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As vérias faces de Raul Pompéia eO Ateneu Fabio Lucas Na passagem efémera de Raul Pompéia pelas letras brasilei- ras ficaram marcas profundas de sua personalidade ¢ 0 registro inapagével de sua capacidade criadora ¢ aptidao literaria. ‘Travamos conhecimento de O Ateneu aos doze anos de ida- de. Daf por diante, a cada nova leitura, novo campo de admiragéo se abriu para o romance concebido pelo autor aos 25 anos. presente trabalho visa realcar os fatores benéficos de nos- so convivio com a obra de Raul Pompéia. Um lance biogrdfico: 0 suicidio Raul Pompéia suicidou-se a 25 de dezembro de 1895, Curi- osamente, dois anos apés, em 1897, Emile Durkhein publicaria seu livro classico sobse 0 suicidio, observado como fendmeno social. A seu ver, cada sociedade est predisposta a fornecer um contingente determinado de mortes voluntérias, Ou seja, est sujeita a uma “taxa social de suicidio”. Escusou-se Durkheim de fazer uma andlise psicolégica do auto-exterm{nio, ou nao se aventurou a um estudo de suas causas. Apenas concluiu que o suicidio varia na razdo inversa do grau de integracio da sociedade religiosa, do grau de integracao da socieda- de doméstica e do grau de integracao da sociedade politica. de Raul Pompéia, em fungao dos parametros acima, seria designado egoésta, na medida em que, segundo o socidlogo, a desin- tegracao social (ceal ou imagindria) acarretaria um isolamento do RAUL POMPEIA 14 individuo e a preponderancia dos interesses pessoais sobre 0 eu so- cial. Em outras palavras, a prevaléncia da individualidade determi- naria, no individuo, uma baixa tolerincia as frustragées. Foi o que aparentemente se deu com nosso romancista. Assim, nas pegadas de Durkheim, seria 0 caso de considerar © ato extremo de Raul Pompéia como impulsivo e ego-altruisea, pois faz supor ser 0 efeito da combinacéo da melancolia com a fir- meza moral. Nas crénicas do autor de O Ateneu encontramos algumas reflexdes sobre o suiicidio que nao autorizam trabalhar com a hipé- tese de premonicao. Assim, a 15 de dezembro de 1885, escreveu na Gazeta da Tarde, do Rio, o artigo “Imprensa e suicidios”, onde faz pilhéria a respeito da eficdcia das noticias sobre a determinagao sui- cida das pessoas.' Havia, na época, preceitos éticos que recomenda- vam nao divulgar na imprensa casos de suicidios. Raul Pompéia voltaria ao assunto a 1° de dezembro de 1890, no Jornal do Commercio, do Rio. Volta a atacar os “apologistas do siléncio”, ao comentar o suicidio de um cobrador que, tendo perdi- do dinheiro dos outros em apostas, resolveu matar-se com um “re- vélver contra o peito”. No dizer de Pompéia, “esta forma estéica de punigao da sua imprudéncia, mesmo por que foi excessiva, é uma coisa admirdvel. Como drama de honra ¢ completo”.? Na seqiiéncia, Pompéia ironiza a solugao tragica do cobra- dor destes de amor ao bom nome ngo recomendamos o exemplo. Nao “Por mais que admiremos contudo ¢ que louvemos um rasgo se matem os cobradores em caso nenhum, Os cobradores existem para as cobrangas e nao para os suicidios.” E encerra o artigo com uma adverténcia para que nao se gaste em apostas 0 dinheiro alheio. Note-se que Pompéia nfo deixa de elogiar a “forma estéica” de resolver 0 “drama de honra’, “coisa admirdvel”, em proveito do “amor ao bom nome”. Na tese de Maria Luiza Ramos’, de que defluem, mesmo sem citagéo, muitos dos trabalhos posteriores acerca do autor, ficou As vtrias faces de Raul Pomptia e O Atenew explicito que a “honra” constitafa uma espécie de fixagio na menta- lidade do romancista, a sua “alma exterior” (para empregar um designativo de Machado de Assis). Ramos admite que Raul Pompéia fez da “honra” o seu objeto libidinoso. O suicfdio seria um modo de recuperagao do objeto. Pompéia, ao suicidar-se, deixou esta nora escrita: “Ao jornal A Noticia, e ao Brasil, declaro que sou um homem de honra.” Em nome de um conceito ético muito restrito, chegou, cer- ta vez, a propor um duelo a Olavo Bilac, que 0 ofendera em artigo (1892) e, durante a vida, entrou em conflito com adversdrios € opositores, Era um impulsivo. Ao avancar no corredor do debate de idéias, nao encontrou retorno, apés ter sabido com atraso do inso- lente artigo de Luiz Murat, “Um louco no cemitério”, que 0 atacava pelo discurso apaixonado proferido por ocasiao do enterro do ma- rechal Floriano Peixoto, rejubilando-se de sua demissao do cargo de diretor da Biblioteca Nacional‘. Suspicaz, quis refutar o ataque com dois meses de atraso. Nao teria encontrado guarida no Jornal do Commercio. Segundo El6i Pontes, seu bidgrafo, teria ficado acabrunhado quando nao se publicou, em A Notécia, seu segundo artigo. Julgou-se desprestigiado € perseguido. Alvaro Lins, certa vez, chegou a tecer um paralelo entre a morte de Pompéia ¢ a de Gevilio Vargas, pois apresentavam algo em comum: o tito no coracao. Ambos, vaidosos, nao quiseram vio- lar a aparéncia ¢ visaram 0 coracio € nao a cabeca, a fim de que 0 rosto permanecesse intacto post obitum. O dramético desenlace da vida de Raul Pompéia, homem irtitadigo, explica-se pelo descontrole emocional e pela erosio de seu amparo politico. A morte de Floriano Peixoto equivaleria, para ele, a destruigao da imagem paterna. Pompéia manteve relagao con- traditéria com o pai e projetou na personagem Aristarco, de O Ateneu, os mesmos sentimentos de repulsa e de encantamento que devorava a figura paterna. Além disso, Floriano Peixoto simbolizava 16 RAUL POMPEIA a vitéria de seus ideais republicanos e nativistas, era um referente muito forte para a determinagéo de seu ego. O Ateneu vem a set, sob esse aspecto, uma tentativa bem lograda de reescrever o passado. Mas opée-se, como atitude existen- cial, aos conselhos que o menino Sérgio recebera do pai. Com efei- to, jé aclimatado ao colégio, 0 narrador conta que os pais haviam seguido para uma viagem Europa. E de ld recebera uma corres- pondéncia paterna, na qual ficam evidentes tanto o formalismo com que eram tratados os filhos naquele tempo como o desenvolvimen- to de uma filosofia imediatista, horaciana, ao nivel do carpe diem, « misturada a prelecdes de retidao moral: “A regra moral é a mesma da atividade. Nada para amanha, do que pode ser hoje; salvar o presente. Nada mais preocupe. O futuro é corruptor, o pasado € dissolvente, s6 a atualida- de é forte. Saudade, uma cobardia, apreensio outra cobardia. dia de amanha transige; 0 pasado entristece e a tristeza afrouxa, Saudade, apreensio, esperanga, vos fantasmas, pro- jegdes inanes de miragem; vive apenas o instante atual ¢ tran- sitério. E salva-lo! salvar o naufrdgio do tempo. Quanto a linha de conduta: para diante. E a honesta Iégica das ages. Para diante, na linha do dever 0 mesmo que para cima, Em geral, a despesa de herofsmo é nenhuma. Pensa nisto. Para que a mentira prevaleca é mister um sistema completo de mentiras harménicas. Nao mentir é simples” ? Simbolicamente, Raul Pompéia, apés tratar 0 passado de sua for- maco com crueza e revolta, apela para o esquecimento, 0 oblivium radical do colegio ¢ de suas ramificagées. No final dramatico, colo- cao diretor do Ateneu abandonado da mulher e da Fortuna, impo- tente, vencido, assentado sobre os escombros do educandatio varri- do pelo fogo. Ridfculo na sua soberba, As vitrias faces de Raul Pompéia¢ O Ateneu O Ateneu: romance de formagao e pacto autobiogrdficos Publicada em 1888, a obra-prima de Raul Pompéia com- porta andlises em varias esferas de investigagdo. Narrativa complexa © €m muitos aspectos, pioncira, permite seja considerada em seus varios componentes artisticos. Obra multivoca, repele de certo modo 05 ideais vigentes do realismo-naturalismo predominantes entao, de compromisso estético com exteriorizagées preexistentes a0 ato da escrita, mediante um pacto conceitual de caréter cientifico, comprobatério, documental ¢ ideologicamente orientado para a expresséo univoca, O Ateneu se propée na interseccio de varios conjuntos estilisticos ¢ semiolégicos que atravessam 0 texto. Posta-se na en- cruzithada de incontéveis reivindicagées de sua época. ‘Tomemo-lo inicialmente como 0 nosso primeiro grande ro- mance de formacio. © nosso Bildungsroman de maior expresséo. Ali se relatam as primeiras experiéncias discentes do narrador, que espelha ¢ comenta sua educacéo pedagégica ¢ sentimental. Como fatura escrita, manifestacao literdria, deixa & mostra 05 ttagos epocais predominantes. Desde a busca do rigor artesanal do parnasianismo, até as licengas tematicas do realismo-naturalis mo. Apresenta igualmente o método monografico do naturalismo as evanescéncias ¢ sonoridades embriagadoras do simbolismo. Sob outro Angulo, podemos surpreender no texto de O Atenen desde a contengdo ¢ a secura da representacao cléssica, até as paixdes desordenadas do espirito romntico. Por sua vez, a narrativa abre janelas para o estudo do cotidi- ano do Segundo Império brasileiro, oferecendo ao leitor a visada de nossas instituigées politicas e educacionais, manifestadas no com- portamento das personagens, na indumentéria, nos habitos do dia- a-dia e nas clocugées de autoridades publicas e comparsas. 17 RAUL POMPEIA 18 Portanto, auténtico romance de aprendizagem ou de desen- volvimento, com toda a sua roupagem de cultura e de processos civilizatérios. Romance da idade em que o homem se forma, expoe a caminhada interior percorrida pelo narrador, enquanto se realiza o progresso da personagem. O Bildungsroman nao se tesume nos aspectos teméticos, mas incorpora a fungao didética, pois se formaliza por uma intengao pedagégica, destinada a influir na educagio ¢ formagio do leitor. O heréi do romance percorre o caminho de conhecer a si préprio atra- vés das experiéncias de amor, amizade e da vida social ¢ politica. O Areneu ulttapassa os paramettos conceituais do Bilgunsroman na proporgéo em que satiriza com azedume o meio retratado e reflete uma infincia abomindvel, territério de terrivel expiagao. E 0 que informa o narrador, no capitulo VIII: “Desespe- rava-me entio ver-me duplamente algemado & contingéncia de ser irremissivelmente pequeno ainda e colegial. Colegial, quase calceta! marcado com um ntimero, escravo dos limites da casa e do despo- tismo da administragao”.§ O contrato de leitura estabelecido pela obra nos convida a percorrer trés esferas de apagada ou explicita enunciagao: a do nar- rador/personagem, a do autor/narrador e a do narrador/autor/in- formante. As implicagGes se entrelacam, confundem, deformam e recriam no plano da unidade romanesca, jé disfargada desde o sub- titulo atribuido pelo autor: “Crénica de saudades”. Donde certa uniformidade estilistica das vozes autorizadas do romance, bem como de conferéncias, cartas, comentirios transcritos integralmente no texto. F dai que tiramos a segunda proposicao conceitural que a obra oferece: 0 pacto autobiogréfico embutido na “crénica de sau- dades”. Ora, a “autobiografia” vem a ser um género de relativamente recente cristalizagéo no panorama literéria ocidental. Descontadas as confissdes religiosas, cujo modelo pode ser localizado em Santo As wis faces de Raul Pompéia ¢ O Atenew Agostinho, as memorias irdo encontrar sua laicizacao secular a par- tir do século 18 na Franga, quando se manifestou enorme inter- cambio entre as memérias e 0 romance em primeira pessoa. As de J. J. Rousseau valem como 0 arquétipo do género na era burguesa. Temos, com O Ateneu, um discurso em primeira pessoa, as- sociado a um engajamento pessoal muito forte, quase apaixonado. As memiOrias ¢ as autobiografias tiveram um estatuto exteri- ora literatura, antes de integré-las e de consolidar sua posigao entre os géneros. H4 uma atraco muito grande por manté-las entre as operagbes historiogréficas. A autobiografia se define por ser aquele género em que 0 individuo incide a énfase sobre a génese de sua personalidade. Di- ante do texto, cabe ao analista observar primordialmente a intengao autobiogréfica. Para Philippe Lejeune, a autobiografia é “um dos aspectos mais fascinantes de um dos grandes mitos da civilizagao ocidental moderna, o mito do eu.” Na viséo de Northrop Frye, misturando a confisséo com o romance, obtém-se a autobiografia imagindria, 0 Kiinstler-roman, ow algum outro tipo vizinho# O centro do ato autobiogréfico pressupée a identidade do autor com o narrador e deste com a personagem, de tal modo que o cardter do sujeito tratado se apresente mais ou menos imutavel. Ferdinand Brunetiére estabeleceu o designativo “literatura pessoal” em artigo polémico de 1888 (ano da publicacao de O Ateneu, tecorde-se). Pode-se incluir na literatura pessoal textos como ro- mance, autobiografias, didtios, corcespondéncias e memérias. Conforme se diz, os géneros integram um sistema de inércia necessario 4 continuidade da literatura sua possivel e ulterior mu- danga. A normalidade dos géneros advém da critica, quer a jornalistica, quer a universitéria. Os géneros, portanto, sao proble- mas histéricos complexos, dependem das expectativas da época e somente existem no sistema em que se manifestam. Vivemos a época da mestigagem dos géneros, j4 que estes 19 RAUL POMPEIA 20 no se subordinam perfeitamente nem aos arquétipos ditados pela teoria dos géneros, nem as criag6es histdricas mantidas por circuns- tancias epocais e passageiras. Nao podem ser estudados hoje de acor- do com o idealismo teérico, que retira suas categorias de um qua- dro conceitual a priori. Actise do romance como género advém do século 19, Exau- re-se o interesse pela ago romanesca, a nogio do herdi perde subs- tancia, nfo se sustenta a exploracao da intimidade da personage ou do drama da consciéncia.A técnica narrativa incorpora recursos de outras técnicas de comunicasio, a prosa softe a invengao da at- mosfera poética. O Atenew pode ser apontado como exemplo de hibridismo de situag6es narrativas. Observa-se, jé no fim do século 19, 0 predominio do discur- so da subjetividade universal, com a alta da poesia lirica e da ficgao intimista, a que se agrega nova massa critica, insuflada pela onda realista, Raul Pompéia, em O Atenew, combina literatura pessoal. com literatura de testemunho. Entretece os dominios do discurso da fic- fo com os da memsria, os da informacao educativa e os da exposi- fo cientifica, Na leitura do romance, ora se denuncia o pacto auto- biografico, ora nao. Tomando o mundo vivido como fonte, mistura confissio com profissao de Fé. © romancista opera uma retroviséo desnudante, num relato retrospectivo em primeira pessoa. O tapete estilistico ‘Nao seria pertinente rotular O Ateneu de conformidade com as categorias convencionais, com a exclusio de dreas vizinhas. Quem defender seu enquadramento no realismo-naturalismo empregara meia-verdade. Do mesmo modo operaré quem designé-lo coma “somance impressionista” ou “simbolista”, ou “parnasiano”. Sem- pre etiquetas insuficientes. As varias faces de Raul Pompéia e O Ateneu Haverd, ao longo do discurso romanesco de O Ateneu, tre- chos € mais trechos em abono de cada um desses enfoques. Os ma- tizes da linguagem, o virtuosismo cromético, os jogos verbais na linha da teoria das correspondéncias (aspecto explorado por Maria Luiza Ramos em sua tese), a imagem actistica de algumas passa- gens, de cunho simbolista, 0 perfeccionismo vocabular de extragao parnasiana, com aquela ouviresaria delicada, tudo, enfim, arregimenta um panorama multinucleado, estampa um objeto de incimeras facetas. Cremos até que a originalidade de O Atencu decorre em par- te do amalgamento de muiras qualidades, em que a proposta monogréfica se vé devorada pela inventividade do discurso literdrio. A criagao € de tal porte que, em varios momentos do ro- mance, a carga documental ¢ inserida sob alta pressio irdnica, como se 0 suporte cientifico fosse digno de chalaca ou descrédito. O territério estilistico de O Ateneu oferece abrigo a todo género de investigacao, Nao somente a pratica discursiva, acidenta, da de recursos ¢ figuras de linguagem, como preceptiva tedrica abun- dam de exemplos ¢ felizes achados. Tudo confirma a riqueza verbal do romancista. ‘Muitos jd mostraram que as comparagées introduzidas pela conjungao “como” pululam no texto do romance, prestam-se a cri- agbes surpreendentes de imagens, ressaltam 4 primeira observagao do leitor, Metaforas ousadas e hipérboles engenhosas garantem o apoio pottico da narrativa ¢ caracterizam o estilo enfatico do romancista, que os emprega tanto para ressaltar o lado grotesco ou tidiculo das petsonagens, como para intensificar a a¢ao ou os sentimentos des- critos. As vezes o escritor tem acentos estilisticos revolucionstios, que lembram as primeiras e mais devastadoras ousadias dos moder- nistas: “No patio, o siléncio dormia ao sol, como um lagarto”, ° 21 22 RAUL POMPEIA Mukltiplicam-se os comentarios sarcasticos: “Veio 0 médico, o mes- mo de Franco; nado me matou”.!° De tal sorte é a intencionalidade arefstica do narrador que no raro surpreendemos motivagdes onomésticas em certas perso- nagens. Assim, Candido é apresentado por Rabelo a Sérgio “com aqueles modos de mulher, aquele arzinho de quem saiu da cama, com preguica nos olhos”. Malheiro surge como “um grande ginas- ta’, “forte como um touro”. Ribas, “angélico, feio, magro, linfati co”, tinha, quando cantava, um olhar “que subia, que furava 0 cu como a extrema agulha de um cemplo gético!” E 0 som de sua vor partia para o infinito como um foguete, “recolhia-se aos coros celestiais”. '' A teoria das correspondéncias aparece numa das trés confe- séncias do doutor Cléudio, transcritas integralmente no romance. Vejamos: “O coracao ¢ 0 péndulo universal dos ritmos. O movimento isdcrono do miisculo é como o aferidor natural das vibragSes harménicas, nervosas, luminosas, sonoras. Graduam-se pela mesma escala os sentimentos ¢ as impresses do mundo, H4 estados d’alma que correspondem & cor azul, ou as notas gra- ves da miisica; ha sons brilhantes como a luz vermelha, que se harmonizam no sentimento com a mais vivida anima- a0”. O Ateneu leva-nos, pot vezes, a recantos de rara impregna- fo actistica, de sonoridade agradavel, hipndtica. Na rentaciva de transmitir 0 clima de repouso ¢ figeira melancolia do estado de convalescéncia do narrador, eis 0 principio do capitulo VII: “Maisica estranha, na hora célida. Devia ser Gottschalk. Aque- le esforso agonizante dos sons, lentos, pungidos, angiistia deliciosa de extremo gozo em que pode ficar a vida porque fora uma conclusio triunfal, Notas graves, uma, uma; pau- sas de siléncio ¢ treva em que o instrumento sucumbe ¢ logo As wirias faces de Raul Pompéia e O Ateneu um dia claro de renascenga, que ilumina 0 mundo como 0 momento fantéstico do relimpago, que a escuridio nova- mente abate.” As sensag6es musicais acabam por sugerir o estado de lascidao da personagem. Todos conhecem a aptidao de Raul Pompéia para o desenho ea critica de arte. E forte em sua prosa o cromatismo, as cambiances notagées das cores, a visualizagio. O desenho das personagens re- forga-se na parte icbnica, pois o romance é ilustrado de ponta a ponta pelo artista, Aponta-se a predomindncia da cor vermelha nas imagens, comparagées, similes ¢ trechos natrativos de O Atenew. S6 compa- ravel, por vinculago metonimica, ao uso de sintagmas formados a0 redor do vocdbulo “sangue” e suas derivagées como “tubro”, “escar- late”, “encarnado” e “sangiiinea”. Registro de paixao, de sensualida- dee de energia vital. Fala de uma rosa “vermelha como um grito de triunfo”. E apresenta Aristarco a mostrar-se “como um cartaz que experimentasse o entusiasmo de set vermelho.” E soberbo nos tragos caricatos: “O assassino era mais escuro, espécie de andaluz de touradas, baixo, sélido, grosso como um cepo de agougue”."* Na seqiiéncia, surpreendemos uma concordancia de raro sa- bor estilistico. E 0 caso de “desejosos” neste period: “Apenas desa- pareceu 0 criminoso, 0 colégio inteiro assaltou a escada, desejosos de ver 0 assassinado”. 1° O teor de libelo conferido a O Atenen fez com que o escrito excedesse nos jogos irénicos, nas imagens grotescas, nos tépicos de exageracéo. Eis como descreve um novo agregado 4 comunidade do colégio, quando comparece ao Grémio Literdrio Amor ao Saber: “Nearco atirou-se & especialidade dos paralelos. Comesou logo por dois de pancada: Cila e Mirio, Tito ¢ Nero. No 23 RAUL POMPEIA 24 expediente prometia-se um terceito curiosissimo: Plutarco € os beécios. Esta queda para as linhas equidistantes, talento de cattil urbano e anexos muares, foi mais uma razao de pres- tigio para o extraordindtio rapaz”.!° Lembre-se: a primeira apresentagao de Nearco foi no campo de gi- néstica, mas paralelas... Doutrinagéo estética Na esfera conceitual, em que prédigo O Ateneu, vamo-nos deparar com toda uma formutacio estética. E curioso como Raul Pompéia dominava bem o estudo das propriedades artfsticas, com apenas 25 anos de idade. Rastreando os pensamentos do doutor Cldudio, alter-ego do autor/narrador, encontramos uma teflexio sistemitica sobre o belo artfstico. Sua explicac4o contém nogdes evolutivas da arte, pres- tando tributo & corrente evolucionista da época. mas fundamenta- se primordialmente na apologia do fazer estético, instrumento de conquista da eternidade pelo ser humano, através do poder criador. Na exaltada expresso do doutor Claudio, que incorpora os arrou- bos verbais de Raul Pompéia, temos: “Cruel, obscena, egoista, imo- ral, indémita, eternamente selvagem, a arte é a superioridade hu- mana — acima dos preceitos que se combatem, acima das religiGes que passam, acima da ciéncia que se corrige; embriaga como a orgia e como o éxtase. E desdenha dos séculos efémeros”.” Na mesma conféréncia, encontra-se uma retérica do roman- ce, “feicao atual do poema no mundo”. Tudo regido pelos “movi- mentos ¢ vacilagdes de tudo que progride”. A concepsao do progresso, universal desde o iluminismo e sistematizada pelas doutrinas evolucionérias, encontra abrigo nas idéias estéticas do doutor Claudio, que faz do artesanato a lei radi- Asvudrias faces de Raul Pomptia e O Ateneu cal na busca da beleza e da perfeigao artistica. As “artes literdrias” sao caracteristicas como “eloqiiéncia es- ctita”. E 0 discurso do doutor Claudio se permite premonigdes que levaram ao versolibrismo modernista. Ataca o verso e diz: “A critica espera que dentro de alguns anos o metro convencional postico tera desaparecido das oficinas de literatura”.'* © doutor Claudio toca ainda em duas nogées polémicas: “Além de intitil, a arte ¢ imoral”. E produz, no seu estilo enfatico, uma verdadeira galeria Aitsch de imagens: “Poema intencionalmen- te moral é 0 mesmo que estétua policroma, ou pintura em relevo. Apenas uma cousa possivel, nada mais; hé também quem faga flores com asas de barata e pernas”,”” Moralismo cético Etica e estética se entrelacam estreitamente na concep¢io artistica desenvolvida dentro de O Atenen. A dimensio ética pesava demais na cartilha de conduta do romancista. O Ateneu, como libelo contra as instituigses de ensino da época ¢, especialmente, contra os valores do Segundo Império, postula uma visada cética quanto ao mundo circundante, reprodu- zido no microcosmo do colégio interno, com sua hierarquia, seus Preconceitos ¢ seus privilégios. O romance se abre com uma adverténcia cruel sobre o tem- po de aprendizagem: “Eufemismo os felizes tempos, eufemismo apenas, igual aos ‘outros que nos alimentam, a saudade dos dias que correram como melhores, Bem considerando, a atualidade é a mesma em todas as datas, Feita a compensagio dos desejos que vari- am, das aspiracées que se transformam, alentadas perpetua- mente do mesmo ardor, sobre a mesma base fantéstica de oa 26 RAUL POMPEIA esperangas, a atualidade € uma. Sob a colorasao cambiante das horas, um pouco de ouro mais pela manh’, um pouco mais de ptirpura ao creptisculo — a paisagem é a mesma de cada lado, beirando a estrada da vida”. E se fecha com um tom elegiaco, ressaltando a forca inexordvel do tempo: “Aqui suspendo a crénica das saudades. Saudades verdadei- ras? Puras recordages, saudades talvez, se ponderarmos que o tem- po éa ocasiao passageira dos fatos, mas sobretudo — o funeral para sempre das horas”?! Em dado momento, na mesma linha pessimista € desalentadora, 0 narrador/personagem reflexiona, no capitulo XII, dedicado em grande parte a explorar o tédio do internato: “$6 ve- mos a2ul o pasado, pois ¢ ilusio e distancia”. A retidao moral embargava os impulsos do estudante Sér- gio. Em certa ocasiao, ele vem a descobrir uma travessura erética, armada por um grupo chefiado por Malheiro que, em escapadas noturnas, se satisfazia no chalet habitado por Angela, a mais célida mulher do romance. O narrador assim se pronuncia, ponto & mostra os seus “com- promissos de linha reta’, tema muitas vezes brandido pela pena do cronista Raut Pompéia: “Nao quis as vantagens, mesmo marro & parte. Nao que me nido escaldassem as horas nocurnas do chaled Ah! o passeio livre no jardim! as grades abertas do carcere forsado! Mas uma hesitagio prendia-me, de compromissos antigos comi- go mesmo, compromissos de linha reta, nao sei como diga, raz6es velhas de vaidade vertebrada’.® Dentro de seu moralismo cético, o narrador de O Ateneu tece consideracées éticas que valem como leis afrodistacas: “a exis- téncia agita-se como a peneira do garimpeiro: 0 que vale mais ¢ 0 que vale menos, separam-se”. Ea regra da selegdo natural em outros termos. As udrias faces de Raul Pompéia e O Ateneuw O narrador, com certo radicalismo, refere-se ao internato com parcela de uma totalidade que ali se refletia, num mundo que separa fatalmente os bons dos maus: “Nao € 0 internato que faz a sociedade; 0 internato a reflete. A corrupgio que ali viceja, vai de fora. Os caracteres que ali triunfam, trazem ao entrar 0 passaporte do sucesso, como os que se pesdem, a marca da condenacéo” Exagerado determinismo, vé-se. A predisposigo de Raul Pompéia em O Atenew leva-o a formalizar seu discurso na pauta do libelo. Daf a elevada carga de mordacidade que transparece do tex- to. O jovem timido, impetuoso ¢ cheio de orgulho percorre 0 cam- po ficcional sem esconder a rigidez do que supde ser a retidio moral. ‘Ao mesmo tempo, as impulsées sensoriais se tornam acen- tuadas, quer na caracterizacio do despertar do macho nas mutagées do adolescente, quer na adeséo aos ditames da escola literdrias da época, vivamente interessada na exploragao da sexualidade e dos casos patolégicos. Raul Pompéia, por veres, na vor do doutor Cliudio, explora “O esforco da vida humana, desde o vagido do bergo até o movimento do enfermo, no leivo de agonia, buscando uma posig&o mais cémoda pata morrer, é a selegao do agradavel*.* Logo a seguir, acrescenta: “Duas so as representagGes ele- a doutrina epicuris mentares do agradével realizado: nuttigo e amor”.2* E mais: nas oscilantes atitudes do jovem educando vibram tanto os apetites masculinos (as descrigées de Angela valem como uma licio de erotismo, assim como a emoliente relagao filial com Dona Ema), quanto 0s femininos, nos momentos em que o peque- no Sérgio sente o prazer de solicitar a protegao dos mais fortes. O paleo polttico Outra esfera a explorar no romance de Raul Pompéia: as implicagdes sociais e politicas do perfil que traca do microcosmo colegial. Basta que se amplie 0 cendtio ¢ se desloque o ponto de RAUL POMPEIA 28 observagio € o leitor tera o republicano apaixonado. Quando o narrador comenta o cédigo da hierarquia inter- na, valendo-se dos exemplos na distribuigzo de castigos e honrarias, no deixe de mencionar o aparato policial como instrumento de difusio do poder. Assim, a0 informar que Sanches era também vigi- lante, agrega: “Estes oficiais inferiores da milfcia da casa faziam-se tiranetes por delegacdo da suprema ditadura”.” O texto vale como uma ligéo refinada de ciéncia politica. Disseminadas na obra iremos encontrar intimeras observa- g0es de cardter social e politico. Ea pregacio dos principios ineluté- veis do progresso. Curioso trecho pode ser lembrado acerca dos meios de comunicagao estabelecidos em classe de aula, através de uma rede de fios que imitavam o telégrafo. O romance fora escrito na época em que a sociedade praticava a sua primeira conquista cletrd- nica. Descoberta a trama, Silvino encarregou-se de destruir a rede clandestina de comunicagao, comentada assim pelo narrados: “De carteira em carteira, por entre pragas, arrancou, destruiu tudo, 0 vandalo, como se nao fosse o fic telegrifico listrando os céus a pau- ta larga dos hinos do progresso ¢ a nossa imitaggo modesta uma homenagem ao século” .* Na conferéncia do doutor Claudio, iremos igualmente sur- preender um entusiasmado selaro da evolugao da espécie.” Nao sem que o narrador adicione aqui e ali o tempero da época acerca da selegao natural. Sintese O que fica, afinal, de O Aseneu? Do ponto de vista estilistico, a mestigagem de rebuscamento com a sobriedade. No plano da andlise psicoldgica, 0 atordoamento de Sérgio diante da personalidade poliédrica de Aristarco. As vdrias faces de Raul Pompéia e O Atenew Sob o Angulo de escola literatia, de estilo de época, encon- tramos um naturalismo amenizado pelas nuances do impressionismo, ctivado de subjetividade. Subjetividade que, por sua vez, empalide- ce o {mpeto positivista. Licia-Miguel Pereira denominou O Areneu de “romance es- tético ¢ parnasiano”. O narrador se desdobra na paulatina fixagao da personagem principal, titular da fala e da acéo e, a0 mesmo tempo, nas ramifica- ges do texto, pontilhado de informagées acolhidas pelos subtextos, as vezes exaustivas, polémicas, panfletérias ¢ outras meros registros potticos de emogies negativas e melancélicas. A obra se apresenta como nutrida realizagao do discurso en- fiitico, fruto acabado de um autor para quem, na expresséo do dou- tor Cldudio, seu porta-voz, “a eloqiiéncia é a mais elevada das ar- tes”, »° Ocasizio em que proclama a “supremacia das artes literdrias — elogiiéncia escrita.” Vé-se, portanto, que o texto narrativo de O Areneu engloba divagagées éticas, estéticas, politicas ¢ filoséficas. Romance de formacao, O Ateneu expée um Sérgio, persona- gem, que compartilha com o autor, Raul Pompéia, a tarefa de reformador do mundo, nao obstante seu moralismo cético. © passado surge-the odioso, num discurso retrospectivo desnudante. Sérgio é esbogado como um descontente e, ao mesmo tempo, uma personagem-vitima. Numa das caracteristicas compa- rages do escritor, é assemelhado ao salgueiro, condenado a “cres- cer, descendo”. Por detrds leiam-se 0 escrtipulo das concessées pe- rante a retidao moral e a catastréfica influéncia do meio sobre a formagio do jovem. O compromisso da vinganca jé foi lembrado pela critica. O tosto de Pompéia se descobre aqui e ali no discurso de Sérgio, cuja autonomia néo raro se apaga para que se manifestem as suscetibilidades e obstinagbes do autor. 29 RAUL POMPEIA © conluio da personagem com as estadeadas peculiaridades do romancista constitui mais uma das originalidades da obra, cujo relato, caracteristico do romance de formagio, nao deixa de revelar © pacto autobiografico naquela visdo retroativa de desnudamento e avaliagao critica. O Ateneu, por isso, nao se liberta dos avatares bio- gtéficos de Raul Pompéia, cheios de nostalgia, ressentimento e rancor. 1 CE Pompéia, Raul. Obras. Crénicas Rio, Oficina Literéria Afrinio Coutinko/ Civilizagio Brasileira, 1983, v. I, p31. 2Cits, vIX, pt. 3 Ramos, Maria Luiza. Psicologia ¢ etét- ca de Raul Pompéia, Tese. Belo Horizon- te, 1958, 16 Cit, p. 143. 4 Commercio de Sao Paulo, 1G de our 17 City p. 163. bro de 1965, 18 Cit, p. 162 5 Pompéia, Raul. Obras. O Avenew. Rio 19 Cit, p. 163. de Janciro, OLAC/Ciilizagio Brasileira, 20 Cit. p. 30-31 1980, vp. 263. Todas as demais cita- 21 Cit,, p. 272. Ges da obra serio dessa edigdo. 6 Cit, p.189-90, 7 Lejeune, Phillipe. 1’ autobiographie en France. Patis, A.. Colin, 1971, p.105. 8 Frye, Northrop. Anatomy of ersicism, New Jersey; Princeton University Press, . 1957. 28 Cit, p. 172. 9 Pompéia, 1980, p.259. 29 Cit. p. 156-60. 30 Cit, p. 152, 30 Quadro de Rodolfo Amoedo 1898, retirado da Hustragéo Brasileirg. 01 junho 1914, p.185

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