos, o momento da ma- turagio teérica e 0 momento da maturidade te6rica de Marx. Para facilitar © trabalho flos6fico histérico que nos aguarda, gostaria de propor uma terini- nologia proviséria, que registra essa periodizagio, (a) Proponho designar as obras do primeiro perfodo, logo, todos 0s textos de Marx, de sua tese de doutorado aos Manuseritos de 1844 ¢ inclusive A sa- ‘grada familia, pela expressio jé consagrada: Obras da juventude de Marx. (b) Proponho designar os textos do corte de 1845, ou seja, as “Teses sobre Feuerbach”, ¢ 4 ideologia alemd, onde aparece pela primeira vez. nova pro- blemética de Marx, mas quase sempre de uma forma ainda parcialmente nega- tivae fortemente polémica e erftica, pela expressiio nova: Obras do corte. | i (©) Proponhe designar as obras do petiodo 1845-1857 pela expresso nova Obras da maturagao. Se podemos efetivamente atribuir 20 corte que separa 0 {ddeol6gico (anterior a 1845) do cientifico (posterior a 1845) a data crucial das cobras de 1845 (“Teses sobre Feuerbach’ A ideologia alemd, devemos ter em. ‘conta que sua mutacdo ndo péde produzir de imediato, em uma forma acabada ¢ positiva, a problematica teérica nova que ela inaugura, canto na teoria da histéria quanto na teoria da filosofia. A ideologia alemd é, com efeito, 0 co- rmentério quase sempre negativo e eritice das diferentes formas da problemé- tica ideoldgice rejeiteda por Marx. Um longo trabalho de reflexio ¢ de elabo- ago positivas foi necessério, longo perodo que Marx empregou a produzir, modelar e fixar uma terminologia ¢ uma sistemética conceituais adequadas @ s2u projeto teérico revoluciondtio. Foi pouco a pouco que a nova problemética revestiu sua forma definitiva. I por essa tazdo que proponho designar as obras posteriores a 1845 e anteriores aos primeitos ensaios de redagiio dO capital (por volta de 1885-1857), portanto 0 Manifesto, Miséria da filosofia, Salério, prego e lucro etc., a8 Obras da maturacdo tedrica de Mark. @) Proponho entio designar todas as obras posteriores @ 1857; Obras da maturidade. ‘Teriamos assim a seguinte classificagio: 1840-1844: Obras da juventude, 1845: Obras do core, 1845-1857: Obras da maturacao. 1897-1883: Obras da maturidade. 4~0 periodo das Obras da juventude de Marx (1840-1845), ou seja, de suas obras ideolégicas, pode também subdividir-se em dois momentos: (a) omomento racionalista-liberal dos artigos da Gazeta Renana (até 1842), (b) 0 momento racionalista-comunitério dos anos 1842-1845. ‘Como indico rapidamente no texto "Marxismo e humanismo”, as obras do primeiro momento suptem uma problemética de tipo kantiano-fichtiano. Os textos do segundo momento repousam, ap contrrio, sobre a problemiética an- ‘ropoldgica de Feuerbach. A problemtica hegeliana inspira um texto absolu- tamente Gnico, que tenta de maneira rizorosa operar, em sentido estrito, a “inversio” do idealismo hegeliano no pseudomaterialismo de Feuerbach: so os Manuscritos de 1844, Dafeste resultado paradoxal: desconsiderando 0 exer- cofcio ainda escolar da tese de doutoradae a excegio do praticamente Gltimo texto de seu perfodo ideol6gico-filoséfico, o Jovem Marx nunca fot hegeliano, 2s sim inicialmente kantiano-fichtiano, em seguida feuerbachiano. A tese, fre ‘Quentemente difundida, do hegelianismo do Jovem Marx, em geral é portanto ‘um mito. Em contrapartida, na véspera da ruptura com sua “consciéacia filo- s6fica de outrora”, tudo acontece como se Marx tivesse produzido, recorrendo Hegel pela tnica ver na sua juventude, uma prodigiosa “ab-reago” te6rica indispensével a liquidagdo de sua conseiéneia “delirante". Até enti, ele no cssara de se distanciar de Hegel, ¢ para compreender 0 movimento que 0 fi- era passar dos estudos universitérios hegelianos a uma problemética kantiano~ fichtiana, depois a uma problemética feuerbachiana, seria preciso dizer que, em vee de se aproximar dele, Marx nfo cessara de se afastar de Hegel. Com Fichte ¢ Kant, etornava ao fim do século XVIM, e, com Feuerbach, regressava a0 fimago do passado teérico desse século, se € verdade que, & sua maneira, 4o século XVIIL, a sintese do ‘materialismo sensualista e do idealismo ético-histérico, a unis real de Diderot Feuerbach pode representar 0 flésofo “idea de Rousseau, Nao se pode deixar de perguntar se, no brusco ¢ total iltimo retorno a Hegel dos Manuscritos de 1844, nessa sintese genial de Feuerbach e dde Hegel, Marx nao reuniu, como numa experiéncia explosiva, os eorpos dos dois extremos do campo teérico que percorrera até entio, ¢ se nao foi nessa experigneia de extraordindrio rigor e consciéneia, na mais radical prova da “inversio” de Hegel jamais tentada, nesse texto que nunca publicou, que Marx viveu e realizou na pritica sua transformagiio. Se se quiser chegar a alguma ideia da logica dessa prodigiosa mutacio, é na extraordingia tensio te6rica dos Manuscritos de 1844 que seria preciso procuré-la, sabendo de antemio que o texto da quase Gltima noite é paradoxalmente o mais afastado, teoricamente falando, do dia que ia nascer, 5 As Obras do corte colocam problemas de interpretagio deliesdos em fungao de seu lugar na formagao te6rica do pensamento de Marx. Os breves clatdes das “Teses sobre Feuerbach” inundam de Tuz. todos os filésofos que elas se aproximam, mas todos sabem que um claro ofusca mais do que ilu ‘mina, ¢ que nada ¢ mais diffe de situar no espago da noite do que um relém- ago que a atravess onze teses falsamente transparentes. Jé A ideologia alema nos oferece um ‘Um dia seré preciso tomar visivel o enigmatico dessas ensamento em estado de ruptura com seu passado, derrubando impiedosa © criticamente todos os seus antigos pressupostos tedricos: primeiro, Hegel ¢ Feuerbach, todas as formas de uma filosofia da consciéncia e de uma filosofia, antropolégica. Entretanto, esse novo pensamento, tio firme © preciso na ingui tigifo do erro ideol6gico, ndo se define a si mesmo sem dificuldades, nem sem %6 Sy | | | | equivocos. Nio se rompe de um s6 golpe som um passado te6rico: so sempre necessérias palavras e conceitos para romper com palavras ¢ conceitos, ¢ so frequentemente as antigas palavras as encarregadas do protocolo da ruptura, cenquanto perdura a busca por novas. A ideologia alem@ nos di assim 0 es- petaculo de conceitos aposentados recolocados em servigo enquanto 0s novos. finda esto em preparaciio... ¢ como € normal julgar esses antigos conceitos pela aparéncia, tomé-los ao pé da letra, € iil perder-se muma concepeiio quer positivista (fim de tod filosofia), quer individualists-humanista do marxismo (os sujeitos da histéria sfo “os homens coneretos, reais”). Ou, ainda, pode-se cair na armadilha do papel ambiguo da divisdo do trabalho, que desempenha nesse texto 0 papel principal, desempenhsdo nos textos de juventude pela ali- ‘nagiio,e que comanda toda a teoria da ideologia e toda a teoria da citncia, Por todas essas razBes, que tém a ver com a proximidade imediata do corte, A ideologia alema exige todo um trabalhe eritico para distinguir a funedo te6. rica supletiva de certos conceitos desses -nesmos conceitos. Voltatei a isso. '5~ Simar 0 corte em 1845 nilo deixa de ter consequéncias te6ricas impor- tantes no tocante nko s6 a relago de Marx com Feuerbach, mas também & relagio de Marx com Hegel. Com efeitc, nflo & somente depois de 1845 que ‘Marx desenvolve uma erftica sistemética de Hegel, mas desde 0 segundo mo- mento de seu perfodo de juventude, come se pode ver na crtiea da filosofia do Estado de Hegel (Manuserito de 1843), a0 prefiécio & Critica da flosofia do direito de Hegel (1843), nos Manuscritos de 1844 e n'A sagrada familia. Ora, essa critica « Hogel nfo 6 outra coisa send, nos seus princtpios tebricos, & retomada, o comentéri, ov 0 desenvolvimento ¢ & extenséo, de admirével critica a Hege! formalada véris vezes por Feuerbach. E ums extica da iloso- fia hegeliana como especulaydo, como abstrayo, uma critica conduzida em nome dos pincipios da problemitica airopoligica da alienagdo; uma etca aque reorre do abstratovespeculatvo ao concreto-materialist, ou se, que pe- manece serva da problemiética ideslista da qual se quer libertar; uma exitica {que pertence entZo, de fato, 8 problemtica tebrica com a qual Marx vai romper cem 1845, ‘Compreende-se que importa para a pesquisa ¢ a definigdo da filosofia mar- xista nio confundir a critica marxista a Hegel com a critica feuerbachiana a Hegel, mesmo que Marx a retome em seu nome. Pois, segundo se declare ou no verdadeiramente marxistaa critica (de fato, feverbachiana de ponta a pon ta) a Hegel, exposta por Marx nos textes de 1843, far-se-d ume ideia muito

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