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COLEGAO FILOSOFIA Para ler a fenomenotogia do espitito, Paulo Meneses, 2* ed. Vereda trdgica do grande sertdo: Veredas, Sénla M. V. Andrade Escritos de filosolia I, Henrique C. de Lima Vax |. Marx e a nalureza em O Capital, Rodrigo A. de P. Duarte, 2* ed. 5. Marxismo e liberd Henrique C. de Lima Vaz, 2" ed. po Selvaggi Conceito de religido em Hegel, Marcelo FP. de Aquino Filosotia e método no segundo Wittgenstein, Wemer Spaniol Filosofia politica, Eric Weil poético de Parménides, Marcelo P. Marques Filosofia na crise da modernidade, Manfredo A. ra, 2° ed. snrique C. de Lima Vez, 2* ed, “idéncia e verdade no sistema cartesiano, Raul L. Filho le e verdade, Marla José R. Campos . Elica e sociabilidade, Manfredo A. de Oliveira 28. Descartes e sua concepedo de homem, Jordino Marques 27. Génese da ontologia fundamental de Marlin Heidegger, Jodo A. MacDowell 28. Btiea e racionalidade moderna, Manfredo A. de Oliveira 29. Mimesis e sacionalidade, Rodrigo A. de P. Duarte 30, Trabalho e riqueza na Fenomenologia do Espirito de Hegel, José tos Henrique Franklin Leopoldo Silva Junqueira Smith, 93, Da riqueza das nagées a ciéncia das riquezas, Renalo Caporali Cordeiro 34. A liberdade esquecida, M* do Carmo Bettencourt de Faria | MARIA DO CARMO BETTENCOURT DE FARIA A LIBERDADE ESQUECIDA FuNDAMENTOos ONTOLOGICOs DA LIBERDADE NO PENSAMENTO ARISTOTELICO FILOSOFIA Colecho dvgide pela Faculdade de Fostia do Cento de Estudos siores da Companhia de Jesus ietor: Marcelo F. Aquino, SJ Co-Diretores: Henrique C. Lima Vaz, SJ ¢ Danilo Mondoni, SJ Instituto Santo Indeio Ay. Guimaraes, 2127 (Planalto) '31720-300 Belo Horizonte, MG DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGACAO NA PUBLICACAO (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Faria, Maria do Carmo Bettencourt de A liberdade esquecida : fundamentos ontolagicas da liberdade no pensamenta aristotélica / Maria do Carmo Bettencourt de Faria, — So Paulo : Loyola, 1995 — (Colegao filesofia ; 34) Bibliografia. ISBN 85-15-00079-X 1. Aristételes 2. tOteles. I. Titulo, Ill. Série, 95-3447 ia antiga 3. Liberdade 4, Ontologia I, Atis- epp-135 indices para catélogo sistematicy 1. Aristételes + Obras filosét Edigoes Loyola Rua 1822 n° 347 — tpiranga (04216-000 Sao Paulo — SP Caixa Postal 42.335 104299-970 Séo Paulo — SP WiNOD Sha va yoaLonais Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta pode ser reproduzida ou transmultida por qualquer foraia by ‘ou qualsquer meios (eletrdnico, ou mecdnieo, incluindo focépia e gravagdo) ou arquivada em qualquer sistema ‘banco de dados sem permissdo escrita da Editor, S¥NIN: ISBN: 85-15-00979-« © EDIGOES LOYOLA, Sto Paulo, Brasil, 1995 A Joao Luiz “Sem causa, nada ocorre, nada chega a existéncia; tudo deriva de uma razéo e se produz por necessidade". LEUCIPO “Assim 0 homem, livre ¢ educado, se comportaré como lei para si mesmo.” ARISTOTELES =| A QUESTAO DA LIBERDADE Com base no que foi visto até aqui, tentemos agora abordar aquele que seria 0 objetivo iltimo de nosso trabalho: perceber ‘como, a partir do contexto geral de seu pensamento, Aristételes teria pensado/ndo-pensado a liberdade como questo e problema e como, neste caso, a teria ou néo equacionado e solucionado. Como vimos na Introdugéo deste trabalho, contra tal projeto encontramos afirmacdes como a de Hegel de que é initil procurar em Aristételes um pensamento sobre a liberdade, porque esse ‘autor nao teria tematizado esta questéo nem lhe teria dedicado parte substancial de sua reflexéo', Esta visdo € confirmada por Pohlenz (op. assim como Platao, teria passado ao largo da questao da éléuthéria em vista das im- plicagdes politicas deste tema na Atenas democratica. Esse 0 motivo de o termo éléuthéria quase nao ser usado por nosso autor, Che- valier assinala que os temas da individualidade e da personalida- de nao afloram no contexto do pensamento aristotélico: por isso nao ha como aflorar a questéo da liberdade. Faltam as condigdes essenciais®. © proprio Heidegger, em “L'Essence de la Liberté Humaine”, atribui a Kant a originalidade da articulagao da liber- dade com a metaffsica, parecendo portanto ignorar que essa arti- culacdo j4 se desvelava em Aristteles. 1. Hegel, Legons d'tlistoire de ta Philosophie, Introd, Pais, Gallimard, 1976. 2, Para nosso consolo, no entanto, 3. Chevalier, La Notion du Né Paris, Alcan, 1915. No entanto, em que pese a autoridade destes autores, é dificil, para nés, acreditar que um grego daquela época, vivendo em Atenas mesmo que como metekho (weréxo), pudesse permanecer indiferente & questao da liberdade, principalmente sendo “A filosofia aparece entdo lé onde existem constituicé ‘Também seria de estranhar 0 eparecimento, com tanta freqiténcla, da questo da liberdade no pensamento helenistico, sobretudo tamente os que prosseguem pensando na linha das questées contidas na Etica a Nicémaco, se estes temas do estivessem ali pelo menos subjacentes. Gauthier, por isso, refere-se a temas da moral “aristotélica”, comuns ao estoicismo, que derivam dos textos da Etica, sem estarem af explicitados. Duas hipéteses podem nos norear: ou o pensamento posterior, sobretudo da “stoa”, teria tratado de forma explicita questées que permaneceram implicitas nos textos aristotélicos‘, ou o tema da liberdade nao teria aflorado como éléuthéria, mas a partir de outros termos e de outros conceitos. Tais termos estari distantes do modo como, preende a questéo da liberdade, 0 que explicaria 0 aparente silén- cio de Arisiételes neste campo. Torna-se entao necessario emproender aquele "passo de vol- ta’, de que nos fala Heidegger‘ e que traz a luz 0 que permane- ‘ceu como impensado na tradigdo: penetrar na forca do pensamen- to antigo, ndo a procura do que foi pensado, ‘mas em algo impensado, do qual 0 que foi pensado recebe seu ‘espaco essencial, Mas somente 0 jé pensado prepara o ainda im- pensado e sempre de modos novos se manifesta em sue superabun- dancia*, Esse “passo de volta” “aponta para o ambito que se evitou, até aqui, ea partir do qual a esséncia da verdade se torna, antes de tudo, digna de ser pensada””, 4. Hogel, op. cit, 5. A preocupacio com « Liberdade, enquanto liberdade interior, aparecers como ssucedineo da liberdade politica perdida, , ‘se transfere para o centro das preocup 6, Martin Heidegger, “Identidade ores, S. Paulo, Aba Cultural, sd. 7. bier. 166 ‘Vejamos entio se isto que, segundo tantos autores, permane- ceu como impensado em Aristételes ndo condicionou o pensamen- to da liberdade, conferindo-Ihe (ow retirando-Ihe) sua forca. Tal- vez se seguirmos os conselhos de Aubenque’, examinando a ética fa partir do contexto global de sua metafisica, seja possivel lancar ‘um pouco de luz sobre o modo como a liberdade, enquanto pen- sada ou impensada, suposta ou tematizada, aparece no contexto do pensamento aristotélico, Fazemios nossas suas palavras: “Permitam-nos entdo voltar a uma interprotagéo interna dos textos ‘aristotélices, essencialmente da Et. Nicom, e acessoriamente da E. E. e da Grande Moral, colocando, port a ‘© que constitui o seu quadro nal Jes. © reconhec {ss0, supondo-se que a excessiva especializacao os tenha impedido de estudar ao mesmo tempo a Metafisica, que acreditavam sistema- ‘ica, ¢ uma ética que, principalmente através do conceito de phrdnésis, se declara de certa forma assistemética®*. Nao podemos, de forma alguma, duvidar que, se Aristételes nao tematizou a questéo da liberdade, nem viu nela um problema para a filosofia, como tantos o afirmam, nem por isso deixou de tomé-la como fato e como pressuposto essencial. Sem isso ndo se ‘compreenderia 0 estudo de toda a ética, assim como as reflexdes Sobre a deliberacao ¢ a escolha, sobre virtudes e paixées, e sobre as relagGes entre atividade, prazer e virlude ou entre conhecimen- toe acdo. Se podemos conceder que a liberdade néo aparega como ques- tao tematizada pela filosofia, néo podemos imaginar que ela ndo seja tomada como fato concreto e pressuposto da vida real de um grego. Resta-nos entdo a tarefa de tentar perceber por que ou se ela nao o foi; em virtude de que modelo de pensamento a liber- dade, enquanto questo, permaneceu esquecida pela filosofia aris- totélica, Comecemos por um répido olhar sobre 0 modo como a liber- dade se apresenta no contexto da prdpria cultura grega. 3, Pierro Aubenque, La Prudence en Arisote, Pats, Vin, 1976, 8. idem. 167 3.1, A LIBERDADE NO CONTEXTO CULTURAL DA GRECIA Como em tantos outros pontos, Jaeger, em sua Paidéia, vem ‘em nosso auxilio, ao assinalar que a liberdade na Grécia se ex- ressa, ndo por um tinico termo, mas por trés: éléuthéria, énkratéia € finalniente autarkéia, Essa diversidade de termos aponta, por sua vez, para diferentes concepgies da liberdade, 0 que nos reve- Ja, em primeiro lugar, uma riqueza de matizes e de enfoques que nao pode ser esquecida. No podemos também deixar de lado o patriménio da poesia, principalmente da tragédia, que tematiza a questéo do destin que rege a vida do homem e, a partir da qual, transparece a questdo da liberdade. Sao intimeras as figuras mitolégicas que de uma forma ou de outra representam a necessidade, o destino cego, a sorte inevité- vel que cabe a cada um: Heimarnéme (Etyapvéj.e), Motra (Motpa), Aisa (Alea), Tyke (nxn), Adrdsteia (‘Adedsteua), Méros (Mépos), Andnke ('Avéyen) etc. Tais figuras, para os poetas, permanecem. inacessiveis @ compreensao dos homens. Nao tém explicacéo nem ‘obedecem a razSes, mas se abatem sobre os homens e os conduzem em sua cegueira"™. A {llosofia, progressivamente, substituird essa fatalidade cega pela necessidade racional (andnke ou khrén; xpi) como se vé a partir de Leucipo: “Sem causa, nada ocorre, nada tudo deriva de uma raz4o e se produz por Para iniclar nossos trabalhos, distinguimos o sentido trégico da liberdade, o sentido politico, que aparece principalmente com 0 termo: éléuthérfa, 0 sentido moral, que surge com a énkratéia socrética, e finalmente 0 conceito de autarkéia, que, segundo nos parece, traduz a forma mais elevada de liberdade a partir do contexto do pensamento aristotélico. 10. A respeito das miiliplas figuras do destino @ da fatalidade, el Junito Brando, ia Grega, Peltdpolis Vozes, 1980, 5 vols, e Manuel Rio, Estudio sobre kt Libertad Humana, Buenos Aires, Kealt Ed, 1955. Leucipo, 67B, fr. 2. D.K. S.A.L. O sentido tragico da liberdade Encontramos aqui um tema que poderia facilmente ser, por si 86, objeto de uma tese. Seré impossivel, portanto, pensar em analisd-lo no contexto de um pardgrafo. Por outro lado, também é impossivel néo aborda-lo. De fato, o tema central da tragédia parece ser 0 confronto do herdi com um destino inexordvel, ao qual ele se submete. Desta submissdo nasce sua grandeza, exatamente por ser uma submis- sio "livre". Exemplo disto pode ser facilmente encontrado n tragédias de Edipo Rei e de Edipo em Colono®. No primeiro caso, Edipo, vitima maior e inocente de um destino inexordvel, assume a culpa que ndo tem ¢ que o faz passar de Rei amado a motivo de maldigao para a cidade. Reconhecendo que sua falta contamina toda a cidade, assume livremente o exilio © se tora novamente i cidade, em vez de causa e fonte maldita de . Por isso mesmo, no momento da morte, seu lo. Muito diferente seria sua histéria se, ao invés de assumir 0 seul destino, Edipo tivesse esperado alguma pena a Ihe ser imposta pela cidade. A falta de grandeza, em tal atitude, jamais teria feito dele heréi tragico, por mais “tragica” que continuasse a ser sua hhistéria. Digna de pena, mas ndo de admiragio®, As tragédias gregas revelam, como pano de fundo, a existén- i ido necesséria quanto inacessivel em seus designios, que se abate sobre os humanos sem perguntar por clas. "Nao ha entre os mortais, um s6 que possa dizer-se livre." Ela também rege os fendmenos naturais que nunca * aparecem como tema das tragédias, mas, quando muito, como “cenério" da agéo dramética ou como manifestacao das mesmas | forcas divinas. \ Aqueles que podem se subtrair as determinagdes desta ordem | césmica, que aqui aparece sob a forma de Destino, séo exatamen- 12. Aubenque, La Prudence, 13. Arespeito da necessidade eésmica e sua relagio com a iberdad, cf. Manuel Rio, op. ct 14. Buriplds,“Hécula”, in: Teatro Griego, Esquilo, Séfocles y Euripides, Trajédias Completes, Madrid, Aguilar, 1978, 169 te 0s que “contam pouco” ou definitivamente “néo contam” para | a realizado da ordem. Séo deixados de lado, por serem incapazes de atuar como mediadores da realizacdo dos designios dos deuses. ‘Ao contzério, os herdis, os eleitos, sio os que por seu intermédio se cumpre 0 destino necessério, Sao livres em um sentido supe- rior: no por conseguir opor-se ou subtrair-se & Moira, mas, ao |contrério, conhecendo sua inexorabilidade, aceitam-na livremen- ainda quando Ihe seja adversa. E esta adversidade realga ainda ( mais a grandeza moral do hers. “Temos de sofrer: sabio 6 aquele que suporta, com a maior dignidade, o destino que Ihe foi imposto".” Buckhardt nos adverte ainda que “née lograremos facilmente um exato juizo sobre a sensibilidade gre- ga se tomarmos como critério 0 pensamento dos filésofos, cujo valor 6 de outra categoria’ (© grego, dominado pelo império da fatalidade, manifesta um sentimento de pessimismo diante da vida. Esse pessimismo se faz acompanhar pelo reconhecimento do inalienavel direito & propria ‘morte, pois a liberdade, em seu sentido mais radical, passa a ser para o homem a escolha entre a vida e a morte, exatamente por- que sabe sempre que morte se imporé inexoravelmente. Para este povo, permanentemente ameacado pelos deuses invejosos & pelo destino adverso ¢ insondavel, a Razéo e a Filosofia aparece- rao com um papel mais que relevante e essencial - elas, de certa forma, justificardo a ordenacdo do real, tornando-a menos ameaga- dora, apropriando-se dela e revelando-lhe as causas e fins, Talvez {sso nos ajude a compreender por que nao s6 Aristételes, mas diver- 08 outros autores se refiram & fungio libertadora da filosofia. A ordem e 0 equilibrio do Universo apresentam assim uma face “trégica" que, para cumprit-se, exige multas vezes o sactificio indi- vidual. Se, no entanto, por gesto de rebeldia, esta ordem “tragica” for recusada, adviréo maiores ¢ muito mais duros sofrimentos. Esta fordem supde uma medida que, se tansgredida, configura a temida yybris (0Bp.s), fonte de dores e sofrimentos. A liberdade, em seu sentido tragico, compreende, portanto e em primeiro lugar, a iden- 15, Buripides, ctado por J, Buckhardt, Hiséria de la Cultura Griege, Barcelons, Iberia, 1953. 16. Buckhavdl, op. cit, 170 lificagdo ¢ a aceitagao de uma necessidade inelutavel, que, por isso mesmo, ge apresenta como um desafio & razio, Esta, num segundo momento, dela tentaré apropriar-se para assim libertar-se da incer- la ameaca de forcas cegas e arbitrérias, de um divino que ‘com o destino humano, segundo seus préprios i "Gorgias pensava dizer algo muito inteligente quando substituiu uma palavra por outra: Fado por natureza, Moira por Physis: esta fixa a cada martal o dia do seu nascimento e 0 de sua morte”.” ‘A apropriacdo racional da ordem abriré para o homem a pos- sibilidade de prever o futuro e compreender o pasado, sendo assim capaz de adequar seu modo de ser, sua vida e suas opgoes ~ a essa ordem, incorrendo num risco minimo de sofrimento. Liberdade aqui nao se apresenta como possibilidade de esco- tha, arbitrio, forma menor da liberdade que nao apresenta proble- iséo do homem como joquete de um ele, porque regido por forcas cegas 6 impossivel escapar sem desonra e sofrimento. =~ Surge ai o paradoxo. Capaz de exercer o poder no interior da Polis, capaz de reger sua vida e a dos cidadaos no ambito de suas cidades, 0 homem nao pode, no entanto, pensar em furtar-se a ordem maior que rege néo s6 sua propria vida, mas a da Polis e de todo o Universo, Em sentido radical, a liberdade ultima se afirma como liberdade para a motte: liberdade de recusar 0 des~ tino desonroso, a vergonha, a submissio. Livre porque pode sem- pre, no final das contas, escolher a morte e, recusando a vida, recusar também o destino adverso. Manter a liberdade pode en- | tao, numa medida altima ¢ radical, significar escolher a morte. O homem é livre porque é mortal. “Nao hé sendo um meio de asse- gurar a liberdade: estar pronto para a morte," *O que importa é entdo a altitude interior do homem, Por ela, ele ‘pode preservar sua liberdade de decisao, mesmo que nao possa mudar nada no curso dos acontecimentos exteriores®,” © exemplo de Ajax é invocado para ilustrar exemplarmente & luta do homem contra o destino que o ameaca do exterior: 17. Gorgias, Apotogia de Palamedes, cit, ap. Buckhardt, op.cit. 18, Diogenes, ctado por Epitecto, itade por Hegel, ctado por Aubenque op. cit. 19, Pobilen, op. ct. 1a “Neste combate, ele pode ser esmagado fisicamente; mas isso nao significa que ele soja abandonado sem defesa ao jugo das poténcias externas", — ele pode ter a tiltima palavra: a morte. Muitas vezes, em Esquilo, a tentativa de encontrar um sentido para 0 sofrimento aponta um impulso irresistivel para a indepen- déncia e a liberdade, mesmo além de toda a medida. A transgres- sio ~ hybris - da ordem estabelecida neste impulso para a inde- pendéncia ~ “tentacao do absoluto"™ ~ se torn da tragédia, Tor io, como f universal mai Concluindo, podemos fazer nossas as pelavras de Pohlenz que to claramente interpreta este sentido trégico da liberdade: | duz a0 fatalismo ou a resignagdo, pois sabem que tém em méos, | diante do destino, uma arma que ninguém thes pode arrancar: uma \de pessoal e livre diante dos acontecimentos. O homem pode ‘permanecer fiel A sua propria natureza mesmo em presenga da mor te. (ou) Af esté sua liberdade e sua grandeza®.” 3.1.2. O sentido politico Nao podemos nos esquecer de que a propria tragédia esté as- sociada a um contexto politico, Nao foi pot acaso que a Grécia foi a terra em que se desenvolven o questionamento que coloca, frente a frente, a liberdade e a necessidade cega de um destino inelutdvel. 20, Ibidem. ‘21, Aubenque, op. cit. 22, Polen, op. ct ef. também Buckhardt, op. cit. que se refere a pelo menos lum caso conheéeido, de suieidio coletivo, quando a cicade derrotada cai sob dao- Ininio alheia. Antes a morte que a vida como escravo entre estranhos. CT. também Manuel Rio, op. cit. 172 @Biwicea Puc MINAS oouTaaENe Nao nos esquecamos de que a tragédia apresenta um importante papel ético- ioso no contexto da Polis e que o poeta desenvolve uma funcao educadora, primordial para a de, No contexto social da cidade-Estedo, 0 pensamento sobre a liberdade se apresenta a partir da experiéncia concreta da escra- viddo: 6léuthéros é, antes de mais nada, um estatuto sociopolitico que opde uma categoria ~ a dos cidadaos - a outra ~ a dos escra- vos, déulés, Na cidade grega, néo aparece apenas a submissao dos servos a um monarca institufdo pela, ou descendente da, di- vindade. No interior da prépria sociedade, o estatuto juridico dis: tingue claramente duas classes de homer € escravos, di- ferentemente relacionados com 0 poder do tatutos juridicos ¢ com os tribunais. Outro dado, que nos é trazido pela prépria realidade histérica, se acrescenta a este primeiro. Nas guerras em que se envolve, a Grécia luta, antes de tudo, pela liberdade ¢ autonomia de suas cidddes. Assim aconteceu contra a Pérsia e depois nas guerras intestinas, em que cidades se uniam em guerra contra outras para livrarem-se de uma hegemonia “Foi, som diivida, a grande experiéncia das guerras medas que deu 2 toda a nacéo um poderoso impulso e provecou a liberagao dos espiritos®." ‘A guerra contra os persas representou, portanto, muito mais que © confronto entre dois povos inimigos: estava em jogo uma oposicéo ‘muito mais profunda entre uma série de valores que se definem em ‘sua contraposigéo: Europa x Asia; Grécia x Pérsia, mas também sobretudo, liberdade x opresséo, direito x despotismo, poder da lei x poder do rei; paralisagdo de vontades livres x afirmacdo destas vontades. Oposigéo que explica a divisdo estabelecida por Anaximan- Gro do “ecuménio" em duas partes distintas: 0 oriente e 0 ocidente*, "A nogéo de liberdade implica um contraste. Homens livres nao aparecem como questdo sendo Id onde outros nao 0 sdo. A conscién- cia da liberdade s6 pode despertar pela vizinhanca de outros huma- nos privados do poder de dispor de si mesmos e submetidos a um ‘mestre ao qual serviam e que regulava suas vidas. Algumas linguas ‘néo-livre’, e j4 os gregos falavam ‘assim. Mas histori- juanto & origem das nosdes, € a existéncia de homens liberdade, de eseravos, que despertou nos outros o sen- timento de serem livres" Essa guerra entre valores ¢ formas distintas de conceber a vida produz os herdis cantados pelos poetas e esta na origem dos dramas que servirdo de tema a tantas tragédias; afirma-se assim, pelo modelo do heréi, a identidade especifica co grego, seu card- ter essencial. Podemos, a partir daf, inferir alguns dados importantes sobre a liberdade, sobre como ela foi vivenciada na experiéncia politica dos antigos gregos, antes de ser tematizada ou pensada. A defesa da liberdade implica a defesa da “Saber-se livre 6 também 0 ser de um pov constitui o seu mundo, suas lels do direito, todo 0 resto da vida." Nao ha primariamente uma oposicao e mas, ao contrdrlo, uma se sustenta sobre a out escolhida pelo conjunto dos cidaddos; leis que Ines garantem a liberdade, Lei de livres, feita por livres. Defender a lei significa portanto, no mesmo passo, defender a liberdade”. A Polis se institul, institucionalizando-se: por isso, defender as leis da cidade é defender a sua propria existéncia enquanto cida- de livre. Por sua vez, a sorte do cidadao esta intimamente vineu- lada & liberdade de sua cidade. Lembremo-nos de que 0s escra- vos, na Grécia, sio subproduto das guerras ~ guerras entre gregos ou entre gregos e bérbaros™, Defender 0 direito do cidadao a viver sob o império de suas préprias leis: auténdmia kai éléuthéria (airovowile xe #ewepua), estas duas palavias aparecem como indissocidveis no contexto da ratura e do pensamento grego/f livre nfo aquele que vive sem indmmia (&vojia) ot contra a lel - este, para Aristételes, vive como animal ou como Deus, mas nao como homem -, mas aquele 25, Pohlana, op. cit. 28, Buckhardl, op. eit 174 que vive de acordo com leis que ele mesmo elaborou, ou as quais da seu assentimento livre, £léuthéria e autonomia aparecem assim como as condigdes de possibilidade para a propria felicidade - éudaiménia ~ do cidadao na Polis, Esta face positiva nao se dissocia, no entanto, de um aspecto negativo, j4 plenamente manifesto na Atenas contempordnea de Aristételes ¢ Platéo: 0 desejo obsessivo da autonomia foi multas vezes fonte de dissensdes e, por fim, de enfraquecimento da nagao grega, que 56 sob 0 dominio estrangeiro conheceu a unidade. No momento em que desaparece ou é vencido o inimigo comum externo, explodem as lutas pela hegemonia entre as cidades gre- ‘gas, e Atenas e Esparta apenas representam, de forma mais dra- mitica, esta situacao. Ai mais uma vez, a guerra é também simbélica: estéo em Iuta dois modelos politicos - oligarquia x democracia, totalitarismo x liberdade: “Este contraste entre os dois regimes 6 o resultado de tima vontade politica consciente, mas corresponde também a uma diversidade pro- funda nas atitudes diante da vida™ Sao trés modelos de organizagao politica, so tiés modos de considerar as relagdes entre 0 cidaddo e o Estado, a partir das quais se estrutura todo pensamento de liberdade na Grécia: a monarquia persa, a democracia ateniense e a oligarquia espartana. Trés modelos, trés formas de organizacéo que oferecem amplo material & reflexao filosética. A disputa, no interior da Grécia, entre a oligarquia e a demo- cracia e, no interior das prOprias cidades, entre o partido oligarca © os democratas é, no fim das contas, fonte de enfraquecime: diante do poder absoluto e centralizado da monarquia estrangeira. Se os gregos “ndo tinham nenhum prazer em trocar a servidao sob 95 barbaros por uma serviddo sob helenos™” ¢ se lutaram deses- peradamente contra essa servidéo, fol por sua vez a obsessao da autonomia que os jogou novamente sob o jugo estrangeito, desta vez dos macedénios, que num primeiro momento aparecem reves- tidos da imagem de salvadores do caos politico estabelecido. 75 tanto, precisam preservar como valores funda: {no espaco determinado pelos limites da lei), a f presentada pela amizade miitua /philfa), fundamental para o fortalecimento da cidade) e a racionalidade, representada pela “direcéo do espirito” que toma um sentido to- talitario em Esparta ou um sentido democratico na Atenas de Péricles™. Em meio as lutas intestinas freqiientes, que jogam nao s6 ci- dade contra cidade em busca de autonomia como cidadao cor cidadao no interior da mesma cidade, a formagéo moral d viduo aparece como 0 tinico guia possivel na democracia, Nas palavras de Péricles, isto aparece de forma evidente: escola da Grécia; quanto ‘Nossa cidade é, em seu conjunto, toda a habilidade requerida" A formagao deste homem capaz de dirigit-se em qualquer situacdo s6 pode realizar-se “se conferirmos ao individuo a liberdade de desenvolver, em todos 0s sentidos, suas disposicdes e de expandir assim sua personalidade™". A liberdade 6 entéo 0 “celdo de cultura’, @ partir do qual explode o chamado milagre grego. Para Péricles como para seus contemporaneos, o Estado é 0 fato primario, no qual o homem se encontra inserido em virtude de sua prépria natureza, 6 enquanto membro da Polis, o homem verd garantida sua liberdade o com ela a possibilidade de chegar a plenitude de sua propria natureza. ‘L. A igualdade sera ponsada apenas por Platdo, © assim mesmo como igual 3.1.3, O sentido moral Ao analisar 0 conceito de liberdade com que trabalha Sécra- tes, o educador dos atenienses, Jaeger chama nossa atencéo para ‘uma significativa alteragao no vocabulério do pensamento sobre a Sécrates jé nao usa o termo éiéuthéria, tao carregado de significagdes ‘mas um novo termo: énkratéia. A ori- em Kraids (xpéros), poder, forca fisica, , maestria®. Essa ra, que tem da Moira e dos condicionamentos exteriores, mas ante as pr6- prias paixdes. E a projecdo simbélica (no interior do sujeito moral, © cidadao), da luta entre a Atenas, *perigosamente" democratica, ¢ a Espart sobre a primeira. Se, no primeiro momento, a tragédia nos apresenta 0 destino @ razéo, cujo sentido sé pode ser apreendido 0 fio de Atiadne (que prefigura simbolicamente a cléncia investigadora dos primeiros jénios), agora, a preocupacio se volta para outra direcao. A guerra entre cidades irmés, entre cidadaos de partidos dife- rentes, a livre luta de interesses divergentes no interior da Polis ja se tinham revelado como ameaca concreta de enfraquecimento da cidade. A isso se acrescenta a obra dos sofistas que, com sua dialé laboram para o questionamento de todos os valores vigentes, conduzindo por fim a um relativismo radical. A enkratés passa assim a encarnar nao sO um novo padréo ‘moral, mas uma nova forma de conceber a liberdade. © dominio, adquirido em relagdo as proprias paixdes, 6 identificado por S6- crates com jentro de uma perspectiva marcadamente intelectualista, Sécrates considera que 86 a igno- idéia, Brasilia, Ed. UnB 1986, 3 * designa aquole que tom o poder de dispor de algo, aquele que cexerce um senhorio, CI, Detinitions, Dialogues Apocryphes, Souill, Ed. Les Belles Lettres. rancia pode, no homem, justificar a escolha do mal. Ignorancia de si, de suas paixdes, de sua desordem interior. © desejo seguiria sempre a determinagio fomecida pelo co- nhecimento, que impée, a desordem, a ordem e a medida, Este conhecimento — concebido como autoconhecimento - dar ao homem que se conhece os meios de dominar as préprias pal- xbes. ideal de Péricles, a quem os individuos livres se curva- riam “livremente" ao império da lei, reconhecida como justa, jé havia, nesta época, revelado seu conteido ul6pico, O jogo de interesses partidarios ha muito tempo dominava as assemblélas ¢ inspirava as decisdes da bdulé (oui). ‘A liberdade tinha deixado de significar o império de uma lei, livremente escolhida, para transformar-se no livre jogo de forgas ‘que opunha fracos e fortes, em que os interesses de parte a parte predominam sobre os interesses da cidade™, Por isso, para Sécrates, s6 a énkratéia, enquanto dominio sobre {as paixées ¢ sobre os interesses egofstas, pode sustentar a éléuthéria da Polis. Sem a medida conferida pela primeira, a segunda se degra- da e passa a legitimar o dominio das tendéncias passionais, possibi- litando a instauragdo da desordem no interior da Polis. Para barrar a dissolugio moral que se faz legitimar, sob pre- texto de defender a éléuthéria, é necessério estender 0 sentido de liberdade, ampliando-o para outro nivel: a énkratéia, © proceso politico exterior e a reivindicacao de uma isonomia perante a lei transferem-se assim para a interioridade do sujeito moral. Trata-se agora de estabilizar o império legal do espirito ‘Com Sécrates surge de que mesino 0 tuthéros) pode ser escravo (ddulds), se nao tiver desenvolvido em si aquela que seré a condigao de qualquer outra \ virtude, a énkratéia. “Foi Socrates que fez da liberdade um problema ético, logo desenvol- vido com intensidade diferente pelas escotas socraticas (...) De par com 0 desenvolvimento do conceito de ‘dominio de si proprio’, tal ‘36, Poblens, op. city ¢ Festugitre, Liberté et Civilization chez les Gres. 178 qual 0 expusemos acima, como sendo o império da razto sobre os instintos, vai-se formando agora urn novo conceito de liberdade inte- riot. Considera-se livre o homem que representa a antitese daquele que vive escravo de seus proprios apetites”.” Esta liberdade interior ndo no entanto, indiferenca em relagao a lei exterior (posigao fica dos possibilidade de o sujeito estabelecer, de forma total noma, a lei para si mesmo, Esta ultima posigao permanecerd estranha ao pensamento grego™. A énkratéia nao exclui, antes inclui, a obediéncia as leis exteriores, embora, sem sombra de divida, em caso de choque, prevaleca a primeira. Esta diz respeito ao dominio do racional sobre o instintivo, visto como conjunto de forgas cegas que condu- zem o homem a hybris e, assim, servidao. Na Apologia platénica, fica perfeitamente claro que a lei so- erdtica imanente, inspirada pelo daimén interior, 6 superior a decisdo do tribunal, na medida em que é informada pela raciona- lidade, ao contrério da outra, inspirada em interesses pouco confesséveis, © problema af nao é, portanto, 0 confronto entre lei interior x lei exterior do Estado, mas entre @ racionalidade que ilumina Sécrates e the confere a sabedoria e os interesses e pai- xGes que movem 0s juizes e determinam neles um julgamento corrompido e uma aplicacao irracional da lei: 0 castigo do justo. 0 que se situa acima da lei ndo ¢ 0 cidadio Sécrates, doria que o inspira. O mesino tema afloraré mais a pensamento platénico como no aristotélico, pois a prépi legitima se fundada na sabedoria®, A base do conceito moral de liberdade é formada pelo processo de introjecdo da figura do Estado no interior do prdprio sujeito". Enquanto no primeiro momento a ¥éria se apresenta como indissocidvel da Polis e do ci jor dela; no segundo, o da énkratéia, essa articulagao éti- co/politica se torna possivel, gracas as faculdades intelectuais do individuo que, em Ultima andlise, 0 orientam em opcdes. E pelo conhecimento que o individuo incorpora a si a lei da Polis, jor op. cit. p. 381; ct, também Aubenque, op. cit. p. 15, Ver tambéin i, op. at 439, Cl, Met. [, 2.9804 15: ao sibio cabo enunclar a let @ nao submeter-se a ela, 40. Jeger, op. cit 179 conhece seu fundamento e a faz "sua", assim se fundem num s6 plano a liberdade da cidade e a liberdade do cidadédo. Esta ndo é um estatuto inato nem se da espontaneamente, mas age pela mediagao do intelecto e pela autodisciplina de modelo espartano, Até Sécrates néo aparece nenhuma vinculagdo entre liberda- de ~ enquanto status politico que se contrapde a escravidéo - racionalidade, Até entao, a liberdade se estribava num senso de medida - a sophrosyne (ogpoa%vn) -, numa sabedoria instintiva, consciéncia eminentemente pratica dos limites, enquanto 0 l6gds se voltava sobretuco para os problemas teéricos, envolvidos pela ‘ordem e pelo movimento da propria physis. E a partir de Sécrates ©, na sua esteira, de Platdo e Aristételes que a sdphia, enquanto saber te6rico, se apresenta revestida de uma fungéo libertadora e moral". 3.2. A POSIGAO ARISTOTELICA Pelo que foi dito, torna-se evidente que Aristoteles, ao iniciar suas reflexdes, ja encontra desenvolvida uma série de discussdes em tomo do problema da liberdade que, j4 naquela época, vinha se desdobrando em mais de um sentido. H4, portanto, todo um patriménio de pensamento diante do qual Aristételes é levado a se posiclonar, Segundo varios autores, s6 compreenderemos verdadeiramen- te a ética aristotélica, confrontando-a com toda a série de refle- xées ja levadas a efeito por seus contempordneos. E1 reconhecemos, como seus interlocutores, as escolas soi platénicos da Academia, com seu exacerbado intelectualismo; os sofistas com seu relativismo ¢ convencionalismo puro, que leva & hedonistas por um lado, e cinicas, por outro, no que se refere ao problema do prazer, do sofrimento © de sua influéncia sobre 0 comportamento humano. Em relago ao intelectualismo socrético/platénico, Gauthier nos diz: tanta assinalar que jd para Anaxagoras a contemplacio aparece da vida humana e fundamento da liberdade. Cl. 27A, pég. 29 D.K. “E certo que o objetivo, perseguido por Aristeles na sua andlise da ago, é limitar tualismo socratico @ salvaguardar a liberdade, fazendo intervi, no prineipio de nostas agées, outro elemento life. rente da razdo, pois a razdo se orienta necessariamente para o me- \gou como melhor; nao pode sendo invocar a demis- sto da prépria razio" Essa demissdo da razdo, segundo Gauthier, permanece sem explicagéo em Aristételes®, Aqui o problema da incontinéncia (akrasia, éaxpacta), um dos ‘ondutores subjacentes a questao da liberdade tratada no plano ica, Concordando com os sofistas, Aristételes considera a virtude como que adquirida por meio de um processo de ensino ¢ apren- este ensino nao se efetuard, como o pensavi Bem em si, como o pretendiam os platénicos, mas também nao é possivel concordar com os sofistas sobre a inexisténcia de qual- quer critério objetivo para o bem. Platdo esta certo sobre a luta no interior da propria alma, mas néo quanto & explicagéo sobre a origem e o fundamento dessa luta. Assim veremos, como aliés em outros temas de seu pensamento, Aristételes buscar um terceiro caminho capaz de superar a contradicao que ctia um impasse para a solugéio da questio, Para isso, especial atengéo ter de ser dada ao complicado problema das relacdes entre teoria e pratica, abordado a partir de 4Jolif, op. cit, Potilenz, op. cit, apontar na mesma diregio a0 considerarem a questao da enkratéia e da akresia como uma das questées centrais dda ética arstatélica, 43, Ndo podemos, no entanto, concordar nem eom Gauthier nem com Potlenz: a enkratéia, se merece io ¢ estudo da paite de Arstoteles, munca eixard de ser uma questio "sogunda"; um melo e nia um firm isto porque a questo do arbitrio e da escotha surge apenas em fungéo desta forma “menor” de UUberdade, constituida pela enkeatéia. $6 a autarkela poderd representar em pleni- tude a questéo da liberdade, 181 diferentes enfoques no contexto da ética. “O abismo entre a nous @ as poténcias psiquicas inferiores é intransponivel!.” Da mesma forma, a questao da intemperanga e da incontinéncia sera tratada ‘em fungao de sua importéncia para a compreenséo daquelas re- lagoes. A nocéo de prudéncia (phrénésis), que se situa a meio caminho entre teoria e pratica, entre o universal e o particular, e ‘a quesiao conexa das relacées entre paixio € desejo e conheci- mento e intelecto merecerdo especial atengio do autor, Aristételes ndo aceita a entre virlude e sabedo- sia, apresentada por Sécrates, dada por ele ao proble- ma da incontinéncia e da intemperanca. Por isso Aristételes é levado a percorrer de novo toda uma série de questdes jé consi- deradas resolvidas no ambito da Academia". © problema € especialmente delicado porque a alternativa a0 pensamento socrético parece coincidir com 0 pensamento dos sofistas, de quem alias Aristételes é levado a aproximar-se em mais de um ponto de sua ética. Aubenque assinala entéo que nosso autor vai buscar, no patriménio da sabedoria popular ¢ no resgate de valores presentes entre 0s poetas trdgicos, a inspiracao e a orientacao necessérias para a abordagem ¢ a solugdo de varias destas questées. A adesao pura ¢ simples ao pensamento dos sofistas é impen- sdvel para Arist6teles, por motivos jé sobejamente expostos no contexto deste trabalho. A afirmagio radical da liberdade do indi- viduo como liberdade do desejo e do arbitrio © a desvinculagéo da moral de qualquer fundamento objetivo ja se revelavam por essa poca como uma das mais sérias ameacas a cidade. A autonomia absoluta desta e seu isolamento mostravam-se por outro lado como uma das causas do enfraquecimento da Grécia. Além do mais, a busca da néo-contradigao, condigao primeira de toda verdade, nao permitiria que Aristételes fosse metafisico no plano teérico e sofista no plano da praxis. “44, Poblent, op. it 45. A sabedoria ndo 6 a vitude, mas uma das vistudes, embora a mats eminen- te, As chamadas vitudes éticas relacionadas antes a0 pathos que A nous, nlo sao redutivels a modos ou espécies da sabedoria. 46, Aubenque, op. cit. p23, 182 Em fungao disso, veremos aflorar uma das importantes ques- tes da reflexao ética: a questo do critério. ‘A idéia do Bem ou o Bem em si nao podem ser invocados como critério das agdes humanas, sempre contingentes ¢ mergu- Ihadas na materialidade. © bem em si jamais poderd ser tomado como objet de um bem absoluto cede lugar ao bem le que é possivel de ser alcangado pelos atos do homem (eph hemin, &' nin). Por outro lado, a altemativa de Protagoras, que elege o homem ‘como tinica medida, s6 pode ser aceita se sofrer uma importante alteragdo em seu sentido: 0 homem-medida nio é o individuo, mo- vido por suas paixdes e desejos, mas o virtuoso”. Aquele que reconhecido pela sua virtude ¢ sabedoria prética, que dirige seus ios, segundo uma “reta razdo", O homem medida sera o spduduids ronaios) (0 valoroso) ¢ 0 phrrénimés (epdimpos). Aubenque assina- entéo que Aristételes resgata um critério dos mais tradicionais e ‘enraizados na cultura grega: 0 her6i como tipo e modelo a ser toma~ do como exemplo. "Se essas palavras (6, 0 valoroso como regra e medida), fazem pon sar na antiga {6rmula de Protigoras sobre o homem medida de todas as coisas, o contexto mostra que elas {8m uma significacto totalmente Giferente, Aristételes néo da aqui lugar ao relativisme que ele, a0 ccontrério, quer superar. O que quer dizer & que todos 0s homens no ‘se equivalem e que, se nao existe mais, como para Platao, uma medida transcendente que permitiria , sobrami-nos os homens de valor que séo juizes do proprio valor Veremos que a questo do critério de moralidade seré antes determinada medida a ser observada nas emocdes, nos sentimen- tos e nas aces dos homens, Medida impossivel de ser definida de forma universal e abstrata, mas que, ao contrdrio, sé pode ser estabelecida diante da situago concreta que se apresenta. Um mesmo gesto pode ser tomado como um ato de coragem ou de temeridade, dependendo do contexto concreto da aco. Além de 47, Aristoteles, EN, 1140 5. 48. Aubonque, op. cit certa medida, j4 ndo temos 0 bem. Aquém desta mesma medida, também ndo, Mas se é impossivel chegar-se a um cédigo, se 6 impossivel determinar teoricamente a mesma medida para todes ‘05 homens, em todas as situagdes, seré o homem virtuoso, encar- naco da drihds légds (306s Néyos), quem oferecerd com seu com- portamento 0 exemplo e a medida, Tal solugdo € surpreendente num autor que, por sua concep- a0 de natureza e de finalidade, teria em mos os elementos necessérios a justificagéo de uma codificagao da moral, baseada em valores absolutos € critérios universalmente vélidos, porque fundamentados numa mesma “natureza” A esse respeito, Gauthier levanta a hipdtese de que Arist6- teles nao teria IPO necessério para voltar as questdes s, depois de ter elaborado a fase final de sua metafisica, em tariam formulados os fundamentos necessérios a uma arti- ‘eagocenn catia nies span da natin © @ MS Aubenque, a0 contrério, analisa a ética aristotélica, conside- rando-a a tinica compativel com sua metalisica, que relega ao mundo sublunar 0 império da contingéncia, com mistura de ordem © caos, de acaso e necessidade, incapaz. por isso de fornecer cri- Aérios seguros pelos quais 0 homem possa guiar-se*. ‘Ainda um terceiro ponto merece ser assinalado pela solugéo original que recebe de Aristételes, Trata-se da relagéo prazer/dor com 0 comportamento humano, uma vez que diversas escolas ci- tam-na como principal principio norteador do comportamento, Como em tantos outros pontos, Aristételes recusa-se a aceitar as opgoes existentes e, sobre estas, elabora nova concepcao. Nem ‘se deve considerar como boa a entrega aos prazeres ou consideré- -los como a finalidade procurada em cada acéo, nem se deve desenvolver no homem a insensibilidade e indiferenga aos praze- res, nem reprimi-los". A liberdade ndo estard na capacidade de libertar-se de prazer e dor, nem em entregar-se a eles. Em sua nova elaboracao da questao do prazer, veremos Aristételes per- correr trés diferentes concepgdes que tornam cada vez mais rica 49, Gauthier & Joli, ep. eit. 50. Cl. adiante no mesrno trabalho, 0 § 3.3.2. sobre o espaco da ética. SL EN. 1104 20-25 184 ‘sua reflexio sobre 0 tema: prazer ndo é s6 decorrente da satis- facdo de uma necessidade, nao é apenas preenchimento de um vazio, nem é propriamente uma atividade. O prazer é inerente & atividade e a acompanha. Ele néo poder ser visado em si mesmo, pois ¢ impossivel ser alcangado sem a mediagao da atividade da qual decorre, Assim, indissociavel da agao, ndo ha por que pensar em fugir do prazer ou negé-lo. Uma boa educagao levard, porém, ohomem a desfrutar 0 prazer com a virtude e a sofrer com o vicio. Podemos ver, portanto, que, de um lado, Aristételes recusa cada uma das concepgées existentes, a0 mesmo tempo em que Fesgata sentidos esquecidos e com eles constréi uma nova é! Se a éléuthéria recebe, de fato, apenas referé gem, por outro, a énkratéia merece um estudo bastante sara a liberdade tal como 6 possivel pensd-la: a partir de um homem que vive, age e se relaciona no mundo da contingéncia, do acaso e do acidental. A radical finitude do homem, que se encontra mergulhado na matéria e neste mundo, em que a ordem imutavel da natureza s6 serd entrevista como métd td physica, faz da autarkéia a forma de liberdade que coincide com o exercicio da plenitude humana e, portanto, com a felicidade, 3.3. UMA PALAVRA SOBRE A ETICA ARISTOTELICA ‘Temos agora em méos o instrumental necessério para passar ao exame dos textos, em que a questdo da liberdade foi tratada mais diretamente, a partir dos trés conceitos j4 aqui assinalados: a éléuthéria, a Enkratéia e a autarkéia. Pretendemos que se torne claro 0 motivo pelo qual Aristételes aparentemente evitou tratar a questdo da éléuthéria, néo $6, como indica Pohlenz*, pelas implicacées politicas que o tema provocava em fungio do momento vivido por Atenas, mas também principal- mente pelas implicagdes que advém do préprio contexto do pen- samento aristotélico. Antes disso, digamos umas poucas palavras sobre as éticas. 52, Pohlonz, op, cit, 185 Foi dada preferéncia aos textos da Btica a Nicémaco, pelos motivos que adiante se apontardo, sendo a Etica a Eudemo, citada apenas incidentalmente ou quando suas formulagdes nos parece- ram mais concisas e precisas, J4 a Grande Moral, embora tenha sido bastante utilizada no momento da elaboracao co tema, foi praticamente deixada de lado para a redagao final. As anélises de Pierre Aubenque em La Prudence, que acom- panham e decorrem daquelas levadas a efeito em Le Probléme de indicam que a ética aristotélica 6, em tudo e por tudo, det \da por sua metafisica e com ela coerente. Uma anélise dos textos éticos que néo tivesse em linha de conta 0 contexto da metafisica correria o sério risco de falsed-los ou deixé-los na in- compreensao, Contrapée-se desta forma a uma tradigéo de peso que defende, para as élicas, uma leitura auténoma, interior ao préprio texto e desligada dos pressupostos metafisicos®. Esta ltima observacdo deriva, sobretudo, da decepcéo que toma conta do leitor que nao consegue encontrar, a0 contrario do que seria de esperar, a aplicacdo, & esfera da moralidade, dos principios examinados na Metafisica. As aparentes divergéncias 3s dois textos so téo desconcertantes que parecem indicar dois" Aristételes com orientagdes, metodologias 0s distintos*. Enquanto nas obras da Metafisica ¢ da 16- ntramos um Aristételes analitico e sistemético, nas éti- cas, como na Politica, manifesta-se um autor aporético, pouco preocupado com definigdes muito exatas, @ que restaura a impor- tancia da déxa e do método dialético, situando-se algumas vezes extremamente préximo do pensamento sofista. Aparentomente e ao contrério do que afirma Aubenque, um abismo intransponivel separa estes dois campos de estudos. {& cronologia e autenticidade das éticas, 0 @ a discussdo dos especialistas (que no cabe retomar no contexto deste trabalho) jé oferecem alguns pontos de consenso, assim como contribufram para aprofundar muitas ques- tées que ainda permanecem abertas ido dese amplo debate indica, com seguranca, que ica a Nicmaco quanto a Etica a Eudemo, que teve sua autenticidade duramente contestada, séo auténticas, embora per- tencendo a fases distintas do pensamento de Aristételes. AE. E, elaborada provavelmente no . N., cuja tedagao corresponde ja @ €poca do Liceu*. Quanto a Grande Moral existem fortes indica- des, decorrentes tanto do estilo, da forma como do contetido, que apontam sua inautenticidade e levam a supor que tenha sido es- crita num periodo jé posterior morte do proprio filésofo*, _ Pelo que até aqui foi visto, constata-se nossa inclinacdo na diresao apontada por Aubengue, no sentido de enriquecer a lei- tura dos textos éticos, gragas & sua aproximagao com outros textos que tratam questdes que aparentemente nao estao ligadas direta- mente ao problema em pata, mas séo capazes de oferecer nova luz & sua compreensio. Se ndo se chega assim a uma visio sistematica ou sistematizan- te, nao se pode, por outro lado, negar a vigorosa coeréncia que atravessa 0s diversos textos da obra aristotélica e que possibilita a articulagéo procurada aqui: delinear a concepcao de liberdade quo, se nao foi claramente enunciada, pelo menos esté neles implicita, S6 por essa visio abrangente, que corre 0 risco consciente da superticialidade, sera possivel encontrar a “chave" da leitura que abre para nés a perspectiva da coeréncia aludida, Seja-nos permitido afirmar mais vez 0 quanto este trabalho Permanece tributério dos estudos de P. Aubenque, muito além das Teferéncias explicitas e exatamente pela nova luz que trazem a compreenséo de Aristételes, dentro de uma coeréncia abrangente @ nao dependente da visdo escoldstica sistematizante, que costu- ma ver em Aristételes apenas o precursor de Santo Tomas de Aquino. 58 Sore exes quests consult se Gauthier, Jager, Manson, Nuys, Ti cot © outtos, Décarie manifesta opinio dlierente ao considerat a EB. am texto tea ijron @ lomatrads que EN. Coda A EE por Vinny Paces 5, Mansion Jaeger, so conto de Schetennacher, para um a Grande ‘Moral seria a tnica onginal de Aisoleles. CL: Dacare, ope 3.3.1. O objeto da Etica © primeiro capitulo da E, N. abre-se com uma consideragao sobre a teleologia que confere sentido a todo o devir da natureza que servird portanto de pano de fundo as consideragées sobre os fins visados pelas acdes dos homens. No mesmo paso, 0 texto assinala que hé um fim, por assim dizer “final”, ao qual podem ser reduzidos todos os outros como seus intermedirios, que coincide com 0 préprio Bem: *Também se declarou com razéo que o Bem € aquilo para o qual tendem todas as coisas"”". A intengdo do estudo que se inicia & dizer em que consiste afinal esse Bem soberano, identificado por uns a riqueza, por outros ao prazer e por alguns as honras. “"Nés devemos tentar abarcar pelo menos, em suas grandes linhas, a natureza do Bem soberano e dizer de que ciéncia particular ou de que potencialidades ele relev: ‘Aristételes afirma ainda que consideraré cumprida a tarefa se chegar a esclarecer a natureza do assunto a ser tratado e, a0 mesmo tempo, assinala sua estreita vinculagdo com a Politica, da qual a Etica parece ndo ser mais que uma introducdo ou estudo preliminar. A Politica, enquanto ciéncia “mestra", serve-se das ciéncias préticas e engloba seus fins. A mesma idéia volta a aparecer na conclusdo da Etica que é, a0 mesmo tempo, a aber- tura das investigagdes propriamente ém é logo marcada a divergéncia em relagéo a concep- ao platénica de um bem em si®, O que interessa a ética néo 6.0 conhecimento tedrico ou a definicdo do bem em si ou da Idéia do Bem, mas o bem para nés (eph hemin, 9 éutv) que se da como objeto das ages concretas dos homens®. ‘ques, 1988.2. ¢ também Aubenque, La Prudence, e Capecci, Strutura e Fine. 1a Este bem no pode ser compreendido como um termo “co fersal @ univoco, que remeteria, portanto, sempre ao ‘mesmo significado, mas, tal como "ser”, é um termo que pode ser tomado em miiltiplas acepgdes®; & um termo andlogo, compreen- dendo-se aqui a analogia como analogia de proporcao, tal como tantas vezes aparece nos didlogos platénicos*, ‘0 bem em si jamais poderia ser tomado como objeto das agées humanas, por estar delas infinitamente distante. O Bem em si tem de ser pensado necessariamente como perfeito, imével e necess4- io, portanto sempre além daquilo que o homem pode almejar ou dispor como objeto de seu fazer ou de seu agir. O conhecimento de um Bem em si, inacessivel ao homem, seria aqui, no plano deste estudo, destituido de sentido. A E.E. ja nos alertava neste sentido: "Em certos casos, esté em jogo somente o conhecimento da coisa, enquanto em outros, sua aquisicio e sua prética®*". © bem aparece aqui como objeto procurado em titima instancia por todas as aces humanas e é tio diferenciado que é praticamente impossfvel estabelecer as mediagdes entre ele (compreendido como Idiéia) e os bens concretos procurados pelos homens em suas agoes", Mais uma vez, vemos aparecer aqui a preocupagao com as media- des que perpassam os diferentes textos aristotélicos, constituindo sempre um dos desafios centrais de seu pensamento. Logo adiante, neste texto, a func mediadora da ciéncia volta a ser indicada, © bem, sendo sempre diverso para cada ago, para cada arte e para cada homem, & sempre “isto em vista do que” todo o resto & feito, aquilo, em vista do qual todas as agdes se ordenam: *O bem € 0 fim, pois é em vista deste fim que realizamos todo 0 resto™", Os bens/fins sao mui hierarquia, uma ordem de "subordenacéo". Apelando para a im- possibilidade de regressio (ou progressio) ao infinito, Aristételes nos leva a admitir a necessidade de um fim tiltimo (ou primeiro), superior a todos os demais, em vista do qual todos os outros se 63, EN, 10950 25-0. 64. Ver neste mesma trabalho as roferéncias analogia, bem como os comen= trios de Tricot, Capecel, Aubenque e outros, op. cit. 65. BE. 1214a 10, 165. EN. 10970 5. LEN. apresentam, por sua vez, como fins. Fins néo em si ou por si mesmos, mas fins em vista de outro. Neste raciocinio © considerando-se 0 ambito do humano que aqui interessa, a udaiménia aparece como fim de todos os fins, © Bem soberano que engloba em si todos os outros e confere sentido a todas as ages humanas. fim apresenta uma dupla enquanto "em nente seria a pi forma que se dé como termo visado pelo movimento, pelo acontecer do ser em direcéo & sua plenitude, linico sentido de fim; pois aparece também no sentido mo 0 que, sendo outro e ndo implicado na acéo 60 fim desta, enquanto aquilo em vista do que Vale a pena realcar a passagem de Metafisica X11, em imanéncia ou transcendéncia do bem é discutida e, embora legiando o sentido transcendent gurado pelo general, destas duas dimensdes - 0 les admite uma estreita arti oxército, persegue e obtém o bem, enquanto realizagéo daquilo que hoje po- demos chamar de seu estatuto ontolégico. natural tendéncia de todas as coisas a propria realizacao, la qual sto dadas a ordem ¢ a inteligibilidade do real, aspectos particula- res como em sua globalidade, exige, em diltima instancia, um temo 0U principio Unico, ndo enquanto dele “deriva” o miltiplo, mas en- quanto ponto de ‘tensio' unificadora da multiplicidade, no sentido ‘em que o miltiplo tende a um bem que é o bem prop 6, un bem particular e néo um bem absoluto"™." Apenas, enquanto tende ao seu bem particular, cada coisa con- tribui, por forca da ordem que emana do préprio ser, para realizar, 3. Capecd, op. it, para 0 Todo, o Bem deste mesmo Todo. Bem que se realiza como equilfbrio, propor¢ao, harmonia. A tendéncia natural para a reali- zagao desta ordem se dé, como foi visto, em vista da atracao irresis- tivel que a plenitude do perfeito exerce sobre a caréncia™. A mesma estrutura teleolégica que serve para justificar 0 movimento natural do ser (seja como kin8sis, seja como énérgéia) em direcdo a plenitude se repete no plano moral, Também as agdes humanas, cada uma delas visando a seu préprio termo, persequindo sua propria finalidade, se orientam por um bem maior que compreende todos os outros como fins intermediétios: a éudaiménia. Compreender como isto se dé no plano humano, reencontrar ai ‘a mesma ordem que se espelha no mundo perfeito das esferas ce- lestes, perceber 0 que ¢, afinal de contas, essa éudaiménia e por que ela 6 concebida de formas tdo diversas, encontrar-lhe as causas fun- damentais, decompé-la em seus elementos constitutives pondo a nu sua estrutura, aparece entéo como 0 objeto proprio desta ciéncia ‘que, no final da E.N., é considerada como parte integrante de uma “filosofia das coisas humanas" (péri ta andrépina phitdséphia, wept 8 daBpémwe giosogia).”” Depois de desenvolver todo este raciocinio, Aristoteles assina- Ja a possibilidade de se tomar outro ponte de partida, chegar a visio mais correta do que seja esta éudaimor Seuflcancla (auarkéla) qua aparece tameém como tntangho final de nossas acées, pois torna nossa vida mais digna de ser vivida e mais livre. *Podemos nos dar conta, ainda que partindo da nogéo de auto-suli- ciéneia, chegamos & mesma conclusio, © bem perfeito, com parece ser auto-suficiente”." uficiéncia que néo deve ser interpretada no atual /idualista, mas no sentido mais tradicional da autérkéia, em sua dimensao comunitaria. dade. 71. ENN, 1097 7-10, 191 Examinando as opinides comuns sobre a udaiménia, de for- ma a destacar-lhe o sentido mais préprio, veremos que ela coin- cide com a aularkéia, que, por sua vez, é alcangada pelo sabio virtuoso, Os bens exteriores (honra, riqueza e poder) se acrescen- submetida aos azares da sorte. Assim as atividades mais duréveis e exercidas de forma mais continua sao vistas como superiores”. rigor que apresentam as ivas, como adverte 0 préprio Aristételes. Deveré tomar, como ponto de partida, nao uma verdade evidente e necesséria, mas as opinides comuns, 0 atrim6nio cultural, o testemunho dos poetas, os costumes do povo, enfim, todo o imenso patriménio que pertence ao émbito da déxa, Esse material serviré a reflexao do {ilésofo e, depurado pela dia- Iética, permitira a construgéo das ciéncias préticas. \GA0 essencial decorre da prépria natureza do objeto etido as acdes e intengdes humanas e, por isso mesmo, contingent 3.3.2. © espago da ética: espaco da liberdade A forma pura e a pura matéria existem necessariamente desde toda a eternidade, Entre as duas se move o mundo”,” E neste espaco que se move 0 pensamento aristotélico, Tem em vista, portanto, o “bem propriamente humano”, aquele que esté efeti- vamente ao aleance de agdes cos homens concretos, a éudaimdnia. % 74. O que aqui s0 apresenta sobre a ética pode igualmente sor aplicado & Politica, pois ambas ara Aristteles, parte de um mesmo trabalho, 75. Chevalier, op. 192 A éudaiménia é conquistada por meio de uma autarkéia, A suficiéncia é assim a forma mais perfeita de felicidade a que mem pode aleancar, quebrando ¢ ultrapassando seus préprios mites por participar do divino. Por outro lado, é evidente que este bem ao alcance do homem. tem de Ihe ser proporcional: esté limitado a sua radical finitude, enquanto mortal, composto. Sujeito a tantas vicissitudes advindas de sua materialidade, que sua natureza pode ser dita “escrava sob tantos aspectos”, O espago que se oferece a investigagao da ética é, portanto, 0 espaco do humano: o espaco delimitado por esse mundo sublunar, , a ordem se degrada em desordem, indeter- Eo lugar do embate entre necessidade e contingéncia; 0 lugar da tensao entre matéria caética e forma ordenadora, da perma- nente ameaca de desordem e desarticulacdo que pesa sobre a frdgil ordem que aqui consegue instaurar-se. E 0 lugar do tempo, que tanto constréi como destréi, mas também o espago da acéo, do fazer, da arte e da deliberagao humana, Aubenque caracteriza melhor este espaco como o do distan- ciamento e da separagao e, por isso mesmo, o da mediagao. Distanciamento do fim, do termo, da plenitude visada. Distan- ciamento introduzido pela falta, privagéo e a imperfeicéo que ten- ta sempre, inutilmente, superar-se, Mas é iqualmente 0 espaco em que a busca desta superacéo é renovada incansavelmente. ico em Aristételes ¢, portanto, residual, mas num sentido , no sentido em que é a distincia sempre reduzida, mas ‘nunca suprimida, que separa o homem da felicidade ou mesmo a Felicidade do homem, desta felicidade pura e simples, que faz com que os homens possam muito bem ser felizes, mas, apenas, ‘como os homens podem sé-Io"." (© mundo sublunar, por ocupar o centro do sistema, portanto, © ponto mais afastado da atracao do motor primeiro, é 0 lugar que a ordem necesséria se degrada na contingéncia ¢ se deixa permear Ver a respeito 0 estudo sobre a questio do Ser na segunda parte deste trabalho. ‘77 EN, 11014 20 @ reflextos de Aubenque, La Prudence, a rospeito lo acaso, Nao por uma “auséncia de lei”, mas pela "disténcia ima se quisermos, mas impossivel de ser inteiramente preenchi- que separa a lel, que é geral, de sua realizacao no particular", iamento que atinge o préprio dmago do ser entre o que ele 6 efetivamente e “o que ele era para set", de tal forma que nele sempre se insere 0 "quase nao ser” da poténcia (dynamis): 0 que ainda nao é e pode ou nao vir a ser. A experiéncia da contingéncia, com a qual Aristételes se “cho- ca", revela ao fil6sofo todo 0 afastamento de um saber que busca se resolver na plena posse de seut objeto, numa pura transparén- cia, na plena identidade manifesta e enunciada, mas que, na rea- lidade, $6 se torna possivel muito além do plano meramente hu- mano, no plano divino, permanecendo sempre para o homem um saber procurado. Platéo, mais que qualquer outro, refletiu sobre esta distancia inlransponivel entre 0 mundo das sombras, a0 qual deve renun- Gar toda ciéncia, e o mundo das esséncias puras e perfeitas, Essa dicotomia lanca para Aristételes 0 desafio da superagio. Desafio {que se mostra nos diversos planos (Iégico, qnosiolégica, ontolégico ou ético) e que exige sempre a necessidade imperiosa da mediacéo, Se a forma, didos, esté na raiz da nogao, ldgés, devemos lem- brar-nos de que este iiltimo termo tem em grego também o sen- lido de proporcéo, tanto quanto de lei. Implica, ainda que de for- ma implicite, na medida e no limite (peras, népas), duias nogdes que aparecem com tanta freqiiéncia no decorrer da ética. Se no plano da metafisica e da légica 0 Jdgds se deixa mani- festar por uma definicdo rigorosa, neste plano, as agdes morals s6 se deixam aprender de modo pouco definido, como uma medida dificil de ser determinada “a priori” e, universalmente. Vemos com isso Aristételes aprovei fundamental da tradigéo grega - a hybris e, portanto, desmesura ¢ transgressio dos que se instala no € procura, a partir dele, a possibilidade (sempre utdpica) de sua 78, Aubenque, op. ci. p. 85, 194 superagio pela mediagao perfeita”: distancia entre o composto € sua unidade; entre a ordem e sua efetivacao no concreto; entre 0 mundo sublunar e 0 motor imével; entre o multiplo e a unidade primordial, para sempre perdida. “Entregue unicamente &s proprias forcas por um Deus muito distan- te, que é suficientemente visivel para ser desejado, mas que se mantém. muito & disténcia para poder ser possuido, 0 homein esté, na regido do mundo em que habita, as voltas com um acaso que ndo conseque dominar inteiramente®." Aristételes tenta, de todos os modos, construir uma metatisica da contingéncia, que, langando-se para muito além dela, encontra-Ihe © sentido e a ordenacao necesséria, mas subjacente, Ordem que sé se revela em plenitude nas esferas superiores do ser e que, aqui no mundo sublunar, s6 pode ser conhecida pela antecipagdo da pleni- tude, empreendida pelo pensamento, Ordem que, mesmo contra sua intengao declarada, permanece como pano de fundo para as refle- x6es sobre a aco dos homens e a felicidade que esta ao seu alcance. 3.3.3. A metodologia da Btica Aristételes, no texto da Etica a Nicdmaco, resgata a validade do método dialético em funcao do préprio objeto a ser conhecido, Em termos de Etica como de Politica, temos de partir de opiniées ‘comuns (déxq), para submeté-las ao processo dialético e assim chegar a algumas idéias mais gerais ¢ a alguns conceitos e prin- cfpios fundamentals. Portanto, 0 caminho a seguir é 0 inverso daquele usado no campo das ciéncias tedricas, que tem como objetivo o necessério. Se nao é 0 método melhor, € 0 possivel. "E teremos preenchido de forma sali ta a nossa tarefa se dermos assunto que tratamos. Pois respeito 8 sua metodologia. #2. EN, ‘A falta de rigor nos conceitos e questées éticas e a impossibi- lidade de estabelecer a verdade com toda seguranga nao se de- vem a uma auséncia de fundamento na natureza das coisas, nem a uma pura convencionalidade constitutiva de seus objetivos, 0 que 0s tornaria relativos a cada agrupamento humano e suas normas. Ao contratio, 6 a propria natureza do objeto que determina o grau de rigor que 6 possivel alcangar no conhecimento a seu respeit. “Pois € préprie do homem culto nao procurar o rigor, para cada género de ser, senéo na medida em que 4 natureza do objeto o admite®." Isso torna-se mais claro & medida que o objetivo thtimo da Btica como da Politica ndo é o puro conhecimento, mas a agao. Seu objeto ¢ o proprio produto desta agao e das intengdes que a move. De um lado, portanto, e isso se confirma nos diversos textos exami- nados, 0 objeto da ética encontra 0 seu fundamento ¢ seu principio no homem, em suas agdes e intengbes. De outro lado, essa agéo humana (por sua vez baseada na natureza humana) se desenvolve no espaco da contingéncia, da imperfeicdo e do acaso, no mundo sublunar em que as formas lutam por apropriar-se da matéria, sem nunca consegui-lo de forma acabada e perfeita, Ao contrério do que pensara Sécrates, 0 conhecimento ea aco aparecem como instancias definitivamente distintas: nao basta conhecer para agir; e podiemos agit sem claro conhecimento do objeto, suas causas e seus fins (claro esté que, neste iiltimo caso, as chances de fracasso aumentam consideravelmente). Na agao intervém 0 desejo, a deliberagao, a paixao e nao apenas 0 conhe- fo, € menos ainda o conhecimento puramente teérico™, Im- também a experiéncia acumulada, 0 habito desenvolvido © tempo necessérrio a isto", Para que a tazéo possa efelivamente determinar a prética, & preciso impedir que esta ultima seja domi- nada pela paixao, para que se mantenha o espaco para a escolha racional. Por outro lado a paixdo intervém como motor da agéo quando hé uma demissdo ou omisséo da propria razdo. No entanto, o rigor tedrico impossivel de ser alcancado ja néo terd tanta importancia: Tider, BEB ge thier, 6 IN. 1008a 25. "E suficiente, em alguns casos, que 0 f como, por exemplo, no que conceme primeiro lugar e ¢ um ponto de partid Ao carpinteiro ndo 6 necessério 0 mesmo nivel de conheci- mento e rigor que aos gedmetras no que diz respeito aos angulos retos, Aqui o que importa é ndo perder-se em detalhes ou em (érarywyi) que parte do fato para chegar ao principio subjacente - mas uma indugéo calcada a experiéneia, no hébito, na sensagéo. Escolher 9 melhor ponto -se assim uma questao fundamental e, para ilustra- nga mao de um ditado: "o comego é mais que a + @ isto porque: “Com um prinefpio verdadeiro todos os dados factuais se harmoni- zam, enquanto, com um principio falso, a realidade se pde rapida- mente em desacorco™. £ evidente entdo que a tarefa a que se propde Aristételes é, apesar das aparéncias, diversa da proposta sofistica, Se ha de partir de opinides comuns, se 0 processo analitico é aqui invidvel @ a dedugao de pouca ajuda, por outro lado, 0 processo dialético nao se esgota simplesmente no puro exercicio nem tem uma fun- ao voltada apenas para o convencimento dos espiritos © para a imposigao de determinadas convengées: deve snos 4 descoberta dos principios subjacente: gibilidade aos dados puramente factuais. "E seguramente um paradoxo insustentdvel querer fazer de toda a Etica um exercicio de dialética™,” possivel distinguir a verdade do erro, a virtude do chegar-se no campo da ética a uma verdade que nao deve ser entendida como uma forma de adequacdo do pen- samento as coisas, mas como a descoberta dos grandes principios ais a agdo deveré adequar-se. Se ndo é possivel percorrer ‘90, Gauthier, op. elt. 197

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