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. A PROPOSITO DA POESIA COMO METODO SOCIOLOGICO** Primeira conversa com o critico Critico — Nao estou contente com seus éltimos livros. A rigor aceito que 9 socidlogo ¢ 0 filésofo precisam se esforgar para ser enten- didos por todo mundo; que atenuem suas pesquisas e escondam todo o material sobre o qual repousa seu edificio, seus trabalhos pacientes de aproximagdo, suas fichas documentérias, suas claboragdes estatisticas. ‘Mas, noto no senhor uma tendéncia mais grave — fazer da poesia um método de sociologia. Eu — O senhor nfo est4 completamente enganado. & uma velha idéia. Cheguei até ha quinze anos, num austero Congresso de Sociélogos de todas as nagGes, reunidos em Genebra, a cidade puritana, a censurar meus colegas por nfo lerem bastantes romances, Critico — Quero. mesmo chegar até 14. Esté claro que encon- tramos em Balzac ou em Zola a mais rica documentagao da sociedade da Restauragéo on do Segundo Império. E nao me esqueco no Brasil dos romances de Aluisio Azevedo ou de José Lins do Rego. Eu — Nio 6 bem isso. Se 0 fosse nio teria seno arrombado uma porta aberta. Aludia a romances como o de Jacques Chardonne que, * Reproduzido de Basrioe, Roger. A propésito da pocsia como método sociol6- ico. Cadernos, Séo Paulo, Centro de Estudos Rurais e Urbanos, n, 10, 1. s . 75-82, nov. 1977. 1 Publicado no Didrio de Sao Paulo, 8 de fevereiro de 1946, © dedicado ao poeta Sérgio Millict. por um esforgo de andlise mental, faz uma verdadeira experiéncia socio- Iégica. Toma um casal, separa-o do resto da sociedade, dando-Ihe bas- tante dinheiro para que possa viver a prépria vida isolado em pleno campo, num castelo de uma grande propriedade rural, afastado vonse- qientemente de outros grupos sociais que pudessem reagir a eles, Com isso consegue ter o casal em estado puro. Pensava em tentativas desse género, no em romances que so considerades como puramente literé~ ios. Eles nos propdem métodos de trabalho, habituam-nos a certas maneiras em geral por és pouco utilizadas para penetrar 0 social. © Critico — Ademais, o senhor esté se desviando do assunto, Nao falei de romance, posso deixé-los para o senhor. Falei de poesia. Eu — Pede-se muito 4 poesia atualmente, no acha? O Critico — A meu ver um pouco demais. Fez-se dela uma magia, encarregada de buscar nos quatto elementos uma metafisica que nos arranca do mundo sensivel para nos fazer entrar na intimidade das subs- tincias, na esséneia dos seres, ou para subir até as idéias puras, as esséncias platOnicas, enfim uma mistica, uma fuga da alma até Deus... Eu — Confesse pelo menos que eu no sou téo ambicioso; sé me utilizo dela no mundo dos fenémenos. O Critico — Mas, é justamente af que seu poder finda. O socié- Jogo é um sébio e Durkheim nos ensinou que devemos desconfiar dos pensamentos subjetivos, rejeitar as idéias que fazemos das coisas © exa- minar as realidades de fore, olhar os fatos sociais do mesmo modo ‘como se observam os fenémenos da natureza. Repele a introspeccdo e, com mais razio, a intuigio. Quando o senhor pratica a sociologia, vai pedir A deusa das pitonisas que o inspire, e, quando escreve um artigo, Senta-se por acaso no tripé sagrado? Essa idéia da poesia como forma de conhecimento funda-se em uma confusio — a confusio da verdade com o obscuro ou com a exaltagéo de uma alma inebriada. Na yerdade, © poeta s6 atinge a superficie colorida ou musical das coisas, é um homem que nio ultrapassa as aparéncias camais, a pele sensivel do real @ que se encanta com isso. Se 0 socidlogo passa a fazer poesia, sera também obrigado a permanecer na superficie pitoresca das realidades sociais, nfo se esforcaré por analisé-las, compreendé-las, gozaré somente de sua.beleza. Substituira o critério da verdade pelo do valor estético, que nada tem a ver com a ciéncia. O senhor tem nogdo para onde vai, pretendendo fazer da sociologia o que Jules Gaultier desejava fazer da filosotia — um espetéculo? De minha parte, quando abro um livro de sociologia, nfo sinto um prazer do mesmo tipo como quando you a um teatro, chorar com uma tragédia ou rir com uma comédia. Eu — Compreendo 0 que 0 senhor diz ¢ aprovo. Mas, esse método positive, puro, que o senhor propée para a sociologia, foi construido pouco: 12 pouco, pelo contato com os fatos fisicos. Seré que o senhor se esquece de que sociedade & formada de homens, isto é, de seres pensantes? © senhor se esquece, uma vez que falou em Durkheim, de que com a simples reuniao de homens pensantes aparecem fenémenos novos, origi- nais? Estamos, nesse ponto, num dominio em que se podem reduzir as coisas a conceitos. O real os ultrapassa de todos os lados. Se 0 sociélogo se limitar a fazer entrar as coisas em certos quadros, a pregar etiquetas, a colar papel gomado, em lugar de nos dar uma imagem exata do que quis estudar, nfo nos daré mais do que uma visio de muscu; © social ficaré empalhado dentro de uma vitrine. No quero uma ciéncia que cheire a inseticidas. A fisica tende a matematizar o universo, a sociologia a desmatematizar. Os mimeros governam o universo, mas os homens governam os niimeros. O sabio 6 descobre as leis do universo sob a condigo de decompor 0 mundo em sistemas fechados, de distin- guir nesses sistemas fechados uma hierarquia de condigdes © de chegar, finalmente, por meio de anélises, & condicao necess4ria ¢ suficiente do fato que é objeto de suas pesquisas; 0 socidlogo, ao contrério, encontra-se em presenga de fendmenos nos quais 0 total é diferente do conjunto das partes, em que tudo reage sobre tudo; além disso, é ele levado pela corrente do tempo; de modo que, quando separa, mutila, ¢ quando acaba de formular as varias relagdes, essas relacdes jé mudaram. Nao de- verd ele, pois, proceder um pouco como o merguihador que se joga no mar para conhecer, ao menos aproximadamente, a riqueza liquida? A poesia esse mergulho. O Critico — Caso eu esteja compreendendo bem, o que o senhor chama de poesia néo é mais do que a intuicdo bergsoniana. Bergson tenta, por um desses esforcos de interiorizacio, dessas descidas dificeis no éian vital, colocar-se no instante em que o impulso do instinto se transforma em coercdo social, ou ainda no decorrer daquele instante em que as necessidades bioldgicas proliferam em flores imagindrias, em mitos. Eu — Nao nego que devo muito a Bergson. Mas meu método é infinitamente mais modesto. Aliés, aceitar a intuigéo bergsoniana é aceitar a teoria do élan vital. E eu nao fago metafisica. Nao quero ser sendo um erudito, ou, para falar mais precisamente, um aluno’de ciéncia. E por isso que proponho o termo intuiedo poética, para evitar qualquer confusio, Trata-se, para 0 socidlogo, de nao se colocar fora da expe- riéncia social, mas de vivé-la, senao totalmente, pois ndo podemos ser Fregolis®, transformando-nos sucessivamente em operério e patrio, em- pregado de banco e malandro, entregidor de loja e missionério, mas nos aproximando deles pelo menos por um esforco de simpatia, por uma espécie de naturdlidade instintiva. ‘Trata-se de uma transfusdo da alma, 2 Mimico célebre yor suss transformagées répidas, Precisamos nos transformar naquilo que estudamos — multidéo, massa, classe ou casta. As construgdes sociais podem ser descritas de fora, como ‘um ajuntamento mecinico de pecas. Mas clas tém também um sentido, ‘um significado. Todavia, esse sentido nao 6 sempre aquele que empres- tamos a elas. Lévy-Bruhl mostrou os perigos que hé em julgar as insti- tuigdes dos primitivos através de categorias de nossa compreensio mo- derna. E preciso, apelando para um ato de amor, transcender nossa per- sonatidade para aderir 4 alma que esta ligada ao fato a ser estudado. © Critico — Compreendo. B af que esté 0 perigo. Pois no se pode sair de si mesmo. Ey — Entdo toda a sociologid se limitard a ser uma sociologia do conhecimento; nossas teorias no expressario mais que nossos interesses de classe e, quando estivermos certos de ter definido 0 social, nao teremos sendo proclamado nossos preconceitos de burgueses, de funciondrios ou de proletirios, & justamente isso que censuro na sua sociologia dos conceitos. Os alemies nos mostraram as inquietantes camadas inferiores. Penso que s6 a poesia é capaz de nos fazer sair dessa sociologia do saber, pois a poesia é o desinteresse. 0 Critico — Mesmo que estivesse de acordo, néo aceitaria como um ponto de partida, Toda a realidade, para ser compreendida, deve se referir a uma experiéncia vivida. Mas, trata-se somente de uma ‘técnica de aproximagao, entre outras téenicas como a estatistica e a pesquisa hist6rica. Depois 6 que eliminamos os alicerces para s6 deixar visivel © paldcio, a ordem bem disposta dos conceitos. Censuro o senhor por ter deixado penetrar nos seus estudos pedacos inteitos de puro lirismo. Eu — Ainda voltaremos a conversar. Segunda conversa com o Critico * Eu — Por ocasifio de nossa iltima conversa quase ficamos de acor- do. Para apreender a riqueza social em toda a sua farta complexidade, precisamos recorrer aos mais variados métodos, mesmo ao método poético, caso seja necessario. E aquilo que jé denominei, como o senhor deve estar lembrado, principio dos projetores convergentes que ilu- minam o objeto estudado, como num teatro a dancarina é aprisionada nos miltiplos fachos Iuminosos que jorram de todos os cantos da sala, Mas na sua opinido, pelo contrario, esse método poético s6 deve ser utilizado no trabalho de preparacdo, devendo ser depois seus resultados incorporados ad"edificio dos conceitos racionais que formam a sociologia. Publicado no Didrio de Sao Pauto, 22 de fevertiro de 1946. O Critico — & bem a conclusio a que chegamos. Toda a ciéncia € uma reconstrugéo da realidade, Substitui-se a imagem confusa do mundo, dada pelos sentidos ou pela experiéncia fatima, por uma ima- gem total, fruto do trabalho intelectual. A sociologia nao é uma excecio A regra. Ela é um sistema de relacdes légicas. ‘Eu — Evidentemente. Mas ao mesmo tempo no se deveria esque~ cor que o real, se freqiientemente parece se submeter as leis do espiiito, resiste as vezes, sendo entdo o estudioso obrigado a reconhecer essa resisiéncia, Um exemplo disso na fisica é o principio de Carnot. O Critico — Nao tenha receios. Li Meyerson e aceito as conclusées de seu livro Identté et realité. Eu — Mas essa parte irracional, enorme j4 no domfnio da natureza, aumenta ainda mais quando se passa para o dominio das ciéncias do espitito. Ficamos entéo diante de um dilema: ou a sociologia se limita & descrig&o do que é racional na sociedade, formando um todo harmo- nioso mas cheio de lacunas, ou entdo resolveré ser uma ciéncia total € terd de reproduzir uma imagem desses elementos irracionais, desses fundos perturbadores e sentimentais, desses movimentos de massa, dos ditames do inconsciente coletivo’: Nao vejo meio possivel para isso sendio a ex- pressio pottica. © Critico — Obseura per ebscurius. Eu — Nio, pelo contrério, a poesia é a ‘inica luz capaz de iluminar o mundo da obscuridade. O senhor mesmo aceitou no decorrer de nossa ‘iltima conversa que o conceito ou, caso prefira, 0 pensamento simbélico, deve se basear em tltima andlise na experiéncia direta. Cré o senhor que o homem tenha tio freqiientemente essa experiéncia do social? Muitas ‘vezes vivemos na sociedade como autématos ou sonhadores acordados; deixamo-nos guiar por ela, respondemos aos estimulos, sem ter muita consciéncia da situagdo. A expresso poética me parece mais apropriada que qualquer outra para forcar o leitor a viver na experiéacia comuni- téria, juntando assim & compreensao Idgica, que alcanga a sua inteligéncia, um sentimento direto, uma compreenséo mais intima, Critico — Seria entéo um método pedag6gico. Eu — Mais do que isso. A expresso poética no seria pedagésica se a sociedad nada tivesse de poético. Ha, porém, na sociedade, um elemento de poesia, seado a expresso poética um esforgo de fidelidade em relagdo prépria verdade das coisas. Critico — Vamos nos deter um pouco, pois parece que o senhor pensa que a poesia tem uma existéncia objetiva, que ela se encontra nas coisas exteriores, quando na verdade ela est sempre na alma do escritor, do observador ou do leitor. Eu — Talvez isso scja verdade, caso nos refiramos aos objetos da natureza — uma paisagem, uma Arvore, um animal. Essas coisas sé se tomam potticas pela sua passagem © suas metamorfoses através do coragéo do artista. A estética é uma tendéncia permanente, universal ¢ profunda da humanidade, que existe desde o tempo dos habitantes das primitivas cavernas, que faziam dos ossos flautas musicais e desenhavam nas paredes das rochas, com suas mios tintas de vermelho, os saltos dos animais ou os arabescos de seus sonhos, E, uma vez que a sociedade é formada de homens, forcosamente deveremos tornar a encontrar nela esses elementos estéticos. A estrutura social nfo é somente um conjunto de relages de starus, de comportamentos ou de regras, é uma organi- zagio na qual se imprime um. pouco da atividade estética dos homens. Hi um elemento de etiqueta, de educacdo, de gratuidade, um certo prazer no conjunto que constitui aquilo a que se dé o nome de cultura, Além disso, a dispersio dos homens na terra tende a relaxar os lacos sociais; é necessério que em certas ocasiées os homens se retinam para juntos experimentarem sentimentos de comunhdo. O senhor sabe como sio chamedas essas reunides — festas. Ha sempre na festa um elemento estético. A comunhao se faz na poesia, Concluindo, ndo ha sociedade sem representages coletivas, sem um certo paideuma, uma certa conti- guracio espiritual e no sei no s6 como me aproximar disso, como também expressi-la sem recorrer @ alguma coisa que se parece com a poesia, O Critico — O senhor deve ir entdo até o fim. Por que nao escreve um tratado de sociologia em redondilhas ou em sonetos? E caso tais géneros nfo Ihe sejam agradaveis, espero pelo menos de si um poema em doze cantos, um De natura rerem socialitatis, Eu — Creio nao me ter feito compreender bem. Quando falo de poesia, no falo daquela poesia que se liga & versificagao, e por isso nio aceito sua ironia. O sociélogo pode e deve se utilizar da expressio pogtica que se liga A poesia sociolégica, o que é totalmente outra coisa, ‘Nao se trata de recomegar o Unanimismo de Jules Romain, a tentativa para descobrir 0 que pode ser utilizével, na sociedade, do lirismo dos poetas tradicionais, Trate-se, com o fim de dar uma imagem exata da sociedade, nao de desencadear, mas sim de exprimir tao fielmente quanto posstvel os elementos estéticos da vida social. Trata-se pois de uuma expressio poética especial — a expressiio da poesia sociolégica. 0 Critico — Nao esta muito claro, Eu. — Reconhego isso também, mas se fosse claro teria que recorrer justamente a esse tipo de expresso? Recordo-me de uma rainha proven- al que, se referindo & poesia, dizia: “essa ciéncia, a mais exata de todas as ciéncias”, B esse 0 sentido em que coloco a questo. A expressio poética 6 uma forma de.exatidao cientifica. Ela s6 intervém quando a detém uma seriaglo conceitual, ela nfo deve intervir onde nao tenha o que fazer. A sociologia é exatamente aquele edificio de relagbes racionais do qual o se- hor falava, um conjunto de conceitos e de leis, de pesquisas causais e de definigdes objetivas. Mas uma linha mel6dica deve cercar esse conjunto para dar a impressdo do que existe em toda a sociedade de vida, de harmonia, ou mesmo de notas falsas, enfim, de vida criadora, de sua organizacio em movimento, de seu equilfbrio no decorrer dos tempos. Talvez um exemplo esclarecesse melhor meu pensamento. Quando eu descrevi o Candomblé da Bahia, poderia ter me abandonado ao lirismo de uma descricdo selvagem, falar de loucura coletiva. Mas teria entiio substituldo uma imagem real por uma falsa, por um sentimento de branco, poderia ter feito poesia contra a verdade. Teria sido uma poesia de pocta tradicional. O candomblé é um ritual bem regulamentado, fruto de uma cultura. E essa poesia tao diferente — a poesia sociolégica — que eu tentava traduzir. Neste caso a poesia ndo é traicio, mas a vontade de alcangar uma fidelidade mais precisa.

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