You are on page 1of 44
VI Imaginar o real! alguers qua .afaé-loem vogalt, para um eventual owvint apropriar-sedela por inter a.m ssa matéia ele coma 0 fo se assemelba ao sopro dear que avi W. Benjamin’ Imitagio e universalidade ‘A nova Helofer quee 20 mesmo tempo proper 20 leitora imagem de outro nelhor no mundo real que cerca. Como nsini-lo a instalar~ mundo ¢ 7 Os segmentos “Imitagio ¢ universalidade”, "Para quem escreveros?” €“Os limites do moralismo ou © engajamento do sonho", deste capitulo, foram publicados como "Romance, morale politica no Séeulo das Luzes: 0 caso de Rousseau”, na i130, 2.17, Si0 Paulo, L988, p.57-74: (WN: O. revista Di 2 Benjamin, “Le narraceur: Réflesions sur oeuvre de Nicolas Leskov", in: Onwes, Il; Poésie et Révolucion, p.159. Imaginar o real pode uma fico receber assim um valor prétio ou moral? Responder a essa pergunta significa determinar o estilo da “imitagio romanesca” segundo Rousseau, esclarecer o estatuto ambiguo que, em A nova Helofsa, €assumido por aquilo que poderiamos denominar “o enunciado de ficgio”, revelar a curiosa tensio que o liga, por assim dizer, distancia, a0 mundo da realidade. Nio se trata de reencontrar ¢ de confirmar, a propésito de Rousseau, uma teoria geral qualquer, pré-fabricada, da imaginacio e da literatura, mas de revelar, ao contrério, sua profunda originalidade, até mesmo no momen- Co em que retoma a teoria classica da arte como imitagao, © “platonismo’ da Nova Heloisa, com efeito, nio reside apenas no conceddo da “verdadeira filosofia dos amantes”, ou na dialética que conduz da pulsio erética a0 império da virtude, inscrita na hist6ria de Julie; esse platonismo esté tam: bém presente no dislogo do "Segundo Preficio”, acrescentado ao romance, mesmo quando o platonismo sofre af uma profunda transformagio. Curioso preficio, esse dislogo, que comega por embaralhar as pistas e, tratando do problema da imitagio, comesa por declarar desimportante a oposigio entre ficgIo e realidade. “Meu julgamento [diz N., 0 suposto interlocutor ce Rousseau no dislogo] depende da resposta que ireis me dar, Essa cortespondéncia é real ou é uma ficgi0?” Nem sim, nem nfo, a respos- ta de Rousseau € uma recusa da questo que the € enderecada: “Para dizer se um livro € bom ou mau, que importa saber como foi feito?”.* Deixemos de lado a questao, aqui implicita, da autoria do romance, para voltarmos nossa atengio exclusivamente para o problema da fratura que separa o real do ficticio. A recusa de Rousseau no passa, na realidade, de uma manobra estratégica, pois pretende, essencialmente, lancar luz sobre os pressutpostos do interlocutor, isto é do maw k or, cuja ética torna impossivel, desde 0 inicio, o acesso a “verdade” da Nova Helotsa A recusa da primeira pergunta € motivada pela necessidade de levantar um problema prévio, concernente & possivel universalidade da imitagGo. Para 0 interlocutor de Rousseau, a diferenga entre realidade decisiva no que concerne & aspitagfo 3 universalidade 3 OG I, Juli ow La Nowvlle Héleite, Seconde Préface, pl [eds bras 4 Ibid. 208 ea de Rowseau Um retrato — diz ele — tem sempre seu valor, desde que tenha semelhan- «a, por mais estranho que seja 0 original. Mas, num quadro da imaginasio, toda figura humana deve ter os tragas comuns a0 homem, ou o quadro no vale nada. E supondo-se que ambos sio bons, resta ainda a diferenga de que 6 retrato interessa a poucas pessoas, s6 0 quadro pode agradar ao pablico © quadro, obra de imaginacio, nio se detém no contingente e se dirige imediatamente aos teagos universais; ignora as diferengas que separam es omens e pensa poder atingir, de um s6 golpe, 0 perfil universal do Home. A imaginagio opde-se, nese sentido, a passividade da sensagio e da percep- gio, e antecipa a espontaneidade da razao: o quadro € obra de imaginagio, porque ultrapassa o sensivel e o contingente na diregio da esséncia e do Mas, e aqui temos outra face da oposigao esbogada, a universalidade do objeto do quadro assegura-the também um pitblico universal, dando-the priotidade sobre o retrato no plano do interesse ou de seu consumo virtual. O interesse do leitor tem os limite: de sua capacidade de idencificagto: espelho do objeto imitado, a obra também se dé como espelho onde o leitor pode reconhecer sta prépria fisionomia —o milagre do quadro consiste jus- tamente nessa passagem continua do pripri ao comma e do comune a0 préprio. to, como 0 quadro, para um pablico, © retrato s6 pode, ao contririo, despertar um interesse local; jé que sua verdade se limita 3 sua fidelidade e jag 20 singular, ele pode, no maximo, ser objeto de curisidade, Tomada entre os polos do quadro e do retrato, ou na perspectiva do interlocutor de Rousseau, que s6 vé na “diferenga” o lugar do inessencial, a Nova Heloisa ve proibida qualquer abercura ao pablico: essas cartas sio ou um mau quadro, ou um simples retrato, o que lhe conferiviaalgum interes- se, Donde a exclamagio do interlocutor: “Oht Se ela tivesse existido! Nesse caso, 1a poderia despertar acuriosidade do piiblico, mas é evidence que “€ apenas uma ficgio”.’ Demonstrar o interesse da Nova Heloisa ~ pois “5 Ibid 6 Ibid. p.12 [ed. bras: p25 7 Ibid Imaginar real este € um dos alvos do preficio — implica, portanto, um remanejamento das categorias que fundam 0 jufzo do interlocutor. B. Guyon sublinha fato de que o preficio é mais do que uma apologia do livro e consiste numa ‘meditagio sobre as trés grandes nogaes de interesse, verdad e moralidade ‘Mas essa meditagio parece-nos encaminhat-se numa direcio diferente da sugerida por B. Guyon, que afirma: “seu cardver mais evidence — ¢ tam }bém o mais surpreendente num escritor geralmente considerado o ‘pai do romantismo’~€ a fidelidade irrestrita aos preceitos da estética clissica”? Certo~nada mais distante do romantismo do que a “estética” exposta no tundo preficio, ¢ sua leitura é um instrumento precioso na destruigio de muitas ilusses retrospectivas. Mas a critica da ideia de universalidade esbosada nesse texto, bem como a teoria do interesse que ela implica, nio podem, a nosso ver, ser interpretadas como signo de uma fidelidade “ir restrita” as normas da teoria clissica das Belas-Letras. Com esse Ditlogo, © principio da universalidade do Belo nao é mais uma evidéncia da Razio, © a perspectiva “etnolégica” de Rousseau traz 4 superficie o “etnoc trismo” encoberto pela decisio de reabsorver a diversidade dos gostos numa universalidade racional — sobretudo quando essa universalidade brilha, mais que em qualquer outro lugat, no hie et nunc daquele que assim O principio sobre 0 qual se apoia o interlocutor de Rousseau, para por em diivida o interesse da Nova Heloise, & exatamente aquele expresso por Nicole Se queremos, portanto, evitar esse embarago de decisses equivoeas,é pre- ciso recorrer 8 luz da raz, Ela € simples ecerta,¢€ por sew intermédio que Podemos encontrar a verdadeira beleza natueal...Uma das principais vantagens dda verdadeita beleza é que ela nao é nem varidvel, nem passageira, mas cons- ante, certa e a0 gosto de todos os tempos. 8 OCT, “Introduction” de Guyon, p-LXIIL 9 Ibid 10 Nicole, Toa dela vrai e de ls fsce wenté [1660], apud Bray, La Formation del A etérca de Rowssea em fixista da razio que permite a N. mobilizar as ideias ritica do romance, e que projeta ado da linha, para o dominio da de natureza ¢ de humanidade em enero | eririo para o outro da monstruosidade. Mas é justamente essa linha Joucura, do artificio ¢ Jemética pelo trabalho do dislogo, onde de separagio que é tornada probl todo caso Rousseau desenha uma linha mais sinuosa ou menos nitida (¢ cla que articula os dominios alternos da surge e da cultura, A partic dese momento, a oposicio entre o universal eo particular, entce o efémer0 € o permanente, torna-se menos evidente perta vossa curiosidade, R. Eu poderia.. Nao, percebo o meandro que que ponto os homens diferem Por que vos decidis dessa mancira? Sabeis a uuns dos outcos, quanto os caracteres se opdem? Quanto variam os costumes, ado os tempos, os lugares ¢ as idades? Quem ousa pres- os precor crever limites precisos 3 natuteza e dizer: eis até onde pode ir © homem, ¢ 20 império da tazio nio &a genialidade da subjeti- © que se opde aqui vidade ou da imaginagio. Aqui também, como na critica da gramética no n das linguas, € ainda a multiplicidade das humanidades Ensaio sobre a locais que desarticula a ilusio monista do racionalismo. © que escapa a0 interlocutor é sempre o principio exposto no referide Ensaio: homens, é preciso tomé-las em todas as Para bem apreciar as ages dos Luas relagdes [dans tous les rappors], ¢ € isso que jamais nos ensinam a fazes locamos no lugar dos outros, é sempre como se nés f6 Quando nos col modificados, nio como se eles devessem sé-lo, € quando pensamos julgi-los segundo a razio, apenas comparamos seus preconceitos com 05 108808, teridade, a ideia de interesse muda de centro Pela operagao da ideia rosto, no 6 que tenhamos de gravidade: se 0 espelho nos devolve nosso TOT ta Nw ty, Ssonde Price, p12 [od brs: 7.26) ox p40) ed brass p46] 12 OCME Imaginar veal atingido o universal; apenas encontramos a confirmagio tranquilizadora de nossos preconceitos, Mas com a mudanga do conceito de inceresse, é a ideia de piblico, e€ ento no problemética (se ignorarmos a psicolagia da persuasio, cal ‘omo ela aparece, por exemplo, em Pascal), que deve ser retomada em seu fundamento, Para quem escrevemos Para ser fiel, o quadro da natureza humana deve, portance, tum acesso imediato a0 universal: assim como 0 Ensaio sobre a insistia sobre a obliquidade da linguagem imitativa e liberava a “linguéstica’ do paradigma gramtico-pictérico, Rousseau sugere, aqui, que a imitagio romanesca também nfo pode ser direta, que deve “musicalizar”, por assim dizer, 0 “quadro” da natureza humana. O procedimento imitative nto consiste numa dissolugio dos tracos particulates, como pré-requisito da revelagio” do perfil invarisvel do homem, como um espelho inocente on. todos pudessem reconhecer-se. Subversive, © proceso imicat de ordem arqueolégica e, revelando uma nacureza recoberta pela historia, pe em questio a prépria identidade do leitor, com 0 abismo que abre entre © homem da natureza ¢ o homem do homem, Ele s6 pode, portanto, ser chocante e dépaysant para o puiblico comum da literatura romanesca: como abre uma janela para um albures ¢ oferece 0 outro como modelo, contratia todas as antecipagies do leitor: A mudanga do estatuto do modelo e 0 deslocamento do lugar do uni- versal sfo assim necessariamente acompanhados por uma transformagio da relagio com 0 pablico: ao contrario da tendéncia dominante da literatura da época das “Luzes", 0 romance de Rousseau nio se apresenta “como negatividade universal”, para empregar a expressio e a ideia de Sartre. Lembremos aqui a caracterizagio que Sartre faz da literatura das Luzes, em Que éa literatura? © que o escritor do século XVIII reivindica incansavelmente, em suas obras, €0 diteito de exercer, contra a hist6ria, uma razio anti-histériea, e se li- 22 dla liceracuea abseraca, mia, nesse sentido, a mani | Ble nio cuida de ao contritio, © apelo urgente que dirige a seu piblico burgués é um convite 1 seus leitores «ma consciéncia mais clar para que esquesa humilhacies, preconceitos e remores, eo que dirige a sew pablico nobre é uma solicitacio de que se despoje do orgulho de castae de seus privilégios. Como ele se cornou universal, s6 pode ter leicores universais, € 0 que exige da liberdade de seus contemporineos & que rompam seus lagos } Numa diregao exatamente inversa, a leitura do preficio dialogado nos ‘mostra como 0 romance escolhe seus leitores, como ele dispe, em volta de si mesmo ou em seu interior, codo um sistema de barreiras, como ele ho impassivel ou de um lugar nunca se apre ddade de um esp inocente de encontro piblico. Como Clarens, esse espaco protegido de todo comércio com o exterior, A nova Heloisa s6 se abse para uma eitor — 0 solitario, particular de i leitores, seja no plano da Iingua, seja naquele da escritaliterdtia, Nos dois eguimos antes operagées paralelas a essa disjungio do mundo dos «casos citados, tracava-se de mostrar uma profunda diferenga de qualidad escondida por uma aparente continuidade quancitativa: 1) a diferenga entre a linguagem “forte” e a linguagem da simples representagio, diferenca ig- norada pela teoria genéticc amatical, que assegura a continuidade entre © gesto e a fala, ambos subsumidos pelo conceit mais geral de signo a diferenga entre a produgio especializada das Belas-Letras como “oficio universal” e a produgio descontinua e aleatéria dos habitantes do “outro mundo", diferenga seguramente ignorada pelos Filésofos, que jé aparecem ialistas do universal”. Trata-s como “esp agora de mostrar, na massa ato- mizada ¢ aparentemente homogénea dos leitores, a fronteira subterrinea que separa duas categorias de leitores qualitativamente inconfundiveis. 2 espécie de “estilistica” da leitura é o ponto culminante de uma dialética, cujo ponto de partida est dado por uma estilistica no sentido pe1SO-T [ed. bras Que é bea Imaginar 0 real, préprio da palavra. E, com efeito, o exame da linguagem da que permite a N. julgar sew efeito possivel sobte 0 public Um homem que vive na sociedade nfo pode habituar-se is idcias extrava- antes, 20 pathos afetado, As divagagdes conténuas de vossa gente simpléia, Um solitério pode aprecis-los, como vés mesmo explicastes. Mas, antes de publicar esse manuscrito, considere que o piiblico nfo é composto de eremitas ‘© melhor que poderia ocorrer seria que tomassem vosso ingénuo herd por um Céladon, vosso Edouard por um Dom Quixote, vossas loquazes amigas por dduas Aseréias, ¢ que se divertissem com eles como se se tratasse de gemufnos tolos."* Nesse momento, 0 interlocutor jé aceitow a distingio entre duas formas de humanidade esteuturalmente diferentes e reconhece a existéncia do so litatio como estilo particular de existéncia, de consciéncia e de linguagem Mas guarda ainda a perspectiva do universal, ¢ encerra o solitério num modo particular e ex6tico de humanidade, a0 lado de mil outros, na forma da exterioridade de indiferenga: essa mancira de interpretar a diferenga an- tropolégica proposta por Rousseau s6 pode conferir ao romance a mesma relatividade. Tendo aceito a diferenca antropolégica, N, nko muda sta con- cepgio de piblico ¢ desqualifica o interesse do romance 3 luz da exigéncia do pablico universal. Mas € justamente esta iltima objecio, feito de resis- téncia apbs a concessio anterior, que permite a inversio daquilo que ainda insiste em propor. F claro que o piiblico nao é composto de eremitas, mas, para Rousseau, € precisamente essa razio, “que vos faria [o interlocutor suprimir esta obra que me encoraja a publicé-la”. A diferenga antropol6gica, reconhecida no plano da matétia do romance, importa também na definigio de seu destino: a essa espécie de pabli co marginal ¢ ignorado que o romance se dirige, ¢ € ele que 0 justifica Rousseau antecipa, A stua maneira, a relagio complicada tramada por Niet- 2sche com o leitor que solicita: como Nietzsche, Rousseau se dirige a um 4 OCT, La Nowvlle Hoe, Seconde Préface, p.18 [ed. bras: p.31 15 Ibid, p.18 [ed. bras: p.31 A retérea de Rousea piiblico que nto esté imediatamente disponivel, leitor Futuro ou em via de desaparecimento. A linguagem, aqui, no mais evolui no presente eterno do entendimento, mas na temporalidade i sejo e do poder (ou do poder da satisfacio do desejo): a ilusio que o dislogo denuncia por sob os argumentos de N.,€ilusdo inteleevualista que dé 3s ideias uma total independéncia com telagio a essas duas instancias prévias. N. ignora, como 08 Filésofos, que o escritor s6 pode dirigit-se a quem quer e deseja compreendé-lo, a alguém que jé antecipa em siléncio e solicita o discurso que se the enderega O homem do mundo, o mais perfeito suporte da universalidade segundo «@ interlocutor de Rousseau, € assim excluido, desde 0 inécio, da intengio do romance: Em matéria de moral, no hi, para mim, nenhuma leitura Gel para os mun. danos, Primeiramente porque a multidio de novos livros que elas exploram os quais dizem sucessivamente uma coisa e seu contritio, destedio feito de 1m por meio do outro, ¢rorna mulo o todo. Tampouco os seletos liveos que wos; se as combatem, sfo iniiteis. Eles encontram scus leitores atados 20s vicios da sociedade por amarras que nZo podem romper. © homem do nundo que deseja sacudir por um instante sua alma para repé-la na ordem forgado a manter ou retomar sua situagio inicial Nesse texto, podemos acompanhar © movimento que conduz Rousseast dlos principios mais gerais de sua moral a uma verdadeira sociologia da lei- cura, e que parece marcar uma profunda originalidade perante seus contem- porineos. © ponto de partida evidentemente a cese anti-intelectalist: a viteude no pode ser ensinada, ¢ 0 entendimento € cego ¢ impotence na fordem dos valores, Mais que impotente, frequentemente (mas no sempre ele & nocivo, pois, dialético por vocagio, multiplica os possiveis, retarda « neutraliza 0 movimento da alma ¢ termina por condené-Ia a0 ceticismo 8-9 [ed. bras: p31] Imaginar seal moral: se a metafisica pura quer fundar a moral (e ela seria vi se aspirasse 4 outro alvo), seu resultado é o contrério. Mas essa limitagio da eficécia do puro entendimento implica também uma re-interpretagio da propagagdo s; quando trocamos a esfera da metafisica pela da propaganda e da a cultural, a tese anti-intelectualista assume um alcance muito mais, radical: o leitor no € mais o sujeito racional limitado apenas pela inércia do preconceito, e Rousseau opde, a0 otimismo politico e epistemold; dia filosofia das luzes, uma concepcio bem mais complexa do precone io é apenas o nio saber que faz a escravidio do homem, mas sua v mais profunda, © preconceito é inextirpavel, no porque esteja marcado na passividade de uma ingenuidade infantil, mas porque emana das astiicias refinadas do amor-préprio. E 0 lugar que o homem ocupa na rede da intersubjetividade que dé forma e diregio a seu desejo e que decide, assim, de sua permeabilidade as luzes da Razio ¢ da Moral. Essa sociologia da leitura estilhaga a ideia do pitblico universal e esbosa o perfil do tinico leicor possivel, aquele cuja posigio marginal deixou ao abrigo do império crescente da “opiniao”. Protegidos desse jogo de espelhos que é0'"mundo”, 68 solieétios mantém uma relagio muito diferente com 0 desejo ¢ com a linguagem, Quanto mais nos afastamos dos negécios, das grandes cidades, das socie- dades numerosas, mais os obsticulos dimminuiem: hi um ponto a partie do qual esses obsticulos deixam de ser invenctveis,e € enti que 0s livros podem er alguma utilidade, Quando se vive isolado, e no hi a preméncia de ler para fazer exibigio de suas leituras, Jo menos variadas e mais refletidas;€ como elas nfo encontram um contrapeso tio grande do lado de fora, fazem muito mais efeico no lado de dentro." Reencontramos aqui, no plano da teoria da leitura, o mesmo movimento que comandava a teoria das linguas; mais uma vez, mas agora para a recep- io da linguagem literéria, temos uma andlise que tem seu centro de gravi- dade antes no dominio da agio que no da representagio: como a lingua em 17 Ibid, p.19 [ed, bras. p.32) A revi de Ronssesu geral, o romance € pensado como uma forga capaz de mudar 0 mundo (ou a vida), em vez de set pensado como um espe O privile justamente na sea receptivil ho que duplica a realidade. o do solicirio ~ 0 que faz dele o tinico leitor possivel reside no fato de que pod it um espago de © para o trabalho da linguagem e da imaginagio. Essa do imaginétio nao € diferente da citado jue comanda 0 desejo: sc elo olhar de outrem, © amor-préprio instala no desejo — por sua media- Ps Prop fo e ref Jo —o veneno da vontade de apropriagio qui para, para todo rietério” de seu bem ¢ que proibe todo gozo ou posse imediata ra, na leitura, o homem do mundo eparado do erso moral do livro por uma vonta, emelhante: transformada numa ultura alcera.o mundo moral que veicula e o transforma em signo dist puramente externo de superioridad. sio. Se o homem do mundo cde ler, prisioneiro desse olhar que, por sobre seu ombro, vigia seu ato de leitura, © solitétio desliza com a maior liberdade sobre a e do texto, ignora toda presenga mediadora sua prépria distinc idor que se deixa balancar em sua barca na superficie go € Cem, assim, acesso a0 puro sentimento (irrefletido) da exiseé Sabemos, assis sara quem devemos escrever, se quisermos que o ato da escrita seja mais do que um jogo futil ou perigoso. Resta, no en que este remanejameni da ideia de piblico recoloca em questio 0 proprio ato de escrever, Deste\ oaideia cl ade um piblico universal porque acional, Rousseau recoloca em questio a ética do escritor, que ja no é mais © especialista do univer ,¢ jf sugere que as boas intengées no bastam a uma boa literatura. No mesn momento em que Rousseau evoc condigdes reais ou histéricas da leicura, ¢ obrigado a redefinit as condigde da eficacia moral das Belas-Lecras, Os limites do moralismo ou 0 engajamento do sonho Jé vimos antes que destino Rousseau atribuia & moderna retéric: giosa e como a desqualific Jo com a grandeza da retorica cfvica da Ant orca pil idade: as Iinguas modernas, tendo perdido o estatuto de ica, 56 cornam possivel um fraco murmétio, incapaz de insular 21 Imaginar 0 real, ida nos cidadios. Nas nossas Iinguas, as palavras no passam de palavras nfo exprimem mais a forca da liberdade e da moralidade: Asnossas [I o Feitas para o zumbido dos divas, Nossos pregadores se atormentam e suam em bicas nos templos sem que se saiba nada do que dis: seram. Depois de se esgotarem gritando durante uma hora, deixam o pilpito semimortos. Seguramente nio valia a pena tanta fadiga E esse mesmo espaco de impoténcia na historia das linguas que fornece ohorizonte da problematica do romance: sem levar em conta a inércia dessa historicidade ¢ esta figura do entrelace lingua-sociedade, todo projeto de uum uso ditil do romance permanece utdpico, se ndo desastroso, E oficio dos pregadores diz Rousseau no Preficio dialogado ~ gritar-nos: Sede bons esébios, sem se preacuparem muito com o sucesso de seus discursos; idadio que se preocupa com isso nio deve nos gritar rolamente: sede bons mas fazer-nos amar 0 estado que nos leva a sé-lo."” Aproximar desta maneita a conclusio do Ensaio e o Preficio dialogado no é uma decisio arbitriria, como o demonstra a superposigio quase lite- ral entre os dois textos: essa coincidéncia nos permite, ao conttirio, trazer luz um dos tragos fundamentais da teoria rousseauniana do romance. Podemos verificé-lo no exame do juizo que Rousseau formula sobre L’Eloge de Richardson, feito por Diderot. Quais sio, podemos perguntar-nos, os critérios que justificam o paralelo estabelecido por Rousseats nas Confissées, entre sua obra ea de Richardson e que termina com vantagem para a Nova Heloise? Qual a concepgio das Belas-Letras subjacente a tal hierarquia? (© que menos se percebew nela [na Nova Heloisa], ¢ que sempre faré del: uma obra tinica, &a simplicidade do assunto ¢ o encadeamento de interesse que, concentrado em trés pessoas, mantém.se durante seis volumes, sem agio 8 OC V, Fos sur Porigine des langues, XX, p.428 (ed. brass: p.178] 19 OC I, La Nowelle Heloise, Seconde Préface, p20 [ed. bras: p.33 acess6ria, sem aventura romanesca, sem maldade de espécie alguma, nem nos personayens, nem nas ages. Diderot decicou grandes cumprimentos a Richardson pela prodigiosa variedade de seus quadeos ¢ a multidio de seus personagens. Richardson tem, de Faro, 0 mérito de té-loscaracterizado todos muito bem, mas quanto a seu niimero, cle tem isso em comum com os ro~ snancistas mais insipidos, que suprem a esterilidade de suas ideias 3 forsa de personagens e de aventaras. FE fic despertar a atencio apresentando incessan- temente acontecimentos inauditos ¢ rostos novos que passam como figuras de uma lanterna mégica, mas sustentar permanentemente essa atengio sobre os imesmos objecos,¢ sem aventuras maravilhosas, isso & com certeza mais dificil, se, em igualdade de condigSes, a simplicidade do assunto acresce a beleza da obra, os romances de Richardson, superiores em tantas outras coisas, 230 poderiam, nesse ponto, ser postos em paralelo com o met Nio € somente o critério formal da simplicidade que permite a Row fazer uma testrigfo a0 juizo de Diderot sobre Richardson, mas também tum aprofundamento da ideia de interesse.Jé vimos como Rousseau libera a ideia de interesse da tirania do universal; aqui, num procedimento com- ida de todo compromisso com a curiosidade, Se o romance nio € 0 espelho onde todo leivor pode se reconheces, ele tampouco seri o refiigio do raro e do exético, que pode distrair da monotonia de uma existéncia demasiado normal ou banal. & 0 que dizia o segundo preficio (onde & preciso reconhecer a cons- tante referéncia A diferenga que separa A nova Hossa do modelo richardso- iano), na resposta a objegio seguince Nem uma gnica mi sm um (nico homem mau que faga temer pelos bons, Acontecimentos tio naturais, tio simples que chegam a sé-lo em de asia; nada de inopinado, nenhum golpe teatral. Tudo previsto com grande ant ia, tudo ocorse como previsto. Vale a pena relatar 0 que todo mundo pode ver todos os dias em sua casa ou na easa de seu vizinho? 20 OC. I, Les Confesions, XI, p-546-7. 21 OC. I, La Nowville Héloie, Seconde Préface, p.13 (ed. brass p27 219 Imaginer 0 veal Tal objecio, que deve ser lida como um elogio implicito de Richardson, parece contradizer aquelas que abrem o diélogo e que se referiam 3 falta de naturalidade dos personagens de Rousseau; é todavia solidéria a elas, pois natural” se refere aos personagens, nuum caso, ¢ 48 citcunstincias nentos, no outro. Para Rousseau, trata-se de mostrar, como mérito de seu romance, o fato de apresentar personagens cuja exemplari- da excepcionalidade dade nio advém nem de uma desmedida qualquer, nem da circunstanc deslocar assim a dificil articulagio entte a intengio realista ¢ a intengio edificante. E uma operagio muito particular que Rousseau escolhe para passar entre Caribdis e Cila, para manter a utilidade do romance sem ceder as ilusées do idealismo moral. Assim, a eficdcia da Nova Helofsa estaria comprometida se Julie fosse dotada do mesmo an; lismo de Clarissa: ulie tem as sublimes virtudes de Clarissa, ela tem uma virtude mais sabia e mais judiciosa, que ndo é submissa 3 opiniio; se Ihes tiramos este equivalente, s6 Ihe resta esconder-se diante da outra; que direico tem ela de se mostrar?".** Com a natureza angélica de Clarissa ca diabélica de Lovelace, o romance de Richardson peca certamente por excesso de idealismo; mas a inefi de sua intengio moral, seu lado “ser- bons etc.), no € 0 tinico pecado que se lhe pode imputar, pois, que abre entre o modelo apresentado e 0 mundo real, onde vive ec circula o leitor, ameaga atrai-lo como um precipic iginoso. E que © caminho entre Caribdis e Cila, tal como o traga Rousseatt, nio é apenas uma linha média entre os polos do modelo ideal e da realidade “patolé, essa linha € comandada por um ponto mével, determinado pela situagio histérica do leitor virtual. Com efeito, € sieuagio sempre varivel do leitor orece ou profbe a boa comunicagio entre 0 mundo imagindrio da a: como as linguas, a literatura sé capta sua forga ou sua verdade na didspora temporal e espacial das humanidades locais. Assim, nfo é uma fausseté”, que ameaga o leitor de romances com a loucura: um outro gé de romances er tornado D. Quixote feliz em seu retito de an ud Maleshrbes (19/02/1761), in: Cormespondance Générale de JJ. Ronstau, &.V1, p.58-9, A retrica de Rousseau os romances perturba as cabegas: tam Queixam-se, diz Rouss bémo creio. Mostrando sem cessat Aqueles que os leem os pretensos encantos de um estado que nao € 0 deles, eles os seduzem, fazem-nos desprezar seu proprio estado e trocé-lo imaginariamente por aqucle que os fizeram amar jhe sio diferentes do que sao, © é Quetendo ser'o que nio sio, ¢ assim que as pessoas enloug moral do romance tenha como Compreendemos assim que a efi a situago limite a situagio do leitor e, como condigio, fazé-lo aderr ac Mas esses livros que poderiam servir a0 mesmo tempo de diversio, de ins trugio e de consolagio ao homem do campo, que s6 ¢ infeliz porque pensa sé-l, parecem feitos, ao contririo, apenas para fazé-lo rejeitar seu proprio estado, ampliando e fortificando 0 preconceito que o toma desprezivel a seus alhos.” © ow nas Notemos que o bom romance, aqui proposto em conttap entrelinhas, nfo funciona como “itrealizagio" ou como transgressio da de retorno ou re-leitura existéncia do mundo dado, mas como possibilida da vida imediaca. W. Benjamin, no belo texto que usamos como epigrate, ha a0 sopro que aviva a dizia: “A tensio interna do romance se asse1 chama e que a faz bailar no étrio", caracterizando a apropriagio, pelo leitor da matéria romanesca. Quanto mais violenta nJo se torna essa metéfora, a partir da superposigio entre essa “matéria” e a existéncia do leitor solits- tio, pois nesse caso nio mais sabemos distinguir 0 que € chama do que é lenha, ¢ sopro de ar ndo € outra coisa sendo a tensio interna da alma do Ieitor, mesmo antes de abrir o livro. O romance sé funciona como “irreali- zacio”, para esse mesmo paiblico de solitérios, quando se toma corruptor, oferecendo a existéncia mundana como paradigma da humanidade. E nio é outro, de fato, o funcionamento do género no século: andes, os militares As pessoas de alta posigfo, as mulheres da moda, os, cis os atores de todos os vossos romances. O refinamento do gosto das cidades, Seconde Préface, p p32]. bras: p34] 23 OC. Ml, La Nowell 24 Ibid, p.19 [ed. bras. Imaginar 0 real as méximas da corte, o aparato do luxo, a moral epicurista, cis as lighes que pregame os prectitos que oferecem. O colorido de suas falsas virtudes empana © brilho das verdadeiras; 0 carrossel das maneiras substitui os deveres reais, os belos discursos fazem desdenhar as belas agies e a simplicidade dos bons Rerornemos agora i oposigio feita por Rousseau entre o Pregador e 0 cidadio-romancista que nao se limita a dizer beatamente “sejam bons ¢ sabios", mas que se empenha em fazer amar o “estado” que conduz 3 vir- tude, Qual é 0 estado que conduz a vircude, senio aquele em que o homem info investe sua imaginagio e seu desejo mum albures,em que concentra sua ia nela mesma, fazendo coincidir seu desejo com seu poder? F.co- nhecida a importincia da imaginagio na dialética rousseauniana do desejo ¢ do poder: é ela que “estende para nés a medida dos possiveis, seja para © bem ou para o mal, e que, por conseguinte, excita e alimenta os desejos pela esperanga de satisfazé-los”.2* Diante dessa ambivaléncia da imagina- io, ao mesmo tempo magia branca e magia negra, s6 resta uma estr para impedir que ela desencadeie sua dialética destruidora: “O mundo teal — diz, Rousseau — cem seus limites, o mundo imaginério é infinico: rio podendo alargar o primeiro, ha que restringit 0 outro”2” E por esta seoria da imaginagto que se justia finalmente A nova Heloise, e a pritica do romancista poderia ser expressa pela seguinte méxima: os romancistas hoje se limitaram a propor modelos de moralidade, agora é preciso mudar «vida — sob a condigio, todavia, de mudi-la no que ela é. © prestigio do imax gindrio, investido na vida camponesa, permite ao leitor solitétio imaginar sua prépria vida e aceder assim 3 adequagio maxima entre desejo e poder: bondade e vietude tornam-se para ele uma atmosfera tio imediata quanto © ar que respira, sem esforgo, trabalho ou reflexao. Em mais de uma ocasiao fizemos, neste capitulo, referéncias implicitas ec explicitas aos esctitos de Sartre sobre a literacura. E, de fato, parece haver 25 Ibid 26 O.C. IV, File ow De PFducation, Ml, p.304 [ed. brass p Ibid, p.305 [ed. bras. p.71] A vetrica de Rowse certo paralelismo entre as maneiras que Rousseau ¢ Sartre escolhem para pora literatura em questo, nas suas relagdes com a sociedade ¢ a liberda de. “Para quem escrevemos?”, pergunta Sartre, e logo em seguida ataca as ilu A primeira vista tivida, escrevemos para. leitor universal; e vimos, géncia da escrita se dirige, em principio, a fos os homens com efeito, queae ]. De fato, © mascaradas, indisponiveis; e sua propria liberdade no € tfo pura; € preciso critor sabe que ele fala para liberdades atoladas [enlists] que a limpe; ele escreve também para lim E exatamente essa restriggo prévia que aprendemos a reconhecer como oessencial dos escritos tedricos de Rousseau sobre as Belas-Letras. O curioso, no que conceme aos textos de Sartre, é que seja bem no meio deste século feliz, “a chance tinica na hist6ria e © paraiso logo perdido dos escritores franceses”, neste século XVIII onde o préprio dilaceramento das lutas de classe e a didspora dos pablicos concretos parecem conjurar para dar ao escritor a ilusio de universalidade e constitu(-lo como pura negatividade, “pensamento puro ¢ puro olhar”2” 0 curioso, diziamos, que seja justamente nesse momento que Rousseau venha a constituir sua teoria da “situagio” do escritor e do leitor e a insistir no atolamento das liberd: Uma diferenca, no entanto, essencial—e é ela que nos inter les nas arcias da hist6ria. sa nesse pa- ralelo— separa Sartre ce Rousseau, no movimento comum pelo qual ambos culminam na erftica da ilusio universalista, Examinemos de mais perto a descrigio que Sartre faz da relagio escritor-pablico dentro do quadro do uma sociedade século XVIII. Segundo ele, 0 classicismo pressupde: ma hierarquia de classes rigorosa onde 1 que se coma por eterr o puiblico real se destaca com nitidez de qualquer outro pablico virtual cimento 04 “a afirmagio cerimoniosa de que autor ©) uma relagio de rec itor pertencem ao mesmo mundo ¢ tém a mesma opiniso sobre todas 28 Sartre, Situations II, op. cit, p-IT6 (ed. brass p55. 29 Ibid, p.148 [ed. bras: p.8I Imaginar oval as coisas”. Até aqui, nio podemos vislumbrar qualquer oposicio, pois €a mesina andlise que se encontra na base d critica que Saint-Preux faz do teatro clissico. Sartre diz, de um lado: “Entio, 0 retrato que 0 autor apresenta ao seu leicor é necessariamente abstrato e ctimplice; dirigindo-se uma classe parasitéria, ndo poderia mostrar 0 homem no trabalho nem, em geral, as relagdes do homem com a natureza exterior”. De outro, Saint-Preux escreve a Julie Séerates dava a palavra a cocheiros, marcencitas,sapateiros, pedreiros. Mas os Autores de hoje, que sio pessoas de outra posigdo social, sentir-se-iam desonrados se soubessem o que se passa no baleio de um comerciante ou na oficina de um crabalhador manual s6 querem saber de incerlocutoresilustre: € buscam na classe de seus personagens a elevagio que io podem obter de seu génio. Os préptios espectadores se tornatam tio delicados que temeriam comprometer-se na comédia, tanto quanto em suas visitas, eno se dignasiam ir ver, em representagfo, pessoas de condigio inferior & deles. Sio como os sinicos habicantes da verra; todo o resto no é nada a seus olhos.* Sob essa coincidéncia quase literal é preciso nocar uma disjungio mais profunda que concerne a prépria ideia de liberdade, Segundo Sartre, 0 estreitamento do campo de contato provém também de uma espécie de ignorincia, e é um estrito controle ideolégico que impede o escritor de recon importincia dos fatores econdmicos, metafisicos, ¢ politicos na constituigio da pessoa”.”" O que quer dizer, aqui, a expres sio "fator metafisico”? Evidentemente nio se trata de um fator “como os outros": a construgio da frase, na sua forma geral, convida a confusio, pois sugere, contra a evidéncia do raciocinio de Sartte, algo como o jogo, em exterioridade, de uma série de séries causais, cuja resultante seria a pessoa”. Pelo contrério, o que a frase quer dizer € 0 carster “sintético” da 1agi0"; 0 “fator metafisico” nfo é outra coisa senio a negatividade ou a 30 Ibid, p.138 [ed. bras: p.73] 31 Ibid, p.138-9 [ed, bras p.73 32 OCI, La Nowwlle Hie, 11, 17, p.252 [ed. bras: p.228 33 Sartse, Siuations If, op. cit, p.139 [ed. bras, 224 A retiica de Rousseau liberdade que atola no “pratico-inerte” (0 “fator” econdmico, 0s “fatores' ideolbgicos etc.), mas que assegura a unidade do campo em que ela se perde Essa liberdade, sempre igual a si mesma, mesmo quando mascarada (pois essiio do mundo dado), o tanto da recepcio como da trans; guarda, mesmo no coragéo da situacio singular, uma referéncia permanente Auniversalidade —em Sartre, a critica do universalismo “abstrato” significa parecer a universalida. ago de uma universalidade de facto, mas deix de como direito ou ideia, no sentido kantiano. Fm Rousseau, ao contritio, o reconhecimento da dispersio dos piiblicos reais nfo se abre para a ante- cipagio de qualquer wniversalidade futura, dessa cidade dos fins, do reino planetétio da liberdade, que é sempre o horizonte tiltimo do escritor para cidada ideia implica, para Rousseau, uma profunda contradigio (lembremo-nos, Sartre. Se, de fato, 0 escritor é, como quer Sartre, u do mundo, tal aqui, do juizo de Rousseau a respeito do cristianismo, teligito comtréria a0 esprit social, pelo préprio fato de suprimir a oposigio essencial entre © mundo ea cidade). E interessante considerar, assim, a extrema oposigio que separa as conclusdes de Que éa literatura? e do Preficio dialogado, apos fo da cel a plena concordincia na dese 40 esctitor-piblico: Tomemo-los [dig Sartre dos letores] em sua profissio, em sua famflia, em sua classe, em seu pais, € mecamos com eles sua servidio, mas nfo para mergulh’é- Jos ainda mais nela; mostremos-Lhes que, no gesto mais mecinico do trabalha~ dor, jf encontramos a negacio integral da opressio; no consideremos jamais sua situagio como um dado de fato, mas como um problema; fagamos ver qu cla extrai sua forma e seus limites de um horizonte infinito de possibilidades, numa palavra, que no tem outra figura sendo aquela que eles the conferem pela maneira que escolheram para ultrapassé-la; ensinemos-Ihes que sio, 0 mesmo tempo, vitimas de tudo e responsiveis por tudo; ao mesmo tempo opri- midos, opressores ¢ e”implices de seus proprios opressores; que ndo podemos sca fazer um corte nitido entre o que am homem sofre, o que aceita eo que quer; mostremos que o mundo onde vivem s6 se define por referéncia a um futuro que projecam diante deles e, jé que a leitura Ihes revela sua liberdade, aproveitemo-nos para lembrar-thes que esse futuro, onde colocam para julgar o presente, nio é outso senio aquele em que o homem s Imaginar 0 real mesmo, finalmente se aleanga como totalidade, pelo advento da Cidade dos Fins: pois és esse pressentimento da justiga que permite que nos indignemos contra uma injustica singular isto é, precisamente, que a constituamos como injustica; enfim, convidando-os a se colocarem do ponto de vista da Cidade dos Fins para compreender sua época, nio deixemos que ignorem o que esta época apresenta de favoravel para a realizagio de seu designio, A liberdade é aqui definida como o poder de distanciamento ilimitado de que dispde o sujeito em relagio 3 “tealidade”; ea “totalidade” da existéncia encontra-se, jé fechada e completa, a0 termo desse infinito. Ma roralidade diria Rousseau, j& que é irrealizavel, jé que no passa da miragem de uma paixdo inditil. A ideia de liberdade, em Rousseau, sera sempre abstrata, se no corresponder a um poder real, ¢ a boa totalidade é aquela que pode vivida no instante — uma totalidade futura no passa da projecio imaginéti dle uma divi, de uma fragmentagao efetiva ou atual. A verdadeiea liberdade é,assim, para Rousseau, id@ntica A austncia de proto, aus@ncia dessa espécie de sensibilidade extracorporal que se exprime em qualquer forma de pré- -videncia, esse erfora-de-si que torna o homem solidirio e responsavel pelo futuro e pelo que se passa em outros lugares. Como diz Rousseau no Emilio Assim, nés nos importamos com tudo, agarramo-nos a tudo: os tempos, 1 lugares, os homens, as coisas: tudo 0 que é, tudo o que seri, importa a cada um de nés; nosso ser individual nZo passa da parte menor de nés mesmos. Cada um se expande, por assim dizer, sobre a Terra inteira, e corna-se sensfvel sobre toda essa grande superficie, Seré de espantar que nossos males se mul- tipliquem por todos os pontos pelos quais se pode ferir-nos? E esta oposicio, em torno da ideia de liberdade, que explica como "sociologias” semelhantes da literatura acabam por desembocar em pro- gramas tio diferentes. Deixemos em suspenso, aqui, 0 sentido politico da questdo, para retomé-lo no momento adequado. Guardemos por enquanto 34 Ibid, ps A retéviea de Rowse apenas esta oposigio: a uma literatura que quer ser pura transcendé transpressio do real em ditegio a0 possivel, responde simetricamente uma literatura que quer consagrar a imanéncia ¢ revelar, na contingéncia de uma situacio de Fato, algo como o fulgor da necessidade e da justia Mas os programas se medem também pela reagio que provocam e que nem sempre é esperada: ¢ af, mais uma vez, esses dois casos ~ Sartre ¢ Rousseau — mostram a solidariedade do destino de escritores que falham 0 seu alvo € 0 piblico visado por antecipagéo. Sartre tornouse best-siler Rousseau comoveu os parisienses. Resta ver como esse desvio & tomado teoricamente, Em Rousseau, esse resultado inesperado (embora, coloca dificuldades graves. Esse péblico nao visado (mas desejado) ni inflamado pela leittira do romance) fora decerto declarado in vel ao entusiasmo. O discurso de N., 0 porta-voz desse az de leitura e impermes P piiblico no Preficio dialogado, ests ai para prové-lo, mesmo se ele se curva perante os argumentos de Rousseau. Mas € preciso norar qu com per plexidadle que Rousseau dar conta, a posteriori, do sucesso do romance dos solitétios nos sales parisienses. Podemos vé-lo nas paginas das Confissées que descrevem a recepgio que o “mundo” reservou & Nova Heloise. Paginas tanto mais curiosas quanto revelam como 0 éxito do livro acendeu a fan- tasia de Rousseau: [As opiniGes se dividiram entre os homens de letras, mas, na sociedade, o acordo foi unanime, eas mulheres, sobretudo, se embriagaram com 0 livro € com o autor, a ponto de que havia poucas, mesmo nas classes mais elevadas, que ew nio teria conquistado, se houvesse tentade, O texto fornece, com a expresso da surpresa, as razSes do fato inesperado: Bem ao contrério de minha expectativa, eu menor sucesso Foi na Sufga, 0 maiog,em Paris, Reinam entio a amizade, 0 amor, a virtude mais em Paris que 36 OC 1, Les Confessions, XU, 545. Imaginaro real em outro lugar? Certamente no; mas ali rina ainda esse senso sofisticado que transporta o coragao diante da imagem dessas coisas © que nos faz amar, nos outros, os sentimentos puros, ¢ernos, honestos que no temos mais, Pode-se discutir, com os argumentos da psicologia, a boa-fé do texto: ia essa.a recepgio desde sempre anelada por Rousseau? Sea sinceri- dade ¢ imponderavel por principio, os textos no 0 sio, © Prficioa Narcisa, escrito antes mesmo do projeto da Nova Heloise, est af para mostrar que a Teoria das Belas-Letras ¢ do gosto previa a possibilidade desse feliz mal- entendido, Nesse preficio, Rousseau matizava a condenagio das ciéncias das artes do primeito Discurso dizendo que, se elas “destroem a vieude nio deixam de manter seu “simulacto piblico, que é sempre uma bela coisa"; mas é sobretudo importante a nota, na qual esclarece o sentido da ideia de simulacro: Esse simulacro é uma certa suavidade de costumes que supre algumas vezes, sua pureza, uma certa aparéncia de ordem, que controla a horrivel confusio, uuma certa admicagio pelas coisas belas, que previne que as boas caiam coral- mente no esquecimento, fo vicio que assume a méscara da vierude, nfo. como hipocrisia, para enganar e traie, mas para furtar-se, sob essa ef mavel, a0 horror que ¢em de si mesma quando se vé a descaberto. © que € preciso sublinhas, com essa aproximagio entre esse pardgrafo as Confisées ¢ 0 Profécio a Narciso, é que a teoria jé estava pronta, antes da Nova Heloisa ¢ de sua carccira junto a0 pitblico: teoria que permite explicar seu curioso destino ou seu éxito junto a um leitor inesperado, Mas, sobre- tudo, o que é preciso notar é que nessa explicagio torna-se claro que 0 consagra toma essa “espécie” de romance pelo gu ele nao é.O texto das Confisies, salvando parcialmente o pablico parisiense, nio deixa de lembrar que seu romance, com o éxito, perdeu sua propria esséncia, tornando-se Literatwra 37 Ibid, p.545-6, 38 OCI, Narisee on L’Aman del me, Préface, p.972 39 Ibid, p.972, nora, 228 le Rousse Esse éxito é também a prova de malogro do “engajamento” do sonho ou da ficgio, ¢ 0 romance termina por tornar-se um mero sonho. Quando Saint-Preux dizia que o romance era a dinica forma de instrugio para “um povo suficientemente corrompido para que qualquer outra lhe seja inticil” falava de um género de escritos a0 qual a Nova Heloisa queria escapar, pois seu projeto era mais ambicioso: fazet os solitérios amarem sua propria vida, instalados solidamente na verdadeira vircude, enfim reconciliada com a espontaneidade da bondade. O sonho fora ~ mas eta apenas sonho — fazer do romancista, daquele que esté o mais prdximo po ‘vel do uso corrupto da linguagem, o hetdeiro auténtico do cidadio; fazer do género de escrivos mais fitil o herdeiro da austera retérica civica da antiguidade republicana, Imaginemos a cena inimaginivel de Catio ou Fabricio roubando os ins- rumentos de Crébillon.) Mas, mesmo se Rousseau termina por descobrir 1 fez apenas obra literéria, no € menos verdadeiro que quisera ter feito mais do que moral A imaginagio rente as coisas Imaginar 6 ral ~ eis uma expressio bem paradoxal! Nao dev rela enxergar antes a expressio de uma impossibilidade? Pois nfo se deve entender com isso que a imaginagio se remeta, direta ou indiretamente, "2 distancia", ao mundo real so entende-la no sentido mais forte, de ma imaginagio que recobre a presenga do imediaco e acaba por se fundir na percepcio. Certamente, em Rousseau, também a imaginagio € a instin cia que abre o campo do posstvel, que acranca 0 sujeito do imediato e do instante, que torna possivel a consciéncia do tempo e de um albures, € que faz do homem o ser que habita os planos distantes. Mas, aqui, € a "oposigio do sonho a vigilia" que € posta em questo, com ela, como diz Derrida, ametafisica A impossibilidade de imaginar o real, eis a tese que Espinosa se prope a demonstrat no escélio da proposigio XLIX da se anda parce da Erica: de- tenhamo-nos um instante sobre esse texto. A proposigio afirma: "Nao hi 40 Dertida, De la Grammatlogie, p444-5 [ed brass p.385-6 229 na alma, nenhuma volicio, ou seja, nenhuma afirmaczo e nenhuma negagio, lém daquela que envolve a ideia na qualic a”, No escélio, Espino- sa visa diretamente Descartes: depois de ter demonstrado positivamente lentidade entre o entendimento ¢ vontade, quer dizer, a impossibilidade a divida, trata-se de desteuir os argumentos q fia, Espinosa assim levado a examinar a ideia da suspens do jute: aquilo que descrevemos normalmente como suspensio do juizo nio € outra coisa c uma percepgio inad io, no entanto, nao recira da ideia seu caréver de percepgio. Nao se trata, entio, de uma vontade livre 3 F Jina que se retira em diregio a um dominio que precede o si ao. Uma idei ©u uma representacio que é apenas imperfeitamence concebida no imp3e claramente o sim de sua plena posicividade. Para esclarecer melhor seu a: gumento, Espinosa recorre ao exemplo da id {cia do cavalo alado ¢ Para esclarecer esse ponto, concebamos uma crianga que imagina um cavalo que exclua a existéncia do cavalo, ela consideraré necessariamente 0 cavalo ‘Omo presente e nao poders duvidar de sua existéncia, ainda que nio eenha certeza dela. Nés experimentamas isso todos os dias durante 0 sono e no Penso que haja alguém que acredite, enquanto sonha, ter livre poder de sus Pender o jufzo sobre o que sonia e fazer com que nio sone o que sonha que &: €, no entanto, acontece que, mesmo no sono, suspendamos nosso juz, 2 saber, quando sonhamos que sonhamos. Concordo agora que ninguém se gana enquanto percebe, quer dizer, as imaginagdes da Alma consideradas em si mesmas nio envolvem nenham tipo de erro (ver “Escélio da Propo gio 17”); mas ne > que um homem nio afirma nada na medida em e. Pois 0 que é, de fato, p de um cavalo? Se a Alma, além do cavalo alado, nio percebesse nada mais, e: A rerica de Rows 4 necessariamente a existéncia do cavalo, ou inadequada ¢ entio, ou ela negar duvidaré necessariamente dela.*? Certamente, toda essa argumentagio é voltada contra o argumento cartesiano do sonho que vem fundar a suspensio do jufzo. Se, tantas vezes, sta mesa e este quarto, nada me sonhando e delirando, acreditei perce a0 texto de a coisa no acontega. Antes de voltar garante que agora a mes nas que Sartre dedicou $ teportarmos as Espinosa, ser proveitoso wire e, mais genericamente, ao fendmeno a0 argumento do sonho em LT do sonho, Se Sartre passa pelo argumento de Descartes, € porque este vanta problemas para sua prépria teoria da imaginagio. De fato, se é verda- de que 0 mundo do sonho se dé como um mundo real ou percebico, mesmo m caso em que "a imagem se dé como sendo imaginirio, ha ao menos Se a descrigio cartesiana de conscineia que soma é correta, a percepsio' descricio da imagem que Sartee da sera forgosamente incorreta. A imagem é caracterizada, desde 0 comeco da obra, em sua oposicio & percepsio. Assim, no primeiro capftulo, sio enumeradas as caracteristicas essenciais du ¢ observagio; 2) a conscitncia que imagina imagem: 1) 0 fendmeno da qu pie seu objeto como um nada; 3) a espontaneidade da intengio imaginante sas trés caracteristicas opdem, essencial e iredutivelmente, a imaginagio 3 percepcio: 0 objeto da percepco senclo observével, posto como existente, a consciéncia s6 pode ser passiva no ato da percepsio, mostrar de um modo ou de outro o sofisma que se esconde sob o argumento de Descartes: a falsidade do paralelismo entre o mundo do sonho ¢ 0 mundo da percepgio aparece com a diferenga dos efeitos da reflexdo num caso e no outro, No caso da percepso, pela refleio que a cla vem se acrescentar, nada € profundamente mudado: na contramio do argumento cartesiano, Sartre mostra, na refle- Mio, justamente o critério da partilha. Se, em sonho, posso imaginar que percebo, nio posso, estando acordado, duvidar que percebo: e essa “evi- in: Espinosa 41 Espinosa, Fie Proposigio 42 CE Sactee,L (09 [ed. bras: O imagindio, p21). 231 Imaginar o real déncia” assume a mesma natuteza invulnerdvel que o cogito,¢ seu contrstio seria tio impensavel quanto, para Descartes, a proposigio: talvez eu nfo exista. Nao nos interessa discurie aqui essa identificagio entre a da percepgio e a evid mas antes uma discreta ref Espinosa, no qual desemboca. A percepgio, diz Sartre, é "como a verdade para Espinosa”, index sui: € © sonho tem uma estructura semelhante aquela que Espinosa atribui ao erro — pode se apresentar como verdade, mas basta a presenga de uma verdad para que o erro desaparega por si s6. Essa refe- réncia a Espinosa é a tinica presente ao longo de todo L'Imaginaire, embora sua presenga seja mais profunda. Vejamos: 0 que opée, entao, o sonho 3 percepcio—o que teria escapado a Descartes ~ €afiaildade do sonho, quer dizer, sua incapacidade inata pata resistir § reflexo. Numa certa medid: tum juizo como “eu sonho" é um juizo impossivel e contradit6rio: as duas consciéncias, aquela que sonha e aquela que reflete, no podem de modo gum coexistir num mesmo instante. O tinico juizo possivel, diz Sartre, fh aquele que se exprime como “eu sonhei”. E exatamente o que dizia Espi- niosa no texto citado, em particular na seguinte frase: € no penso que haja alguém que acredite, enquanto sonha, te o livre poder de suspender seu jufzo sobre 0 que sonha e fazer com que nio sonhe 0 que sonha que vér e, no entanto, acontece que, mesmo no sono, suspendamos 0 1sizo, a saber, quando sonhamos que sonhamos. A “feagilidade” do sonho tem, portanto, o mesmo sentido em Espino sa e em Sartre: para um ¢ outro, a fragilidade significa a impossibilidade de tivalizar com outras representagdes. No texto de Espinosa, diz-se explicitamente que a crianga s6 vai acreditar no cavalo alado durante a éncia de qualquer outr <0, Também em Sartre um minimo de percepgio basta para desfazer 0 sonho. Num caso como no outro, a consciéncia que sonha difere da consciéncia em vigilia, na medida em que ‘osonho isola uma representagio, a0 passo que a consciéncia em vigtlia esed voltada para a totalidade da experifucia. Aqui, chegamos ao essencial: na guagem da fenomenologia, dirfamos que em toda percepcio de uma coisa esti presente a tes do mundo (na linguagem de Espinosa: toda representagda Mais ainda, em Husserl percepsio é sempre a percepgio de uma “constancia” na relagio entre a coisa e 0 que a circunda e, em diltim: anélise, com o mundo em geral. A constituigio da “coisa em geral”, nas Ien I, parte, com efeito, das relagdes entre a coisa ¢ seus Umstinde, sem as quais ela se desfaz como um puro “fantasma”, © que “realiza" a coisa €a.unificacio s perfis através da variagio das condigdes externas. outras coisas, percebé-la sobre o fundo do mundo e "p6r” sua existéncia Da mesma forma, para Espinosa, ter uma ideia, percebé-la adequadam ‘ow seja, na ordem das ideias, conceder assentimento a essa ideia, tudo isso € apenas uma tinica ¢ mesma coisa. Donde a afirmagio de Espinosa: ¢ eu penso, como a crianga na ideia do cavalo alado, e entio ponho sua existéncia, ou entio a percebo adequadamente ¢ a ideia é, por assim dizer, expulsa pelas outras ideias. Pode-se assim dizer que, para Espinosa, fo que Sarere formula como a grande lei do imagindrio: “nao hé mundo sonhar € suprimir 0 mundo, ou que nao existe mundo ow orden © que quer dizer, entio, im que q aro real, como Rousseau justifica a cexiseéncia de um mundo imag! jo? Na impossibilidade de atribuir uma significagio positiva a essas expresses no quadro da metafisica clissica (¢ gual Sartre apareceria aqui como tributério), somos tentados a interprets smi: © ser passa para 0 outro lado da linha e o mundo da percepgio se torna ilusério. Eo que chegou a ser afirmado Rousseau € um dos primeiros escricores franceses ~ provavelmente 0 pri- meito com tamanha conviegio —a sentie que a realidad do imaginsrio ganh, da realidade do mundo © que a vida espiricual da imaginacio é mais fecunda que a exiscéncia cotid : 444 Satee, L'lg 45 Bigeldinges, Ja Imaginar ral jam quais forem 0 sentido ¢ alcance da expressio “realidade do imagindrio”, essa frase mostra que cla pressupde uma ideia “progressisea da histéria do conceito da imaginagio, ¢ que esse progresso consiste na descoberta da “autonomia” ou da riqueza da imaginagio. Rousseau apa- rece como o heréi dessa histéria, o primeira a ver nitidamente um pais por longo tempo ignorado. Reconhecemos ai o esquema historiogrifico tradicional, que situa Rousseau na virada que faz passat da submissio da imaginagio, no pensamento clissico, para a sta gléria romantica, momento eritico da “crise da consciéncia europeia Em Rousseau et la réalisé de l'imaginaire, M. Bigeldinger associa a intengio sistemética 3 intengio histérica e faz preceder seu esboco histérico de uma exposigio da originalidade da imaginagio. Tal exposigio comesa pela afir~ magio da auconomia da imaginac? fo as outras “Fungées da alma como a percepgio ea meméria, Essa autonomia esté fundada na espontancidade da imaginacio, entendida como poder criador: ela no reproduz o que jé foi dado, instaura uma dita. M. Eigeldinger actedica encontrar, cm Sartre, uma ideia semelhante da “eriatividade” da imaginagio e invoca 0 texto sartriano: O ato de imaginacao |...] é um ato magico. E um encantamento destinado a fazer aparecer 0 objeto no qual pensamos que possamos tomar posse deles. Hé sempre, nesse ato, algo de imperioso e infantil, uma recusa de levar em conta a distancia, as dificuldades, E assim que, no interior da distingio tradicional entre imagina produtiva e imaginagio produtiva, somos levados a privilegiar a se apenas ela é imaginagio propriamente dita, pois a outra acaba se confundin- do com a passividade da percepsio ¢ de sua retengio na meméria. Apenas da imaginagdo produtiva poderemos dizer que: “Ela nfo imica a realidade percebida ou gravada pela meméria, mas se nutre dela, e dela se solta para inventar outra realidade, segunda e auténoma’™*” A descrigio da autonomia 46 Ibid, p12. 47 Ibid, A trea de Rowsean ¢ da espontaneidade da imaginagio nos permite eaptar a primeira caracte- ristica essencial da imaginagio: a liberdade, Ela é assim definida como 0 emblema da liberdade, na medida em que dé a0 homema honra de ingressar le os obsticulos, numa dimensio onde toda necessidade foi excluida, on da espontaneidade suprimidos, deixam 0 espago livre para a onipotén Embora essa anilise invoque o testemunho de Bachelard,"* a inspiragio ainda € nitidamente sartriana: “A imaginagio se distingue da percepgio pelo poder de liberdade que the permite se distanciar do objeto e se au- sentar do mundo: ela nio reproduz. imagens equivalentes da realidade; ela cria imagens que ulerapassam e metamorfoseiam o real” ainda que essa ideia de “metamorfose" corresponda mal 3 intengio de L’Imaginaire, pelo implica de “criacionismo”. Apés ter assim garantido uma distingio essencial, que nos sicua pata além da “confusio, inteoduzida pela filosofia do século XVIII, entre a percepgio ¢ a imaginagio”,*” torna-se possivel passar 3 segunda caracteristica essencial da imaginagio: sua mobilidade E preciso aqui notar que a inspiragio sartriana é subitamente por uma inspitagio bergsoniana:a imaginacio jf nio é pensada como poder de cranscendéncia, negacao e distanciamento, mas também como “poder de captar os movimentos internos e externos, de exprimir 0 devir dos seres e das coisas, do pensamento e do sentimento”."" E, embora a inspiragio seja oniana, 0 texto que vem ilustré-la é de Baudelaire, numa observagio sobre Ingres: “Sem imagin: 4o, portanto sem movimento”. Depois de ter assim, passado pela criatividade e pela mobilidade da imaginacio, se passa a sua dltima rminagio e a mais “profunda”: sendo uma coisa e outta, la &a Instancia que permite que © homem passe do finito 20 infinito, do mundo da nai ao que a ulerapassa: “A imaginagio", diz M. Bigeldi com Jacques Rivigre, “é 0 sentido do sobrenatural”.”' Promovida i condigio 48 Ibid. 49 Ibid. 50 Ibid, 51 Ibid, pats 52 Ibid 53 Ibid, put. Imaginar o real de drgio privilegiado do conhecimento, a imaginagio passa também a se beneficiar do privilégio de fundar tanto a blega quanto o dominio préprio da existéncia simbélica ou a cultura: A invencio do possivel ¢ da beleza s6 se cumpre no plano do imaginéric porqute s6 a imaginacio transpae os limites de nossa condigio tertestre 20 conceber um alhures, um além compensador. Sem ela, serfamos privados de toda criagio mitica ou religiosa, significance ou simbélica. A imaginacio in twoduz na alma a dimensio do infinivo: ela € exatament ilumina © mundo de uma clatidade sobrenacural Ihe restitui o sentido da unidade transeendente,** Essa definigio da imaginagio como meio de acesso ao outro mundo, no estilo do romantismo, que permite estabelecer o esquema da hist6ria da imaginagio, de Cyrano de Bergerac a Diderot." Essa histéria insiste, so- bretuclo, na grande ruptuca que 0 século XVI assinala: a critica empirisca como © momento em que a imaginagio deixa de remeter a0 que hé de infra-humano no homem, residuo da sensibilidade e da matéria, para tornar-se o indice da prépria humanidade do homem. De Pascal a Diderot, passamos da condenacao epistemolégica e moral (a imaginagio como senhora do erro e da falsidade) & sta recuperagio: "A in M, Eigeldinger cita a frase de Diderot, “eis a qualidade sem a qual nio se pode ser nem poeta, nem filésofo, nem homem de espirito, nem set acional, nem homem’.**A excegio de Cyrano de Bergerac (que, em L’Autre Monde ou les ats et empires dela lune et du soleil, estabelece a superioridade dos espiritos solares sobre os homens por sua superioridade imaginativa), M Eigeldinger nota a unanimidade da condenagio da imaginagao no século XVII: “A doutrina clissica ensina a conter a imaginagio dentro dos limites 54 Ibid, p.18-9, 55 Ibid, capitulo 2 56 Didero apud Eigeldinger, op. cit p.39 [ed, bras: Discus P iget Op 236 da razdo e a submete ao controle do juizo. E importance refrear seus im- E assim que, para além das difere cas entre as doutrinas, apresenta-si -omo tum poder que deve ser controlado a qu omprometer, a0 mesmo tempo, o conhecimento, a beleza e a virtude ‘ogo em seguida, apresenta-se a imagem inversa na génese do pensamento ada 0 equilf- no século XVIII: se Boileau opunha 3 imaginagio dese brio do bom-senso, a nova literatura produz o livre dese :magindrio, tanto no plano da forma quanto no do contetido. Sinal dessa metamorfose que prepara o espaco da obra de Rousseau, M. Eigeldinger se im sobre a obra de Prévost: seus personagens, ao se entregatem a paixio ¢ 4 imaginagio, transgridem os limites da estética classica ¢ da ética que ela implica: "Eles descobrem, na aventura tempestuosa de sua paixio, que a da imaginagio faz encontrar prazer nesses proprios males, porqu cles podem conduzir a um término feliz que é esperado”.** Vauvenargu! outro marco dessa historiografia, pois nele descobrimos que a imaginacio nio é necessariamente anarquica e que hi uma “justeza e uma nitidez. da may Se a “razo nos engana mais frequentemente que a nature 2a", é porque a existéncia espontinea, sentimento ¢ imaginagio, adquirem uma inteligibilidade propria: “Descartes”, diz Vauvenargues, “pode ter consequéncias, a nao ser raramente; seria entio um equivoco, ao que me parece, concluir, a partir de seus erros, que a imaginagio e a invengio nto P 7 ig < sncordam com a justeza. A grande vaidade daqueles que ndo imaginam iveis: nio percebem que os Descartes, génio criador, foram os de trés ou quatro mil filésofos, Nio cabe aqui discutir a validade de um esquema tio geral: € preciso, © entanto, sem passar pela prova real na histéria das ideias, pondera que isso implica para a leitura de Rousseau — de uma forma ou de outta, esquema reaparece, como uma fénix, com demasiada frequéncia no {rio de Rousseau. Pois, nessa concepgio da histéria da imaginagto, feliz inversio que se opeta, por essa crise, no dominio da epistemologia, da moral e da estética, acaba por deixar na sombra o que importa, ou seja, ste caso, a teoria de Rousseau em sua originalidade. Assim situado, sob luz retrospectiva do romantismo, Rousseau torna-se uma espécie de Novalis incompleto e seu espiritualismo esclarecido torna-se mistico rracionalista, Temos, como o observa J. Starobinski, uma das tentagées da hist6ria do “imaginétio” neste monismo: “Tudo nos leva entio”, observa ele em seu ensaio sobre “O império do imaginsrio’ dle ictealidade, a medir a discineia que sepata de uma da (das Fieges delirances) a imaginagio minima, inseparsvel de qualquer criagio liters do contexto humano onde ele surge, Pois a tarefa critica, sem dévida sempre de mancira a perceber todas as relases que estabelecem com o mundo, com a histéria, com a inventiva de uma época ineei Nessa proposigio, que, no entanto, visa apenas 0 dominio da literdtia, J. Starobinski se junta 3 preocupagio mais fundamental da ceo rousseauniana da imaginagdo: a de caprar a histévia dos usos diferentes da imaginag2o, conforme o meio social desse uso, sem fazer desse "poder da ima” uma instancia metafisicamente privilegiada. Como nio se trata de discutir © quadro hist6rico em si mesmo, limitemo-nos a discutir alguns 61 Searobinski, 1'Oeil vivant Us La relation critique 238 A rtirca de Rosen de seus pressupostos tedricos, a desfazer alguns nds conceituais que estio sempre presentes no avesso dessas amplas tapegarias que nos mostram Rousseau nos caminhos que o conduzem para além da paisagem terrestre, em diregio ao sobrenatural. mos mais de perto as categorias subjacentes a essa breve reme~ moragio das aventuras do imaginirio. B preciso notar que ela pressupde trés confusdes fundamentais: 1) entre autonomia ¢ criatividade; 2) entre criatividade produtividade; e 3) entre imaginagZo empirica e imaginagio transcendental. Com efeito, autonomia, na linguagem sartriana 3 qual M. Ei |dinger recorre, significa que a imaginagto é uma consiéncia (quer dizer que cla nao € 0 efeito de uma causalidade associativa relativa a0 corpo “em mente pobre, que nfo acrescenta nada si”), mas também que ela € esse A percepgio porque a imagem que parece acrescentar-the € justamente um nada, A imaginagio nio duplica assim a percepcao de outro mundo; ela é apenas uma maneita indireta de se dirigit 20 mesmo mundo que mostra a percepcio: daf a tese sartriana que estabelece, entre esses dois modos de existéncia (em imagem ou lIibbaft), uma identidade de esséncia. Nao se Jo da autonomia o indice a defini pode, entio, sem contrassenso, fazer de da superabundincia ou da riqueza da imaginacio ou, por assim dizer, de sua genialidade. Mas essa primeira confusio se multiplica no momento em que a ideia de im 2 € superposta a da imaginagio produtiva pois a oposigio entre imaginacZo reprodutiva e imaginacio produtiva nio tem, no pensamento clissico, outro sentido que aquele que € dado pela oposigdo entre rst passivo © nova combinagio dos elementos inscritos na meméria. Quando Eigeldinger utiliza a nogio de criagio, ele pars esse conceito em seu sentido bergsoniano, de algo irredutivel a uma sim- ples combinagio de elementos jé dados. Lembremos o texto das Meditagies Pois, na verdade, os pintores, mesmo quando se empenham com 0 maior artificio em representar sereias e sitiros por formas estranhas e extraordinicias, nio thes podem, todavia, atribuir formas e naturezas inteiramente novas, amas jpenas fazem cerca mistura ¢ composigio dos membros de diversos animais; ou ento, se porventura sua imaginagio for assaz extravagante para inventar 239 Os limites da andlise da representagio sio também os limites d dutividade da imaginagio: nio tendo sido ainda impregnada pela temst da teologi tica, a imaginagio nada pode produzir ex-nibilo. Ess M. Bigeldinger cita um texto de Vauvenargues qu igorosament Jenuncia a cegueira de Descartes a respeito dos podere Um poeta nao cria as imagens de sua poesia: el natureza ¢ as aplica em coisas diferentes par 4 retérea de Resean se as coisas na noite da indiferenga, que proprio nfo é a noite que sub suprime o reino rerreste; a luz ¢ indispensivel e 0 devaneio nio pode se d quando se pergunta, a respeito de Rousseau, sobre a etimologia do verbo m grande passo neadear si lc » suporte do olhar. Marcel Raymond iver [sonhar] e, para além das incertezas de Literé, encontra em W. von. Wartburg um fio condutor mais que precioso Mas, hoje, W. von Wartburg chega a apresentar a existéncia de um prototipo sat, de onde river teria saido. O fato & que o primeiro sentido de rivvr & vagae, ervar li fora, Um texto de aproximadamente 1300 nos conta que Odicion’- 1] toda a noite ki fora, pela cid ‘os libertinas vagavam rio de Godefroy cita um texto de 1497 que no significa outra coisa: “quando sver] pel fazia bom tempo, as pessoas se regozijavam bastante e iam cidade em bando”. A cena se Trata-se de sair de si mesmo, de seu da, mascarada, A circunstincia import de desvias, de extravagar. Naquele d natural, de se afastar do caminho tra seu bel-prazet, um elemento de libertinagem esti Esse texto nos parece importante porque ele marca a relagio essencial do sonho, em Rousseau, com o Id fora, onde “o elemento orgiaco” nao é ono com 0 conhecimento. O itcia, nem © aba incompativel com a nba destruigio do mundo, queda no interior da pura mas pode ser também investigardo da paisagem, O exercicio subjetividade a oportunidade de ligar, sem da botanica é justamente, para Row pensamento ¢ visio, sem consideragio pelas teses da psicologia eda epistemologia hissica. Em seus passcios 0 sonhador solits rio herboriza — sigamos seu caminho para ver o que significa i A botanica, tal como a pratica o sonhador, é0 mesmo tempo tam exerci- cio do entendimento e da sensibilidade. Experiéncia sensfvel por esséncia, etais pode ser analisada, pois é apenas pelo of 1¢ a natureza dos ve G5 Raymond, Jf. Rousseau, fa quite de so tl rvei, 154 Imaginar o val Mas também conhecimento racional, pois a visio, por si s6, nao permite inscrever as plantas no quadto légico das espécies. Ver as plantas em sua “estrutura” (ou seja, em seu aparelho visivel) e pensar suas relagdes de identidade e diferenga sao dois procedimencos complementares. Sem a visto da “estrucura”, € impossivel classificar as plantas, mas, sem o pensa mento do sistema, € impossfvel ver: “Por mais el nte, admiravel, diversa, que seja a estrutura dos vegetais, cla nao impressiona suficientemente um olhar ignorante para interessé-lo".® Mas, para aquele que sabe ver, a visio retoma sua espessura, é mais que uma simples “inspecio do espitico” quando vejo uma planta e digo que a v¢jo, nio sio “as palavras que me detém” e nfo sou “enganado pelos termos da linguagem ordinéria”” Se a visio, por si s6, no permite determinar a articulagio entre as espécies e representar 0 continuum que elas compéem na natureza, é ela que imp de fundir a diversidade viva do reino vegetal na monotonia da repeticio ‘Os outros tém, a vista de codos esses tesouros da natureza, apenas uma admiragio estuipida e monétona”.“* E 0 formigamento das diferengas que permanece escondido ao “olho ignorante” que nio sabe nem mesmo “o que se deve olhar”. Pela colaboracio entre a visio e o pensamento se restabe- lece a continuidade viva da Ordem que passa pelo individuo e atravessa a série total das espécies: entre o detalhe ¢ o sistema, entre 0s sentidos ¢ 0 espirito, entre o individuo ea e ‘essa cadeia de relagbes ¢ de ombinagées que cumula de suas maravilhas o espitito do observador”” Nenhum divércio entre ver e saber: saber olhar significa passar de uma “estrutura” para uma “ordem’”, perceber a analogia guardando a "variedade prodigiosa” das formas ¢ o sistema das diferengas. O olho avisado é capaz de sustentar a tensio entre o Mesmo e 0 Outro, de distender os fios que os ligam sem rompé-los, Parodiando Diderot (embora o com da frase mude e passe da humildade ao orgulho), poderiamos dizer, contra a metafisica de 67 Descartes, M P hia, op. cits p.32.[ed. bras p.97 (Meditagio Segunda, § 14)] 68 OCI, Les Ca 69 Ibid. 70 Ibid. A rates de Rowseau a visio e sua teoria da vida: “Ah! Senhora! Como a De bor: es, sua teori liferente da nossa! dos cego: No perfil da planta, abre-se um caminho que pode conduzit 3 verdade da natureza: no vegetal nenhuma fissura separa o ser do par realidade da planta esté 3 meteé do olhar que a percorre. A p palpebra que nao dissimula nenhum olho e no esconde o sono de ni ncia e de perfeita visibilidade, a bot Dominio de pura transparé que uma forma de conhecimento: ela fornece o simbolo da cia per- dida na histétia dos homens. O mal se desenhou quando alguma coisa se esquivou da publicidade dos olhares, quando o homem se fechou sobre si mesmo, escavando para si um espaco privado e secreto: o mal est do lado do invisivel. Pelo fato de que nenhuma camara secreta se aninha das trevas e pode se sob essa fina pelicula que é a superficie da planta, a consciéne wamente com suas sensagdes. Esse abandonar as aparéncias e coincide n instance, sem nenhuma espessuta, no qual explode a visio é suficientemente amplo para acolher tanto um saber quanto uma reforma da existéncia. A bot paixdes ou uma ascese da alma, Ela visa menos uma penosa acumul 2 é, em Rousseau, menos um conhecimento que uma terap ot de um jogo sempre retomado; este “estudo ocioso' uma disciplina do entendimento: herborizar € exiravagar, icentemente pelos bosques e pelo campo".7! Mas essa “extra- ‘cerar disp 2 genialidade ow a selvageria da subjetividade ¢ vagincia” nio libera, aqui a0 contrétio, sujeita-a a uma coeréncia que esté do lado do objeto. O jogo ¢ 0 devaneio so comandados por uma ordem objetiva e modulados pelas tensGes dessa otdem: aos dois polos do conhecimento correspondem sonhos” diferentes. O prazet de herborizar é duplo: prazer da diferen- ga—os olhos sfo acariciados por “estruturas encantadoras"”—e prazer da identidade —a alma esquece sua infelicidade e sua individualidad da ediistole da alma, no sétimo passeio: ou a contemplagio consegue unificar mos seguir esses dois movimentos, sistole natureza, Pos 71 Ibid. 72 OC. 1, Les Réveres du promencur pod! , Sepritme Promenade, p.1064 [ed. bras. Imaginaro ral 08 trés reinos numa toralidade na qual o contemplador se perde, ou ela se detém numa forma particular e privilegiada. Nos dois casos o sentimento dda existéncia se restabelece em sua pureza, pois, diante da diferenga como diante da identidade, a consciéncia € restituida a sensagio € ao imediato. Mas, para que a conscineia possa assim coincidir no instante com a visio para que ela se torne a testemunha fascinada da ordem natural, o exilio € necessério.”* E preciso que nio haja nenhum traco da alteridade, para que © homem possa redescobrir-se como pertencendo & Ordem. Esse jogo inocente pressupde a ruptura com o mundo dos meios e a destruigio da rede de relagées que define a sociedade. As “amizades vegetais” se oferecem apenas para aquele que estd cortado do circuito da intersubjetividade, ape- nas para aquele que pode dizer: “Escou sobre a Terta como em um planeta estranho, no qual teria caido daquele em que habitava".?* Herborizar é estar em casa, mas estar finalmente em casa € estar fora da humanidade, da cultura e da sociedade Hi, portanto, um mundo imagindrio © o sonho pode sobreviver & luz da percepgto: mas isso s6 é possivel undo aio ivaliza com 0 outro, porque ele consiste em cola © mundo percebido no fundo da Ordem ou na ética de Deus. Imaginacio superficial e terestre, de faco, que se limita a iluminar as coisas com uma nova luz e que consagea as aparéncias em seu ser e confere, As superficies, a maior dignidade onto- légica. © sonho de Deus, poderiamos dizer, é a realidade do mundo ~ 0 solitério, por sua vez, reencontra 8 sua maneira a onipoténcia de Deus, seu lacro, a0 tornat-se espectador puro que sobrevoa a paisagem e que, no sentimento de sua propria existéncia, "basta-se asi prdprio como Deus”? A auséncia do outro, desse outro athar que arriscaria lembrar a perigosa | profindidade do mundo e a face invisivel das coisas, realmente deéxa o soli= tério a vontade para deslizar sobre um mundo reduzido a sua superficie como o sonhador nas aguas do e Bienne 3 Tbid,, Septitme Promenade, p.1070 [ed. bras. p.99) Ibid, Premitee Promenade, p.999 [ed. bras. p.26) 5 Tbid., Cinguiéme Promenade, p.1047 [ed. bras, 7 P A ratéica de Ronssean {.-] eli, estendendo-me de comprido no barco, os olhos voltados para o <6, deixava-me ir e derivar Jentamente ao capricho das égaas, as vezes durante muitas horas, mergulhado em mil devancios confusos mas deliciosos, © que smdecerminado nem constante, no deixavam de ser, 4 mim, cem vezes preferiveis a cudo que havia encontrado de mais doce no aque se chama os pi atizar 0 jaizo de © que nos faz pensar que talvez Fosse necessirio m Bachelard, em A a guas turvas © profundas. es, que admite “profundidade” apenas nas A ambiguidade necessiria da fiegio” Eu ndo quis nem confi stew 2 ver no P eis 0 pico em JJ. Rousseau A anilise da funcio da imaginagio, tal como acabamos de esbogé-la, nos jentar uma resposta 3 ficgio em A nova Heloisa permite voltar a nosso ponto de partida e exper questio dificil do estatuto que Rousseau confer clativa 4 autoria do romance: como Uma primeira observagio se impéc, interpretar 0 fato de que o autor se esconde sob a mascara de um editor Trata-se de um simples procedimento literrio que, como muitas vezes; a de convencer o leitor ¢ nao implica nenhuma intengo s ue € apenas tuma piscadela ciimplice, dada no exato momento em que comega a leitura? Thid., Cinquiéme Promenade, p.1044 [ed bras. p.74] da ficgi0" foi publicado Com algumas modificagdes, "A ambiguidade neces. com o titulo "Metamorfoses do enunciado de fiesf0: nota sobre a assinatura da Nowvlle Heloise, in: Almanagut, 0.5, Si0 Paulo, 1977, p.38-43. (N. 0. 8 OC. I, Les Confess no século XVIII e aquela que conhecemos. f essa outra consciénci exemplo, que descreve J. M. S. Tompkins, quando se refer oposta ao romance pela critica da époc O romance [novel] de biblioteca circulant foi julgado pelos crticos frfvol moral e tedioso. Ele era também informe, mas isso nfo os incomodava tanto. Todos os tipos de produtos espirios, que hoje teriam seu lugar nas colunas da imprensa sensacionalista, apareciam nas prateleiras da biblioteca. Escindalos do momento ¢ causes efibris, graciosamente servidos em “dois curiosos volu- mes ornados de abercuras”; biografias ficcicias ou semificticias de estadista atrizes e prostitutas; hist6rias secretas; viagens € memérias de valor incerto; essas e outras mesclas obscuras de fato e ficgio passavam por “romances” n istas de livros da época, Sem duivida, o fato de que autores de genuinos ro mances ainda gostavam de aparecer como editor mentos auténtico: embora 0 truque jf est asto, abria caminho para essa classificagio, m. icages slo quase desnecessitias, pois “romance”, na linguagem comum Que 0 caso seja o mesmo na Franca, temos 10 Elege de Richardson, Diderot escreve que era preciso achar outro nor ue no “romance” para designar “as obras de Richardson”, O ato, para um romancista de hoj de apresentar seu romance como um documento ou abalar, a autoria: o leitor que, abrindo A ncontra diant editor” apresenta o didtio de Roquentin, ou, que ele ulerapassou a linha e que as frases nao se referem mais diretamente a realidade das coisas e dos acontecimentos, que acaba de ingressar em outro tempo ¢ outro espaco. Esse limite, o tt que marca o inicio ¢ o fim da narrativa, no interior mesmo da natrativa a diviséo entre o enunciado tético ¢ o enunciado de ficgio, todo esse sistema A rer de Romsscau que define o modo de individualizagio do romance nao € 6 mesmo num século e no outro. Nao se trata, ressaltamos, do efeito de uma imprecisio, como uma consciéncia confusa de um piiblico que nio sabe ainda se situar no oceano da ficgio e que nio consegue adivinhar as margens longinquas de uma maneira ou de outra (como o atesta o texto de Rousseau inscrito em epigeafe), essa forma de consciéncia € desejada e solicitada pelo autor marca, assim, uma intengio inscrita no proprio coragio da obra, Para leitor de hoje, é claro, esses romances podem se dat ~ no espago homogé- .gindtia” — como romances “para serem lidos neo de uma “biblioveca im « Bovary”; mas, do mesmo jeito que uma estatua grega perde como M eto estético em um muse sua “aura” cornando-se ol tornado objeto de uma leitura “histérica” ¢ “literdria", é arrancado do horizonte onde se entrecruzavam seu autor ¢ seu leitor, onde se perfilava seu sentido primeiro.® Assim, Bernard Guyon insiste, com razio, sobre a importincia dada por Rousseau a0 anonimato de A nova Helotsa e sobre a dificuldade de .dé-la hoje. Em sua nota,"! Guyon cita um parégrafo de uma carta compre Je Duclos, leitor "dos mais avisados e que conhece bem as astticias do da eficécia da decisio de ho da seriedade e mesn Rousseau, Duclos, que nao é um leitor in a, a questio a Rousseau como tester uo, longe disso, coloca, para retiré-la em se Eu gostaria, como leitor ¢ cidadio, que ele fosse [0 romance} de outro que 18s; como amigo, ficaria aborrecido se nio © fosse. Creio que compreendereis 1c, falando assim, nfo procuro atrancar vosso segredo; quando fico curioso co minhas perguntas eruamente; entio no responddais a esse respeito.* Do que se trata entio, se € preciso excluir a hipétese da simples “astdcia do oficio"? B. Guyon reintroduz a ideia da astiicia, sob forma de exigéncia ae Imaginar 0 seal ¢stética que implica 0 projeto de uma nartativa de incengio verista: esse pro- jeco que se traduz, em Balzac, pela proclamagio all is rue, Confessar a ve ponsabilidade das cartas teria sido pecar contra “as leis primeiras da e: tica do romance”. A essa hipétese, Guyon acrescenta outra, complementar ce que se refere a psicologia de Rousseau, 3 sua necessidade de se mascarat para escapar, seja a0s rigores de uma condenagJo moral (a0 assinar 0s “pen~ samentos” de A nova Helofsa), soja perfidia dos conspiradores: a astiicia do editor estabelece, de fato, entre Rousseau e seus personagens, assim como s ideias que eles exprimem, a distancia da “irresponsabilidade”. Contudo, parece-nos possivel procurar a razio do anonimato numa outra diregao. seguindo as indicagdes tedricas expressas no Preficio dialogado. Nos préprios termos que Duclos escolhe para colocar sua questo — © que o obrigam a suprimi-la, logo em seguida — vemos como a teoria rousseauniana do romance no é apenas uma esquiva e como ela aparece nas reagGes dos melhores leitores. Como ridadio, Duclos preferia que o livto nio fosse uma ficgio devida a Rousseau: isso quer dizer que também vt tuma “vantagem” no fato de o comance ser comado como documento, e que essa “vantage” € mais de ordem moral ou politica do que de pura estética Da perspectiva do “artista”, que nio seria antes de tudo “cidadao", toda a vantagem estaria no outro lado; e € por essa razio que Duclos, como prefere a hipétese do Rousseas-autor. Antes de ter de obedecera ex estéticas, a escrita € submetida as exigéncias da cidade: como ¢ escritor deve se apagar como “particular”, é preciso que desaparega atrés de sua escrita, que nio se torne Autor. Apenas essa decisdo pode marcara diferenca entre Rousseatt¢ 05 “lesrados”. A nota final do Prefiio « Nari é bastante interessante desse ponto de vista Admiro quanto a maioria dos letrados se deixou enganar nesse caso. Quando viram as ciéncias ¢ as artes atacadas, acrediraram que estavam send pessoalmente visados, [..] E como os sacerdates do paganismo, que s6 58 importavam com a religiZo na medida em que ela as fazia respeitat’ 83 OG, Narcsse, Peéface, p.974, nota [ed. bras. p36] 248 de Rowseon Essa exigéncia ’o é no entanto, suficiente para explicar integralmen- edo conservado por Rousseau: vilida como telos de todo aco de esctever, ela no impediu a assinatura de outros escritos. Antes de passat ncias préprias do romance, assinalemos, contudo, a presenga, na ‘obra de Rousseau, de uma problemitica g tes Ri al da autoria: quando Rousseau assina o Contrato social como Jean jo de Genebra, ele ja do puro particular, é impréprio pata aparecer desarmado” na capa desse livro; esse mesmo nome que aparecers deslocado e desmembrado nos Diélagos. Lembremos, antes de prosseguir, o momento seguinte do Preficio dialogado: “—N. ~ Na folha de rosto de um livro de R minha pitria; s6 0 amor ler lao de Genebral nos estas palavras: Por J.J Rousse fo de Genebra? Nada disso. Nao profano o nome d coloco nos escritos que acredito poderem honré-lo"." © comentério de Duclos langa uma luz sobre a problemética propria mente “romanesca” ¢ coloca, em termos p > menos surpreendentes, a questo da “astticia”. Se a astiicia de Rousseau, pois hé de fato uma astai- cia, se explica pelas exigéncias da “estética do romance”, a disjungio q) Duclos faz entre as duas possibilidades nao teria sentido. Apreciar, como especialista, a asticia de um escritor € saber reconhecer a arte no lugar em que ela se esconde ~ se a astiicia consi sm eclipsar a arte, esse eclipse temporirio e parcial s6 faz multiplicar-the o brilho. Assim, a “beleza” de sm trompe!'eil mostra-se apenas depois de dissipada a ilusio. Ora, a disjun- is termos: ou 0 valor do liveo, ou 0 ménto do io de Duclos separa esses d esctitor, Duclos, é claro, no se engana, e se ele suspende a questo, se nto quer deixar escapar 0 segredo de Rousseau, € porque adivinha o essencial: © maior mérito de Rousseau é renunciar ao mérito de escritor, Estamos, entdo, de fato, diante de uma mentita bem mais substancial e "séria" que 0s procedimentos formais correntes nas Belas-Letras ~ uma mentira que marca com uma profunda ambiguidade o estatuto da ficgio. Bem sabemos que, na sutil teoria rousseauniana da mentira, “mentir sem proveito nem Imaginar o ral prejutzo de si ou de oucrem nio € mentir; isso no é mentita, € Fiegio".S Mas apresentar uma fiegio como verdade seria ainda ficgio ow uma nova mentira Na verdade, apenas a ideia de uma “fiegio evanescente” convém aqui tuma fiegio que se esboga para desaparecer imediatamente, deixando, em seu lugar, apenas a clareza das coisas reais. Para que o romance seja sus cetivel de um bom uso é preciso que ele nio tome corpo demais, que nio fique entre o leitor ¢ © mundo ~ compreendemos isso melhor a partir da anilise da funcio da imaginacio. Como o pedagogo do Emilio, € preciso que a discrigio do romance se aproxime de seu méximo, que o guia esconda por assim dizer, o gesto pelo qual ele mostea o caminho. O que caracteriza © discurso do Mestre no Emilio é que ele fala o menos possivel das coisas que quer mostrar, como se seu siléncio, sozinho, abrisse 0 espago da visi bilidade do real, como se demasiadas palavras pudessem impedir 0 acesso 3s préprias coisas. Da mesma forma, o romance, ao esconder sua espessura romanesca¢ ficticia, volta o leitor para o real, para a sua existéncia concreta, ¢ Ihe permite imaginar sua prépria vida. Virada a diltima pagina do romance, comega o verdadeiro trabalho da imaginagio. DC. I, Les Réveres du promencur solitaire, Quatriéme Promenade, p.1029 [ed, bras.

You might also like