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REVISTA DA ABP. ASPENS SASS NEST S A TRADICAO ORAL PARA POVOS AFRICANOS E AFROBRASILETROS: RELEVANCIA DA PALAVRA Endaldo Francisco dos Santos Filho! Janaina Bastos Alves? Resumo: © presente trabalho & uma breve reflexo te6rica sobre as tradigBes orais dos povos africanos e sua instituico entre os afrobrasileiros, para conhecer sua manifestacdo e propagacao, Por ser a oralidade uma acdo significativa para a populacao africana, concebemos relevante refletir sobre sua utilizacao na preservacio e difusto do legado da Africa, bem como perceber sua instituiclo no Brasil. Utilizando uma abordagem genérica sobre 0 continente devido sua extensio, diversidade e riqueza tratamos de identificar a oralidade como método de transmissto de conhecimento. Portanto, trata-se de uma investigaco sintética a respeito das tradigdes orais oriundas da Africa ¢ seu estabelecimento em solo brasileiro, fundindo as duas cculturas, e presente também nas religides de matriz africana, como por exemplo, 0 Candomble. Conferimos com isto a releviincia da palavea dita para estes povos. Palavras-chaves: Heranca Africana; Legado Africano; Poder da palavra; Tradicao oral. THE ORAL TRADITION FOR AFRICAN AND AFRO-BRAZILIAN PEOPLES: RELEVANCE OF THE WORD Abstract: The present work is a brief theoretical reflection on the oral traditions of the African peoples and their institution among Afro-Brazilians, to know its manifestation and propagation. Because orality is a significant action for the African population, we consider relevant to reflect. on its use in the preservation and diffusion of the African legacy, as well as perceive its, institution in Brazil. Using a generic approach on the continent due to its extension, diversity and wealth we try to identify orality as a method of transmitting knowledge. Therefore, itis a synthetic investigation about the oral traditions originating in Africa and its establishment on. Brazilian soil, merging the two cultures, and also present in the religions of African matrix, such as Candomblé, We confer with this the relevance of the word spoken for these people. Keywords: African Heritage; A rican Legacy; Power of the word; Traditional Speech. LA TRADICTION POUR PEUPLES AFRICAINES E AFRO - BRESILIENS: PERTINENCE DE MOT Résumé: Le présent travail est une réflexion théorique sur les traditions orales des peuples africains et leur institution parmi les Afro - Brésiliens, pour connaitre la manifestation et la propagation. Parce que loralité est une action significative pour la population africaine, nous considérons pertinent de réfléchir sur son utilisation dans la préservation et la diffusion de heritage afticain, ainsi que de percevoir son institution au Brésil. En utilisant une approche ' # Coordenador do LBI - Laboratério de Biometria ¢ Imagem, ¢ Professor de Desenvolvimento de Projetos I, If, II, IV no Curso de Desenho Industrial e TCC Te II no curso de Pedagogia da Universidade do Estado da Bahia, E-mail eudaldofilho@email.com ? Aluna Regular/2016.1 no Mestrado de Educagio ¢ Contemporaneidade / PPGEduC / Linha 1 / ‘Universidade do Estado da Bahia 50 Revista da ABPN + v, 9, Ed. Especial - Caderno Temdtico: Saberes Tradicionais + dezembro de 2017, p.50-76 REVISTA DA ABP. ASPENS SASS NEST S génétique sur le continent en raison de son extension, de sa diversité et de sa richesse, nous essayons d'identifier loralité comme une méthode de transmission du savoir. Par conséquent, il Sagit dime recherche synthétique sur les traditions orales originaires d'Afrique et son implantation sur le sol brésilien, fusionnant les deux cultures, et également présentes dans les religions de matrice africaine, comme le candomblé, Nous conférons avec cela la pertinence du ‘mot parlé pour ces personnes. Mots : héritage africaine, Légat afticain; Pouvoir du mot; Traditionnel orale LA TRADICION ORAL PARA PUEBLOS AFRICANOS Y AFROBRASILENOS: LA IMPORTANCIA DE LA PALABRA Resumen: Fl presente trabajo es una breve reflexién sobre las tradiciones orales de los pueblos africanos y su institucién entre los aftobrasiletios, para conocer su manifestacién y propagacién. Por ser la oralidad una acci6n significatiba para la poblacién africana, es relevante reflejar sobre su utilizacién en la preservacién y difusién del legado de Africa, asi como percibir su institucién en Brasil. Utilizando un enfoque genérico sobre el continente debido a su extensién, diversidad y riqueza tratamos de identificar la oralidad como método de transmisién de conocimiento. Por io tanto, se trata de una investigacién sintética acerca de las tradiciones orales oriundas de Africa y su establecimiento en Brasil, fundiendo las dos culturas, y presente también en las religiones de matriz africana, como por ejemplo el Candomblé. Hemos conferido con esto la relevancia de la palabra dicha para estos pueblos. Palabras-claves: Herencia Africana; Legado A ricano; Poder de la palabra; ‘Tradicién oral. INTRODUCAO A constatagdo de que povos de origens estrangeiras apés colonizagio, periodo entre os séculos XVI XIX foram determinante para a construgao do perfil cultural Brasileiro nfo é uma descoberta inovadora. Algumas influéneias culturais de dois povos especificamente, que aqui chegaram, os europeus (colonizadores) e os afticanos (eseravizados) foram fundamentais quando fundidas a cultura nativa dos habitantes originaios, os dios, Diante desta afirmagio, sfio evidentes as marcas deixadas por cada uma dessas populagdes nas priticas e modus vivendi do Brasil, e a influéncia africana, com forte apelo tradicional, é objeto de nossa investigagao no presente escrito. Precisamente, a tradigio oral constituinte de parte da Africa & nosso foco de pesquisa, por ser um trago peculiar que sobrevive ao tempo, mesmo com o advento da eset. Sobre isto, Souza informa que: A tradigdo oral & guardia da historia e da meméria entre muitos povos afticanos, sendo preservada, principalmente, por homens sébios, que foram e sao responsiveis por manter a meméria viva dos fatos ¢ feitos de seus antepassados. 51 Revista da ABPN + v, 9, Ed. Especial - Caderno Temdtico: Saberes Tradicionais + dezembro de 2017, p.50-76 REVISTA DA ABP. ASPENS SASS NEST S ‘So poetas, miisicos, dancarinos, conselheitos. Por isso, sio denominados, de ‘modo geral, como contadores de histéria. (Souza, 2005, p. 85) Conforme a assertiva acima, os povos africanos trazidos para o Brasil, instalaram uma tradigdo que ainda é preservada e que mantém viva a meméria nos antepassados. A tradigo orale sua apropriagao, & com isso, uma construgao metodoldgica de difusdo e construgdo do conhecimento de alguns povos. Ela pode ser vista também como instrumento preponderante no campo religioso de matriz africana, como no caso do Candomblé e nas sociedades afrobrasileira, como heranga do referido continente. Nossa abordagem trata de forma resumida a historia dos povos africanos por ser relevante, embora no tenhamos condigo de abranger o assunto em sua totalidade, pois a nossa investigagio nao alcangaria tamanha extensio. Contudo, por despertar nosso interesse de estudo, investigamos sobre as tradigdes orais oriundas do continente africano, e como se deu a sua constituigio no Brasil, para que entendamos seu estabelecimento no Candomblé, por exemplo, sendo uma caracteristiea primordial da religiio. Ressalvamos que no faremos um estudo detalhado sobre a oralidade na referida instituigao religiosa, mas constatamos que sua presenga € marcante nesse mucleo. ‘A Africa é um continente vasto e de grandes riquezas que agugam o imaginario de diferentes pessoas, e acaba por equivocar muitos pesquisadores, quando estes limitam a andlise, sem prestar a devida atenco @ sua imensidio. Ki-Zerbo (2010, XXXII afirma que sua histéria ¢ pouco conhecida, e que, “nesse contexto, nao é de causar espanto 0 lugar infinitamente pequeno ¢ secundério que foi dedicado a historia africana em todas as histérias da humanidade ou das civilizagdes.” Podemos encontrar, precisamente em relagiio & pesquisa sobre este continente, desde registros mais superficiais e pouco claros, até investigagdes mais aprofundadas e densas que privilegiam sua natural diversidade. Quando a exploragdo ganha em rigor cientifico, a producdo tende a nao correr o risco de ser reducionista e de conceber a Africa como uma regidio onde se produz dor e softimento, de uma populagio carente e rude, com parcos conhecimentos e cultura pobre 52 Revista da ABPN + v, 9, Ed. Especial - Caderno Temdtico: Saberes Tradicionais + dezembro de 2017, p.50-76 REVISTA DA ABP. ASPENS SASS NEST S Imimeras caracteristicas podem ser exploradas por pesquisadores, que nio se satisfagam com um quadro da Africa comumente retratado ao longo dos tempos, e que consigam visualizar as diversidades e legado cultural do referido continente. Sendo um territério de historias das mais peculiares e de costumes diversos, no nos faltariam elementos relevantes para pesquisar ¢ agregar mais conhecimentos a investigagao cientifica. Certamente a Africa a partir de pesquisas mais rigorosas, tem muitos fenémenos e objetos a serem observados e que podem contribuir para a nossa formagio enquanto académicos, cientistas, pesquisadores e profissionais da educagio, Embora haja dificuldade por parte de pesquisadores e historiadores em aceitar as fontes escritas do continente africano como suficiente para desenvolver uma pesquisa sobre sua historia, possivel estudi-la a partir das narrativas orais que a0 longo dos tempos vem apresentando a Africa para 0 mundo. Aceitar os registros orais certamente facilita e viabiliza a pesquisa, até porque os africanos se valem da meméria para transmitir 0 seu histérico ¢ é justamente a memoria que revela suas trajetorias. Vale ressaltar que muitos dos registros escritos foram possiveis através dos fatos contados pelo seu povo. Para estudar a Africa uma das possibilidades ¢ talvez a primordial seja respeitar suas fontes e partir das suas proprias caracteristic Quando nos debrugamos a pesquisar parte da Africa, fazendo observagdes sobre seus paises e povos, suas configuragdes étnicas, nos deparamos com um histérico vasto, de acontecimentos e costumes, tragos culturais proprios que mostram sua abrangéncia, Contudo, ¢ feito um recorte nesta produgdo sobre uma das principais caracteristicas que sao préprias do continente: a tradi¢&o oral. Falar de Africa ¢ falar de um povo que construiu seu legado a partir da oralidade e essa talvez seja a explicago para a auséncia de registro escrito, ou existéncia em pouca quantidade, mas que nao é empecillio para a coneretizagaio de um estudo. TRADICAO E PROPAGAGAO DO LEGADO AFRICANO ATRAVES DA ORALIDADE © continente africano é vasto, assim como as particularidades que thes sto proprias, logo, os estudos que envolvem essa tematica apresentam diversos pontos a 53 Revista da ABPN + v, 9, Ed. Especial - Caderno Temdtico: Saberes Tradicionais + dezembro de 2017, p.50-76 REVISTA DA ABP. ASPENS SASS NEST S serem pesquisados. Entretanto, a valorizagio dada aos registros escritos pode se tornar cempecilho para pesquisadores que ainda nao tenham compreendido a importincia dos fatos revelados através da oralidade, Parte da populagio afficana construiu seu legado historico registrado pela tradigao oral e essa também é uma forma de fazer historia, Por este motivo, é imprescindivel que reconhegamos o valor da transmisséo oral, sem colocé-la em situagio de inferioridade, Basta que, para isto, seja desmistificada a histérica inferiorizagdo que foi Iangada ao continente. Assim nos adverte Ki-Zerbo (1999, p. 10): “Antes, porém, de langarmos uma vista de olhos sobre as dificuldades e as modalidades da investigago historica em Africa, urge desmantelar rapidamente a barragem de mitos erguidos contra essa historia.” De fato, para pesquisarmos e compreendermos melhor a historia da Africa se faz necessirio que desconstruamos o que foi posto durante anos, E preciso termos em mente a certeza de que este nio é um continente sem histéria como alguns pesquisadores talvez limitados de informagdes ou mesmo preconceituosos afirmem. Essa negativa se da pelo fato de nfo constar uma quantidade expressiva de documentos eseritos, como nos afirma Ki-Zerbo (1999), pois muitos estudiosos coneebem que as fontes escrita silo as tinicas que validam as histérias. Todavia, 0 pouco registro escrito nio é suficiente para justificar ou até afirmar que a Africa nfo tem historia, mesmo porque, a documentacao escrita que pertence ao continente basta para apresentar seu. legado. A dificuldade que nos ocorre imediatamente € a pretensa auséncia de documentos. A historia, diz-se, é feita com documentos escritos. Ora em Africa no existem quaisquer dessas fontes, ou existem muito poucas. Portanto, de nada, nada se tira. Apesar de todos os anos publicarem, no entanto, bastantes, livros sobre a histéria da Africa... Com efeito, a dificuldade principal aqui também € que nao nos colocamos ainda perante o problema histérico africano ‘numa perspectiva puramente cientifica, humanistica e africana, (Ki-Zerbo, 1999, p. 14) A afirmativa acima nos coloca a emergéncia em reconhecer a historia da Africa com 0s registros que esta possui, seja escrito, ainda que em pouca quantidade como o proprio Ki-Zerbo assevera ou oral, que Ihe & mais difundido, isto é, numa perspectiva africana. Nesse contexto, a tradigio oral é uma constante no continente afticano sendo 54 Revista da ABPN + v, 9, Ed. Especial - Caderno Temdtico: Saberes Tradicionais + dezembro de 2017, p.50-76 REVISTA DA ABP. ASPENS SASS NEST S utilizada para a integracao das relagdes entre os individuos, nfio apenas como simples instrumento de comunicagio, mas para a transmissio de saberes, valores e historias de vida. De gerago em gerag&io a oralidade vem perpetuando as experiéneias e conhecimentos dos povos africanos que dessa forma construiu e propagou sua cultura. As sociedades africanas valorizam a fala com tal intensidade que a tornam sagrada, logo, esse instrumento comunicativo se faz primordial, pois est diretamente ligado a0 Ser Divino da criagdo. Podemos observar no discurso de Ba (2010, p. 172) que “a tradigio africana, portanto, concebe a fala como um dom de Deus. Ela é a0 mesmo tempo divina no sentido descendente e sagrada no sentido ascendente. ” O respeito a fala estd também ligado ao respeito aos ancestrais © aos ancidios, sendo estes, fontes de historias valorizadas e perpetuadas pelos afticanos. Isto indica que os ensinamentos ancestrais sio alicerces da constituigao das sociedades africanas, bem como as palavras proferidas pelos mais velhos tém importancia e veracidade inquestiondvel para os seus. Por esté razdo, ¢ dada indispensével atengao aos ancestrais 2 a08 idosos, de forma a cultivar-lhe o contetido transmitido e guardar-Ihe como tesouro, mas um tesouro aberto a ser compartilhado, uma heranga transmitida entre as geragdes. Sobre isto, Ba (2010, p. 168) ressalta que “essa heranga ainda nao se perdeu e reside na memoria da tltima geragio de grandes depositirios, de quem se pode dizer sao a meméria viva da Africa”. Podemos entio compreender a importancia que se da no Candomblé oralidade, pois é uma religiao de matriz africana, e logo uma das herangas recebidas é a relevancia da fala, Assim, o que ¢ dito pelos mais velhos tem relevante significado no néicleo religioso. Quanto a isto, Machado ressalta (s/d, p. 110) que, “todos os “mais velhios” sio responsiveis pelos “mais novos”. E todos os “mais novos” desejam e confiam nos ensinamentos dos “mais velhos””. Essa confianga é fortalecida pela responsabilidade com a palavra dita Sendo a transmissio oral de suma importancia para os africanos, passando entre as geragdes, os depositirios se encarregam de transmitit 0 que Ihes foi ensinado preservando as memérias coletivas e histérias de seu povo. Num exercicio constante de fala, escuta e memorizagio, os afticanos se organizaram ao longo dos tempos e erigiram. seus grupos familiares e comunitérios. Conduzidos pela tradigZo oral edificaram suas 55 Revista da ABPN + v, 9, Ed. Especial - Caderno Temdtico: Saberes Tradicionais + dezembro de 2017, p.50-76 REVISTA DA ABP. ASPENS SASS NEST S familias, religides, associagdes ¢ instituigdes diversas, e especialmente desta forma se educam, Orientados pela oralidade os individuos interligam-se uns com os outros e trocam conhecimentos e experiéncias relevantes para todos, num aprendizado coletivo. © ato de falar requer esforgos que vao além da eficiéncia do aparelho fonoligico, a fala esti imbricada no valor que a palavra tem e 0 que ela revela, carregando consigo a intencionalidade, o cariter do que é dito e a responsabilidade de quem esti falando. Tudo o que é dito € registrado na meméria africana e repetido para que nao se perea 0 contetido, ou ao menos para que se conserve 0 maximo possivel sem distorgdes. Isso tornou-se tradicao na Africa, a comunicagao oral é caracteristica peculiar e preponderante de seus descendentes, que priorizam tal habilidade na interagao das relagdes. Por tradigo, podemos compreender toda forma de se comportar e proceder de um grupo social, que se fixa em seus membros e permanece na dimensio espaco-tempo. Ou seja, mesmo com o transcorrer dos dias, das eras, o que foi construido e concebido como tradigio de um povo se estabelece e tem continuidade. De forma peculiar as geragdes vivenciam as tradigdes que lhes foram transmitidas nas priticas de vida dos seus antecessores. F, portanto um evento comunitirio, no podendo ser uma atividade isolada, faz parte da existéncia de um grupo ¢ por ele é cultivado. Essa perpetuagio do modo de vida e dos fatos histéricos das sociedades que através da oralidade registram suas experiéncias e trajetdrias de vidas tomaram a Africa um bergo de tradigio oral. A palavra “tradi¢&o”, portanto, s6 adquire seu significado pleno quando se refere a essa dimensao espaco-temporal da experiéncia do grupo: ela se enraiza ‘no passado para permitir ao vivido de hoje orientar-se, sem descanso ¢ por meio de um mesmo impulso, para o amanh3, A tradico sé pode ser um ato de comunidade. Ela faz corpo com ela. Bla faz set de novo aquilo que ela foi e aquilo que ela quer set. Assim nos parece ser a profunda dinémica da tradicao oral na Africa negra. (Bonvini, 2001, p. 39) Diante da fala de Bonvini vemos que a questio da tradigfo se corporifica na Africa por ser ela propria um ato comunitirio que se coneretiza pela dinamica do grupo. Por fazer sentido a vida de seus participantes ela permanece e se recria ao passar pelas geragdes, atingindo dimensdes extraordinarias que no se estagna ou se 56 Revista da ABPN + v, 9, Ed. Especial - Caderno Temdtico: Saberes Tradicionais + dezembro de 2017, p.50-76 REVISTA DA ABP. ASPENS SASS NEST S avanga 0 espago-tempo. Acontecimentos tradicionais so fortemente vivificados pelos africanos sem com isso parecer uma obrigatoriedade imposta, mas ao que parece, de forma espontinea, se difinnde entre os seus integrantes. Tradigao é um modo de viver e de se organizar proprio de um grupo com integragio e compartilhamento de experiéneias ¢ ligdes de vida. Vansina (2010, p. 141) ressalta que “Uma tradicao é uma mensagem transmitida de uma geragio para a seguinte”, e assim, entendemos que o legado de um agrupamento é perpetuado Vivendo um “sistema” de tradigio os povos interagem em seus grupos de forma unificada, em que todos se entendem por terem implicitos em si os mesmos sentimentos e conviegdes, ¢ 0 que Bonvini (2001) chama de ato de comunidade. Por compartitharem de ideais parecidos, se nao iguais, os individuos que vivem uma mesma tradigfo fazem valer os ensinamentos que hes foram transmitidos e comportam-se de acordo com os padrdes tradicionais. No que tange a tradigo oral, a palavra dita tem grande relevancia, pois compreende-se que a fala é sagrada, além de revelar o proprio ser, capaz de interferir no convivio entre os homens. Assim, Ba (2010, p. 174) afirma que “na tradigdo africana, a fala, que tira do sagrado o seu poder criador e operativo, encontra - se em relagdo direta com a conservagdo ou com a ruptura da harmonia no homem e no mundo que o cerca” Com a oralidade os afticanos interligam-se numa dindmica que fundamenta suas existéncias ¢ relagdes, Toda palavra tem um valor moral e reflete a magia do que é sagrado. Isso nio é um caso isolado, embora a Africa seja um continente vasto, mas é sabido que quase toda sua extensio, talvez podemos dizer toda sua populago, (ou parte dela) se apropria da fala como ponto pacifico de liga¢ao com o outro, de transmissio de conhecimentos. A fala ¢ utilizada em atos religiosos, educacionais, convencionais que demonstram sua importancia. Na questo religiosa, segue sendo primordial nas religides de matriz africana. ‘Nas tradigdes africanas — pelo menos nas que conheco e que dizem respeito a toda a regitio de savana ao sul do Saara -, a palavra falada se empossava, além de um valor moral fundamental, de um caréter sagrado vinculado & sua origem divina ¢ as forcas ocultas nela depositadas. Agente migico por exceléncia, 37 Revista da ABPN + v, 9, Ed. Especial - Caderno Temdtico: Saberes Tradicionais + dezembro de 2017, p.50-76 REVISTA DA ABP. ASPENS SASS NEST S grande vetor de “forcas etéreas”, nao era utilizada sem prudéncia. (Ba, 2010, p. 169) Na Africa a oralidade compreende uma das principais tradigdes que repercute em toda existéncia de seus habitantes e se faz presente nos relacionamentos, nas interagdes sociais. Dai a prudéneia que envolve a oralidade, pois dela séo extraidas concepgGes ¢ valores que formaram o legado de um povo. Os afticanos reconhecem a palavra como algo divino com energias e forgas invisiveis, impalpaveis, mas reais. Por isso nada pode ser dito aleatoriamente, palavras ndo devem ser proferidas a esmo. Importante e com carater divino pelos africanos, a tradigdo oral tem sido desde o principio de vida da Africa, um instrumento que ultrapassa as geragées, inclusive é 0 que liga as geragdes. Os mais velhos transmitem aos mais novos ¢ estes tém a incumbéncia de dar continnidade as historias de seu povo, dos seus ancestrais, fortalecendo a ligagio entre eles que sobrevive ao tempo. Tudo o que é ensinado se perpetua e se propaga pela valoracdo com que é recebida a palavra e os ensinamentos tém com isso mais relevancia. © valor que a oralidade tem por parte dos africanos revela uma sabedoria humana que prioriza o individuo em seu potencial fisico e integral. Ou seja, vai além da capacidade de um érgio fisico fonador, mas permeia valores morais, tem sentido também com a consciéneia ¢ a responsabilidade humana. Os registros publicados pela fala dependem diretamente da memoria, da capacidade cerebral tida como uma iblioteca” que arquiva acontecimentos ¢ permite acesso a qualquer instante. Ao se conversar, adentra-se um campo invisivel, mas que aciona o imaginitio e cousolida os fatos. Tudo o que foi vivido fica arquivado nas mentes dos afticanos e a melhor forma de transmisso é a oral, que carrega consigo as emoges, 0 gestual, as expressdes corporais sendo estes elementos indispensiveis no ato de falar, “Se a fala & forga, & porque ela cria uma ligacdo de vaivém (yaa warta, em fulfulde) que gera movimento e ritmo, e, portanto, vida e ago,” (BA, 2010, p. 172). Isso implica também as expressdes e sensagdes que a fala proporciona. 58 Revista da ABPN + v, 9, Ed. Especial - Caderno Temdtico: Saberes Tradicionais + dezembro de 2017, p.50-76 REVISTA DA ABP. ASPENS SASS NEST S Quando se fala, nao somente o aparelho fonolégico é utilizado, mas ha uma integralidade corpérea que se expressa no ato. So expressas com isso as sensagdes € quem escuta, se presta de fato atengo no outro, consegue perceber o que esta contido na fala, Para Ba (2010, p. 169) “a tradigio oral é a grande escala da vida, e dela recupera € relaciona todos os aspectos”, por essa razio toma-se uma ago primordial que os africanos vivenciam naturalmente e que por toda sua existéncia tomou-se instrumento principal de transmissio do saber. Com a fala & possivel reviver os acontecimentos e também perpetué-los Vale lembrar que os povos que vivem com base nas tradigdes orais ndo so pessoas iletradas que nao possuem ou nao desenvolveram a habilidade da escrita. E constante o senso comum ou pensamento corriqueiro interpretarem que os individuos que se valem da fala sio individuos que mio constituem o exercicio grifico, isso é no minimo um equivoco. Acreditar que a tradigfo oral existe pela falta da escrita impede que reconhegamos o valor que a oralidade tem para os africanos que depositam na fala também a ligagdo e conextio com seu passado, com seus ancestrais ¢ possibilidade de propagarem suas lembrangas, Para Vansina (2010, p. 140) “a oralidade é uma atitude diante da realidade e nao a auséncia de uma habilidade. ” Portanto, o fato de ter a fa la como elemento de grande importancia, talvez podemos afirmer preponderante por parte dos afticanos, nao Ihes caracteriza a escassez de habilidade na escrita. ‘Uma sociedade que se vale dos registros orais tem igual validade e sua cultura deve ser preservada e reconhecida, isso no quer dizer que tenha a oralidade maior ou menor importéneia que a escrita. Antes mesmo de desenvolver a escrita os seres humanos desenvolvem a fala, € ambas as habilidades tém suas relevancias na esfera humana. Todavia, existem povos que priorizam a fala dando continuidade a tradigzio em que foi constituida sua existéncia e formagao. Ki-Zerbo (1999, p. 20) questiona: “nao 6, de resto, a tradigao oral cronologica e logicamente anterior ao aparecimento da escrita? No principio era 0 verbo. E depois a tradigdo oferece pontos de referéneia comprovados. ” A descrenca e/ou a dificuldade em aceitar a narrativa oral so os principais empecilhos para a compreensio da histéria da Africa. Uma supervalorizacao da escrita resulta no no reconhecimento dos registros orais com que o continente afticano erigiu seu legado. 59 Revista da ABPN + v, 9, Ed. Especial - Caderno Temdtico: Saberes Tradicionais + dezembro de 2017, p.50-76 REVISTA DA ABP. ASPENS SASS NEST S ‘A raridade dos documentos escritos representa, no entanto, um dos principais problemas para a historiografia africana. Convida-nos ela a juntarmo-nos com entusiasmo escola histérica mais moderna, mais compreensiva, mais progressiva, mais rica de possibilidades para a exploragio do passado: a dos defensores da historia total. Tudo pode ser histérico para o historiador atento. ‘Tudo, e nao apenas as datas de batalhas ou os tratados, os nomes dos principes e dos presidentes de reptiblica. O homem tornou histérico tudo Aquilo que tocou com sua mao criadora: a pedra como © papel, os tecidos como os metais, a madeira como as joias mais preciosas. Nao negamos, longe disso, o valor das. provas escritas. (Ki-Zerbo, 1999, P. 17) Decerto que nao apenas a escrita pode documentar a historia de um povo, pois diversos elementos podem comprovar a exceléncia dos fatos. Fotografias, esculturas, objetos pessoais também ajudam a contar uma historia. Imaginemos um afficano com todo seu dominio oral se valendo de objetos histéricos para deserever suas vivencias, isso também registra as memérias e acontecimentos. Esse exemplo superficial foi apenas para ilustrar que a tradigio oral pode vir acompanhada de instrumentos materiais para exprimir histéria. Porém, vale lembrar que a oralidade independe de um aderego material para ser comprovada, ela por si ja diz, conta e valida os fatos. Vale salientar também, que a fala pode transmitir a histéria de forma que nem mesmo a eserita pode dar conta. Nao se pode esquecer que, mesmo no caso daqueles que dominam perfeitamente a escrita e nos deixam memérias ou cartas, 0 oral nos revela o “indescritivel”, toda uma série de realidade que raramente aparecem nos documentos escritos, seja porque so considerados “muito insignificantes” ~ 0 mundo da cotidianidade ~ ou inconfessaveis, ou porque sio impossiveis de transmitir pela escrita. (Joutar, 2000, p. 33) ‘A fala no deve ser equivocadamente associada ao “desprestigio” de uma vida iletrada nem mesmo deve ser relegada a valor inferior a escrita, Nao se trata de uma disputa ou concorréneia de qual habilidade seria a melhor, mas sim da identificagao cultural de um povo. A forma como a historia é feita no pode ser superior ao proprio contetido desta, e nao somente a escrita tem importincia na construgao desta. “Entre as nagdes modemas, onde a escrita tem precedéncia sobre a oralidade, onde o livro constitu o principal veiculo da heranga cultural, durante muito tempo julgou-se que povos sem eserita eram povos sem cultura. ” (BA, 2010, p. 167) 60 Revista da ABPN + v, 9, Ed. Especial - Caderno Temdtico: Saberes Tradicionais + dezembro de 2017, p.50-76 REVISTA DA ABP. ASPENS SASS NEST S Quando Ba nos chama atengao para 0 equivoco que as sociedades modernas langam sobre a oralidade da Africa, nos convida a refletir sobre o que de fato tem nportincia, se o saber e os conhecimentos construidos e difundidos por um povo on a forma que esse saber é constituido. A enriquecedora historia da Africa e sua contribuigo para a cultural do mundo nao deixa de ter valor pelo fato de ser tradicionalmente construida através da oralidade. Até porque, sua consisténcia é robusta, sobrevive ao tempo, ¢ sendo tradigdo, por si nos revela que resiste ao tempo e tem continuidade entre as geragdes. Quando falamos de tradi¢io em relagao 4 historia africana, referimo-nos a tradicdo oral, e nenhuma tentativa de penetrar a historia e 0 espirito dos poves africanos tera validade a menos que se apdie nessa heranca de conhecimentos de toda espécie, potencialmente transmitidos de boca a ouvido, de mestre a discipulo, ao longo dos séculos. (Ba, 2010, p. 167) ‘Uma sociedade que prioriza a escrita, talvez niio reconhega ou sequer pereeba a importincia da fala que para os afticanos fundamental. O advento da escrita pode ter “ocultado” o valor da oralidade por parte de algumas civilizacdes, mas com a Africa 0 acontecimento nao invalidou nem mesmo inferiorizou a tradicao oral. Enquanto imtimeras sociedades validam 0 que esté escrito, posto no papel, a afticana continuou a0 longo dos tempos cultivando a palavra falada como um ato sagrado potencial ¢ indispensivel para transmissio de saberes ¢ vivencias. As manifestagdes humanas na Africa, historicamente, se baseiam na tradicao oral para viver e dar continuidade a sua cultura. Por isso, os afticanos dao importincia 4 fala, pois, somente aqueles que se formaram através da oralidade sabem o valor que esta tem. Em Ba (2010, p. 169) teremos resposta no que diz respeito a valorizagdo da oralidade para afticanos e seu estranhamento a outros povos, ele nos diz, que “pode parecer cadtica aqueles que no Ihes descortinam o segredo e desconcertar a mentalidade cartesiana acostumada a separar tudo em categorias bem definidas E evidente a importancia da escrita, um fato que também vem facilitando a comunicagao entre as pessoas e niio queremos, portanto, diminuir sua relevancia. A escrita registra e documenta os fatos ¢ memérias de forma diferenciada da fala, sem com isso podermos fazer nenhuma consideragio mais consistente sobre a eficdeia do 61 Revista da ABPN + v, 9, Ed. Especial - Caderno Temdtico: Saberes Tradicionais + dezembro de 2017, p.50-76 REVISTA DA ABP. ASPENS SASS NEST S método no presente trabalho. As sociedades pautadas na tradigdo oral sabem do valor que tem a eserita, mas reconhece a oralidade como um evento anterior e que no decorrer do tempo fez valer seus ensinamentos. Antes da escrita, os afficanos viviam um processo de ensino-aprendizagem que no se perdia e que sobreviven e vem sobrevivendo de modo a ter continuidade em tempos atuais, tamanha a sua forga e valor. Em relagio a isto, Ba afirma: Nao faz a oralidade nascer a escrita, tanto no decorrer dos séculos como no proprio individuo? Os primeiros arquivos ou bibliotecas do mundo foram o eérebro dos homens. Antes de colocar seus pensamentos no papel, 0 escritor ou © estudioso mantém um didlogo secreto consigo mesmo. Antes de escrever um relato, 0 homem recorda os fatos tal como Ihe foram narrados ou, no caso de experiéneia prépria, tal como ele mesmo os narra. (Ba, 2010, p. 168) De fato, a oralidade € anterior 4 eserita, pois quando ainda néo havia registros grificos 0 ser humano jé se relacionava com outro e compartilhava saberes © experigneias através da fala, Mesmo havendo a escrita como instrumento de comunicagio e difusio do conhecimento, a tradigdo oral se mantém firme por ter sido cultivada e estruturada pelas suas sociedades. Tais grupos, no qual a transmissio oral € preponderante nao deixaram de viver com base em sua tradigio, a0 contrério, aderiu 0 sistema grifico sem deixar de viver a oralidade como fator primordial de suas existéncias. Nas sociedades afticanas, como nos afirmou Ba (2010), a tradiga0 oral predominante. Todos 0s individuos so transmissores das historias e dos saberes, visto que esse exercicio & passado de geragio para geragio. Todavia, existem as pessoas responsaveis especificamente por essa atividade. Sio os tradicionalistas, sujeitos tidos como mestres de seu povo, de sua comunidade que tem a incumbéneia de repassar 0 conhecimento e os ensinamentos que Ihe fora ensinado. A responsabilidade a eles depositada deve ser correspondida e estes devem transmitir, sobretudo através do exemplo que acompanha a palavra Os tradicionalistas so lideres de um grupo formado dentro da sua sociedade, conhecedores de um saber especifico sem com isso ser um especialista de apenas um ramo do conhecimento, t8m conhecimentos de diversas reas. Podem transmitir um 62 Revista da ABPN + v, 9, Ed. Especial - Caderno Temdtico: Saberes Tradicionais + dezembro de 2017, p.50-76 REVISTA DA ABP. ASPENS SASS NEST S conhecimento especifico, como também pode abarcar em seus ensinamentos diferentes cigneias. “Mas nao nos iludamos: a tradigio africana nao corta a vida em fatias e raramente 0 “Conhecedor” ¢ um “especialista”. Na maioria das vezes, é um eneralizador™ (BA, 2010, p. 175). Ou seja, os tradicionalistas tém vasto conhecimento nfo se limitando apenas um especialmente, porém, podem ficar responsdvel por um ou mais saber. Ainda em Ba (p. 174), “Os grandes depositirios da heranga oral sao os chamados “tradicionalistas”. Meméria viva da Africa, eles sio suas melhores testemunhas. Quem sio esses mestres? ” Em bambara, chamam-nos de Doma ou Soma, os “Conhecedores”, ou Donikeba, “fazedores de conhecimento”; em fulani, segundo a regido, de ‘Silatigui, Gando ou Tchiorinke, palavras que possuem 0 mesmo sentido de “Conhecedor”, Podem ser Mestres iniciados (e iniciadores) de um ramo tradicional especifico (iniciagdes do ferreiro, do tecelio, do cagador, do pescador, etc.) ou possuir o conhecimento total da tradigiio em todos os seus aspectos. Assim, existem Domas que conhecem a ciéncia dos ferreiros, dos pastores, dos teceldes, assim como das grandes escolas de iniciagdo da savana — por exemplo, no Mali, o Komo, o Kore, o Nama, © Do, o Diarrawara, 0 Nya, 0 Nyaworole, etc. (Ba, 2010, p. 175) ‘Numa sociedade que a tradigo oral ¢ imperativa, ter os tradicionalistas, pessoas reconhecidas como mestres, responsiveis pela transmissio de um determinado conhecimento sé realga o quanto é importante a oralidade na Africa. Os africanos depositam na fala a possibilidade de mostrar sua existéncia, de propagar seu legado, difundir os conhecimentos das geragdes antecessoras para as atuais e consequentemente as posteriores. Parece-nos que essa atividade que requer 0 exercicio da meméria e do aparelo fonolégico no tem limitagdes de como ou quando acontecer, corre no cotidiano das comunidades e faz valer as relacdes entre os individuos, Na tradigZo oral como bem jé vimos, todos sio responsaveis em dar continuidade a uma corrente sucessora de acontecimentos ¢ fatos. Ba (2010) nos trouxe © exemplo dos tradicionalistas ¢ com estes, podemos perceber que hé os individuos scolhido: para a importante atividade de repassar 0 contefido de sen povo. Contudo, & possivel sugerirmos que tal escolha se da pelo carter que este individuo deve ter para ser um transmissor especifico, Entre as grandes virtudes valorizadas na tradigao oral esti a veracidade com que serio transmitidos os ensinamentos ¢ histdrias. Pois, 0 63 Revista da ABPN + v, 9, Ed. Especial - Caderno Temdtico: Saberes Tradicionais + dezembro de 2017, p.50-76 REVISTA DA ABP. ASPENS SASS NEST S homem vale do que fala, e a palavra deste deve revelar seu cariter. Portanto, mais do que um conhecedor 0 tradicionalista deve ser um homem de palavra, que honra sua fala. Ba (2010, p. 168) nos relata que “[...] li onde nao existe a escrita, 0 homem esta ligado palavra que profere. Esté comprometido por ela. Ele é a palavra, e a palavra encerra um testemunho daquilo que ele 6.” O trecho supracitado nos mostra que além de valorizar a fala, 0 que na Aftica & ponto pacifico é a ligagdo homem-palavra, O valor que tem a palavra também revela 0 valor que tem 0 homem, num compromisso que nio se finda, Esse fato nos ensina a dindmica da tradigao oral que vai muito além do simples ato de falar e carrega consigo o peso que a palavra tem, pois como jé foi dito, para os africanos nada deve ser dito irresponsavelmente. Isso requer sabedoria e responsabilidade que nortearam e fundaram a cultura africana. A oralidade transporta © homem ao seu passado, conduz pelo presente prepara para o futuro, interligando os sujeitos comunitirios ¢ as geragdes continuamente. A tradigdio oral ¢ intrinseca a sua condigio humana, é propria da sua vivéncia e rege suas vidas constituindo seu pertencimento na comunidade e no mundo. Por esse motivo, Machado (1999, p. 73) assevera que “A tradigao oral, portanto, baseia-se na concep¢ao do homem, do seu lugar € do seu papel no seio do universo. Ela envolve uma visio singular do mundo — um mundo concebido como um todo, onde as coisas se religam e interagem, ” Assim sendo, a fala também garante a participagdo do homem a sua historia e constrdi sua cultura, faz sua interagdo no espaco-tempo. A tradigao oral movimenta as relagdes Inumanas e orienta suas vidas. Todo comportamento dos pertencentes do grupo é orientado pelos seus companheiros & os saberes transmitidos e compartilhados so consolidados. As experiéncias trocadas tém efeito moral e revela o valor que tem a vida em comunhio sob as bases de uma tradigao. Com a oralidade transfere-se mutuamente os conhecimentos e perpetua o grupo, superando a individualidade que assola a lmmanidade © ultrapassa as fronteiras invisiveis que separam as pessoas, Na tradigZo oral a palavra direciona, instrui e € um dos fatores de sobrevivéneia grupal, Assim, vemos em Bonvini 64 Revista da ABPN + v, 9, Ed. Especial - Caderno Temdtico: Saberes Tradicionais + dezembro de 2017, p.50-76 REVISTA DA ABP. ASPENS SASS NEST S Ora, em contexto de oralidade, & a troca direta da palavra que permite a transferéncia da experiéncia no meio do grupo, ¢ por ai, a sua vida e sobrevivéncia, Este intercimbio como fato comunitario, situa-se além do intercambio lingtistico interindividual. Ele é, além disso, endossado por “palavras organizadas”, estreitamente ligadas a experiéncia total do grupo, aquela do passado, do presente e do futuro. SAo palavras “conunitérias”, atravessada de um lado a outro por todo o vivido do grupo, orientadas para este vivido num vai-e-vem dialético, no qual o vivido se reflete nas palavras e no qual estas, uma vez proferidas, repercutem por sua vez no vivido, (Bonvini, 2001, p. 39) Conforme 0 autor, a tradigao oral faz. parte dos sujeitos organizados em grupos e desencadeia uma série de agdes que interligam suas vidas e constituem suas sobrevivéneias. Um fator que se vale do intercambio lingliistico e faz a interagio comunitéria, Através da palavra o contetido de uma comunidade e as experiéneias dos seus participantes so compartilhadas, orientando-lhes__ 0 comportamento. Ordenadamente e conscientemente proferidas, as palavras disseminam os valores do ‘grupo ¢ efetivam a identidade dos membros envolvidos. A repereusso que a oralidade toma ultrapassa os limites do proprio grupo que em contatos com os demais individuos das diversas organizagdes sociais acabam por transmitir-Ihes seus costumes. Um conhecimento nio deve estar preso a um determinado individuo ou grupo, ao contrério deve ganhar espagos sem fronteiras € agregar 0 corpo cultural de diferentes povos. O contato com o outro enriquece 0 desenvolvimento humano ¢ 0 compartilhamento dos saberes faz com que uma proporgio maior de individuos e sociedades interaja. Com isso uns transferem aos outros seus valores e © que tém conhecimento. A tradigdo oral facilita essa interagao social. Por este motivo, por acreditar que a palavra circula e interliga os individuos e que & a fonte principal de transmissio dos saberes ¢ acontecimentos ¢ que os afticanos reproduziram suas vivéneias e transportaram a outros povos com que conviveram. Disseminaram seu modelo de se organizar e difundir © conhecimento visto hoje nio apenas na Aftica, mas em localizagdes para além do seu continente, ultrapassando as fronteiras. A tradigdo oral se espalhou de maneira a ocupar outras sociedades, diversos povos que também passaram a se consolidar a partir desta. E possivel que seja a origem 65 Revista da ABPN + v, 9, Ed. Especial - Caderno Temdtico: Saberes Tradicionais + dezembro de 2017, p.50-76 REVISTA DA ABP. ASPENS SASS NEST S no fato das religides de matrizes africanas constituidas no Brasil déem valor 4 oralidade e-se orientem através da fala, sem se pautarem em um registro escrito. No convivio com 08 afficanos, é possivel que tenhamos herdado a cultura das tradigdes orais. TRADICOES ORAIS NO BRASIL, UM TRACO AFRODESCENDENTE No continente africano a tradigao oral & prevalecente como ja vimos e orientam 08 grupos sociais nas diversas areas, institucionais tais quais a familia, a conmunidade, inclusive na educagdo, sendo um instrumento imprescindivel na construgio ¢ transmissio do conhecimento. E também ferramenta indispensdvel nas_religides, podemos até dizer que é 0 principal instrumento constituinte nas religides de matriz africana e sua difusio. Os africanos conseguiram com a oralidade se manterem organizados e levaram consigo esse exercicio peculiar por onde passaram. Nos territérios em que estiveram, deixaram como heranga a tradigao oral que perdura com o passar dos tempos. Os povos que tiveram contato com os afticanos aprenderam com eles a conviver e difundir seus conhecimentos a partir da tradigao oral, Nas relagdes entre culturas e nas trocas de experiéncias fundiram-se costumes e saberes que passaram a orientar os grupos sociais. No Brasil, por exemplo, uma das principais herangas oferecidas pela Africa foi a tradigiio oral, que compde diversas comunidades aftobrasileiras, especialmente no contexto religioso. As priticas religiosas brasileiras com origem nas matrizes africanas perpetuam e recriam a oralidade mantendo a tradi¢ao. E 0 caso do ‘Candomble. Com base nas tradiges orais herdadas da Africa, os afrodescendentes brasileiros compunham um quadro de propagagao da oralidade, especialmente entre as comunidades de Terreiro que privilegiam a fala sobre a escrita. No Candomblé nao ha livros sagrados para ensinamento da religio, mas existe a dindmica dos ensinamentos orais que movimenta o povo de axé. Ensinamentos esses que so transmitidos pelos mais velhos aos seus mais novos e que baseiam-se nos ancestrais divinizados. 66 Revista da ABPN + v, 9, Ed. Especial - Caderno Temdtico: Saberes Tradicionais + dezembro de 2017, p.50-76 REVISTA DA ABP. ASPENS SASS NEST S O brasileiro desenvolveu o costume da conversa ¢ a oralidade também prevalece em suis vidas, As pessoas, mesmo habilitadas com a escrita exercitam a fala com maior freqiiéncia nas relagdes ¢ interagdes sociais. Cotidianamente os seres humanos, vivendo em comunidades, se utilizam da expressio oral, seja numa conversa informal, num relato pessoal, on ao contar um fato. Contudo, nao devemos reduzir a tradigao oral herdada da Africa como um exereicio de simples contagio de histéria. Para os afticanos © exercicio da fala nao se limitava a isto, era predominante por perpetuar os ensinamentos entre as geragdes, ¢ era comumente valorizada por todos, numa dinamica de interagdo, como observa Ba (2010, p. 169): “certamente ao que alguns possam pensar, a tradigdo oral africana, com efeito, nao se limita a historias e lendas, ou mesmo a relatos mitolégicos ou histéricos, ¢ os griots esti longe de ser seus tinicos guardides e transmissores qualificados. ” Herdamos uma tradi¢ao oral da Africa que se faz presente em nossos vocabulos, em nossas manifestagSes religiosas e culturais. Os africanos nos deixaram um legado de festas e crengas, bem como o estigma da escravizagio, jé que em periodo colonial o contato com os remanescentes do continente africano misturava as dores do regime escravocrata, a {8 ¢ festejos proprios desse povo. Tudo isso ajudou construir também a nossa cultura, que Bonvini destaca: Ora, nao ha dividas que existiu ainda existe no Brasil uma tradi¢dio oral bastante viva, de origens francamente africanas e que constitu uma verdadeira heranga de conhecimentos de todas as ordens, transmitidos de boca em boca através dos séculos, apesar de um contexto particularmente hostil e de um desenraizamento brutal devido & escravidio. Esta heranca & constituida de imimeras “palavras organizadas": formulas rituais, rezas, cantos, contos, provérbios, adivinhacdes... algumas em linguas africanas, e outras, as mais umerosas, em portugués. Através destes “palavras”, é bem uma “alma” africana que sobreviveu e que vive ainda hoje no Brasil. (BONVINI, 2001, p. 40) De fato, 0s africanos nos deixaram a heranga da tradigdo oral que se propaga também em nossas comunidades. Na vida campestre ¢ até mesmo em alguns centros urbanos o costume de prosear é corriqueiro entre pessoas. Nos intervalos do trabalho, das aulas, nos encontros casuais, nas filas de supermercados, na relagio com a vizinhanga, 05 brasileiros costumam “bater um papo”, ter um instante de prosa, como 67 Revista da ABPN + v, 9, Ed. Especial - Caderno Temdtico: Saberes Tradicionais + dezembro de 2017, p.50-76 REVISTA DA ABP. ASPENS SASS NEST S costumamos dizer. Nesses momentos no apenas sio ditas palavras sem sentido para passar 0 tempo, mas muitas trocas de saberes e conhecimentos se efetivam. Informagdes sio compartilhadas nessas ocasides favorecendo os falantes numa troca de fala e escuta. Podemos até mesmo afirmar que, assim como na Africa, a tradigio oral difunde © conhecimento entre as geragdes também no Brasil, Os conhecimentos transmitidos de pais para filhos, por exemplo, se baseiam na oralidade e se coneretiza pelo valor da palavra e pelo respaldo que o transmissor tem, pelo que este representa, Ouv um mais velho é sindnimo de respeito e de valoracio da sua fala, isto repercute entre os atricanos ¢ 0 affobrasileiros. Ressaltamos novamente que isso no é apenas da cultura afticana, mas este 6 0 nosso recorte, relevante para o desenvolvimento dessa pesquisa. A escuta do outro consagra as relagdes ¢ constittiem uma cadeia de entendimentos que fortifica a ligacdo e o envolvimento entre as partes, Essa méxima exceléneia nos Terreiros de Candomble. E pertinente conhecer a maneira como foram estruturados € consolidados os remanescentes do continente afticano no pais. Como ja ressalvamos, um estudo sobre a tradigio oral africana se fez pertinente, assim como concebemos relevante fazer uma breve reflexao sobre a introdugao da cultura oral afticana no Brasil. Isso pode nos ajudar a perceber e compreender porque a oralidade também tem forte apelo e relevo 1nos grupos brasileiros que se organizaram influenciados pelos africanos, especialmente os que cultuam os ancestrais divinizados, os filhos do Candomblé. Os afticanos empreendendo 0 esforgo de perpetuar suas origens e sua cultura, em um esforgo de manter vivos os ensinamentos dos seus antepassados, vivenciaram a tradigio oral intensificando seu valor. Levaram consigo as hist6rias de seu povo ¢ compartilharam suas experiéneias, transmitido através da oralidade, agregando novos membros para a tradigao. Apartados de seus descendentes diretos no contexto de escravizacio, a fala foi seu principal instrumento de preservagao e perpetuagao dos seus principios originatios. 68 Revista da ABPN + v, 9, Ed. Especial - Caderno Temdtico: Saberes Tradicionais + dezembro de 2017, p.50-76 REVISTA DA ABP. ASPENS SASS NEST S Foi com a manutengdo da tradigao oral que os africanos no Brasil resgataram e revelaram suas origens. Nesse processo, as disseminagdes de seus costumes passaram também a fazer parte dos nossos, ou seja, fomos influenciados culturalmente na interagao com os povos da Africa que aqui chegaram. Entre a relagao Africa-Brasil, 0 contexto oral fundiu ¢ difundiu as culturas de ambos interligando seus povos. Essas inter-relagdes favoreceram 0 intercambio cultural e nos deixaram particularmente a riqueza da tradig@o oral que continua fazendo parte de nossas vidas. Com ela também compactuamos nossas crengas e nossas convicgdes, também transmitimos nossas histérias e conhecimentos, especialmente no que se refere as religides de cultos aos ancestrais divinizados. Bonvini discorre, Podemos de fato considerar a tradi¢ao oral, atestada atualmente no Brasil como ‘um incomparavel sucesso de uma vontade individual e coletiva de se impor a ‘um ambiente particularmente hostil, pois os negros conseguiram salvaguardar suas erengas e suas sensibilidades, e continuar eles mesmos, apesar de tudo, e melhor ainda, tornar suas crencas atrativas os olhos daqueles que, por sua cultura, so os descendentes diretos de seus antigos mestres. Dai a proliferagao atual dos cultos afto-brasileiros, verdadeiros centros culturais afticanos no Brasil. (Bonvini, 2001, p. 41) Independente do contexto de escravizagiio com que os afticanos foram trazidos aos Brasil, aqui chegando, embora as lutas travadas contra 0 regime escravocrata nos apresentaram suas crengas ¢ costumes, seu legado cultural. Trouxeram consigo a fé na palavra ¢ nos ensinaram 0 poder, a magica que a fala tem. Talvez nem mesmo tivessem tido a pretensio de implantar em solo brasileiro modelo de estruturagio, mas compartilharam suas conviegdes, possivelmente de forma natural, sem com isso ter a intencionalidade de propor um novo sistema, Todavia, essas atitudes eram parte da resistncia a escravidao e também uma forma de continuarem vivendo seus costumes. Diante da resisténcia e da vontade de perpetuar seus costumes e continuar suas historias, em suas trajetérias os afticanos viveram da maneira mais proxima que viviam na Africa. Certamente absorveram a cultura brasileira fundindo-se em uma so € oportunamente mostraram-nos o seu modo de viver. E sabido e notério que tivemos influencia dos africanos na produgio do nosso tecido cultural e na nossa organizagio social. Em Silva (2003, p. 158) veremos que “a importagdo continuada de escravos fazia 69 Revista da ABPN + v, 9, Ed. Especial - Caderno Temdtico: Saberes Tradicionais + dezembro de 2017, p.50-76 REVISTA DA ABP. ASPENS SASS NEST S com que a Africa reinjetasse permanentemente a sua gente e, com ela, os seus valores no Brasil. ” Chegando ao Brasil os afticanos tiveram desafios a serem veneidos: Iutar contra a escravidiio e formar seus grupos pertencentes, entre os seus iguais ou mais proximos. Como a entrada de eseravo no pais era constante ¢ de forma violenta devido 0 trifico de escravos, eles formaram comunidades e apesar das Iutas e sofrimentos conseguiram implantar suas estruturas e organicidade a medida que iam sendo trazidos. Embora estivessem fora de seus territorios, ¢ longe dos seus pares, tentaram dar continuidade as suas vidas 0 mais proximo do que viviam na Africa. Essa foi uma forma de sobrevivéncia. “No territério brasileiro, reis e nobres afficanos vendidos por seus desafetos como escravos, buscaram, algumas vezes, reconstruir 0 pouco que podiam das estruturas politicas e religiosas das terras de onde haviam partido.” (Silva, 2003, p. 54) Em contato com afiicanos, os brasileiros receberam a contribuigio destes para a construgao da sua cultura. A Africa esta presente no Brasil no que diz respeito as artes, musicalidade, e na crenca religiosa. Houve um intercdmbio cultural inegdvel e com 0 passar dos tempos foi possivel identificar essa imbricagio. Na verdade, tanto a Africa nos ensinava como também os africanos passaram a introduzir em sua cultura os tracos brasileiros. As vindas ¢ idas dos africanos favorecia a troca dos costumes ¢ saberes entre 08 dois povos e geravam novos comportamentos originarios dessa interago. © Brasil & um pais extraordinariamente afticanizado. E s6 a quem nao conhece a Africa pode escapar o quanto ha de afficano nos gestos, nas maneiras de ser € de viver e no sentimento estético do brasileiro, Por sua vez, em toda outra costa allantica se podem facilmente reconhecer os brasileirismos. Ha comidas brasileiras na Affica e ha comidas africanas no Brasil. (Silva, 2003, p. 72) Com o exemplo de Silva, da fusio entre brasileiros e africanos conferimos 0 quanto 0 encontro entre os dois povos foi proveitoso para ambos. Contudo, o que nos importa com maior relevancia é a percepgdo da tradigao oral africana no Brasil. é tarefa dificil de conferir, basta atentarmos para 0 nosso préprio cotidiano fundado nas atividades orais. E possivel verificar a oralidade e sua proeminéncia no nosso dia a dia, nas contagbes de casos que circulam de geragao para geragio, comegando pela familia e 10 Revista da ABPN + v, 9, Ed. Especial - Caderno Temdtico: Saberes Tradicionais + dezembro de 2017, p.50-76 REVISTA DA ABP. ASPENS SASS NEST S se estendendo aos grupos sociais diversos pelos quais fazemos parte. A interagdio com a comunidade em que vivemos é um dos meios em que se pode ver a tradigdo oral. Apesar da supervalorizagdo da escrita no mundo ocidental, dos livros serem reconhecidos como principal instrumento de informagio pela educagio formal, 0 conhecimento é gerado primeiramente através da oralidade. Com a tradigao oral se educa e com a palavra se estabelece o saber. A fala dita no passa despereebida especialmente quando tem a intengio de instruir e transmitir valores. Ainda que recorramos aos materiais escritos para orientar ou apresentar um conteudo, é através da oralidade que as explicagdes ganham sentido e as expresses gestuais que acompanham a fala intensificam a forca da palavra. E importante deixar claro que essa produgio nao tem intengdo de confrontar a oralidade com a escrita, mas atentar para a constituigio das tradigdes orais entre povos africanos e afrobrasileiros. Quando Ba cita Tiemo Bokar, contribui para 0 nosso entendimento no que diz respeito a fala ¢ o saber. Vale ressaltar que Bokar foi Grande Mestre da ordem mugulmana de Tijaniyya, foi igualmente tradicionalista em assuntos afticanos, passou toda a sua vida em Bandiagara (Mali). A escrita é uma coisa, e o saber, outra. A escrita ¢ a fotografia do saber, mas nao o saber em si. © saber é uma luz que existe no homem. A heranga de tudo: aquilo que nossos ancestrais vieram a conhecer e que se encontra latente em tudo 0 que nos transmitiram, assim como o baoba ja existe em potencial em sua semente. (Tierno Bokar, apud BA, 2010, p. 167) Os afficanos fizeram no Brasil seus construtos e se firmaram de forma resistente. A medida que chegavam os conterraneos da Africa, os que ja estavam por aqui iam se fortalecendo e arquitetando seus espagos. Muitas vezes, na maioria das vezes, chegavam povos de diferentes lugares da Africa, mas a identificagao entre eles fazia com que se organizassem em novos grupos e essa também era uma forma de resgatar suas origens. Com os seus compatriotas puderam instalar novas culturas interligando o continente africano de diferentes etnias com as peculiaridades brasileiras. # importante assinalar que o homem africano, deslocado do seu continente para © “novo mundo” na condicao de escravo, achow-se em um novo espaco, em uma nova condi¢7o humana, em wma natureza completamente desconhecida e com 0 ‘outro” a servir de referencial para relagdes inteiramente novas, diferentes das conhecidas no continente de origem. Entretanto, mesmo despojados de todos os, n Revista da ABPN + v, 9, Ed. Especial - Caderno Temdtico: Saberes Tradicionais + dezembro de 2017, p.50-76 REVISTA DA ABP. ASPENS SASS NEST S seus bens materiais, arrancados de sua rede familiar e de seus espacos ancestrais, mantém-se portador de imaginario proprio, de uma carga simbélica agora fundamental para sua reorganizacao, visando a domesticar uma natureza nova, restabelecendo um novo cosmos no seu universo temporariamente desestruturado, (Serrano e Waldman, 2007, p. 142) Permanecer em terras que no sio as suas de origem nio tarefa simples, principalmente em contexto de escravidio. Por esse motivo, enquanto eram explorados ¢ lutavam pela libertacdo, os afficanos agrupavam para perpetuagdo de suas proprias origens, mas tendo nesse processo uma reciprocidade de influéncias culturais com os brasileiros. A preservagdo de suas memérias e historias era exercitada através da tradigio oral. No cotidiano de uma nova experiéncia fora de seus bergos civilizatérios mostraram ao Brasil © modelo de organizagio com base na oralidade e que seu pertencimento no mundo € direcionado pela tradigao oral. Na relago com os afficanos, os brasileiros experimentaram a riqueza dos ensinamentos que estes trouxeram da Africa. A partir do convivio, novos povos foram sendo gerados e fundiu-se uma nova estrutura social nao mais apenas de afticanos, tao pouco apenas de brasileiros, mas sim da consolidagio entre os dois mundos. Passava entio a existir a cultura affobrasileira com tragos marcantes dos africanos e tragos mareantes dos nativos do Brasil. Um destaque dessa fusio é sem ditvida a importancia com que a tradigdo oral continuou sendo cultivada ¢ utilizada para formagio dos individuos afrobrasileiros. Cada vez. mais se fortalecia a prética da oralidade. Inclusive, a pritica oral permanece latente no Candomblé, sendo esta uma religiao de matriz, afticana. Como se pode constatar, a tradi¢ao oral afro-brasileira longe de se enfraquecer em razio do dilaceramento operado pela escravidio e pelas condigdes particulares desfavoraveis para a sua manutengao, soube guardar uma vitalidade extraordindria. Ela guarda esta vitalidade, por um lado pela determinagdo dos negros que escolheram como um dos meios mais eficazes para guardar a sua propria identidade de homens, ¢ por outro lado, por sta dupla ancoragem: a noo africana da palavra e sua insercao no universo religioso afto-brasileiro, A urgéncia de sua coleta ndo se impoe, portanto, por causa de um risco de desaparecimento, mas pelo fato de que nés estamos ainda muito longe de conhecer todas as suas riquezas e desenvolvimento. (Bonvini, 2001, p. 47) n Revista da ABPN + v, 9, Ed. Especial - Caderno Temdtico: Saberes Tradicionais + dezembro de 2017, p.50-76

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