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CURINGA PSICANALISE: CORPO E ACONTECIMENTO 5 9 EBP-MG 4) Scanned with CamScanner Tragos e marcas' Traces and marks Marie-Héléne Brousse Psicanalista, AME da Ecole de la Cause Freudienne. Paychoanalyst, AME of the Ecole de la Cause Freudienne. E-mail: mh-brousse(@orange fir ee RESUMO Neste texto, Marie-Hélene Brousse trabalha a diferenga entre lembranga e meméria, marca e trago, servindo-se cde duas obras literirias ede sua experiéncia pessoal Palavras-chave: Lembranca. Meméria.Trago. Marca ABSTRACT In cis text, Marie-Helene Browse discusses the difference beeen tecoleton and memory, mark and trace, using to literary works and her own personal experience. Keywords: Recollection. Memory Tace. Mark, Scanned with CamScanner IA] falta a ser, poderiamos chamé-la de outra maneira— uma fata de esquecimento, que se nos recorda nas formages do inconsciente. [...] A falta de esquecimento & a mesma coisa que a falta a ser, pois ser nada mais é do que esquecer (LACAN, 1969-1970/1992, p. 49). Este tema impés-se a mim no ano passado como consequéncia da leitura de varias obras, Uma delas tem a forma de testemunho, semelhante, subjetiva- mente, aos testemunhos dos analistas da Escola, Ela se intitula Historia de uma vida, Seu autor é Aharon Appelfeld (2005), escritor e poeta israelense cuja obra esta escrita em hebraico. O outro escritor que me levou ao saber que vou tentar elaborar com vocés esta noite ¢ Winfried Georg Sebald (2002). Nao se trata de uma autobiografia, como é 0 caso da obra de Appelfeld, mas de um romance: Austerlitz, Em uma coletanea dedicada 4 obra de Sebald, Lynne Sharon Schwartz. (2009) extrai o seu tema central: fazer uma “arqueologia da meméria”, Mas, evidentemente, honras a quem as merece, nio podemos comegar a refletir sobre a meméria sem pensar em Marcel Proust e sua madalena, iticos chamaram de “reminiscéncia”; “Levei aos labios uma colherada de eit ends debsars amcleceran pedigo, de madalena, Mas no mesmo ins- tante em que aquele gole, envolto com as migalhas do bolo, tocou 0 meu paladar, estremeci, atento ao que se passava de extraordinario em mim, In- vadira-me um prazer delicioso, isolado, sem nogio da sua causa” (PROUST, 1913/1948; p.4S): Earece que Proust nos envered na categoria do tempo. Mas seria um erro pensar assim. O titulo da sua obra destaca 0 tempo, mas se objetivo € anuli-To, AMEMORIAE A LEMBRANGA Nao é, com efeito, a partir do tempo que eu gostaria de abordar a questio da memoria e da lembranga, mas a partir dos lugares. Em 2000-2001, Jac- ques-Alain Miller enunciou: “Foi portanto, assim, que o tempo me levou ao lugar, e acrescentei ali o lago” (MILLER, 2000, ligio do dia 15/11/2000). literatura e a psicanslise permitem abordar a meméria e a lembranga afas- tando-se da gategoria do tempo. Sigamos Miller quando ele pée a trabalho “Fonz seja, a materialidade sonora sem a tirania do sentido, para entio descobrir os novos lagos que se impoem como guia. Curngn82 | Tacos emercas 25, Scanned with CamScanner Ao reler essa pequena citagio de Proust, o que é que se impde com pre, cisio absoluta? “Labios”, “gole”, “paladar”, “prazer”: sensagdes corporais, fora do sentido, fora da Tembranga. Um real do corpo, entao? Mas que corpo? Auséncia de imagem, auséncia de forma global, que, ao contrério, se apaga. Vou, entdo, abordar a meméria e 0 esquecimento deixando de lado, por mais paradoxal que isso possa parecer, a dimensGo do tempo, a fim de me guiar somente pela dimensio do trago, opondo-o a marca - todos dois reme- tendo ao lugar. MANCHAS DE MEMORIA: A MEMORIA, PROFUNDAMENTE ENRAIZADA NO CORPO Comecemos pela obra de Appelfeld. O saber contido neste livro constitui para mim um ensino inédito. No ca- pitulo 8, Appelfeld escreve: ‘A meméria, como tudo indica, tem raizes profundamente ancoradas no corpo. As vezes basta 0 cheiro da palha apodrecida ou o grito de um pissaro para me transportar para longe e para o interior [...]- Digo interior apesar de ainda nao ter encontrado palavras para ‘essasviolentas manchas de memiria...|da minha entrada na floresta nio me lembro, mas me recordo do instante em que me encontrei ali, diante de uma drvore carregada de ma- ‘gis vermelhas, Fiquei tio estupefato que dei alguns passos para tris. Meu corpo se lembra ‘melhor do que eu desses passos para tris, Todas as vezes que dou um jeito nas costas ou que ‘me movo para tris, veo a drvore e as magis (APPELFELD, 2005, p. 60-61), No capitulo 15 ele escreve: Eu digo: “Eu nio me lembro”, ¢ & a estrita verdade. © que estd gravado em mim da- yueles anos sio principalmente sensagées fisicas muito fortes ...]. Eu disse: “Eu nio me lembro” e, no entanto, lembro-me de milhares de detalhes. As vezes basta o cheiro de lum prato, a umidade dos sapatos ou um barulho repentino para me levar de volta 0 ‘mais profundo da guerra, e parece-me que ela ndo acabou (APPELFELD, 2008, p. 100). Aalguém que lhe perguntasse o que lhe aconteceu, ele responderia: “Nada “vivendo em meu mutismo”, Falta-lhe, de fato e para sempre, os nomes ¢ as datas da sua longa errancia. 26 Maro tene Browse Scanned with CamScanner Que ensino extrair desse testemunho tao preciso? Na auséncia de nomes e datas, sensagdes de corpo se inscreveram e, por nao constituirem uma n rativa, escapam da lembranga. Elas permanecem como tacos que podem so- brevir inopinadamente ao chamado de sensagdes do corpo despedacado. A meméria é, contrariamente lembranga, da ordem do real. EPIFANIA? Vejamos, agora, Sebald ¢ seu romance Austerlitz. Sebald é de lingua alema, e, embora tivesse escolhido, desde muito joven, viver na Inglaterra, ele sempre escreveu em sua lingua de origem. Em seus di- ferentes romances, ele procura apreender 0 apagamento, a destruigao € 0 vazio. Uma das caracteristicas de seus livros é que eles incluem, ao longo do texto, imagens em preto e branco, cuja importancia ndo é de ordem estética. Elas pertencem, ao contrario, ao registro das “imagens indeléveis”, segundo o titulo escolhido por Miller (1994) para uma jornada da Escola da Causa freudiana.? Nao falarei da obra contando sua intriga. Digamos somente que o autor se dedica a reconstituir, por meio de duas personagens, a trajetéria, ou seja, a historia de um homem chamado Austerlitz — crianga que chegou sozinha & Inglaterra, em um comboio humanitério, conforme a vontade da sua mie. Ela escolheu colocé-lo ao abrigo do genocidio das populagées judaicas da Europa, genocidio do qual ela mesma nao escapou. Tomarei como referéncia somente as paginas 162, 163 ¢ 164; em seguida, as p4ginas 216 e 217, e, por fim, as pa- ginas 279 e 302 da edig&o mencionada nas referéncias, visto que esse romance se desenrola sem capitulos e sem partes delimitadas. O episédio central se situa na ladies waiting room abandonada da Liverpool Street Station: Esse tipo de lembrangas que me vinham na ladies waiting room abandonada da Lirerpool Street Station, lembrangas por tras das quais ¢ nas quais se escondiam coisas ainda mais antigas, sempre imbricadas umas nas outras, proliferando exatamente como abdbadas ito. Eu labirinticas que eu acreditava distinguir na luz parda e empocirada, 20 ii tinha, na verdade, a sensagio de que a sala de espera onde eu me encontrava, comple- tamente deslumbrado, continha todas as horas do meu passado, as minhas angistias, as minhas aspirages, desde sempre reprimidas, abafadas; que, sob os meus pés, o de- senho em losangos preto ¢ branco do piso era um tabuleiro de xadrez estendido sobre Cuinga $2 Traces emarcas 97 Scanned with CamScanner toda a superficie do tempo, sobre o qual a minha vida jogava sua partida final. E talver por isso que também vi na penumbra duas pessoas de meia idade, vestidas conforme 20 estilo dos anos 1930, uma mulher com manté de gabardine leve e um chapéu colocado de viés sobre a cabeleira ¢, ao seu Jado, um senhor magro, de terno escuro com gola de pastor em volta do pescogo. Sim, ¢ no vi apenas 0 pastor ¢ sua mulher, diz Austerlitz, ‘mas também o menino que eles vieram buscar: ele estava sentado sozinho num banco, em seu canto, Suas pernas presas em meias brancas e compridas ainda nio tocavam 0 chio, ¢se nio fosse a pequena mochila que ele apertava sobre 0s joelhos, penso, diz Aus terltz, que eu nio o teria reconhecido, Mas 0 reconheci por esse detalhe, essa pequena rmochila, e pela primeira ver, desde que fui capa de ter meméria, lembrei-me de mim; nnesse instante compreendi que foi por essa sala de espera que eu devia ter chegado & Inglaterra havia mais de meio século (SEBALD, 2002, p. 190). A citagio é extremamente longa, mas como vocés constataram, encontra- mos ~ apesar de serem dois estilos muito diferentes, um totalmente conciso € outro completamente cheio de meandros — a mesma precisio visual pre- \___sente no livro de Appelfeld. Encontramos também a auséncia da lembranca * _em beneficio do trago ~ real inscrito no corpo vivo, Vocés terao observado também que ele nao fala, de forma alguma, de lembranga, mas de meméri, Finalmente, 0 que é colocado em palavras nao é da ordem do sentido, mas procede da imagem e evidencia o carter aleatbrio do real no seio da propria ‘realidade. Outro ponto comum é a importancia do objeto como identifica- trio: a maga Acida, no caso de Appelfeld, e a pequena mochila, no caso de Sebald. O objeto, forma futura, melhor dizendo, “futuro / passado anterior”, como aponta Sebald (2002, p. 279), antecipa o que ser o objeto a. As paginas 216 e 217 enquadram uma fotografia do her6i ep6nimo desse romance: “ela falava do cardter proprio dessas fotografias tiradas subitamente do esqueci- mento. Tinhamos a impressio, diz ela, que alguma coisa se mexia nelas, tinha- mos a impresséo de ouvir gemidos de desespero, como se as proprias imagens tivessem uma memoria” (SEBALD, 2002, p. 216). No verso da foto, algumas palavras escritas pelas maos do avé: “pdze riZové krdlovny” (SEBALD, 2002, p. 217). “A foto estava diante de mim, diz Austerlitz, mas eu nao ousava toci-la, As palavras pdze ritzové krdlovny turbilhonaram constantemente em minha cabega até que, de muito longe, seu sentido viesse ao meu encontro e que eu percebes- se 0 quadtro vivo da rainha das Rosas e 0 menino trazendo a cauda a0 seu lado” (SEBALD, 2002, p. 217). Uma foto, uma matéria significante, extirpada do 28 Mare Heléne Bowsse Scanned with CamScanner sentido ¢ da Jembranga, cortada de uma lingua perdida. Na pigina 271 en- ‘contramos, com efeito, o mecanismo que esta em jogo. Nao se trata de rec: quexmas de um corte que se revela definitivo: “Nao me era visivelmente de grande valia ter descoberto as fontes da minha perturbagao, nem de me ver, a mim mesmo, com grande acuidade ao longo desses anos passados, como um menino cortado, de um dia para o outro, da vida familiar” (SEBALD, 2002, p. 271). Se o trago néo se torna lembranga, a meméria permanece sob sente; se ele se torna lembranga, ela pode obedecer a falta-a-ser, € © recalque vence a clivagem. Para que esse laco entre 0 real da presenca e a poténcia da cadeia significante se produza, é preciso nomes, palavras que transformem o imagindrio em falta-a-ser. A nomeagao é exigida da lembranga; ela nao é necessaria 4 memoria, Afirmemos, portanto, que a lembranga esta ligada a marca que 0 nome € a imagem operam quando ela ¢ icone. Essas marcas assoclam-se aos tragos— sejam_ eles sonoros, tateis, visuals, internos ou externos — e, com iss0, os modiicam, (Os tragos sio produzidos pela efragio do real pulsional, quando este permanece apartado de uma nomeacio, qualquer que seja 0 dispositivo utilizado por ela. Eles constituem, portanto, 0 que cu chamo de memoria. As marcas, a0 contra- rio, implicam um sistema de triagem, de distingao. Elas produzem a diferencia- gio e requerem o binirio §,-S,, de forma que 0 sujeito seja representado por um significante 1 para um significante 2. A falta-a-ser esta, portanto, implicada na estrutura do sujeito, As marcas funcionam segundo uma estrutura, muito fre- quentemente de Torma ¢pica. Ea historia que o falasser se conta ¢ que 0 conta. ‘Sao suas Tembrangas. Se obser vamos a frase destacada por Lacan, a falta-a-ser a condigao do ‘esquecimento e, consequentemente, a matriz, da lembranga, Um dltimo ponto. Afirmei, no inicio da minha intervengio, uma dupla correlagio: da meméria com o lugar e da lembranga com 0 tempo. Penso que as citagées extraidas das duas obras apresentadas tornam essa afirmagao mais Iimpida. A meméria pertence ao corpo vivo, ela esté aqui e agora, num presente que se impie par flashes que no se podem prever, Se ela nio ¢ obra_ do recalque, como pode, entio, surgir em uma anilise? ‘A lembranga, que & ligada a estrutura e & cadcia significante, pode se desvencilhar, ao final de um trabalho de anilise, do parasitismo do sentido € do objeto causa? Pode-se, ao final de uma anilise, efetuar um enodamento inédito entre a meméria ¢ a lembranga? £ sobre esse ponto que devemos re- ceber a ligo dos analistas da Escola (AE). Cwinga 82|Tacosemarces 20 Scanned with CamScanner FICGAO / FIXAO Jacques-Alain Miller (1994) organizou um primeiro colquio sobre 0 passe, em Estrasburgo, para 0 qual ele propés 0 seguinte titulo: O passe: fato ou fic- ¢a0?. Eu fiz parte dos que intervieram, todos AE recentemente nomeados. Isso permanece em minha lembranga como um grande momento, ainda que, posteriormente, nossa comunidade tenha avangado muito. No que me diz respeito, foi um sonho que produziu um efeito conclusivo no trabalho analiti- co, conclusio que sei, hoje, ter sido provisoria, visto que depois — porque um analista nao pode cessar o trabalho analisante — outras passagens aconteceram, a mais recente durante 0 confinamento. Um sonho é um fato, isso se conta. Mas é também uma ficgao que nao deixa de ter parentesco com um delirio. O sonhador, franqueado da realidade, vé trés vias se abrirem: debilidade, delirio ou tolice [duperie]. Esse sonho me colocava diante de um impossivel concer- nindo ao corpo: a cabega rolando para um lado, o corpo para outro, impossi- vel coordenar o olhar com o movimento, a cabega com o corpo. Essa fico, que encenava a divisio subjetiva, evidenciava um impossivel que ainda velava © Um do sinthoma. A ficgao insere os tragos no Outro, transformando-os em ‘\ __mareas subjetivas que se tornam restos de gozo desconhecidos. Clotilde Leguil colocava a seguinte questo a propésito de um livro de Del- phine de Vigan: “A autoficcao pode ter caracteristicas semelhantes aos teste- munhos de passe?” (LEGUIL, 2014, p. 47). Seu artigo permite concluir que, quando a qualidade da autoficgo tem a qualidade do testemunho, sim. Mas, acrescentemos que os testemunhos de passe, durante os trés anos de exerci- cio do AE, transformam-se e seguem uma trajetoria que afasta o AE das suas ficgdes. Leguil (2014) cita, entio, Miller (2010, p. 123): “Uma psicandlise é, sem dvida, uma experiéncia que consiste em construir uma ficgao [.-.], mas, ao mesmo tempo, ou, em seguida, € taml uma experiencia qué Const im deslzer essa Togo [Na andl, a0 contro. a Hao € colocns§ prova de sua impoténcia em resolver a opacidade do real. A ficsao @ substi; tuida por uma fixdo, mesmo que essa palavra nao seja admitida na linguagem comum, Ela remete & fixidez do que Miller chamou de opacidade do real: um vazio de nomes, um vazio de enderegamento, um vazio de lago, um buraco 110 discurso. O movimento dos testemunhos de passe vai, portanto, de uma ficgdo que depura as marcas que constituem certas, ou incertas, lembrangas, TTixao operada diretamente pelos tracos do real, que nao sdo dialetizdveis, 30 ManetHétine Browse Scanned with CamScanner te é possivel pelo equivoco que faz explodir aleatoriamente as fic- esquecimento e, portanto, da lembranga. Emitamos a hipotese de que elas constituem o nucleo do sinthoma, ATENTADOS SEXUAIS Um caminho bastante longo, me dirdo vocés, para chegar ao tema das proxi- mas jornadas da ECF. Na medida em que a minha intervengio é retransmitida, nao posso falar do tratamento dos meus pacientes. Recebi alguns sujeitos que tinham sido vitimas de atentados sexuais. Tratava-se de estupros. Esses estupros tinham acontecido na infancia e na adolescéncia. Direi sobre isso somente uma coisa. Essas vitimas prestaram queixa, e os estupradores foram condenados pela justiga, As condenagdes trouxeram satisfagdo a esses sujeitos. Essa satisfagio pelo Outro da lei estava ligada ao reconhecimento e implicava uma inscrigao. De fato, esses atentados sexuais nao foram mencionados como motivos da de- manda de com os sofrimentos da vi _Profissional ou amoro: as, em certo momento do trabalho analitico, surge essa memoria do real que acarretou um trago indelével: um sem-nome, um \ siléncio, uma auséncia no Outro./, Por nao poder entrar na légica desses tratamentos, autorizei-me a trabalhar a partir da minha prépria experiéncia subjetiva nesse campo. Tive, com efeito, ja adulta, trés experiéncias de atentados que qualificarei de sexuais, pois, nelas, meu corpo foi visado e esteve imobilizado a forca, contra a minha vontade. Digamos que nenhum dos trés procede da lembranga, ou seja, do recalque. Guardo deles uma meméria muito precisa, ameméria do lugar, do seu desen- rolar e do corpo. Isso nunca se apagou. © O primeiro aconteceu na rua, perto da minha casa. Eu tinha passado parte S dante me companhia de uma grande amiga. Era inverno; eu propus a ela ir buscar 0 meu carro, estacionado bem perto, para que cla nao tivesse que andar no frio, pois ela viera me visitar com seu bebezinho. Era noite, entre meia-noite e uma hora da madrugada, Antes que eu pudesse chegar até o car- ro, um desconhecido muito alto agarrou-me, colocando uma faca em minha garganta. Ele parecia fechado em si mesmo, o olhar vazio, os olhos loucos. Comecei a falar com ele, a perguntar 0 seu nome, de onde ele vinha, sobre andas relacionavai Curinga 62 Tacos marcas 31 Scanned with CamScanner a sua familia... Ele respondeu com alguns monossilabos incompreensiveis. Eu estava sentindo que minha trégua nao duraria muito, quando um casal se aproximou. Comecei a gritar, escapando enquanto ele olhava para 0 casal; levei um soco e ele fugiu. Tremenda, fui a delegacia fazer o boletim de ocor- réncia. Responderam-me que eu fizera muito bem e que, se voltasse a ver esse homem, viesse hes dizer. Eu estava ao volante quando, de fato, o revi, sempre errante, num alheamento de si proprio. Por um quarto de segundo, perguntei-me se iria esmagé-lo. Felizmente, segui adiante. Durante alguns dias, olhei com cara feia as pessoas que me faziam lembrar dele, o que me permitiu constatar, uma vez mais, que a violéncia ¢ contagiosa e que a estru- tura a— a’ nunca esta muito Tong 2 O segundo atentado aconteceu numa plataforma de metré. Sai da cama para tomar o primeiro metré da manhi, que me levaria a estagdo de trem, para buscar minha avé. O homem que eu amava tinha ficado na cama. Eu acreditava estar sozinha na plataforma quando uma mio apoiou-se suavemen- te sobre o meu ombro. Conforme o meu desejo, pensei que o homem da mi- nha vida tinha decidido me acompanhar. Voltei-me e, péssima surpresa, vi um outro rosto, desconhecido. Furiosa com auséncia do objeto amado, protestei, dando-me conta, ao mesmo tempo, que, com a outra mio, o desconhecido segurava um revélver e que, na entrada da plataforma, um comparsa, que parecia certamente pouco perigoso, estava de pé. Mudei de tom imediata- mente e tentei fazé-lo falar de si, o que ele fez com boa vontade, dizendo-me que jamais iria preso, que era invencivel etc. Mas ele segurava firmemente 0 revélver. Quando o metré chegou, pulei para dentro do vagao no momento me. Eu nao tinha mais pernas, e isso no é em que ele dava partida, Assent: uma metéfora. Eu nao conseguia ficar de pé. 3 O terceiro atentado é 0 menos dramatico, porém é 0 mais longo. Eu estava voltando de uma viagem ¢ havia deixado meus préximos onde pass4vamos férias; tinha deixado com eles a moeda local que me restava. Entrei no trem noturno que me levaria de volta a Paris. Infelizmente, meu bilhete ainda nao estava pago. O fiscal disse-me que isso era problematico e que nés veriamos se eu teria que descer do trem, Enquanto eu aguardava, cle me instalou numa cabine vazia, 0 que nao faltava, dizendo-me que esperasse ali que irfamos resolver o problema. Sou um pouco ingénua, mas achava seus cuidados um pouco singulares, ao mesmo tempo em que eu me censurava pela minha des- confianga. Terminado o trabalho, ele voltou e ia me agarrar quando, sem que 32 Mate Helane Brousse Scanned with CamScanner cu soubesse de onde, ocorreu-me a expressio: “O seu quepe!” Interpelado, ele se deteve e eu pude passar do quepe para a fungio simbélica que ele re- presentava, Assentamo-nos e pouquissimas perguntas sobre a sua vida foram suficientes para dlesencadear uma enxurrada de palavras que durou as sete horas e meia da viagem. Foi a sessio mais longa da minha vida. Ele falou de tudo, da infancia ao casamento, de todas as suas insatisfagdes, das pequenas ¢ das grandes infelicidades de uma vida de homem, Na chegada, ele recolocou 0 quepe, com ‘© qual se identificou imediatamente, recomendando-me, com certa severidade paterna, prestar atengdo, na minha proxima viagem, em estar com o bilhete [titre de transport] necessirio e um pouco de dinheiro, Nao penso que ele tenha percebido o equivoco contido na expressio titre de transport. Nos trés casos, a sorte esteve ao meu lado. Mas nao apenas isso, A psicandlise também, pois sem a experiéncia de andlise, tanto como ana- lisante quanto como analista, nao set o que teria acontecido, Eu jamais teria essa gulodice do “dizer-se”. Provavelmente, eu teria sido incapaz de sair da captura subjetiva desses atentados contra mim. A psicanalise aposta na poténcia da palavra, cujo avesso é 0 gozo da a-pa- lavra. A andlise fornece a cada sujeito os pontos que o enlagam [capitonnent] ‘como sujeito. O deslizar sobre as palavras, ou seja, a ficcionalizagao, a irre- sistivel aspiragao ao sentido, sempre fugidio, sio, com efeito, uma passagem_ obrigatéria do sujeito pelo inconsciente decifravel: seu pais e sua familia per- didos, seu delirio megalomanfaco, seu uniforme. Que a andlise nao se limite a isso foi o que Miller demonstrou e chamou de inconsciente real. Para concluir, coloquemos esses atentados & prova da diferenca Memoria / Lembranga-esquecimento. Eu nada esqueci: nem dos lugares ¢ suas topologias, nem do desenrolar angustiante do tempo, para ganhar tempo contra as passagens ao ato, aquelas “dos agressores, mas também as minhas, ainda que Tose o grito. Tenho na me- moria a esquina daquela rua, a plataforma da estagio de metré, a topologia do corredor e do compartimento do trem. Nao ha sinal algum de recalque. Nunca esquecerei. Mais do que isso. Tenho presente, a partir do momento em que procuro transmitir isso a voots, a memoria do meu corpo, da minha auséncia de per- nas, do meu coragao que dispara. Isso nunca se apagard. Mas penso raramente nessas cenas. Isso ndo provocou nenhum sonho ruim, nenhum pesadelo. Essa Cunngn 62 Tagos emarcas 98 Scanned with CamScanner é a diferenga entre um trago do corpo e uma marca do inconsciente. O in- consciente que cifra, nao € 4 lembranga e ao esquecimento que ele remete? A memoria, tal como os escritores que evoquei a definem, é uma das manifes- tages do inconsciente real do corpo-falante. Tradugao Yolanda Vilela NOTAS ‘Texto originalmente publicado em La Cause du Désir, Creer I'élangues, n. 106, p.81-88. Gentilmente cedida pela autora para publicagio na Curinga 52. ? XXIII Journées d'Etudes de I’Ecole de la Cause freudienne, realizadas em 3 ¢ 4 de dezembro de 1994, em Paris. REFERENCIAS APPELFELD, A. Histoire d’une vie. Paris: Seuil, 2005. LACAN, J. 0 seminério, livro 17: O avesso da psicandlise. (1969-1970) Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992. LEGUIL, C. Delphine de Vigan: un Réel, couleur noire. La Cause du Désir, Paris, n. 87, juin 2014, MILLER, J.-A. La passe du parlétre. La Cause freudienne. Rerve de Psychanalyse, Paris, Navarin Seuil, n. 74, p. 113-123, jan. 2010, MILLER, J.-A. Lorientation lacanienne. Le lieu et le lien. Enseignement prononcé dans le cadre du Département de Psychanalyse de l'Université Paris VIII. Cours du 15 no- vembre 2000, Inédit. MILLER, J.-A. La Passe: fait ou fiction. La Cause freudienne. 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