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Marcel Detienne Os Mestres da Verdade na Grécia Arcaica Tis orga Lente de Vert dans le Grécearcatche Tiadicom ° co auorizads da ei franes pubiada ‘em 8h por Batons Ua Deourere Par Praga ewig © 1967 right © 1988 Jorge fanar brie Feangois Masporo er Magu porta Sumario Prefiicio de Pierre Vidal-Naquet I Verdade e Sociedade 0 A Meméria do Poeta m1 (© Ancido do Mar Vv ‘A Ambigitdade da Palavra v © Processo de Laicizagéo MI ‘A Escolha: Alétheia ou Apdte vo Ambigtiidade e Contradigio Notas Indice Analitico e Onoméstico Prefacio 0 tfalo do livro de Marcel Detienne define, ao mesmo tempo, um paradoxo & n programa. Existem “mestres da verdade”*? Uma tradigio pedagésica, ‘bem antiga, pretende que o mestre seja independente da verdade que ensina, {que o supera e nos supera, Esta tradicdo parece ter tiunfado no século XIX, cias exatss, nas cincias da natureza e, até mesmo, nas ciBncias socias, Por acreditar que a realidade social podia ser um objeto centifico, portanto independente daquele que 0 observa, Marx declarou uma vez que nfo era ‘nurkista. Este universalismo & amplamente posto em clivida hoje em dia (no tne cabe dizer por qué, net como): no melhor sentido, na medida em que es- {amos hoje muito mais sensfveis do que antes &s condicSes psicoldgicas, so- cis, © até mesmo econdmicas, da aparicio e do desenvolvimento do penst- tnento cientifico, 2 infinita diversidade des pontos de vista, propostos por di- ferentes cientistas de diferentes ciéncias; no pior sentido, visto que alguns Estados e alguns homens se fazem os arautds ~e 0s mestres ~ de uma verdade tnlltante: “Estudar as obras do Presidente X, seguir seus ensinamentos ¢agir de acordo com suas diretrizes", em torno desta palavra de ordem se redinen (0s militares de uniforme ou de’espfrito de todos os pafses. Mas, exatamente onde aparece © mestre, jé nfo hé mais verdade, Seja qual for esta evolugio, hé que se dizer que, se a linguagem militar assim como a poesia por oUtras raZSes, propriamente intraduzivel e inco- ‘nlniedvel ~ uma ordem 86 compreensivel para aqueles aos quais se dirige — 6 peculiar & linguagem cientifia poder atingir todos agueles que fizeram 0 ‘esforgo de aprendé-la, e ser conversivel em qualquer dialeto humo. Tsto no significa negar o valor de outras experiéncias hursanas, africa- indianas, chinesas ou amerindias, mas admit que esta Linguagems, sob » forma em que se manifesta fundamentalmente hoje em dia, encontra sua borigem na Grécia, nama Grécia sustentads, além de tudo, por uma heranca ri- © complexa, mas diferente daquela veiculada pelos grupos que falavam lingua “indo-européia” que penetraram no solo “rego” no fim do terceiro Movies de verdade”: a playra “este, em francs mare, designa aqele qu co- na, overn, eras um poder ua aufridad; sina indica aqule que ensiny ede, mle ye & toma como mode (ets, esertor). Mas, palavra rave posi a Wn im sentido qve nfo encontramoe ax radu correspondence portals ie ig= rlfea niuele ue€ possuider, dno ou senor de wm bern qualquer, (a7 ‘os mostres da verdace na Gréci orsies mento grego!, Jean-Pierre Vernant apresentou-nos um quadro (assim como Ga leticologa etna, povar s ponsbdades da teova do campo sent eens eee ata “Cha viagemn en un caro condzio plas has do So, ua. via aera 40 a ee ee ees See eres gee erm ae eee roficio ‘No momento em que comega a “titeratura grog’, 0 ei micénico desa- > certo que 0 ei fico, ue Pindaro ou Esquilochegaram aco necer, em pleno séclo V, e que se prolongaré sob usa forma quasefoleléri= va mitologia belensties antes de scr ressuscitado por Frazer, seja seu her= leito dzeto, O fato deter se tornado mifico parece-me, a0 contrério,essen- il mas talvez do que para Maresl Detienne. Além disso, 0 préprio Detienne a, com mula precislo, que 0 Gnieo pocina grego que se pode, efetiva omparar aos poemasorientais, a Teogonia de Hesfodo, basia-s fun- lanentalmente num personagem realy Zeus, como o Enuma EU bascava-te tw cleus Maaduk, protéipo do re da Babildna: “E, também, esse personapem fo que tin des." A formula dr 6 essencil 0 deus Tr sts ufdo, mas 0 suporte social que o vivficava, 0 Rei, desuparcceu. Desde en Icuses © homens possueM um destino separado, 0 tempo dos deuses se : eresivarents do tempo dos homens, Resa ainda ums tatiglo, isamonts poétca, a do “rei de justga” que detém a “balanga”, distribu lie e eceplor, ao mesmo tempo, do verdadeio © do faso, Paralelzmente, o- la verdade € enigma e todo aque que diz a verdade 6, ele proprio, enigma, in constitu-se 0 personagem do “Ancigo do Mas", Proteu ou Nereu, a0 ual Marcel Detienne consagra sca tereeiro capftulo. No hf “oposigio”, vntradigfo” entre 0 verdadeiro e o flso, a verdade (Alétheia) © o esqueci- to (Léthe): "Nao hé, pois, por um lado Aléteia C+) e por outro Léthe (-), re estes dois pélos so desenvolve una zona intermedira, na. qual 2 se desioca progressivamente em direcao a Léthe, e assim Toc A “pegatividade" nfo est, entfo, ola, sparada do Ser, ela € um Jeslobramento da “‘erdade", sua sombrainsepardvel. A esta ambival «pulvracficaz nas obras mais antgas do pensamento grego, sucede, ent tanto, ni cidade groga cldsica, uma ambigtidade da aqlo?, Frente a0 isco permanente que cada decsfo coletiva presenta ~ gucrra ou par, expediggo oni” of desbravamento de feras =a cidade clabora lenta © progresi= unehte- urna palavra-didlog, dilogo dos grupos socisis que se enfrentem terreno poltico, didlogo dos oradores que propéem tal ou qual decisio. A lava efieaz perder, a partir dat sua soberana, © 0 didlogo passar aie jar, inclusive, a ambivaléncia da'mfnica™. Quando, na época da segunda votra médica, Delos do oréculo afirmanco gue Atenas sed salva por uma ‘nuralha de madeira”, Temtocles interpreta-o traduzindo esta expressio wjlvoca por “frotaateniense”, mas uma outa intsrpretagfo, mais Sbvie, ora Jrosfvel e havin sido proposta. Entre essas interpretagdes‘etabeleoe-s © dogo. A “vendade™ entra assim, no mundo do relative: "Satisfez-se a0 po- 0°", "Parecen bom 20 pove", assim expressan os decretos. Marcel Deticine wnpou os testemunhos em torno de dois pélos. Acsitando uma elasificacso jos tragos foram levantados por Plat, mas que 6, de fato, bastante ant A palavea “uation, em franets mantigu, indica a prétca da adivinhasSo, express em, igi pel utc “mane do rego mae, qe sia “ado “pee 10 os mestre da verdade na Grécia arcaice nes el er Se ore ena hoe ea na x eee ete er bo eee ee eae ai Soe ee ea eeesnoetas Sree oa atacaaern ned eee eee eee ae aaa Se ee ea oes ra Se eee ee eee ase eee pretécio Je uma sondagem que, ceio particularmente, é extremamente feliz “Muitos historiadores admitem, desde Arist6teles, que a primeira polieia Jota dos guerreiros, A cidade, diz-se de bom grado, comeca quando, ao com hate desordenado, cheio de Faganhas individuais, como as que descreve Ho- ero, sucede 0 afrontamento de duas falanges compostas por guerreitos soli= iris, vestides com o uniforme hoplita. Os “semelhantes” do exército tor- ‘nani-s6 os “Semethantes" da cidade, e sabe-se que este £ 0 nome (Homoiai) ‘que, em Esparta, s8m os cidadios propriamente ditos. Ta éa viséo tradicional ‘lo que se chama, bastante impropriamente, a “reforma hoplita”, A qual Mar~ Detienne consagrou um estudo novo, ainda inédito®. Anslisemos squi al- uns procedimentos da vida militar: concursos funersrios, partiha do butim, tsscmbléias e conselhos de guerreics, tudo isso mostra-nos como se define, ho scio do exéreito, um plano pré-politice, por assim dizer, a partir do qual uargiram 08 procedimentos da vida da cidade, Assim, df-se a “vasta assem- bia” que retine Aquiles antes do concurso funerério, realizado em bonta a Ptrocio. A palavra empregada (agén) 6, além do mais, caracteristica, pois signa ao msamo tempo a assembléia ¢ © Concurso. ‘Naturalments, esta explicagso ndo resolve o problema nem tenta resol- vé-lo, i que outras sociedades que nfo conheceram nem a cidade nem a de mocracia poltica, conbieceram “democracia militar”. O livo de Marcel De- ticnne permite que o problema seja melhor colocado; a salugdo, por definigfo, Flea sempre para amanhé. PIERRE VIDAL-NAQUET FAPA — Bitiuteca | I Verdade e Sociedade Em uma cvilizago cientfica, a ida de Verdade introduz imediatamente de objtividade, comunicabliade e unidade?. Para nds, a verade se defi dois nfveis: por um lado, conformidade com alguns principio Ipicos, Por outro, conformidade com 0 real, sendo, Jesse modo, insepardvel das 16is de domonstrasio, verificago e experimentagdo, Dente as novées quo senso comum veicula, a verdade 6 sem Uva, uma das que parvce tet seme De enistdo, sem ter sofrido nenhumna transformugdo, uma das que pare também, relativamente simples. Entreun, basta considera que_a exper. mentagio, por excmplo, que sistenta a ndssa imagem co verdadero, 86 50 tornow uma exigéncia numa sociedade onde ers tida como uma técnica tradi ional, ou seja, num socedade onde a fisicae a gumiea conguistaram um pa pel inportante. & possvel, ent, perguntar-s sea verdade como categoria mental. nfo €soldéria a todo um sistema de pensamento, se no €solidatia 4 vila materiale 2 vida social, Os indo-ianianos posstem uma palavra que & traduzida corretamente por Verdade: Ra’, Mas Rta 6 também a oragao Ga sca, a poténcia que asegurao retorao das auroras, a ordem estabelcia pelo ato dos deuses,o dreito, em sums, um conjunto de valores que quobram nossa imagem da verde. © simples lugur 80 complexo, aun complexe diveraamente organiza, Se 0 mundo indo-irniano€ to diferente do nosso, © que haverfamos de dizer da Grécia? A *Verdade” ocupasia 0 mesmo lugat «qe ocupa em nosso sistema de pensamento? Ela abarcaria 0 mestno coneido Seniinlio? A questio nto € de meru curiosidade, A Grécin nos cha ate. Ho por dias res solidtia: em prineiro lugar, porgue entre a Gréeia © a Racio ocidental as relagbes sio estoitas, tendo surgido historcameote do Bensamento grego a concepcto ocidental de una verdade objtiva eracional, Sabe-te, por outro Indo, que, na ria reflexo dos filgsofos conemporaneos sobre o Verdadeiro, Parmenides, Patio © Aris\Steles sao constantettente ite ‘oeados, confrontads e colocados em questio®, Somente mai tarde seria 20 tipo de razdo que a Gréciaconstr6ia partis do sctlo Vi, uma dotrminada ‘imagem da "Verdade” vid ocupar urs lngar fundamental. De fato, quando a reflex filosstica descobre 0 objeto préprio de sua busca, quando Se doar ila do fino do pensamento mii, onde a cosmologia nica ainda encontra Sas raizes, quand se langa dliberalamente aos probleshas gus no aa dele aro de airair sua atengéo, ela organiza um campo concetual em torno do tuna noeéo central que definirg, a partis de ent, um aspecta da primeira fi lesofia como tipo de pensamento ¢do primeira filésofa como tipo de homer: Alétheia ou "Verdade”, 14 os moots da verdade na Gréea areas Quando Aiétheia aparece no prelidio do poema de Parménides, nfo surge articulada por completo pelo eérebro cientffico. Ela possui uma longa historia, No estado de documentagSo, omega com Homer, Este estado, de fato, poderia fazer-nos crer que apenas 0 desenvolvimento cronolégico dos {estemunhos sucessivos, de Homero a Parménides, conseguira lancar slguma luz sobre a *Verdade"®, O problema coloca-se, entretanto, em termos bas~ tante distintos, Desde muito tempo, convém que se sublinhe o cardterestra- ‘nho da mise-en-scéne na filosofia parmenfdica: uma viagem num carro condu~ ido pelas filhas do Sol, uma via reservada a0 homem que sabe, um caminho {Que conduz 3s portas do Dia e da Noite, uma deusa que revela 0 conheci- mento verdadeiro, em Sima, um conjunté mftico e religioso de imagens que Contrasta singolarmente com um pensamento filos6fico to abstrato quanto ‘ajuele que trata de Ser em si, De Tato, todos estes tracos,cujo valor religioso ‘nfo pode ser contestado, orientam-nos de forma decisiva em diregfo a alguns ‘meios filosético-religiosos onde o fl6sofo ainda no € mais do que um sébio, cigamos, até mesmo um mago, Mas € nestes meios que se encontra um tipo de fhomem © un ipo de pensamento voltados para a Aléheia: 6 a Aléiheia que fem o privlégio de ver com sous prOprios olhos; & a plant que & alma do iniciado aspira a contemplar?. Com Epi- Infnides, com as seitas filos6fico-religiosas, a pré-histGria da Alétheia racional ‘Sencontra nitidamente orientada para deverminadas formas de pensamento religioso, nas quais a mesma “poténci desempenbou um papel fundamental. ‘A pté-hist6ria da Alétheia flos6tica conduz-nos a um sistema de pen samento do adivinho, do poeta e do rei de justica, aos trés setores nos quais tm detesninad tigo de palavra define-se por Aldea, Determinr sini cacdo pré-racional® da “Verdade” & tentar responder a uma série de questes, ‘enue’ as quis a5 roais importantes slo as soguints: Como se define, no petsamento mitico?, aconfiguracio de Alétheia?! Qual é oestatuto dapalavea de pensaento seisiso? Como por que um tip de plas ier subt- tuido por um tipo de palavra com problemas espectficos ~ relago entre a pa layra € a realidad, relagio entre a palavra eo outro? Que relagdo pode existir entre algumas inovagbes da pritica social do século VI e 0 desenvolvimento {de uma reflexo organizada sobre o légos? Quais sio 0s valores que, sofrendo inteiramente uma mudanga!! de significago, continuam. a impor-se, tanto ‘nam sistema de pensamento quanto no outro, ho mito e na raziio? Quais sio, por outro lado, as rupturas fundamentais que diferenciam o pensamento reli- bioso do pensamento racional? As intengOes deste livo nao se esgotam dentro dd projeto dnico de definir, através de seu contexto mental, socal e histérico, 8 significado pré-racional da “verdade” no sistema de pensamento mitico e, Solidariamente, seu primeiro contetide em meio ao pensemento racionall2, Na histéria de Alétheia encontramos o terreno ideal para levantar, por umn lado, 0 problema das origens religiosas de determinados esquemas conceituais da primeira filosofia e, a partir daf, colocar em evidéncia um aspecto do tipo de homiem que o filésofo inaugura na cidade grega; por outro lado, detectar nos aspeetos de continuidade que tecem uma trama entre o pensamento religioso & (© pensamento filosGfico, as mmdancas de significagéo ¢ as rupturas I6gicas (que diferenciam radicalmente as duas formas de pensamento, IL A Meméria do Poeta Invocada pelo poeta no comeen de um canto, n Musal deve tomar sonhecidee 19s acontecimentos passadios=:“E dizei-me agora, Must, habitantes do Olim= ‘po ~ pois sedes, v6s, deusas presentes por toda parte, ¢ conbeceis tudo; nfo ‘uvimos mais do gue um rufdo, e nés nada sabemos ~dizsi-me quais eram 05 ‘as, os chefes dos Diinaos. A 'multdo, nfo poderia eu enumeré-la, nem de rominf-la, mesmo que tivesse dex Iinguas, dex bocas e uma voz incansvel, un crag de bronze em meu pete, menos se as filhas de Ze, que leva a pide, as Musas do Olimpo, no se recordem’ ( wwnaatad" )° daqueles que chegaram a fion, A palavra do poeta’, tal como se desenvolve na atividae poética, 6 soldéria a duas nogdes complementares: a Musa ¢ a Meméria, Essas dduas poténcias religiosas definem a configuracdo geral que dé a Alddheia poé- tica sua siificagdo rel ¢ profunda, ‘Qual é a significacdo da Muse? Qual é a fungo da Meméria? Eviden- ciamos, freqientemente, a presenga, no panteon grego, de divindades que ‘6m 0 nome de sentimentos, de paixdes, de atitudes mentais, de qualidades intelectuais ete, Mousa € un dessas poténcias religiosas que ultrapassa 0 ho- ‘mem “no mesmo momento em que este sente inteiormente a sua presenca®”, Com efeito, pela mesma razo que mei, faculdade intelectual, corresponds 4 Métis, esposa de Zeus, ¢ thémis, que € uma nocéo social, corresponde A grande Théiis, outra esposa de Zeus, um nome comum correspond, no plano profano, 8 Musa do panteon grego, Numerosos testemunhos da época clssica Ppermitem-nos pensar que significa a palavra cantada, a palavra ritmada?. O duplo valor de poboa = nome comu, pottneia divina ~ faz-se enten- der particularmente bem num “‘discurso antigo” ( nakatds Kby0s ), transmitido por Filon de Alexandria: “Canta-se um velho relat, imaginado pelos sfbios, ¢ transmitido de meméria, como tantos outros, de geracio em teragho, .. assim como se segue: Quando 0 Criador acabou o mundo intei- 1, perguntou a tum dos profetas e desejaria que algo nfo existisse dentreto- chs as coisas que haviam nascido sobre a terra, Respondeu-lhe o outro que todas cram absolutamente perfeitas © corpletss, que faltava somente ta, a alavra laudaibria (tv éxawvécny... KOyOv). . . O Pai de Tudo escutou esse discurso, e, ao aprové-lo, criou imediatamente @ linhagem das cantoras plenas de harmonias, nascidas de uma das poténcias que o rodeavam, a Vir~ gem Memdria ( Mviyn, ), que o vulgar, alterando seu nome, chama Mne- ‘mosyne8." Entre as Musas @ a “palavra cantuda’” — especificada aqui como “Palavra de louvor” ~ existe uma estreita solidariedade, que se afirma ainda ‘mais claramente em nomes muito explicitos que possuem as fas de Mens 8 16 op mmestres da vordado ns Gréeia seaica ria, pois toda uma teologin da palavra cantada se desenvolve a partir dees? Gor por exemplo, conota a gléria (_ wos ), a piria das grandes faganhas (Qoe 6 pocta teansmite 28 geragdes futuras; Talia faz alusio a festa (OGA- IA), condigdo social da criaglo poStica, MelpOmene e Terpsfoore despertasn cee oe imagens de misica quanto de danca. Outros ainda, tais como Polimt- ve Calfope, exprimem a rica diversidade da palavra cantada, € a vou potente nia Mf vida aos poemas. As epfcleses mais antizas das Musas so igualmente ‘Metadoras: muito antes de Hesfodo, as Musas existiam em aiimero de ts Toe veneradas em um santuério muito antigo, situado no Héiicon, e cham Vanes Meléte, Muéme © Aoide!®; cada uma delas levava o nome de wm s8- [bocavoncil da fungdo podtica, Melee designs u uiseiplina indinpenav Pet aprendizado do offcio de aedo; 6 a atengSo, a concentragfio, o exercicio wesatal Hndme é o nome da fungéo psicol6giea que permite a recitagio ¢ a Tnprovisagdo, Aoide!2 6 0 produto, 0 canto épco, © pocma acabado, terme um da Meldee e da Mnéme, Outras nomenclaturas sio ainda atestadas, Cf cio ofere-se a uma, em que as Musas aparece em ndmero de quatro: Ar- STE Meléve, Aoide ¢ Thetxino€'?, Duss delas desenvolvem aspectos inédits: seed € 0 princtpio,o original, pois a palavra do posta busea descobrir oori- cig seuldade primordial. Thelsinod & a sedugio do espfrito, o encanta~ rato que a palavra cantada exerce sobre 0 outros, Todos os epitetos da Musa, através dos uais se desenvolve uma verdadeira teologia da palavra, Aaterhunham, pois, fmpordincia, nos meios de eedos © de poetas inspira te equivalénda entre a Musa ¢ a nocdo de “palavra cantada”!®, ‘Mas a palava cantaca 6 insepardvel da menv6ri: na tradigso hesi6dica, Musas sio filhas de Mnemossnel’; em Kios, elas levam o nome de, “re membrangas” (vet )!¥; sho elas também que fazem 0 posta “lem= Drange", Qual 6 signifieagdo da memGria? Quais so suas relagfies com a Vnlavra cantada? En primero lugar, o estaruto religioso da meméra, se Pale aos meios dos edos2 © sua importincia no pensamento poético no aden ser compreendidos se se dosprezar ofato de que, do século XII‘ sé Pot IX, a civizacio grega fundava-se nio sobre a escrita, mas sobre as t~ sabes faa, “Que membria no era necesséria nagueles tempos?! Quantes it serecceram cadas sobre os theios de identificar o¢ hugares, sobre es m0- eos proplcios aos empreendimentos, sobre os sacificios que baveriam de arte aa deuses, . sobre os monumentos dos herGis, cu loealizagSo era Haas nite dificil de ser encontrada em regiGes to distantes da Gré- Chama chvlizagdo oral exige um desenvolvimento da memoria”, ela ne- deeoucdo de teenicas de memndria muito precisas. A poesia oral, da Goal resltam a fda © a Oddi, no pode sor compreenda va se post: feel verddadeira"manemotGenica”23, As pesquisas de Milman Patsy © seus pigonos esclarecem bastante 03 procedimentos de composigio dos poetas cranes da andlse da téenica formular: os aedes, com efeito, eiavam oral- serve e de mancira direta,“ndo através de palavras, mas através de formulas, for grupos de palavras construdas de antemo © prontas para se engatar no Fee eeeee dactlico”™3. Sob a inspiragio postica, suspeita-se um lento aacs rexsuata da meméria. Os poemas homéricos oferecem, por outro ldo, exem- Hos destey exerccios “mnemotéericos”, que deviam assegurar 208 jovens mamérie do poets ‘2ccos 0 dominio da diffi sSenica poStica®: so estas as passazens conhecidas Sob 0 nome de “catflogos”. H4 um catflogo dos melhores guerteiros aque, tim catflogo dos melhores cavalos. O catflogo dos exércitos grego ¢ troiano, por exemplo, ocupa a metade do segundo canto da {fada, ou sa, quatrocen~ fos versos que representam para o recitante uma auténtica proeza. Mas 2 mcm6ria dos poetas é una funcio psicol6gice orientada como a nossa? As peaquisas de J.-P. Vernant27 permitem afirmar que a meméria nizada dos gregos no responde, de modo algum, aos mesmos fins que posse; ea no vist, em absoluto, reconstruir o passado segundo una persps tGva temporal. A meméria sacralizada & em primeiro lugar, um privilégio d& seein eeapoe de homens organizados em confrarias: assim sendo, cla se egoncia radicelmente do poder de se recordar que possuem os outros indivi= duos, Nesses meios de poetas inspirados, a Mem6ria 6 uma onisciéneia de ca titer alivinhat6rio; define-se como o saber méntico, pela férmul: “o que 60 {pe werd, o que for". Através de sua meméria, 0 poeta tem acesso dirct, ‘Rociante uma vislo pessoal, acs acontocimentos que evoca; tem o privilégio ‘entrar em contato com o outro mundo, Sua memGria permite-the “decifrar Ciavisfvel", A meméria no 6 somente 0 suporte material da palavra canta, { ungao psicoldgiea que sustenta a tSenica formalar; é também, sobretudo, © poténcia religiosa que confere 20 verbo postco seu estatuto de palavra m= seevtcipioss®®, Com efeito, « palavra cantada, pronunciada por um poeta Goud de um dom de vidéneis, é uma palavra eficar; cla institu, por virtude ‘pia, um toundo simbélico-religioso que & o pr6prio real. Qual & 3 partir se ntio, a fungdo do poeta? Com que fins utiliza seu dom de vidncia? Quais Sto os rosistros da palavra cantada, inserida na mem6ria? Qual é, emi meio a tases repstros, a lugar © 0 valor da Alétheia? "Tradicionalimente, a fungao do poeta € dupla: “celebrar os Imortaisy ‘celbrar as faanhas dos homens eorajosos”3®, O primeiro registro pode ser fustrado pelo exemplo de Hermes: “Elevando a vor, tocando harmoniosa~ ates chara, cuj amével canto o acompanhava, pode conceber com clarezit {eputwoy)'t, através de sot louver, os Deuses Imortais ¢ a Terra tenebross (Wie aquilo gue tinham sido no comeco © quis atributos reeebeu cada um {etes na parila, ..”> Situamo-nos no plano dos mitos de cmergéncia e or- Genannento, das cosmogonias, das teogonias. Mas paralelamente ds histérias iinas, existe, em toda a tradigio grega, uma palavra que celebra as faganbas individuais dos guerreiros. Logo, 0 primeiro fato notével 6 a dualidade da tocsa: palavra que celebra, ao mesmo tempo, o feito humano e palavra que penta @ hist6ria dos deuses, Ese duplo registro da palavra cantada pode ser Smllarecido, se for colocado em relagto com, am trago fundamental da organi~ Seeao da sociedade micénica, Ao que parece?3,com efeito, o sistema palaciano tte dominado por um personagem real, encarsegado das fungies religiosas, As ‘Musas reivindicam, com ofgulho, 0 privilégio de “dizer a verdade” ( @An060 ‘mpooaovat )42" Esta Ashen toma inteiramente seu sentido proprio na sua relagio com a Musa © a Membria; de fato, as Musas so aquelas que “dizem o que 6, 0 que seré, 0 que foi"; so as palavras da Meméria, O pid- prio contexto da Teogonia indur, pois, a determinar a estreita solidariedade ‘entre Alétheia © Memria e, inclusive, eva a nfo reconhecer nessas das po= tEncias relgiosas mais do que uma Gnica e mesma representasto. Contudo, serd somente através do estabelecimento das nosées que dominam 0 segundo registro do poeta gue a Aidtheia de Hesfodo tomaré toda sua significacto, (© segundo registro da palavra postica est inteiramente consagrado ao louvor sas faganhas guerreirs. Se 0 funcionamento deste ipo de palavra cantata ‘no n0s foi dirtamente atestado pela civilizago micenica, podemos faci- mente conceb-Io observando uma Sociedade grega arcaica como antiga Es parla totalmente dominada pelo grupo dos suctretos, entregue por inteiro 08 trabalhos da guerra. Duas potenciastemfveis fazem ale na antiga Espa meméria do posts 19 1a © Louvor e a Censure, Esta sociedade que introduzin o princfpio da ‘gualdade entre todos os cidados no conhece outra diferenga a nfo ser aguela que advém do elogio © da critica. Cada um exeroe através deles um Areito de observar o outro ¢, reciprocamente, cada um se sente sob o olhar do ‘outro, Esse dieito ao olhar se exerce em todos os nfveis do corpo social: em lgumas festas, como as Partenéias, as jovens tinham o privlégio de angar zombarias aqueles que tivessem cometido alguma fata; 20 contrério, faziam tum longo elogio pablico®, caso os jovens fossem dignos de mereé-lo. For- talecidos com a autoridade que thes conferia uma sociedade organizada se szundo 0 prinefio de classes etéras. os ancifos. que passavam grande parta fe Seus dias no "parlatstio", consagravam a quasetolaidade-de seu tempo Hive 230 elogio das boas ages @ critica das mast”. Em uma sociedadle agonstica, que valoriza a excelencia do guerrero, 0 domain reservado a0 lowvor © 4 censura, 6 precisamente, 0 dos atos de bravura. Neste plano fundamental, © poeta € 0 Arbitro supremo: no € mais, neste momento, um funciondrio da so- berania, esté a servigo da comunidade dos “semelhantes” e dos “iguais™®, ddaqueles que tém em comum « privlégio de exercer o offeio das armas, Em uma sociedade guerrera como a sntiga Esparta, at Musas oeupam, com pleno direito, um lugar importante, E so duplamente honradas, primeire como Protetoras das fhutistas, das lista ¢ das citarstas, jf gue a mfsia faz parte a edveagso espartana,¢ as marchas encargos mites se fazen a0 som da flauta e da lire, Mas as Musas tom, scima de tudo, uma outra fungéo fun- damental: se antes de eada encontro os res oferecem-thes um sacrifci, € para que seus “semelhantes” se lemibrem dos julgamentos que sero feitos so- bres eles, preparando-os, assim, para enfrentar o perigo e cumprit as facanhas “dignas de serem celebradss”®, as faganhas que Ihes custardo uma “memoria, ilustre” (HVAyN ebxheris )>1. Em uma civilizacio de cardter agonfstico, pode parecer paradoxal que © hhomem ni se reconhega diretamente em seus atos. Porém, na esfera do com~ bate, 0 guerrero aristocrético parece obeccado por dois valores essencias, Kigos © Kudos, dois aspectos da gloria®2. Kudos € a g6ria que lumina 0 ene cedor; € uma espécie de graxa divina,instantanea, Os deuses concedem-na & alguns © negam-na a outros®3, Ao contréri, Kidos € a gloria que passa de boca em boca, de geracio a gerasfo. Se o Kudos descende dos deuses, 0 Kiéos ascende até cles. Em nenlum momento 0 gucrreiro pode se sentir como ‘agente, como fonte de seus ato: sua vitbria 6 puro favor dos deuses, ca faga- nh, una vez Ievada a cabo, toma forma soments através da palavra de lou vor. Defintivamente, um homem vale o mesmo que sou Idgea**, Sao o8 mes tres do Louvor, os serventes das Musas, que decidem sobre o valor de um guerrero: sfo eles que concedem ou negam a “Mem6ria"=®, ‘Qual é 0 estatuto do Louvor? No mundo aristocrftico, ele 6, a prinef= pio, obrigatrio: “Louvai, de todo corasio, as faganhas, até mesmo as de ‘ys inimigo, para que seis juss”, dizia o Anciio do Mar®?. Os poemas de Piixdaro © de Baqufldes mostram seu aleance: nfo apenas elogios da forca dos bragos, da riqueza dos res, da coragem dos nobres®®. Mas 0 poeta nfo des- pende seus louvores ao primeiro que aparece. © clogio é aristocritic: "Nes- tor e Sarpedon, o licio, ambos de. grande renome, tornaram-se conhecidos

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