You are on page 1of 4
LOMEZ, Lule Ki CUIMIa Kyrahlaye ~ fia. 1336 © : A MISSAO FRANCESA Como € sabido, Portugal se viu colocado em posigio dificil quando o conflito entre a burguesia inglesa e a francesa chegou ao seu Apice, durante a fase napoleénica, nos comegos do século XIX. A conseqiiéncia das indecisdes polfticas de D. Joo foi a invasio de Portugal pelas tropas do general Junot ea transferéncia da m4quina administrativa lusitana para ~ © Rio de Janeiro, o que vale dizer, D. Joao (Principe-Regente em nome da mae, D, Maria, a Louca), a Famflia Real e a Corte. Aos olhos da Europa monérquica, D. Jofo preservou a Coroa portuguesa, Portugal ficou na condigao de pafs ocupado e Napolefio na condigio de usurpador, j4 que néo consegniv instalar 14 um novo monarca e nem impor uma dinastia. Em termos de Brasil, se costuma dizer que a vinda da Corte ‘“‘amadureceu” o pafs para a Independéncia. Na verdade, facilitou um tipo de emancipagéo onde a aparente ruptura se diluiu numa conciliagéo em fungao de especfficos interesses de classe. Se a nossa elite j4 néo estava animada a um enfrenta- mento com a Metrépole, temerosa por causa da escravaria — afinal, o exemplo do Haiti era recente e desagrad4vel — agora, com a presenga da Corte no Rio, menos razdo ainda teria para isso. A Corte no Rio aproximava as condigées préti- cas para uma desejada modalidade de acordo. O fim do distan- ciamento ffsico Metrépole-Colénia representou a alternativa de um compromisso polftico. A Corte no Brasil marcou o fim do monopélio comercial, © alicerce do Colonialismo. Estando Portugal ocupado pelos franceses, as mercadorias inglesas, para chegarem até a Corte, tiveram de ser vendidas diretamente no Rio de Janeiro. Além ‘disso, havia um.interesse prditico ¢ imediato dos britantcos (considerando que o comércio europeu estava yedado a Gra- Bretanha por causa do Bloqueio Continental, imposto em 1806) da classe dominante brasileira (expressa no liberalismo do Visconde de Cairu). A abertura dos portos cm 1808 foi o mais importante antecedente da Independéncia, jA que fez com que perdesse o sentido a continuidade da mfquina adminis- trativa luso-colonial, com seus mecanismos fiscalizadores ¢ repressivos. Do ponto de vista cultural, a vinda de 1D. Jofto significou a modemizagao do Rio de Janeiro, o qual era capital da Colonia desde 1763, substituindo Salvador, por decisio do Margués de Pombal. Desenvolveu-se entio uma cultura laica, mundana, cortesi e aristocratica. O aparelho burocritico portugués, intro- duzido no Brasil e copiado do Almanaque de Lisboa, pouco ajustado as nossas realidades, yeio a ser a infra-estrutura admi-~ nistrativa da emancipagdo. Entre as inovayées propiciadas pela transferéncia da Corte, poderfamos citar a Biblioteca Publica, © Arsenal Real, o Jardim Botanico, uma Escola de Medicina no Rio e outra em Salvador, o Observatério Astrondmico, o Banco do Brasil ¢ 0 Museu de Mineralogia. Em 1809, foi revogado o Alvar de 1785, que proibia o pafs de ter fbricas, mas, na pritica, essa atitude liberal nao surtiu efeito, conside- rando que era grande a dependéncia dos artigos ingleses (refor- gada com os Tratados de 1810) e restrito o mercado interno (j& que predominava 0 sistema escravista). A vinda de D. Joao ainda leyou & criagéo da Imprensa Régia (fundagiio do jomal Gazeta do Rio de Janeiro, evidentemente um jomal ‘meramente informativo ¢ inécuo). Na mesma época, circulava em Londres 0 “subversivo” O Correio Braziliense, de Hipélito José da Costa. Em suma, o Rio modemizava-se, perdendo, paulatina- mente, os acanhamentos provincianos. A Corte se divertia: touradas, cavalhadas, torneios, rodeios, teatro, saraus musicais. No restrito cfrculo de uma aristocracia parasitétia, desenvol- via-se uma brilhante cultura do écio mundano. 14 Ae AOE Gone he ee ten, Ney ees me, Em 1815, Napoledo foi exilado em Santa Helena e Lufs XVIIL instalou-se no trono francés, encarando o retomo da legilimidade em um pats sacudido por décadas de revolugio ¢ inovagdo. Houve entéo a possibilidade da retomada de rela~ gécs Portugal/Franga. Lisboa cra governada, naquela época, por uma junta bsitinica em nome de D. Jodo. No mesmo ano de J815, 0 Brasil foi clevado a Reino Unido e, em 1816, morrendo a Rainha 1). Maria I, D. Joao foi entronizado D. Jofio VI, Rei de Portugal, Brasil ¢ Algarves. Como parte de uma polftica de reaproximagio entre as duas nagées, 0 Conde da Barca teve a idéia de trazer para © Brasil uma missio artfstica francesa, visando introduzir 0 ensino art{stico académico em nosso pafs. Houve algumas difi- culdades ini porém: os artistas locais néo gostaram de ver artistas cstrangeiros mais bem remunerados e ainda existi- ram desconfiangas de fundo politico, j4 que varios deles eram ex-bonapattistas. De qualquer modo, 0 estilo que os artistas da missaéo trouxeram ao Brasil era o que estava em voga na Europa desde o fim do século XVIII ¢ fora o estilo oficial do Impétio Napolednico — 0 neoclassicismo, 0 estilo da simetria a servigo da ordem e da perenidade dos valores estabe- lecidos. Um dado importante 6 que a missdo francesa se inscreve num quadro mais amplo do que a mera circunstincia da pre- senga da Corte no Brasil. Foi, na verdade, parte de um processo de rompimento com a arte colonial barroca, mestiga ¢ autodida- to. Foi também 0 coroamento de uma nova concepgao de arte, integrada no contexto mundano-aristocritico do Rio de Janeiro dos comegos do século XIX. A servigo de interesses seculares, a arte, segunda as novas idéias trazidas pela missfo francésa, deveria ser aprendida em academias. Como jf dissemos, ela se destinou a introduzir o ensino artfstico sistematico no pafs. No plano estético-formal, tratou-se de abolir a pompa ¢ os~ ornamentos barrocos em favor de um estilo neocléssico, refina- 1 do, disciplinado, totalmente europeu. A missao irancesa LoL a base artistica e pedagégica para a muptura com as tradigdes coloniais, consideradas bizarras e “géticas”’, no caso, as escul~ turas, pinturas ¢ decoragées daqueles santeiros, considerados toscos, primitivos e incapazes de uma melhor técnica ou acaba- mento. Esse desprezo, evidentemente, envolvia um preconccito de classe: afinal, aquela concepgao artfstica aparentemente tos~ ca e rudimentar de fé percebida na arte dos séculos antcriotes, exprimindo-se num estilo barroco onde tcansparecia certa rude- za ¢ falta de apuro, na verdade, consistia numa tradugito popu- lar da religiosidade européia. Santos negros e mestigos ¢ Nossa Senhora mulata ocorre~ ram na arte brasileira do século XVIU. Todavia, nos comegos do século XIX, antes mesmo da vinda da missao francesa, os ind{cios de mudanga j4 podiam ser notados — grades de ferro de fabricacao inglesa sustitufram as antigas sacadas colo- niais e Leandro Joaquim ornamentou a Capela Real com uma Virgem branqufssima a abengoar a Famflia Real, incluindo D. Pedro e D. Miguel, com os seus anjos da guarda... O chefe da missio francesa foi Jacques Lebreton, ex-dire- tor da Academia Francesa de Belas-Artes (1760-1819). Os pintores que a formaram, foram Nicolas Antoine Taunay (1755-1830), artista sem muito flego na criatividade, mas notdvel artesio do pincel, Felix Emile Taunay (1795-1881), que seria diretor da Academia Imperial de Belas-Artes, e, mais importante que esses, Jean Baptiste Debret (1768-1848). Debret néo foi um grande mestre da arte, mas foi um étimo documentarista das paisagens e das classes sociais do Rio de Janeiro daqueles anos. Teve excelente desenho, alto poder de observagao, trago preciso e requintado e até uma sutil ironia. A associagéo com o Manuel Antdnio de Almeida, de Memérias de wn Sargento de Miltcias, parece imediata. Na mesma linha de Debret estiveram Thomas Ender ¢ o austtt Johann Moritz Rugendas (1802-58), Os escultores da mis! francesa foram Auguste Maric Taunay (1768-1824) ¢ Mare e Zeferino Ferrez. O arquiteto foi Auguste Henti Grandjean de Montigny (1776-1850). 16 Montigny foi o respons4vel por diversas obras no Rio de Janeiro: solar do Brigadeiro Oliveira Barbosa, Academia Imperial de Belas-Artes, Senado do Império, Biblioteca Impe- tial, etc. Seu estilo sc distinguiu pela austeridade, clareza, limpidez ¢ equilfbrio; utilizou colunas classicas, frontées trian- gulares, sacadas de ferro e superffcies brancas — quer dizer, uma imagem impecfvel de neoclassicismo, com absoluto pre- dom{nio da forma sobre a fungéo. Além de arquiteto oficial do Império, Montigny foi também urbanista e paisagista da capital da Monarquia. Como urbanista, buscou combinar a simetria com o senso de amplitude do espago nas ruas ¢ pragas que projetou. Como paisagista, projetou chafarizes e aconse- Jhou a construgio de grandes pragas ajardinadas e arborizadas, bem como a arborizagio de mas, visando combater os efeitos do clima tropical. Ao longo do século XIX, o estilo arquite- ténico estabelecido pelo mestre do neoclassicisino prevaleceria nao s6 no Rio de Janeiro como também em varias outras cidades brasileiras, Eventualmente, a presenga de elementos tropicais quebrou a austeridade e a simetria européia e purista dos nossos prédios neoclAssicos, valendo destacar paredes brancas recobertas com ladrilhos coloridos e ilustragdes com paisagens e motivos florais. Se & certo que os artistas da missio francesa vieram para introduzir 0 ensino académico com todas as suas regras e 0 predom{nio do aprendizado convencional sobre a criativi- dade, a expressividade emocional e o espontanefsino, é também certo que a fundagéo da Academia de Belas-Artes encontrou intmeras dificuldades prdticas na hora de sua implementagio. Uma delas foi a morte prematura do Conde da Barca, aquele que mais lutara por tal institvigéo. Outra foi a oposigio do cénsul francés Maler aos artistas da missao, devido as j citadas suspeitas de simpatias bonapartistas que existiam em relagfo aceles. A Academia de Belas-Artes, que deveria ter sido criada em 1816, s6 o foi em 1826. Seu primeiro diretor foi o pintor Hensique José da Silva (1772-1834), alids, um inimigo de Montigny. ‘A missfo francesa evidenciou que toda a produgiio arl{sti- ca valorizada pelas elites do século XIX seria a resultante do transplante europeu — © as nossas elites fatiam questio de ter uma formagao artfstico-cultural & base da importagio dos valores estrangeiros a partir das questdes de distingao de classe. Seria o modo de mostrar que nada tinham a ver com as classes inferiores, onde se disseminava a escravaria. O Brasil mon4rquico seria um Brasil inteiramente voltado para 0 litoral, imagem simbélica do desejo de se ligar 20 exterior, parecendo um pais que estaya sempre querendo ir embora, como diria Juscelino Kubitschek. Da Europa vinham os produ- tos manufaturados e para 14 iam os nossos produtos primdrios. Portanto, € facil entender que as idéias, objetos art{sticos © modos de vida 14 produzidos fossem especialmente valorizados e se torassem modelos e padrées a serem seguidos por essa sociedade colonizada. a Concluindo, a missao de 1816 sacramentou uma ideologia, a nfvel de produgio cultural, que duratie até a Semana de Arte Modema. Uma ideologia a base de um duplo rompimento — com o passado luso-colonial e com os aspectos préprios da terra e da sociedade que aqui se formara. J4 nao haveria mais aquele esforgo de sintese que marcara a arte de um Aleija- dinho ou de um Mestre Atafde, por exemplo. Oficializada a partir da vinda da Corte, a desnacionalizagéo da arte brasi- leira, ao longo do século XIX, yeio a ser purte orginica de uma dependéncia estrutural.

You might also like