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O Protesto Negro Florestan Fernandes* Os extremos marcam as releges do negro com a or- racial existente. Essa ardem se alterou ao longo do tempo. Nao é a mesma coisa rebelar-se contra a ordem ra~ cial sob 0 modo de produgae escravista, em seguida, quan- do se implanta o trabalho livre e este dilacera muitos dos padres assimétricos de relacées humanas inclusive os ra~ ciais|; e mais tarde, nas décadas de 1920-1940 ov, entéo, na atualidade, O negro nfo pade ser excluido de tals transfor- magées dos padres de relagdes reciais, com os quais uma parte de populacdo negra sempre esteve em tenséo cons- Gente, Contudo, ele no conseguiu derrotar a assimetria nas relagdes raciais, as iniquidades raciais e as desigualdades ra~ ciais que tentou dostruir. No entanto, sempre houve ul ‘constante: em um extremo, o ativismo dos que contestavam abertamente; de outro, © ressentimento engalide com édio fou com humildade, mas que se traduzia sob a forma da acomadagao - que eu cheguel a designar como capitulacdo racial passiva, ‘As duas expressdes hist6ricas mais significativas desse ativismo aparecem vineuladas com os movimentos sociais espontaneos, que eclodiram, por exemplo, em Sao Paula nas décadas de 1920 até meados de 1940 e 0 que surge em conexio com a consciéncia social de um racismo, que, sem ser institucional (como nos Estados Unidos ou na Africa do Sul), provocava conseqiiéncias igualmente devastedoras. A questao de ser ou no o racismo institucional ou camutlado possui menor importancia do quo ole representa na repro- ducéo da desigualdade racial, da concentraggo racial da ri- quoza, da cultura @ do poder, da submissao do negro, como "$stogs Gepaaa Feera (P.5P) Protgsor enti ¢3.US® ecocerte oa Puc Perici, 121547, abun 1868 “raga”, & exploracao econdmica, & excluséo dos melhores ‘empregos ¢ dos melhores salérios, das escolas, da competi- ‘¢80 social com os brancos da mesma classe social etc,, € & redugdo da maloria da massa negra 20 “trabalho sujo" @ 2 condigdes de vida que confirmam o esterestipo de que “o negro nao serve mesmo para outra coisa". Essa compreensio sociolégica do assunto revela que classe e raca nunca se combinaram da mesma maneira, de~ pois de desagregarso de ordem social oscravocrata e do modo de producgo escravista. Sob 0 capitalismo competiti- vo, © nagro emergia dos pordes da sociedade e, para mui- 10s, parecia que ele se igualaria ao branco com velocidade, apesar do “preconceito de cor” e da discriminagao racial. A raga no era tomada como uma entidade social conris: tente e duradoura, como se a escravidéo se tivesse susten- tado no ar. Mesmo autores como Csio Prado Jinior, de uma perspectiva hist6rica, e Emilio Willems, de uma pers- pectiva sociolégice, entendiam que 0 capital is em busca do trabalho e @ passagem de escravo e liberto a assalariado se- ria automatica, Ela nio foi e, gracas a isso, a rebeligo latente das décadas de 1910 e 1920 gerou tentatives de organizar 0 protesto, lutar pela incorporacdo a sociedade de classes em formago e expanséo e de contrapor & ideologia racial dos brancos das classes dominantes uma ideologia peculiar dos negros © mulatos (ou, mais corretamente, uma contra- ideologia racial, que eu descrevo no quarto capitulo de A INTEGRACAO DO NEGRO A SOCIEDADE DE CLAS- SES), Forjar uma contra-ideologia constitufa uma faganha, nas condicées sociais em que viviam negros e mulatos em S50 Paulo. Sob 0 capitalise monopolista as empresas so- freram alteracdes profundas em suas dimensdes, organiza~ 20 © funcionamento. Um vasto excedente populacional 15 era atraido pelo mado de produce capitalista monopolista de todas as regides do Brasil, No seio das massas migrantes, aumentavam os contingentes negros e mesticos. O capita lismo monopolista vai ocupar um exército de trabalhadores ativos muito vasto, Os contrastes entre classe e raga tor- nam-se nitidos, E as varias saldas (ou falta de safdas) muito visiveis. O sistema ocupacional abre-se em duas pontas para os negros. Em massa, nos trabalhos bracais, como os dos “pedes” ¢ da construgso civil, Seletivamente, em posicdes intermediérias, que exigiam algum preparo cultural @ com= peticao interracial, e no Spice das ocupacées melhores, co- mo ums excegéo, que iria perder tal caréter com muita len= tid3o mas com certa constancia.. O protesto negro das clécadas de 20, 30 ¢ 40 langou suas raizes no apés | Guerra Mundial. Os ismos medrevam em. cidades como $20 Paulo, O negro entrou na corrente histé- rica e interrogava-se porque o imigrante tivera éxito e a massa negra continuava relegada a uma condicio inferior e iniqua, Véo surgit, assim, as primeiras sondagens espon- tineas do “meio negro”, feitas por intelectuais negros: @ os primeiros desmascarementos contundentes. O “preconcelto de cor” entra em cena, na consciéncia social negra, como uma formagio histérica, Nem as sondagens eram superfi- ciais nem es respostes contingentes. O negro elabora uma radiografia racial da sociedade brasileira e 6 com base nos resultados dessa radiografie que ele se insurge contra o pa~ ternalismo, o clientelismo @ a expectativa de conformismo dos brancos das classes dominantes. As sondagens so du- ras, porque péem o préprio negro em questo. O negro co- laborara, de modo inconsciente, com 0 branco para manter @ reproduzir a ordem racial que fora absorvida pelo regime de classes (0 parasitismo sobre a mulher negra, o abandon da mullher e dos filhos, o desinteresse por absorver institul~ ges que serviam de apoio econémico e social para o éxito dos imigrantes - como a familia ~ 0 medo de enfrentar 0 reconceito de cor dissimulado, a aceitacao de ser posto & margem da sociedade civil e iludide etc.). No fundo, surgem dues repulsas elementares: ¢ de conformar-se com as con- digdes de vida imperantes; a de conformar-so com as idéias simplistas de que o negro tinha aberta diante de sia estrada que lhe concederia a cidadania © tudo 0 que pudesse con- quistar através dela. Os dois inconformismos pressupunhiam 2 critica do preconceito e a condenacéo de discriminacées, que © preconceito parecia justificar mas cue no eram seu produto. O preconceito e a discriminagao possulam a mes- ma origem histérica e desempenhavam fungées comple- mentares, que reforgavam a dominacao racial dos brancos @ 2 compulsdo social de manter 0 negro em seu lugar, isto 6, de conjurar qualquer possibilidade de rebelige racial. E ver- dade que o intelectual ativista negro acabou assumindo a osigao de paladino da ordem: elo encarnava a consciéncia dos valores {ou dos mores) que sustentavem a ordem social, sem as inconsisténcias dos brancos. N30 obstante, por aqui surgiram varias associagées e entidades negras @ 0 movimento social que desembocava na: critica da ordem legal vigente e de sua inocuidade (e falsida- de} para o negro. Elaboram-se dessa maneira uma ideologia racial prépria, que nao chegou a difundir-se além das mino- rias inconformistas ativas (que organizavam e operavam os movimentos sociais espontineos de uma reforma racial dentro da ordem|, e certas disposigdes de enfrentar as ma- nifestagées de preconceitos © discriminagso em situagdes concretas. Tratava-se de algo mais amplo e profundo que um fermento social. Era uma incipiente ruptura racial. Po- 16 aseare ore (Gans) rm, 0 Estado novo pés fim a tais modalidades de insatista- go € de inquietagdes racicis, que incomodarem os brancos das classes dominantes (que enxergavam nos aconteci- mantos 0 despertar de um “racismo negro"!) e néo chega- ram a contar com a simpatia dos outros estratos da popula- go branca (inclusive os partidos de esquerda, que viam © “problema negro” como uma questo exclusivamente de classe e, portanto, como um “problema social"). Q movi- mento no morte. Ele hiberna, sob a pressdo externa da di- tadura, que de fato, recompds a capacidade de dominacéo oligérquica das classes sociais dominante e da raca branca. término da Il Guerra disseminara novas impulsdes de radicalizagao. Os de baixo se apagaram 30 sonho da demo. cratizagao da sociedade civil e do Estado - e avancavam di retamente no sentido de protagonizar 0 aparecimento de uma democracia de participacdo ampliada. O populismo dé alento 3 essas aspiracées © as reforga. Contudo, 0 movi- mento anterior nao sai da hibernagéo, As noves oportunida des de trabalho e de ascencaa social desdabravam para as, setores que poderiam retomar a inquietagéo racial miltiplas vias de classificagao no sistema acupacional. A classe mé- dia de cor”, que era uma fic¢do social, tornou-se acessivel © vai alastrar-se com ritmos lentos. Alguns negros tiveram éxito suficiente para alcancar_posigdes empresariais © 0 ponto de partida da constituigdo de uma burguesia negra, muito rala mas capaz de escapar da conjuncao mais desfa- vorivel na ralagdo entre raga @ classe, Eesas so as raizes histéricas do “novo negro”, que Iria repelir 0 protesto racial 2 defender a idéia de que “os movimentos negros dao azar”. ‘A massa negra trabaihadora submerge na luta de classes, que atingia densidade na década de 50 @ no inicio da de 60. Nos dois pdlos apareciam modalidades de auto-afirmacao que sepultam a tradigao da capitulacao passiva (que iria ser repudiada com intransigéncia crescente, inclusive envolven- do a identificacao do “negro transfuga” como uma persona- lidade nociva, uma prétics que provinha dos movimentos anteriores, 1mas nao se generalizaral. O “novo negro” pre- tendia a igualdade social conquistada como um processo natural. Voltava-se para 0 seu prdprio refinamento, para 3 consolidacéo da familia, a educarao dos filhos, 0 ideal de comprar ume casa propria, a disposigdo de excluir de suas relagdes “negros inferiores”, de visibilidade social negativa, © afastava-se dos brancos como simbolo de aquisicao de status social e de prestigio: dedicava-se com empenho em resguerdar os niveis de renda e de vida aleancados ¢ de protegé-los através da formardo de associarées proprias ete. Portento, a moralidade burguesa transpée as fronteiras que divorciavam o “mundo negro” do “mundo dos bran- cos”, mas sob custos psicolégicos e raciais muito altos. Aparece dese modo um isolamento racial penoso, porque 0 “problema” nao era sé de classes mas também de raca, Isso nao abaleva 0 “novo negro’ e sua deciséo heroica de repetir a histéria dos imigrantes europeus “bem sucedidos”, Os filhos dessas familias chegevam as escolas, que an- tes seriem uma miragem. Vo sofrer choques e decepcbes & participar de conflitos humanos draméticos, Dissociados ds tradig3o dos movimentos anteriores, n8o se colocavam na condicao de paladinos da ordem - e nem isso seria possivel, sob as realidades do capitalismo monopolista. Engolfados no convivio intensa com brancos jovens, destrutavam de maior aceitagdo que os sous pais (a aceitagao diferencial va- ria com a categoria social, com a classe, com a fraternidade politica, com a idade etc.], Ficavam mais ou menos deso- rientadas ¢ mostravam sue desorientacdo nos jornzis da universidacie (como no Porandubas da PUC-SP}, Sua expe- rigncia da vida concrete nao se compara & dos antigos mili- tantes. Porém, suas disposi¢des psicossociais sao mais complexes, Eles ndo se satisfariam com as descobertas 2 as explicagdes iniciais, que circundaram a primeira revolta da consciéneia negra, Por sua ver, o negra aperarie enfronha vase em um dia-a-dia no qual a realidade da classe salien- tava as percepcdes negativas da raca. Eles pressentiam e por vezes logravam explicar concretamente os artificios que tor- navam os negros um manancial da exército de reserva e da superexploracso econémica, so mesmo tempo que, atra- vés do sindicato e do partido, chegavam ao fundo da ques tao. A reforms social articula-se 4 revolugia demoerética, 3 movimentos voltados ao combate da repressao coletiva dos ce baixo. Sem os meios culturais para ver as coisas mais claramente que os filhos-familias do “novo negro”, conta vam com a experiéncia colativa do enfrentamento social co: tidiano contra a ordem. O intelectual negro ficava entre as cuss polerizardes. Tenha uma ou outra origem de classe, ele recebia o impacto das ebulicdes que vinham de fora, dos ismas da década de 60 na Europa ou nos Estados Unidos ¢ se torneva propenso a ver a raca como 0 eixo da existéncia de um racismo institucional de variedade brasileira, Poet principalmente, na maiorie libertérios ou socialistes, iam & radicalizaga0 extrema, Uns, utopicamente, fantasiavam 2 realidade e 0 sonho de insurgéncia negra independente ‘aparecia como uma vaga possibilidade. Outros, mais enfro- nhados na pratica e teoria revalucionarias associavam classe fe raca e apontavam a saida nao na reforma social, mas na revolucao contra @ ordem, na qual o elemento raga ache o seu lugar préprio, de scelerador e aprofundador da trans- formarao da sociedade. Alguns, por fim, sublimavam as frustragdes @ as projetavam no plano puramente estético © abstrato, realizando-se como agentes criadores negros, mas arrancando © proceso inventivo dos tormentos do dia-a- dia, ew, Sto Pais om Pra E claro que uma sociedade na qual 0 capitalismo mo- nopolista absorve maiores parcelas da mio-de-obra © des- cerra varios canais de ascencao social pare o negro desdo- bra alternativas de acomadacdo racial que no oxistiam no pasado recente, De outro lado, os germes de uma burgue- sia negra floresceram, mais no plano da classe média, Mas existiam alguns milionSrios negros. Como nos Estados Uni- dos, mas de forma histérica diversa, hé no tope um parale- lismo em desnivel entre raca e classe, que faz com que © ne- gro surja entre os de cima em nichos préprios e mais ou menos fechados, na rabeira dos “brances ricos". Ocorre que: © cagitalismo monopolista da periferia nao contém dina- mismos para fundir raga e classe, Um movimento nessa di- reg8o fica dependendo de alteragdes ou revolugdes proletd- rigs e socialistas. 0 fato nu e cru é 2 existéncia de uma imen- 52 messg de trabelliadores livres e semilivres, na cidade @ no campo. E, portanto, entre os de baixo, onde a luta de classes eropita com oscilacées mes com vigor crescente, que a raga se converte em forte fator de atrito social, A problemas que poderiam ser resolvides “dentro de ordem”, que aleangam a tlasse mas esto fora do Ambito de raga, A raca se configura como a pélvora do paial, 0 fator que em um contexto de confrontagéo paderé levar muito mais lange o radicalismo inerente & classe. Como escrevi no prefécio do livro citada, & a raga que definiré o padréo de democracia, em extensio & profundidede, que corresponderé as exigéncias da situacao, brasileira. Hoje, alids, 6 patente que a reflexdo vale tanto ara uma democracia burquesa, quanto para uma democra~ tia popular e proletéria - ou seja, do capitalismo ao socia- liso, O PT @ todos os partidos de esquerda proletérios aprenderam parte dessa verdade e logo irso eprender toda a verdade, Os de baixo devem ser vistos como uma totalidade 2 seus dinamismos politicos revoluciondrios, se ou aa se de- sencadearem se imporéo naturalmente aos partidos que queiram “transformar © mundo” e “criar uma sociedade Os intelectuais © os militantes negros mais radicals [4 possuem 2 intuicdo desse fato provével. Por isso, n3o reto- maram os abjetivos e os valores dos antigos movimentos negros. Respeltam-nos e os cultivam como parte da memé- rig negra, porém interrogam o presente € 0 futuro préximo para definir suas posicdes. A mesma razdo apresenta-se numa slteragao do mado de relacionar-se com 0 "radicalis- mo afro-americano” da década de 60 e com os pafses afri- anos, que permitem descobrir suas identidades raciais & culturais, e com os equacionamentos tedricos que distan- ciam 0 alcance revoluciondria da classe do impeto revolu- cionério da raca (o que induz os que so marxistes @ enri- {quecerem a teoria, tornando-a mais abrangente e adequada 2 condigées histérices concretes da periferia). Em suma, 0 desafio nao consiste em opor um racismo institucianal bran: co 2 um racismo libertério negro. Ele se apresenta na neces- sidade de forjar uma sociedade igualitéria inclusiva, na quel nenhum racismo ou forma de opresséo possa subsistir © florescer. Ainda af, objetiva-se um modo de ser socialistali- bertério que transcende 0 eurocentrismo e impulsiona 3 auto-emancipacao coletiva dos negros a conferir o mesmo eso a igqualdade, a liberdade e & fraternidade, no interior de uma sociedade multirracial. Nao se trata de repetir a histéria de outra maneira, cobrando dos brancos da mesma classe ou de outras classes 0 preco dos ultrajes nascidos da “he- gemonia da raca branca”. Sim de criar uma historia nove culos germes aparecem nas comunidades operdrias e nas negdes em transicao para 0 socialismo. 7 17

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