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REGINA ANGELA LANDIM BRUNO O OVO DA SERPENTE. MONOPOLIO DA TERRA E VIOLENCIA NA NOVA REPUBLICA Tese de Doutorado em Ciéncias Sociais apresentada ao Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciéncias Humanas da ‘Universidade Estadual de Campinas, sob orientagdo da Profa, Maria de Nazareth Baudel Wanderley Este exemplar corresponde & versio final da tese defendida e aprovada pela Comissio Julgadora em 2? /05 02 Banca Examinadora: Margo/2002 Campinas,SP UNICAMP. DID ATEOA PENTRAR WIOADE 1 9. * CHAMADA | a ex ono eer YTS roc. S57 2 oe nico eT Tog. ah 2 CPO. FICHA CATALOGRAFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA DO IFCH ~ UNICAMP Mie Bruno, Regina Angela Landim ovo da serpente, Monopélio da terra e violéncia na Nova Republica / Regina Angela Landim Bruno. - - Campinas, SP: s. n., 2002. Orientadora: Maria de Nazareth Baudel Wanderley ‘Tese (doutorado) — Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciéncias Humanas 1, Agricultura e Estado ~ Brasil. 2. Proprietarios de terras - Brasil 3. Empresas rurais 4. Brasil - Politica e Governo. 1. Wanderley, Maria de Nazareth Baudel, U1, Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciéncias Humanas. UI. Titulo, Resumo © periodo da Nova Repiblica, em especial o ano de 1985, parecia reunir elementos que poderiam, sendo romper, pelo menos dar inicio a um proceso capaz de estabelecer novos limites ao monopélio fundiario. E nos anos 80, no contexto da democratizagao e do agravamento dos conflitos de terra, que a bandeira da reforma agréria ganha maior visibilidade. E, também, quando frrompe um novo movimento de ocupagdes de terra que, apesar de todas as dificuldades e impasses, gradativamente vai se afirmando como instrumento de presso em favor da democratizagao da propriedade ¢ da luta por direitos. No entanto, os acontecimentos que se produziram no ano de 1985 apontam © contrério: © que se assistiu foi uma mobilizagao patronal rural, sem precedentes na histéria, contra as demandas de democratizagao da propriedade e integracdo dos trabalhadores rurais 20 novo processo produtivo e ao exercicio da cidadania 0 objetivo do nosso trabalho é apresentar, tendo como referéncia o debate na grande imprensa, uma reflexo sobre @ nova identidade e a nova retorica patronal, que se constituiram no bojo da teagdo dos grandes proprietarios e empresérios rurais em torno do debate sobre a reforma agraria da Nova Repiiblica e as lutas por terra. Ha um habitus social dos proprietérios e empresirios rurais intimamente ligados a nossa formagao historica e que amitide se produzem e se reproduzem juntamente com as transformagoes da sociedade brasileira. E a jungdo de novas e velhas formas de agir e pensar, de permanéncias e novidades, que ira compor a nova identidade patronal, contida na designagao, “nés, os produtores e empresarios rurais”. a NECAMP : BIBLIOTECA CENTRAL SEGAO CIRCULANTE Abstract The Nova Republica (New Republic) period, especially the year 1985, seemed to have elements that could, if not break, at least start a process of establishing new limits to the monopoly of land. It’s in the 80°s, in the context of democratization and of worsening of land conflicts that the claim on land reform became more visible. It’s also when arose a new movement of land occupations that, despite all difficulties and deadlock, gradually became an instrument of pressure in behalf of the property democratization and of the struggle for rights. Nevertheless, the events of 1985 showed the opposite: there was a landowner mobilization, with no precedents in istory, against the demands for land democratization and rural workers integration to the productive process and to the citizenship exercises ‘The purpose of this work is to present - having the debate in media as a reference - a reflection on this new identity and the new landowners rhetoric, that came out in the context of the great landowners and rural employers reaction to the debate on Nova Repiblica land reform and to the struggle for land. There is a social habitus of landowners and rural employers intimately linked to our historical background and that often produces and reproduces itself with the changes of the Brazilian society at the same time. It is the link of new and old forms of acting and thinking, of continuities and novelties, that will constitute the landowner new identity, defined by the statement, “We, the producers and rural employers”. “Se quisermos compreender a linguagem, teremos de fingir nunca ter falado, submeté-la a uma redugdo sem a qual cla nos escaparia mais uma vez, reconduzindo-a aquilo que ela nos significa, of/d-la como os surdos olham aqueles que esto falando, comparar a arte da linguagem com as outras artes de expressio, ‘entar vé-la como uma dessas artes mudas. E possivel que o sentido da linguagem tonba um privilégio decisivo, mas ¢ tentando o paralelo que perceberemos aquilo que talvez o tome impossivel ao final. Comecemos por compreender que ha uma linguagem técita ¢ que a pintura fala a seu modo” Merleau-Ponty Signos “A. importincia de Nhonhd Gaita cresceu sobre 0 corpo da mulher que ele assassinou a facadas por adultério. Uma auréola 0 acompanha, a auréola da terra, do chao da provincia. Suas fazendas esticavam-se tamanhas e to distantes. que s6 © avido satisfaz a sua vigilancia de dono. Possui packing-houses, fazendas de cacar, fazendas de pescar, fazendas de criar, fazendas de cana, engenhos € moinhos, laranjas, laranjas, laranjas, jaboticabas, jaboticabas, jaboticabas, terras, terras, terras, dinheiro, dinheiro, dinheiro. Para ele foram feitas todas as estradas, todos os lubes, todas as Iracemas, todos os médicos, (...) os capangas, os delegados de policia, os jornais, os governos.(..) Passa escrituras, escrituras, escrituras, assina cheques, cheques, cheques. Oswald de Andrade Marco Zero Il- Cho “Haver injustica é como haver morte” Fernando Pessoa Obras completas Agradecimentos Este trabalho é produto, parcial, de uma longa trajet6ria académica permeada por imameras redefinicées do objeto de estudo, interrupgdes ¢ retomadas em toro de uma mesma problemética: a questio agréria no Brasil. Ao longo desses anos, diversas pessoas ¢ instituigdes contribuiram para a minha formacio académica ou colaboraram decisivamente na claboragao desta tese. Eduardo Diatay Bezerra de Menezes (Universidade Federal do Ceard) ensinou-me, talvez sem o saber, a buscar sempre ampliar o campo de leitura, mesmo quando discordamos dos pressupostos do autor. Mauricio Vinhas de Queiroz e Barbara Freitag (Universidade de Brasilia) foram decisivos na minha formagiio sociolégica. Mauricio incentivou-me a compreender a importincia dos conifitos agrérios que despontavam na midia, apesar da censura politica € Barbara iniciou-me nas obras de Marx. Posteriormente, a interlocugto académica com os professores ¢ alunos do Instirut des Hautes Etudes de l'Amérique Latine - Paris II1, em especial Jacques Chonchol ¢ Miche! Gutelman, acerca das experiéncias de reforma agréria na América Latina ampliou 0 meu conhecimento sobre 0s impasses ¢ as controvérsias da politica de reforma agréria, Manuel da Conceigio, lider camponés no Maranhiio exilado na Suiga, foi seguramente uma figura marcante em minha trajetéria ao relatar a sua experiéncia de vida das lutas por terra no B Desse perfodo restou-me a certeza de que a questio agraria € uma questo essencialmente politica e de que 0 conhecimento é um processo coletivo, social ¢ histérico, mesmo quando situado no quadro particular de uma sociedade e de uma época. Na Unicamp, 0s semindrios do doutorado com professores Maria de Nazareth Baudel Wanderley, Roberto Cardoso de Oliveira, Vilmar Faria, Maria da Conceigao Diincao, Carlos Brandrao e Marilena Chaui, assim como a discussio com os colegas de 8 curso, Leonilde, Maria Antonieta, Aloisio, Carlos, Cremilda e Dalcy, abriram-me novas perspectivas metodol6gicas ¢ tedricas importantes. Maria de Nazareth Baudel Wanderley, minha orientadora e amiga, além do respaldo institucional, incentivou-me ¢ problematizou inimeras das questdes aqui enunciadas, em especial a precedéncia da propriedade fundidria no Brasil a vitalidade das classes patronais no campo, chamando a atengo para determinados recortes sociais ¢ ideol6gicos “dessa classe acuada, mas ainda socialmente muito forte e capaz de falar” Com Vladimir Palmeira e Leonilde Medeiros (CPDA) mantive um didlogo rico ¢ instigante que deixou fortes marcas na construglo desta tese. Vladimir convenceu-me da importincia de “saber ouvir” as classes e grupos dominantes como uma das dimensdes constitutivas do pensamento critico e da compreensio da sociedade, € mostrou-me a necessidade de formular com mais cuidado a questo do atraso, sobretudo a idéia de que o atraso ndo necessariamente se constitui em um anacronismo, ao contririo, existem situagdes em que “o moderno perpetua formas de atraso”. Por exemplo, diz ele, Pedro, 0 Grande, foi o principal incentivador do desenvolvimento da manufatura na Réssia, mas, para isso, no s6 “estendeu a serviddo 20 progresso industrial, como a fortaleceu” € recorreu. a expressies ¢ simbolos identificados com 0 atraso, mesmo quando queria expressar novas concepgdes ¢ novas idéias. A grande diferenga é que Pedro o Grande, apostava na mudanca, “queria a reforma” e, nesse sentido, travou uma [uta cultural contra o atraso, Com Leonilde, amiga de todas as horas e minha principal interlocutora na reflexéo sociolégica, mantive (e mantenho) um didlogo constante, cotidiano, sobre as minhas (¢ nossas) descobertas e impasses, sem falar na sua rica e acurada andlise a respeito da questéo agréria, do sindicalismo rural e dos movimentos sociais no campo. A sua contribuigao encontra-se registrada na elaboragao deste trabalho, em especial a idéia de que os processos sociais sto relacionais. ‘Com Regina Novaes Reyes (ICFS/UFRJ) ¢ Nelson Giordano Delgado (CPDA) tive discussdes substanciais que me levaram a rever meus temas ¢ recortes. Regina discutin comigo o projeto inicial e fez-me ver a importincia da nogdo de habitus como explicativa dos processos sociais em questo, auxiliou-me na definigdo do objeto ¢ mostrou-me 0 quanto cra importante @ minha tentativa de “criag@o” de uma nova fonte: a grande 9 imprensa, Tanto Vladimir como Leonilde e Regina me ajudaram a sistematizar a idéia de uma imprensa como campo de disputa, politica ¢ de mercado. Nelson, sempre marcando tempos ¢ fronteiras quando eu os ultrapassava, também auxiliou-me na discussdo sobre o atraso e o moderno, além de ajudar-me na sistematizagao inicial dos capitulos e convencer-me de que eu deveria abandonar a espera de um momento ideal e incorporar a tese ao meu cotidiano. Inés Cabanilha de Souza, doutoranda do CPDA e co-responsivel pela pesquisa sobre Sistemas de Gerenciamento da Reforma Agriria - Siger (MDA-FAO/Incra) estimulou-me e acompanhou de perto a elaboragdo desta tese, seja discutindo algumas questées como, por exemplo, 0 clientelismo no Brasil, seja assumindo, nesta fase final Guntamente com Marcelo Mind Dias, doutorando do CPDA), a coordenagao da pesquisa. Luciano Padrdo, Marcelo Mind ¢ Inés Cabanilha, doutorandos do CPDA, além de apoio ¢ da amizade, colaboraram no trabalho final de sistematizagto, revisio ¢ impresstio desta versio. Sonia Cruz, com a sua reconhecida eficiéncia ¢ o seu carinho, garantiu-me © apoio logistico na versio final da tese. 0 CPDA (professores e alunos), apesar de todas as dificuldades advindas da imensa precariedade do ensino universitario no Brasil, é seguramente um espago por exceléncia de interlocugdo académica, Roberto Moreira ajudou-me a compreender 0 Norbert Elias ¢ 0 debate tedrico a renda da terra, Ana Célia Castro, sempre generosa, possibilitou-me © acesso aos presidentes das associagées patronais e por ser uma economista interdisciplinar, forneceu-me alguns escritos sobre habitus. John Wilkinson, em um determinado momento, fez-me ver que aos olhos dos proprietarios de terra a reforma agréria da Nova Repiblica significava a reediga0 do debate e do movimento pelas reformas de base do fim dos anos 50 © 60, Renato Maluf esteve presente em varios momentos da elaboracdo deste trabalho, seja disponibilizando material sobre 0 Oeste Catarinense, seja comentando sobre 0 empresariado brasileiro e partilhou da minha eterna indagacao acerca da natureza do atraso edo modemo. No decorrer da década de 80, varias pessoas contribuiram para a minha reflexio sobre a Unio Democratica Ruralista (UDR) quando ainda nio tinhamos clareza de seus contornos ¢ desdobramentos, ¢ o fizeram, seja disponibilizando material, seja apoiando-me 10 ou apontando-me alguns aspectos importantes que no os havia percebido. Nesse sentido, quero agradecer ao prof. José de Souza Martins (USP) seguramente 0 meu principal interlocutor na reflexo sobre a questi patronal no Brasil, Moacir Palmeira (Museu Nacional), Zander Navarro (UFRGS), Ivan Ribeiro (in memoriam), Maria Emilia Pacheco (FASE), Neide Esterci (IFCS/UFRD), Ligia Sigaud (Museu Nacional), Vilma Figueiredo (UnB), 0 “Jornal dos Sem Terra’, 0 Nucleo de Altos Estudos da Amazénia da Universidade Federal do Pari (NAEA), Célia Tolentino (Unesp), Leda Benévolo de Castro (UFMG) e Nair Costa Nuls (UEMG). Beneficiei-me ainda, nos anos 80, das discussdes coletivas do Programa Movimento Camponés e Terejas do Centro Ecuménico de Documentagdo e Informagao (Cedi), do qual faziam parte Aurélio Vianna Jinior, Clara de Assis Evangelista, Leonilde Sérvolo de Medeiros, Luciano Nunes Padrio, Maria Cecilia I6rio, Mariana Pantoja Franco, Neide Esterci, Regina Novaes Roberto José Novaes, dos debates do Grupo de Estudos sobre Movimentos Sociais no Campo, do Projeto de Intercémbio de Pesquisa Social ¢ Agricultura (PIPSA) ¢ do Grupo de Estudos sobre Movimentos Sociais no Campo (Fundagao Ford/CPDA). Na atividade de pesquisa contei com o apoio institucional da Anpocs - Dotagao Anpocs/CNPq . Posteriormente, fui beneficiada com os recursos do Programa Ensino Pesquisa sobre a Reforma do Estado (Capes) e com os recursos do Programa Nacional de Niicleos de Exceléneia - Pronex (CNPq/MCT). Para o levantamento ¢ sistematizagdo dos dados colhidos, contei, em momentos diferenciados, com a colaboragio de Suzana Pessoa Soares, Clara de Assis Evangelista, Valéria Rodrigues, Ana Milhomem (PIBIC), Inés Cabanilha e Roseli Bueno de Andrade. afeto, a solidariedade e o incentivo de inimeros amigos ¢ amigas - to importante quanto as contribuigdes teéricas - foram, para mim, fundamentais. Gostaria de agradecer “de coragdo” & minha filha Isabel (Bel) Bruno Palmeira, a meus pais Roberto Bruno (in memorian) e Maria Ligia Landim Bruno e a minha familia ‘Agradego também a Marcelo Werneck, Pedro “cinema” Duarte, Gloria Maria Moraes da Costa, Alcibele (Dédé) Maria Moraes da Costa, Isabel Moraes da Costa, Maria Helena Cerqueira, Ivone Costa de Souza, Isabel Newlands, Maria Clara Abalo Ferraz, Sonia Cruz, Reginaldo Leite Carvatho, Raimundo Santos, Silvana de Paula, Doraci n Cabanitha, Roseli Bueno de Andrade, Maria Betdnia Avila, Elisabeth Ferreira, Elia Menezes Rola, Fernando Ribas Prado, Joaquim Soriano, Ana Maria Motta Ribeiro, Carlos Bernardo Vainer, Sonia Giacomini, Vera Botta Ferrante, José Luiz. da Costa Lira, José Prado (in memorian) e Tereza Sobral Rollemberg ‘Minha divida pessoal para com as amigas de sempre e professoras Ana Maria Fernandes ¢ Fernanda da Fonseca Sobral, ambas da UnB, que se empenharam na obtengo da minha documentagao de mestrado, necesséria minha reintegrago 4 Unicamp. Foi no convivio privilegiado com estas pessoas que consegui elaborar este trabalho. Sumario Introdugio 15 Capitulo 1- “Abrindo velhas feridas” 49 1.1 Rumo a democracia 50 1.2.0 discurso oficial 68 1,3 “Uma guilhotina armada sobre os produtores rurais” 77 1.4 “Um terreno minado” 87 Capitulo 2- “Comecou a grita” 97 2.1 “Em busca de uma solugdo sem traumas 100 22Agrita 104 2.2.1 “Pela preservagao da atividade produtiva 115 2.2.2 A dispute pela representagao patronal 120 2.3 A retaguarda da grande propriedade: politicos e assessores presidenciais 125 2.4 “Volta A Idade Média” 134 2.4.1 Os modernos fazendeiros desbravadores ou Miguel Arcamundo, oignorado? 145 Capitulo 3- Propriedade e violéncia 161 3.1 Uma barraca de lona preta 163 3.2 “Se o problema ¢ imolar vidas, que comecemos logo” 173 3.2.1 “A desapropriagao induz a invasio! 182 3.2.2 “Essa coisa de reforma agraria € comunismo 185 3.2.3 “Quem sio os agitadores do campo?” 187 3.2.4 A violéncia no campo 189 3.3 “Nenhuma violacao sera tolerada” 199 3.3.1 “Nao ha pontos intocaveis no PNRA” 202 3.3.2 “Paz no campo” 208 3.3.3 “O medo das consequéncias tragicas 210 3.40 poder da imprensa 214 3.4.1 A vez dos leitores 216 3.4.1.1 “Outrora ...e sempre 224 3.4.1.2 “Acrescentar!, nunca substituir 236 3.4.1.3 “Reforma agraria, uma questdo politica” 253 3.4.20 campo jomnalistico: diversidade e disputas 267 Consideragées finais 289 Bibliografia 301 15 INTRODUCAO “A grande expansdo capitalista no campo nos iiltimos vinte anos foi, também, a expansio de contradigées, semeou a empresa, a fazenda, a gtilagem, a injustica, a brutalidade. E semeou, também, a resisténcia, semeou novas significagdes para velhos atos, novos atos para velhas significagGes, novos atos e novas significagdes. Encheu a terra de mistério, de enigmas e, também, de desvendamentos, de descobertas” José de Souza Martins Existem determinados momentos na hist6ria que parecem expressar por si um conjunto de acontecimentos redefinidores de processos sociais mais abrangentes. Assemetham-se a situagdes em que varios fatos se entrelagam enunciando 0 prolongamento de provessos sociais seculares ou indicando novos impasses e exigindo novas diregdes (Sahlins,1990). O periodo da Nova Repiiblica, em especial 0 ano de 1985, poderia ser considerado como um exemplo desses momentos emblematicos que expressam questdes historicas maiores, E nos anos 80 que a bandeira da reforma agréria volta a ordem do dia, ganha maior visibilidade e se mantém na cena politica até hoje (Palmeira,1994), E, também, quando irrompe um novo movimento de ocupago de teas que, apesar de todas as dificuldades e impasses, gradativamente vai se afirmando como instrument de pressio em favor da democratizagio da propriedade da terra e da luta por direitos. E ainda nesse periodo que tem inicio a constituigao de novos pressupostos sobre a questo agraria, marcando, assim, o fim de uma visio de reforma agraria que inspirou, por 20 anos, os movimentos sociais no campo ¢ as varias versdes do pensamento reformista no Brasil (D'Incao,1990). Os anos 80 também prenunciam o esgotamento da politica de 16 crédito € de incentivos fiscais implementada durante os governos militares - um dos pilares do modelo de modernizagao da agricultura Todos esses fatos e a propria conjuntura de transigao politica pareciam reunir elementos que poderiam, seniio romper, pelo menos dar inicio a um proceso capaz de estabelecer novos limites a0 monopélio fundidrio e a forga politica da grande propriedade no Brasil, No entanto, os acontecimentos que se produziram no ano de 1985, sob o governo da Nova Republica, apontam o contratio: © que se assistiu foi uma mobiliza¢do patronal rural contra as demandas de democratizagao da propriedade da terra e as novas formas de integracdo dos trabalhadores rurais a0 processo produtivo e ao exercicio da cidadania. Organizados como classe, grandes proprietirios de terra © empresarios rurais, em especial das regiées modernizadas do Sul ¢ do Sudeste, reagiram contra qualquer tentativa de democratizagio da propriedade da terra, fazendo ruir as possiveis alternativas abertas com a transigdo ¢ a mobilizagio dos trabalhadores rurais por uma reforma agréria A conjuntura de democratizagao e de transigo politica jogou um papel fundamental na reagdo patronal e na constituigiio de um campo de conflito agrario, O processo de transigéo se, de um lado, fez aflorar a bandeira da reforma agraria e imprimiu uma nova feigdo as lutas por terra, de outro, contribuiu para a radicalidade da reago patronal rural e potencializou 0 medo dos grandes proprietirios quanto a possivel efetividade de uma reforma agraria no Brasil. Os grandes proprietarios de terra esperavam que a defesa da reforma agréria por parte da Alianga Democritica ¢ da Nova Republica “permanecesse s6 retérica”, como declarou Flavio Brito da Confederagao Nacional da Agricultura (CNA) na imprensa, mas se surpreenderam com a criago do Ministério Especial da Reforma Agriria (Mirad), a elaboragio de uma proposta de Plano Nacional de Reforma Agriria (PNRA), da qual participaram a Confederacio Nacional dos Trabalhadores Rurais (Contag) e setores da lgreja Progressista, e as ages de ocupago dos trabalhadores rurais sem terra, Rapidamente, disseminou-se nas associagées © nos sindicatos patronais a idéia de que, no contexto da democratizacdo, seria possivel uma “profunda e radical” transformagao da estrutura fundidria. Ao mesmo tempo, difundia-se a certeza da “inevitabilidade” de uma “verdadeira guerra no campo” devido, sobretudo, a revitalizagao do movimento de ocupagdes, a crescente importancia das oposigdes sindicais que comegaram a se articular através 7 a Central Unica dos Trabalhadores (CUT) e a possivel radicalizagaio do movimento sindical dos trabalhadores rurais — reconhecido, na época, como a principal forga social organizada no campo. Aos olhos dos grandes proprictarios de terra e empresirios rurais, todo esse processo instaurado com a Nova Repiblica significava a reedi¢ao do debate e do movimento pelas reformas de base do fim dos anos 50 ¢ inicio dos 60. Apés 21 anos de “relativa trangiilidade”, 0 “fantasma” da reforma agréria, mais uma vez, retomava a cena politica. Era imperativo, pois, vir a piblico para fazer prevalecer seus interesses ¢ organizar-se para enftentar a nova conjuntura que se anunciava. E, em meio reagdo patronal, progressivamente vai se conformando ¢ ganhando maior visi identidade patronal rural, uma nova retérica de legitimagiio e de dominagio assentada na idade, no cenério politico nacional ¢ na grande imprensa, uma nova complementaridade de praticas politicas e de simbolos antigos e novos, atrasados e modernos. © objetivo do nosso trabalho é apresentar, tendo como referéncia o ano de 1985, uma reflexio sobre a nova identidade patronal que se constituiu a partir da mobilizagio dos grandes proprietarios de terras e empresérios rurais em torno do debate sobre a reforma agréria da Nova Repblica ¢ a luta pela terra, E a jungio de novas e velhas formas de agir e pensar, de permanéncias e novidades, que ira compor a nova identidade dos grandes proprietatios de terras e cempresirios rurais, contida na designagdo “nds, os produtores e empresérios rurais modemos racionais” Expressando o atraso temos, sobretudo, a concepeio de propriedade como direito natural ¢ ilimitado e a violéncia como pritica de classe. Simbolizando os novos argumentos e priticas, destacam-se a defesa dos modemnos padrées de rentabilidade e competitividade, a necessidade de uma visio sistémica do desenvolvimento, 0 uso do lobby e 0 imperativo da gestdo ¢ da qualificago empresarial como condigdo de reproduco social e como pritica politica. “O peculiar da sociedade brasileira, como de outras sociedades, esta em sua propria historia”, diz-nos José de Souza Martins, para quem a nossa sociedade “é marcada pela persisténcia do passado que se esconde, ¢ as vezes se esconde mal, por tris das aparéncias do ‘moderno” (Martins,1994:11), Segundo o autor: “Ha, no contemporaneo, a presenga viva ¢ ativa de estruturas fundamentais do passado. De modo que os fatos de hoje acabam se mostrando como fatos densamente constituidos pela persisténcia de limitagdes e constrangimentos histéricos que definem 0 alcance restrito das condutas transformadoras(...). S40 18 estruturas, instituigdes, concepgdes e valores enraizados em relagdes sociais que tinham pleno sentido no pasado, e que, de certo modo, e s6 de certo modo, ganham vida propria. (..) E sua mediaco que freia 0 processo historico ¢ o tora lento” Gidem:14). Entretanto, avalia Martins, o atraso no é um mero resquicio que o desenvolvimento supera mas um processo social que amitide se renova a partir de relagSes sociais modernas (Martins,1986"). Ou seja, ele é produzido e reproduzido pelas proprias condigdes do desenvolvimento. Nesse sentido, ele é estruturante, isto é, possui um certo significado e tem uma sustentago social e econémica (Fernandes, 1981:17). Inimeros foram os processos sociais que, a0 longo do tempo, realimentaram ou foram realimentados pela contemporaneidade do atraso do modemo. Sto desafios histéricos que encadeiam o presente e o passedo numa mesma realidade, So processos que também conformam e refletem um habitus © a instituigao de determinados perfis humanos préprios. E, a0 mesmo tempo, transformam a reflexo sobre a formagio e desenvolvimento da sociedade brasileira num tema crucial ¢ polémico. Diz Florestan Femandes, “O que € ou nao € histérico “determina-se ao nivel do significado ou da importancia que certa ocorréncia (ago, processo, acontecimento, etc.) possua para dada coletividade. O historico tanto se confunde com 0 que varia, quanto com 0 que se repete, impondo-se que se estabelegam como essenciais as polarizactes dinamicas e que orientem 0 comportamento individual ou coletivo dos atores. (..) Sob este aspecto, o elemento crucial vem a ser 0 padro de civilizagao que se pretendeu absorver e expandir no Brasil” (Fernandes, 2000:1509-1510). Juntamente com a expanséo do grande capital no campo e as transformagées da sociedade brasileira, 0s grandes proprietarios de terra e empresirios rurais recorreram e atualizaram ‘continuamente 0 atraso como elemento conformador de sua linguagem e de sua pritica politica ‘As modificages impressas na sociedade propiciaram a emergéncia de novos atores econdmicos e sociais que, longe de eliminar de vez ou de tomar anacrdnicas velhas estruturas e processos, a idade vao sendo construidos concomitantemente com a produgao ¢ reprodugdo de velhos sistemas, atores € eles se imbricam. Novos sujeitos politicos e novos sistemas de dominagdo e de legit cestruturas, Ainda preexiste, como um dos fundamentos da defesa do monopélio fundiério, uma determinada concepeao de propriedade que permeia, de forma marcante, as argumentagdes € 19 agdes dos grandes proprietirios de terras © empresirios rurais ~ a nogo de propriedade como direito natural, absoluto ~ , considerada pelas elites agrarias como sendo a forma antiga e segura de se criar riqueza e se obter reconhecimento politico, status e prestigio estavel. Dircito incontestavel, algo naturalmente herdado e adquirido pelo trabalho, da grande propriedade fundiéria teria partido a determinagao dos valores sociais da sociedade brasileira, em especial a respeitabilidade, a audicia, a honradez, a bravura, a moral e 0 destemor para enfrentar a adversidade. Sao atributos que, em certo sentido, carregam consigo e atualizam aquilo que Oliveira Viana denomina “os elementos ideologicos do dominio” (Oliveira Viana, 2000), A defesa € 0 exercicio do direito de propriedade com se no houvesse limites instituem uma determinada leitura sobre a fungo social da terra, fundam uma visio eli a ¢ excludente dos trabalhadores rurais e priorizam o papel do Estado como o guardio dos interesses patronais rurais. A terra ndo ¢ concebida pelos grandes proprietirios como um bem limitado ¢ ndo reprodutivel, Ha uma imensa dificuldade em se reconhecer a dimensio social da propriedade. Aos seus olhos, as medidas de democratizagao da propriedade assentadas no interesse social perdem seu fundamento societal e passam a ser vistas como uma injustiga. Nesse sentido, ha uma transfiguragdo da nogo de uso social da terra, em que 0 conceito de produtivo assume novas & inusitadas caracteristicas. Despido de sua dimensio social, 0 direito a propriedade da terra associa-se a violéncia ¢ 0s trabalhadores rurais sem terra sao vistos como “meros” assaltantes de banco! Essa concepedo “latifundista” da propriedade (Martins:2000), que desponta como um dos principios orientadores da nova identidade patronal rural e se apresenta como o elo de solidariedade dos grandes proprietérios de terra, congrega, politica, social e simbolicamente, 0 conjunto das classes ¢ grupos dominantes no campo. Ser grande proprietério de terras reine uma multiplicidade de significados que unifica todos, apresenta-se como um dos elementos estruturantes dos costumes contribui para 0 resgate do pasado ou 0 refazer a meméria como restauragao das tradigdes, continuamente renovadas. “Tradigdes inventadas”, como diria Hobsbawn e Ranger, € surpreendentemente atualizadas (Hobsbawn ¢ Ranger, 1984) ' Na realidade so considerados piores do que assaltantes de banco. Estes, pelo menos, levam o dinheiro mas no Jevam 0 banco. Assemelhar-se-iam mais a ladrées de cavalo. 20 Associada @ nogao de propriedade como direito absoluto, vimos a defesa da violéncia explicita como pratica de classe. Pegar em armas para defender © monopdlio fundiério nao é uma novidade e sempre fez parte da pratica da grande propriedade fundiaria no Brasil. No imaginério social, 0 grande proprietario de terras € historicamente representado com uma arma na cintura, milicias e capangas, ¢ a8 mortes e os assassinatos no campo amitide funcionaram como uma das marcas da luta pela terra. O recurso a violéncia se baseia, sobretudo, em uma determinada concepgao de mundo, que pouco se diferencia daquilo que Faoro denominou como sendo 0 ristico militarismo € a caudilhagem da conquista de seus ancestrais, os senhores territoriais (Fzoro,1981:17) e Femandes caracterizou como “a violéncia como técnica de controle do escravo (Femandes, 1981:19). De uma classe social onde a honra e a violéncia dos saques se confundem (Mercadante, 1973:24), Mas, ao longo dos embates em tomo da reforma agraria e intimamente associados as velhas palavras e antigas praticas coletivas, vao se conformando, nos anos 80, novos argumentos € novas praticas, assentados na necessidade de preservago e aperfeigoamento do patamar produtivo enti alcangado e no imperativo de uma maior rentabilidade Contudo, o que imprime um novo significado a linguagem e & pratica patronal é 0 fato de que, diferentemente de momentos anteriores, se esté argumentando a partir de uma agricultura modemizada e integrada, que instituiu a grande empresa capitalista rural e agroindustrial © estabeleceu um novo patamar produtivo e tecnolégico no campo. Apesar de um processo incompleto, € com base nas transformacdes da agricultura e da sociedade que se vai configurando ‘uma nova maneira de pensar um conjunto de questées relativas problematica fundidria e a auto- ‘identificagao dos grandes proprietirios de terra e empresérios rurais no Brasil. Uma nova matriz discursiva, capaz de reordenar as argumentagdes ou articulé-las de um outro modo, logrando que os individuos ¢ as categorias sociais dominantes no campo se conhegam € se reconhegam na nova Jinguagem e participem da construgdo de uma nova identidade de classe (Sader, 1988) A realidade de uma agriculture “enfim modemizada”, como diria um de seus principais porta-vores, contribuiu para conferir uma nova significagao ¢ legitimidade ao discurso patronal sobre a questo agriria, sobretudo porque ja nao mais se podia responsabilizar 0 grande proprietario de terras pelo “atraso” da sociedade brasileira — um dos principais supostos dos anos 60. Para as 21 lites agririas, o latifiindio finalmente desvencilhava-se da camisa-de-forga, que, durante décadas, considerara obstaculo estrutural a modemnizacao e 4 industrializago no Brasil, Em nome de uma agricultura modemizada, a reforma agraria é considerada um “velho assunto ideolégico”, sem nenhuma fundamentagdo econdmica e teérica condizente com a realidade. ‘A reforma agraria € encarada como radical porque, no contexto da modemizagio e do desenvolvimento, representa uma ameaca a atividade produtiva e ao imenso esforgo dos empresirios produtores rurais em montar uma estrutura de abastecimento, gerar divisas para o pais e criar milhdes de empregos. A deniincia da penalizagao da agricultura desponta, porém, modificada em seus argumentos e se orientando, acima de tudo, para as exigéncias da internacionalizacao do capital ¢ a urgéncia de uma maior competitividade para fazer face a globalizagio. A reiteragao da vocagio agricola do Brasil, antes defendida como 0 destino natural do pais, passa a ter como base o primado da disponibilidade de recursos naturais no novo reordenamento entre as nagBes. Jé a identidade “nds, os produtores e empresirios rurais” nos remete a algumas referéncias basicas. Em primeiro lugar, expressa, de fato, novas necessidades advindas da modemnizagdo da agricultura. Sob essa perspectiva, podemos afirmar que 0 comportamento publico € 0 coletivo dos grandes proprietirios de terra e de seus porta-vozes so reveladores das mudangas que afetaram 0 meio rural e a sociedade, assim como do modo como essas mudangas foram tratadas. Em segundo, apesar de fortalecidas pela modemizagao da agricultura, as elites agrarias esto rebatendo a idéia do improdutivo e negando a imagem da improdutividade e da especulagdo que 0 movimento social procura Ihes atribuir. O discurso do produtor e empresério rural é, também, para se legitimar como ‘empresério e capitalista, no sentido mais completo do termo, porque se trata, no terreno politico, de eliminar a imagem negativa da ineficiéncia que é a marca dos grandes proprietarios de terras no Brasil. Ha uma terceira referencia muito importante, pois € por meio dela que os grandes proprietérios fundiarios se contrapdem aos que estio demandando tera e desqualificam os trabalhadores rurais: a de que eles, como produtores e empresirios, sto dotados do saber ¢ do capital (Os anos 80 despontam como um outro momento da desqualificacao dos trabalhadores rurais, ‘Nao é mais a imagem do preguigoso ou do “jeca-tatu” (Martins, 1981; Trindade, 1999)? que esta em ? Representacdo caricatural do tabalhador da drea rural brasileira, o jeca-taru se inscreve entre os mais expressivos ‘pos criados em nossa literatura, sobretudo nos anos 50 e foi objeto de imtenso debate na imprensa. Questionava-se a 22 questo, ¢, sim, a do incapaz de apreender € usar os novos recursos tecnol6gicos, produto da modemizagio da agricultura, que 0 momento da acumulagao exige de todos (Medeiros,1999). A imagem é a do trabalhador que nao tem a qualificagdo necessaria. Sem saber e sem capital Ihe restaria a alternativa de trabalhar para os outros. A desqualificago vem compensada com o velho & conhecido discurso dos beneficios sociais, direitos e formas de integragao, associado a0 novo propésito de transformé-los em “gestores” de seus proprios negécios. Além do mais, a presenga de um amplo movimento de ocupagdes de terras sinalizando, politicamente, para a emergéncia de novas formas de organizagio no campo, fez com que outras designagées fossem incorporadas a imagem do trabalhadores rurais. Além de preguigosos e incapazes, eles também so considerados gananciosos e especuladores, interessados to-somente no lucro facil Ao lado da construgao de uma nova linguagem de classe, novos expedientes de ago politica Sio criados, por exemplo, 0 uso do lobby e do marketing, a formago de uma assessoria de experts em comunicagao e propaganda e a utilizago da imprensa como palco constante e privilegiado de produgdo de simbolos de classes. Permanece, contudo, a defesa da violéncia explicita como direito histérico da classe, a0 ‘mesmo tempo em que se argumenta ser ela um problema inerente ao mundo modemo. A defesa da violéncia - num contexto historico em que ela € condenada socialmente — teve como recurso para justificé-la o direito de propriedade existente no Cédigo Civil. A nova retérica patronal dos anos 80 significou, também, uma tentativa de redefinigaio das relagdes das classes € grupos dominantes no campo entre si, com o Estado e @ busca de novos espagos na sociedade, num momento em que a transigao ¢ suas possiveis alternativas se lhes afiguravam como uma das principais questdes. Hé, ainda, uma luta por uma representagao publica e legitima desses setores sociais. Por sua vez, nfo é mais o discurso puro simples da defesa da propriedade latifundista da terra em si, e, sim, da grande propriedade parte constitutiva dos complexos agroindustriais, situando-se, portanto, em um contexto mais amplo que a justificaria, importincia . conveniéncia e abrangéncia do “caboclo acocorado ¢ indolente retratado inicialmente por Monteiro Lobato. Posteriormente, do comtato de Momtziro Lobato com as teses do movimento de saneamento rural, “cristalizou-se a idéia de um jeca anemido, doente, mas capaz de se regenerar com o auxilio da cigncia’ (Trindade.1999:134). Euclides da Cunha oscila em apresenti-lo Quasimodo ¢ Hércules, entre a altivez. do sertanejo ¢ 1 permanéncia da imagem da preguiga “a raiz dos vicios da terra, fruto da bebedice”, parasita, “piolho da terra” (Trindade. 1999: 137). 23 Existem, igualmente, maior complexidade no tecido social ¢ uma nova configuragio das estruturas de classe no campo, expressas no s6 pela emergéncia de novas elites agrérias (convivendo com as velhas elites) e ampliago ¢ diversificagdo dos espagos de interlocugio ¢ de representagdo patronal, mas também pela existéncia, no Brasil, de uma burguesia agréria moderna, consolidada e estabelecida ~ base ¢ simbolo de um modelo de modemizagéo concentrador e excludente. Uma burguesia agréria, “renovada e ampliada pelas politicas de incentivos fiscais do governo militar”(Martins, 1997 viii). Nesse sentido, ¢ possivel falarmos de uma nova geragio politica no campo, gestada, a0 Tongo do proceso de modemizagao da agricultura, em especial no interior das associagSes por produto e multiproduto, dos sindicatos patronais e no cooperativismo empresarial. Sao liderangas que obviamente nio tiveram expresso politica nos anos 60 e que na conjuntura dos anos 80 tém 0 poder de aglutinar, em defesa do monopélio da terra, tanto os setores mais tradicionais que no organizam a sua atividade econdmica com base em uma pauta “racional, modema, de valores ¢ de condutas” (Martins,1986*:123), como as categorias sociais ligadas a agroindistria e as grandes cooperativas empresariais. Abrigam-se nessa nova identidade patronal os grandes proprietirios de terras e empresérios rurais; as grandes cooperativas empresariais, intimeros sefores a jusante € a montante das cadeias agroindustriais, em especial os fornecedores de insumos implementos agricolas, cafeicultores ¢ usineiros; empresas de reflorestamento, produtores de cacau e sojicultores Figuras como os Lunardelli, os Bueno Vidigal, identificados pela imprensa como “empresirios investidores com interesses agririos no sul do Paré”, os Almeida Prado, os Cerqueira César, os Toledo Pizza e os grandes pecuaristas. Estes iiltimos, historicamente considerados a expresso do atraso eda improdutividade, mas que nos 80 atualizaram 0 seu discurso e despontaram como promotores do desenvolvimento ecologicamente equilibrado ¢ da competitividade ecologica ‘empresarial. ‘Uma nova geragao politica no campo, muitas vezes moderna pela tecnologia, porém ainda atrasada na concepeao de propriedade, que reorganiza novos simbolos e praticas, ao mesmo tempo em que atualiza velhos argumentos e antigas formas de agir. Uma geragao, como diria Florestan Femandes, “portadora de processos sociais que o passado implica e particularmente empenhada em manter ¢ em renovar ou modificar para methor manter” (Femandes,1981:17), 24 E, especialmente, com base nessa nova retérica de legitimidade que as elites agriias, ‘em 1985 e nos anos subseqdentes, detiveram a iniciativa politica e a ofensiva, estabelecendo, assim, os parametros do debate sobre a reforma agriria 20 exigirem a “intocabilidade da propriedade produtiva” eo respeito “a quem esta produzindo”. Em meu trabalho, pretendo analisar como determinadas idéias, linguagens e praticas dos grandes proprietarios de terra e de seus porta-vozes tomam-se argumentos e transformam-se em libis de classe e qual o papel da imprensa nesse processo, Nesse sentido, gostaria de apreender como os grandes proprietirios de terra e seus porta-vozes interpretam, interpelam ¢ influem nos acontecimentos do periodo; entender a forma pela qual os argumentos so construidos ¢ utilizados, e ver como se da a relagdo entre elites agrarias e os demais grupos sociais e o Estado. A otica mais geral sob a qual desenvolvo o trabalho é a de que a reago patronal dos anos 80 contribuiu para a constituigdo de nova identidade patronal, que pode ser lida como um momento do processo de formagao de classes. Ou seja, envolve mediagdes, contradigbes, conflitos e transformagoes. A minha hipétese central é a idéia de que, nos anos 80, a reagio dos ‘grandes proprietarios de terra e empresirios rurais ao PNRA e as lutas por terra foi um momento por exceléncia do proceso de reprodugdo das classes e grupos dominantes no campo e de renovagao de suas condigies de exploragdo e dominagio. Poderiamos nos perguntar até que ponto é possivel pensarmos em classes. sociais. Certamente, nem todas as agdes coletivas dos grandes proprietérios expressam momentos de “construgao da classe”, mas ¢ dificil entendermos os acontecimentos de meados dos anos 80 sem © recurso a reflexdo sobre a categoria classe social. Em Marx, sobretudo em seus escritos histéricos, podem ser encontrados os suportes bisicos da nogdo de classe como processo histérico, produto de experiéncias partilhadas, das relagbes antagénicas e de seus movimentos de produgdo e de reprodugio. Marx, ao se debrugar sobre as experiéncias revolucionérias de 1848, devido, talvez, a sua grande sensibilidade ¢ preocupagtio em entender a “esséncia para além das aparéncias”, consegue exceder-se e romper seus proprios pressupostos, relativizando, assim, @ centralidade da luta de classes como explicativa ¢ definidora do conjunto dos processos sociais, ¢ nao reduzindo 0s acontecimentos as determinagdes econdmicas fundadas nas relagdes de produgao. HA, também, um outro momento, igualmente importante, de sua reflexdo sobre a divisio da sociedade ¢ sua estruturagao em classes. Na /deologia Alema, Marx no s6 opera com a nogao de classe como processo historico relacional (logo dessubstancializada ¢ contextualizada) como também desenvolve as idéias de necessidade, determinagdo e liberdade como fundamentos da concepgao de uma historia aberta que se auto-estrutura, A estrutura estabelece a necessidade da determinagao e, ao se reproduzir, a de libertagdo. Ou seja, as estraturas sio dindmicas, “e o caréter antagénico dos interesses & a base da possibilidade de transformagdo e produgio das classes” (Oliveira, 1987). Posteriormente, Thompson e¢ outros autores (Thompson,1987, Hobsbawn, 1987; Bourdieu, 1983), dialogando com o pensamento de Marx e com a teorizagao de Gramsci sobre a politica como uma dimensio essencial do movimento histérico, recuperaram a nogdo de classes sociais como processo histérico, De um modo geral, eles defendem que as dimensdes simbélicas ¢ politicas também podem ser entendidas luz da andlise sobre as classes sociais, Enquanto Bourdieu procura “pér em relagio” a objetividade da infra-estrutura e a subjetividade de suas representagdes, Thompson evidencia o peso da livre disposicao dos homens para agir numa dada situagao historica’: Por classe, entendo um fenémeno histérico, que unifica uma série de acontecimentos dispares e aparentemente desconectados, tanto na matéria-prima da experiéncia como na consciéncia. Nao vejo a classe como uma ‘estrutura’, nem ‘mesmo como uma ‘categoria’, mas como algo que ocorre afetivamente (e cuja ocorréncia pode ser demonstrada) nas relagdes humanas. (...) A classe ¢ definida pelos homens enquanto vivem sua propria historia e, ao final, esta ¢ sua tnica definigao (Thompson, 1987:9). Thompson, ao criticar a nogio de classe como uma categoria estatica (um dos tragos, segundo ele, da tradigo sociolégica), também resgata a nog de relagao ea dimensZo relacional dos processos histéricos. Segundo ele, a classe é uma relagdo historica, que “acontece” quando alguns homens “como resultado de experiéncias comuns (herdadas ou partithadas) sentem ¢ ima das criticas mais instigantes ¢ ricas ao pensamento de Thompson é a de Perry Anderson em seus artiges para a New Left Revew. Segundo 0 autor. a dificuldade fundamental da andlise de Thompson sobre as classes sociais ¢ énfase na aulo-consimucao das classes pelos individuos, em detrimento das condiges que thes so objetivamente

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