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jut Bute Judaicidade e ; Nada mais atual do que este recente trabalho de Judith Butler. Por meio de uma formula¢ao tedrica consistente, 0 livro retoma o didalogo sobre a coabita¢ao e o impossivel-possivel estabelecimento de um Estado binacional formado por Israel/Palestina. A partir da importante obra de Hannah Arendt, Butler apresenta sua critica ao sionismo e aborda a questdao da judaicidade como categoria cultural, hist6rica, politica, nao religiosa e representada Por uma multiplicidade de modos sociais de identificacao. Discorre sobre uma gama de autores judaicos como Primo Levi, Martin Buber, Hans Kohn e Emmanuel Lévinas, buscando demonstrar a vincula¢ao entre a judaicidade e a justica social. Caminhos divergentes salienta que os valores judaicos mais elevados estao baseados no ——— A autora apresenta, de ante, o ser judeu e sua relacado com 2 questao do outro - como eu ou cutir a alteridade como constitutiva stra como a dispersdéo dos f@ Se assemelha a dos palestinos Portanto, uma organiza¢ao gel, em que nenhuma religido ou tenha soberania sobre a outra. el, Judith Butler retoma e amplifica ard Said, em especial seu ultimo ‘9s nao europeus [também publicado i], assim como propaga a poesia de iG Darwish. Ao tratar do tema da diaspora ede uma perspectiva nao eurocéntrica e, desafia-nos a pensar como duas tradi ligdes de desiocamenta. arabe e judaica, podem produzir uma forma de politica pos-nacional, que contemple o direito comum, inclusive dos refugiados. Assim, o convivio entre judeus e drabes torna-se plenamente possivel e baseia-se na construcdo de um modelo de Estado nao colonial, e, sim, igualitario para todos os habitantes de Israel/Palestina. Embora a tarefa da coabitacdo e do binacionalismo pareca impossivel, Judith Butler é contundente ao afirmar o quanto ela é necessaria, pois, se ninguém mais pensar sobre isso, viveremos em “um mundo radicalmente empobrecido”. Caminhos divergentes é um convite irresistivel a essa reflexdo-acao, especialmente em um mundo repleto de movimentacées e, ao mesmo tempo, carente de transformacées. Soraya Smaili Judith Butler é professora Maxine Ellict dos Departamentos de Retorica 2 de Literatura Comparada, além cle codiretora do Programa de Teoria Critica, da University of California, em Berkeley. E também professcra ca catedra Hannah Arendt 4 do Departamento de Filosofia da European Graduate School, em Saas-Fee, na Suica. Em: 2008 foi laureada com o prérmia Andrew Mellen par seu destaque acacémico na aree de humanidades e em 2012 recebeu 0 premio ‘odor W. Adomp (fate acima). E membro co conselha consultivo da organizecao Jewish Voice for Peace e faz parte do quacra executive da Faculty for Isreeli-Palestinian Peace, nos Estados Unidos. edo centro cultural The Freedom Theatre, no campo de refugiados de Jenin, na Palestina. Tornou-se referéncia nos estudos queer e tem diversos livros publicados no Brasil entre cles Problemas de ganar, Relataré si mesmo, Quadros de guerra = O clamor de Antigona. Judith Butler GAN i daiidade e critica do sionismo © Boitempo, 2017 © Columbia University Press, 2012 Esta edigao brasileira ¢ @ tradugio integral da edi¢io americana, especialmente autorizada pela editora original, Columbia University Press. SuMARIO “Titulo original: Parting Ways Jewishness and the Critique of Zionism Diregio editorial Ivana Jinkings Edigéo \sabella Matcatti Assisténcia edivortal “Thaisa Borani ‘Tradugio Rogério Bertoni Preparagao André Albert ‘Revisdo Clara Altenfelder Coordenasdo de produgio Livia Campos Capa Seudio DelRey sobre Foxo de capa A Palen bay ane Bmeltsodte in Front ofthe fuel Wass Bak Barrer, de Justin Mctnvosh, 12004 (CC 2.0) foro de quarta cape Aerial view of Makicsh Ramo, in the Negeo Deter linac de Atsbeow Shiva, 2013 (CC 40) Diagramagéo Crayon Editorial Equipe de apoio Allan Jones, Ana Yumi Kajiki, Artur Renzo, Bibiana Leme, Eduardo Marques, Eline Ramos, Ivam Oliveira, Kim Doria, Marlene Baptista, Mauricio Barbosa, Renato Soares, Thais Barros, Talio Candiowo WnVIAGOES AMODUGAO seer “TAREFA IMPOSSIVEL E NECESSARIA INCAPAZ DE MATAR... Wavren Benjamin & 4 CRITICA DA VIOLENCIA .. CIP-BRASIL, CATALOGACAO NA PUBLICAGAO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RI PHOS. O jupatsmo & stonismo? hos divergentes:judaicidade e critica do sionismo / Judith Butlers teadugio Rogério Betton - 1. ed. ~ Sip Paul + Boitempo, 2017. “Tradugio de: Paring ways Jewishness and che crsique of Zionism Inch fndice ISDN: 978-85-7959-535-0 1. Judeus -Klenidade ~ Hist, 2. Judeus - Mlentidade ~ Histosiografia. 3, Juilaismo « Histri. 4. Judeus ~ Histdra. I. Betwoni, Rogério. U1. Tcula. 1638476 COD: 305.8924 CDU: 316.347(=411.16) MAS DO PLURAL. PENSAR © PRESENTE, PRIMO LEVI yedada a reprodugo de qualquer parte deste liveo sem a expressa autorizacio da editora. fevereiro de 2017, BOITEMPO EDITORIAL Jinkings Fdivores Assoeiados Leda. Rua Pereira Leite, 373, 05442-000 Sto Paulo SP (11) 8875-7250 / 3875-7285 Vedi AGRADECIMENTOS Finalizci o original desta obra gracas a bolsas concedidas pelo American Coun- il of Learned Societies, pela Fundagao Ford, pela Humanities Research Fellowship ‘da Universidade da California em Berkeley ¢ pelo Mellon Foundation’s Award for Distinguished Scholarship in the Humanities. Aproycitei ao méximo algumas ‘conversas com diversos colegas, muitos dos quais leram ou ouviram versées dos ‘eapitulos durante os varios anos em que este texto foi tomando forma. Minhas ideias nem sempre correspondiam as deles, mas as ideias deles me foram impor- tantes enquanto escrevi, ¢ fiz o melhor que pude para me envolver com elas. Entre esses colegas, esto Jacqueline Rose, Amnon Raz-Krakorzkin, Samera Esmeir, Michel Feher, Brienne Balibar, Idich Zertal, Saba Mahmood, Joan W. Scott, ‘Wendy Brown, Anat Matar e Amy Hollywood, Agradeco a meus alunos da Euro- pean Graduate School ¢ da Universidade da Califérnia em Berkeley por promo- ‘yerem nos seminarios a discussio do meu trabalho sobre Hannah Arendt ¢ Walter Benjamin. Também aprendi com alunos corpo docente da Faculdade Birkbeck, da Universidade de Birzeit, da Universidade de Paris VII, da Universidade de Nova York, da Faculdade Dartmouth, da Faculdade Pomona ¢ da Universidade Colum- bia, onde apresentei partes desta obra, ¢ em conversas com Omar Barghouti, Joélle Marelli, Tal Dor, Manal Al Tamimi, Beshara Doumani, Mandy Merck, Lynne Segal, Udi Aloni, Leticia Sabsay, Kim Sang Ong-Van-Cung, Alexander Chasin c Frances Bartkowski, Agradego a Amy Jamgochian, Colleen Pearl e Damon Young pela assisténcia indispensdvel que me deram com o original. E agradeco imensamente a Susan Pensak ¢ Wendy Lochner, da Columbia University Press, por levarem a cabo a edicao deste texto, mesmo quando eu relutava. Embora alguns dos capitulos jé tenham aparecido em outras publicagdes, todos foram retrabalhados para este livro. Tanto a introducao quanto 0 capitulo 1 se basciam em duas fontes: no artigo “Jews and the Binational Vision”, em Logos, v. 3, n. 1 (2004), depois de ser apresentado na Second International Conference ‘on an End to Occupation, a Just Peace in Israel-Palestine: Towards an Active In- ternational Network in East Jerusalem, em 4 e 5 de janeiro de 2004, e “Lhe Im- possible Demand: Lévinas and Said”, em Mitaam, n. 10 (2007), apresentado durante a Edward Said Memorial Lecture na Universidade Princeton, em 2006. O capitulo 2 é baseado em um ensaio mais curto publicado como “Etre en relation avec autrui face & face, c'est ne pas pouvoir tuer”, em Bruno Clément e Danielle (CAMINEOS DIVERGENTES Cohen-Lévinas (orgs.), Emmanuel Lévinas et les tervitoires de la pensée (Paris, Presses Universitaires de France, 2007, colecéo Epimethée). © capitulo 3 é uma versio revisada de “Critique, Coercion, and the Sacred Life in Benjamin's ‘Critique of Violence”, pablicado antes em Hent de Vries ¢ Lawrence E. Sullivan (orgs.), 2o- tical Theologies: Public Religions in a Post-Secular Warld (Nova York, Fordham University Press, 2006). O capitulo 5 reformula argumentos sobre Hannah Arendt que apresentei numa resenha dos Eseritos judaicos de Hannah Arendt chamada “I merely belong to them”, publicada na London Review of Books, v.29, n..9 (10 maio 2007), p. 26-30, incorporando uma parte significativa dos argumentos que desen- volvi em “Is Judaism Zionism?”, publicado em volume coescrito com Cornel West, Jiirgen Habermas e Charles Taylor, The Power of Religion in the Public Sphere (org. Jonathan van Antwerpen e Eduardo Mendietta, Nova York, Columbia University Press, 2011). O capitulo 7 é uma verso revisada de “Primo Levi for the Present”, publicado antes em Frank Ankersmit, Ewa Domariska e Hans Kellner (orgs.), Re-figuring Hayden White (Stanford, Stanford University Press, 2008). O capitulo 8 foi apresentado como conferéncia na Edward Said Memorial Lecture, na Univer sidade Estado-Unidense do Cairo em novembro de 2010 e também foi publicado em ALIF: Journal of Comparative Poetics, v. 32 (2012). ABREVIAGOES Lévinas, Autrement quétre [Outramente que ser] Benjamin, “Para uma critica da violéncia” Lévinas, Difficul Freedom (Dificil liberdade] Levi, Os afogados e os sobreviventes ‘Arendt, Eichmann em Jerusalém Lévinas, Entre nds Lévinas, Entre nous [Entre nés — edigao francesa] Said, Freud ¢ 0s nao europeus White, “Figural Realism in Witness Literature” [Realismo figurative na literatura de testemunho] Zertal, Isvael’s Holocaust and the Politics of Nationbood [O Holocausto israelense e a politica da nacionalidade] Arendt, Jewish Writings (Bsovitos judaicos] Lévinas, New Talmudic Readings Novas interpretacées talmidicas] Arendt, Origens do totalitarismo Lévinas, “Peace and Proximity” [Paz e proximidade ~ edic&o inglesa] Lévinas, “Paix et proximité” [Paz e proximidade — edicao francesa] Benjamin, “Fragmento teol6gico-politico” Benjamin, “Sobre 0 conceito de histéria” INTRODUGAO AFASTAMENTO DE SI, EX{LIO E A CRITICA DO SIONISMO- Talvez, em um sentido formal, todo livro comece pela consideragéo de sta prdpria impossibilidade, mas a conclusio deste livro me exigiu trabalhar com essa impossibilidade sem uma resolugao clara. Mesmo assim, precisei sustentar dentro da escrita uma parte dessa impossibilidade, ainda que esta ameace continuamente impedir a realizacao daquela. © que comecou como um livro que buscava desmas- carar_aafirmacao de que toda e qualquer critica a0 Estado de Israel ¢ de fato an- tissemita se tornou uma reflexio sobre a necessidade de demorar-se no impossfvel. Tentarei esclarecer isso no que se segue, mas deixem-me declarar agora, desde o inicio, o risco dessa empreitada. Se eu conseguir mostrar que existem recursos judaicos para a critica da violencia de Estado, da subjugacao colonial das popula- Ges, da expulsio ¢ da despossessao, terei conseguido mostrar que uma critica ju- daica da violéncia de Estado israelense é, pelo menos, possivel — € talvez até eticamente obrigatéria. Se cu mostrar, além disso, que alguns valores judaicos de coabitagao com os nao judeus sao parte da propria substincia ética da judaicidade diaspérica, ser4 possivel concluir que os compromissos com a igualdade social ¢ a justia social tém sido parte fundamental das tradicGes judaicas seculares, socialis- tas c religiosas, Embora isso nao devesse surpreender, tornou-se necessério reicerar esse argumento diante de um discurso puiblico segundo o qual toda critica 4 ocu- pagio israclense, as desigualdades internas de Israel, aos confiscos de terra ¢ aos bombardeios violentos de populagées aprisionadas (como os que vimos na Ope- racio Chumbo Fundido) — na verdade, a quaisquer objegdes aos requisitos de ci- dadania naquele pais - € antissemita ou antijudaica, nao estd a servigo do povo judeu, tampouco de acordo com 0 que poderfamos denominar, de modo geral,, valores judaicos. Em outras palavras, seria de fato uma ironia dolorosa se a luta judaica pela justica social fosse moldada como antijudaica. Digamos que eu consiga mostrar que existem tadicées judaicas nao apenas genufnas, mas também imperativas, que se opdem 4 violéncia do Estado ea modos coloniais de expulsao ¢ confinamento. Assim, consigo afirmar uma judaicidade diferente daquela em cujo nome o Estado de Israel alega falar. F ajudo a mostrar que ndo h4 apenas diferengas significativas em meio aos judeus — seculares, religio- sas, constituidas historicamente —, mas também lutas ativas, dentro da comunida- de, sobre o significado de justica, igualdade, ¢ a critica da violéncia de Estado e da subjugacio colonial. Na verdade, se a argumentacio parasse aqui e se mostrasse Caminni0s DIVERGENTES persuasiva, cla estabeleceria que certamente nao ¢ antijudaico ou contrajudaico oferecer uma critica das formas de violéncia de Estado instituidas ¢ mantidas pelo sionismo politico (dentre as quais as despossessées em massa dos palestinos em 1948, a apropriagao de terras em 1967 ¢ os recorrentes confiscos de tetras palesti- nas, que prosseguem hoje com a construgéo do muro e a expansao dos assenta- mentos). Isso em si j4 é importante, uma vez que Istael alega representar 0 povo judeu e a opinido popular tende a dar como certo que os judeus “apoiam” Israel, sem levar em conta as tradigdes judaicas de antissionismo e a presenga de judeus em coalizées que se opdem a subjugacao colonial dos palestinos por Israel. No entanto, se eu for bem-sucedida com esses argumentos, terei de enfrentar imediaramente outro problema, Ao alegar que existe uma tradigao judaica signifi- cativa que afirma modos de justica ¢ igualdade que inevitavelmente levariam a uma critica do Estado de Israel, eu estabelego uma perspectiva judaica nao sionista, até mesmo antissionista. Com isso, corro o tisco de transformar até mesmo a resistén- cia ao sionismo em um valor “judaico”, reafirmando assim, indiretamente, os re- cursos éticos excepcionais da judaicidade. Mas, para que a critica do sionismo seja efetiva c substancial, essa afirmagao de excepcionalidade haverd de ser recusada em nome de valores democrdticos mais fundamentais. Por mais importante que seja estabelecer oposic6es judaicas ao sionismo, isso nao pode ser feito som um movi- mento eritico que questione a suficiéncia de um quadro de referencia judaico — por mais alternativo e progressista que possa ser — como horizonte definidor do campo ético. A oposicao ao sionismo requer o afastamento da judaicidade como referén- cia de exclus4o para pensar tanto a ética quanto a politica. Qualquer maneira legftima de pensar numa ordem politica para a regio teria de surgir das tradigdes éticas e politicas rivais que ali permeiam a conduta, o pen samento, 0s modos de pertenca ¢ 0 antagonismo. Em outzas palavras, embora seja certamente possivel dizer que hd fundamentos judaicos para uma critica da vio~ lencia de Estado, uma critica com o dever legitimo de se estender ao préprio Es- tado de Israel, esse continua sendo um tipo de argumento parcial para a atualidade, ainda que importante. Se os principios de igualdade e justica que orientam 0 movimento contra © sionismo politico derivassem exclusivamente dessas fontes, eles provariam, de imediato, ser insuficientes, ¢ mesmo contraditérios. Na verdade, até a critica do sionismo, se exclusivamente judaica, amplia a hege- monia judaica para pensar sobre a regiao ¢ se torna, apesar de si mesina, parte do que poderfamos chamar de efeito sionista. Certamente, qualquer esforco que ex- panda a hegemonia judaica na regiao faz parte do efeito sionista, quer se reconhe- ¢a como sionista ou antissionista, quer nao. Sera que existe uma maneira de contotnar esse enigma, se quisermos contestar a pretensio israelense de representat 08 judeus ¢ a judaicidade, bem como corcar a conexdo que tantos fazem hoje do Estado de Istael com o povo judeu, ¢, na verdade, com os valotes judaicos? Eu continuo me surpreendendo com o fato de que muitas pessoas acreditam que afirmar a judaicidade é afirmar o sionismo ou que toda pessoa que frequenta uma ‘A pedido da autora, 0 termo “polity” foi raduside por “ordem politica” no decorrer de toda a obra. (NT) 12 berropugio coga é necessariamente sionista. Igualmente preocupante éa quantidade de pessoas cham que agora devem renegar a judaicidade porque nao aceitam as politicas do do de Israel. Se o sionismo continuar controlando o significado da judaicidade, entao impossiveis tima critica judaica de Israel € um reconhecimento daquelas as de formagio ou origem judaica que poem em questo o dircito do Estado de .l de falar pelos valores judaicos ou, de fato, pelo povo judeu. Embora decerto seja ssivel derivar determinados prineipios de igualdade, justica e coabitagao a partir dos ‘secursos judaicos, interpretados de maneira ampla, como se pode faré-lo sem transfor- “spar esses mesmos valores em valores judaicos, ¢ assim apagar ou menosprezar outros smodos de avaliacao que pertencem a outras tradigées ¢ priticas religiosas e culturais? Talvez uma das saidas possiveis seja considerar o que significa derivar esses principios a partir de recursos judaicos. A ideia de derivacao implica uma conse- quente ambiguidade: se esses principios tém fontes judaicas, seré que continuam sendo exclusivamente judaicos uma vez que se desenvolvem e assumem novas formas histéricas, ou serd que, até certo ponto, se afastam desse quadro de referén- cias exclusivo? Na verdade, poderfamos perguntar, de maneira mais geral, se os principios de justiga e igualdade que estéo em jogo em qualquer critica ao Estado de Israel, ou a outros Estados que cometem formas semelhantes de injustiga, sem- pre derivam parcialmente desses varios recursos culturais ¢ histéricos especificos e, apesar disso, nao “pertencem” cxclusivamente a nenhum deles. Podemos incluir entre esses recursos a tradicao grega clissica, o Esclarecimento francés ¢ as Iutas de descolonizagio do século XX. Nesses casos, como em outros, seria possivel dizer que tais principios derivam de recursos culturais especificos, mas isso nao significa que pertencam exclusivamente a tradicéo de que derivam. Com efeito, para que um conceito de justiga detive de uma tradicao especifica, ele precisa de algum modo se afastar dessa tradicao, demonstrar sua aplicabilidade fora dela. Nesse sentido, afastar-se da tradi¢ao é uma precondicéo de qualquer tradigao que produza prin- cipios politicos fortes. O dilema, entio, é claro: se a critica da violéncia de Estado se basear em principios ou valores que sao final, exclusiva ou fundamentalmente judaicos, entendidos de forma varidvel ¢ ampla como um conjunto de tradigées religiosas, seculares ou histéricas, entio a judaicidade se tornard um recurso cultu- ral privilegiado, e 0 tinico enquadramento, ou o privilegiado, para se pensar a crftica da violéncia de Estado continuard sendo 0 judaico. Mas quando alguém; realiza essa critica porque se opée aos prinefpios de soberania judaica que governam aquela regiao, a Palestina histérica, porque é a favor de uma ordem politica que colocaria um fim & subjugagéo colonial na Cisjordania e em Gara, ¢ porque teco- nhece os direitos de mais de 750 mil palestinos desalojados & forga de suas casas €} terras em 1948 — e pelas formas subsequentes ¢ recorrentes de confisco de terras estard entéo defendendo uma ordem politica que se aplicaria, de maneira igualit4-| ria e justa, a todos os habitantes daquela terra. Desse modo, no faria nenhum sen- tido dizer que os parimetros judaicos podem formar a base de uma coabiracio politica ou, de fato, de um binacionalismo, uma vez que tudo se resume a desenvol- ver uma ordem politica que nao sé abrigaria muiltiplos quadros de referéncia, mas também se comprometeria com um binacionalismo que sé se tornara plenamente 13 (CanainHos DIVERGENTES concebivel quando o dominio colonial chegar ao fim. Em vez de apresentar um multiculcuralismo facil, minha proposta que vasta e violenta estrutura hegem6- nica do sionismo politico ceda seu controle sobre aquelas terras e populagées e que se constitua entéo uma nova ordem politica que pressuponha o fim do colonialis- mo de povoamento ¢ implique modos complexos e antagdnicos de viver junto, ur aprimoramento das formas igndbeis de binacionalismo j4 existentes, Entao, embora seja preciso contestar 0 controle hegeménico que o sionismo exerce sobre a judaicidade, ¢ igualmente necessdrio contestar a subjugacao colonial que o sionismo tem exercido sobre 0 povo palestino. Na verdade, nao nos preocu- Pariamos com o primeiro movimento hegeménico (judeu = sionista) se nao nos preocupéssemos primeiramente com o fim da histéria de subjugacio. Como se movimentar nas duas frentes 20 mesmo tempo? DERIVAR UM CONJUNTO DE PRINCiPIOS Pensemos primeiro no que significa derivat um conjunto de principios a partir de ‘uma tradigéo cultural, e depois passems para as questées politicas mais amplas, Como afirmei, dizer que os principios sao “detivados” dos recursos judaicos suscita a seguin- te questo: esses principios continuam sendo judaicos quando desenvolvidos em uma situa¢ao contemporinea, assumindo novas formas histéricas? Ou sio Princfpios que Podem ¢ devem ser, esempre foram, derivados de varios recursos culturaisc histdticos, ® por isso nao “pertencem’” exclusivamente a nenhum deles? Ser que, na verdade, a possibilidade de generalizar os principios em questéo depende fandamentalmente de que, no fundo, cles néo pertengam a nenhum local ou tradigéio cultural da qual pos- sam ter surgido? Seré que essa nao pertenca, esse exilio, ajuda a consticuir a possibili- dade de generalizar e anspor os principio de justica e igualdade? Se tais principios sao derivados de fontes judaicas, hd quem possa concluir que cles sio original, fundamental e até mesmo finalmente valores judaicos, Isso resul- ta daquele argumento de que & preciso olhar para o conjunto de tradigoes religio- sas, seculares ou hist6ricas para compreender esses valores; nesse ponto, a judaicidade se corna um recurso cultural privilegiado, e 0 quadro de referéncia judaico continua sendo 0 tinico, ou pelo menos © privilegiado, para se pensar 0 problema da coabitagao, ¢ até mesmo do binacionalismo. Desse modo, no con- seguimos nos afastar do quadro cultural exclusive da judaicidade, E isso tem concluses especialmente contraditérias ¢ inaccitéveis se estivermos tentando pensar a respeito da igualdade e da justica em Israel ¢ na Palestina Embora tal conclusdo seja inaceitavel, parece nao haver uma maneira ficil de contornar esse paradoxo. Um ponto, no entanto, jé parece claro: igualdade, justica coabitacao critica da violéncia de Estado sé podem continuar sendo valores judai- 60s se no forem cxclusivamente valores judaicos. Iss0 quer dizer que a articulacio desses valores deve negar a primaria ¢ a exclusividade do quadro de referéncia jude Co, deve passar por sua propria dispersdo, Na verdade, como espero demonstrar, essa dispersio é uma condi¢ao de possibilidade para pensar a justica, ¢ seria bom lembrar- mos dessa condigo no tempo presente. Alguém poderia dizer: “Ah, a dispersio — 14 Intropugie valor judaico! Derivado da difusio messianica ¢ de outras figuras teol6gicas para diaspora! Vooé tenta se afastar da judaicidade, mas ndo consegue!”. Se, no entanto, questo da relagio ética com os no judeus se tornou definidora daquilo que o po judaico é, néo podemos caprurar ou consolidar 0 que é 0 judaico nessa relacéo, relacionalidade desloca a ontologia, ¢ isso também é uma coisa boa. A questao ¢ 4o estabilizar a ontologia dos judeus ou da judaicidade, ¢ sim entender as implica- éticas ¢ politicas de uma relacio com a alteridade que é irreversivel e definidora, a qual nao podemos dar sentido a termos téo fundamentais quanto igualdade justiga. Essa relacéo, que certamente nao é singular, seré a passagem obrigatéria além da identidade e da nagio como quadros de referéncia definidores. Ela es- Jece a relacao com a alteridade como constitutiva de identidade, 0 que equivale dizer que a relagéo com a alteridade interrompe a identidade, ¢ essa interrupgao éa mndi¢ao da relacionalidade ética. Essa nogao é judaica? Sim e ndo. F dlaro, a réplica a tal posigao costuma ser de que os judeus nao podem sobrevi- ‘yer na dispersio, que © que ofereci como uma abordagem judaica/nao judaica 4 tica colocaria os judeus em perigo. Mas 0 afastamento ético de si nao é a mesma coisa que a aniquilacio de si, nem 0 mesmo que vorter 0 risco de aniquilacio. Esse ‘argumento pode set combatido de diversas maneiras. Primeiro, nada nos faz correr mais risco de agressdo do que instituis, por meios violentos, modos de subjugagio colonial que negam 2 populagio subjugada direitos basicos de autodeterminasio. Segundo, a parte as provas substanciais de que a dispersio foi de faro 0 modo de sobrevivéncia dos judcus', a ideia de que a dispersio € uma ameaca aos judeus que deve ser superada costuma se basear na nogao de que a “dispetsio” é uma forma de exilio da terra natal (uma condigéo de galue que sé pode ser revertida pelo “retorno” 4 patria). Se a dispersio é pensada no sé como situacko geogrdfica, mas também como modalidade ética, entio ela é justamente o principio que deve ser entendido por Israel/Palestina, que deve ser “posto ali na terra” a fim de fundamentar uma ordem politica em que nenhuma religiéio ou nacionalidade reivindique soberania sobre a outra — um regime em que, na verdade, a propria soberania seja dispersa, Desenvol- verei esse argumento posteriormente; por ora, notemos apenas que essa foi uma das aspiragées politicas mais importantes de Edward Said nos iltimos anos de sta vida. Talvez pareca um paradoxo estabelecer 2 alteridade ou a “interrupgio” no cer ne das relacées éticas. Mas, para chegar a saber disso, primeiro devemos considerar que tais termos significam, Alguém podetia defender que a caracteristica distin- tiva da identidade judaica seja o fato de ela ser interrompida pela alteridade, 0 fato de que a relacao com os gentios define nfo apenas sua situa¢ao diaspérica, mas também uma de suas relagGes éticas mais fundamentais. Embora tal afirmacio possa muito bem set verdadeira (0 que significa que ela pertenceria a um conjun- to de afirmacies verdadeiras), ela conserva a alteridade como um predicado de um Daniel Boyarin e Jonathan Boyatin, Powers of Diaspont:Tieo say om the Relevance of Jewish Culture (Minne- polis, Univesity of Minnesota Press, 2002). 2 Aqui ealhures ceoho uma divda profunda para com a obra filosfica¢ histSrca de Amnon Raz-Krakocakin, incluindo Esl et souventiner: Judie, stonisme et penée binatiouae (Pats, La Fabrique, 2007). 1s (Casnttos oiverceNTEs sujeito prévio. A relagéo com a alteridade rorna-se um predicado de “ser judeu”. Outta coisa setia entender essa mesma relagdo como um desafio 3 ideia de “judeu” como um tipo estatico de ser, um que € descrito adequadamente como sujeito. Se “ser” esse sujeito ja é ter entrado em certo modo de relacionalidade, entao o “ser” abte caminho para um “modo de relacionalidade” (sugerindo uma maneira de pensar Lévinas em relacdo com Winnicott). Tanto dizer que o ser deveria ser re- pensado como modo de relacao quanto insistir que um modo de relacéo contesta a. ontologia s4o, no fundo, coisas menos importantes do que a primazia da relacio- nalidade para pensar sobre esse problema. Além disso, a relacionalidade em jogo ¢ do tipo que “interrompe” ou desafia o carter unitério do sujeito, sua igualdade a si mesmo c sua univocidade. Em outras palavras, alguma coisa acontece com 0 “cujeito” que o desloca do centro do mundo; uma exigéncia de outro lugar reivin- dica.a mim, exerce sua press4o sobre mim, ou mesmo me divide desde dentro, ¢ é somente ao fissurar quem sou que tenho a chance de me relacionar com o outro. Seria apenas parcialmente certo dizer que essa é a formulagéo da “ética judaica’ proposta neste texto. Ela é judaica/ndo judaica, e seu sentido consiste precisamen- te nessa disjungdo conjuntiva. Entender essa perspectiva, que ¢ necessariamente dupla, serd importante para entender por que um quadro de referéncia diaspdrico pode ser crucial para teorizar a coabitacio ¢ o binacionalismo, com a ressalva de que nao hé um “viver junto” factivel em condicoes de subjugagao colonial que ndo ratifique tal condi¢ao politica. Como resultado, projetos de coexisténcia s6 podem comecar com a desarticulacdo do sionismo politico. Essa visdo da didspora também ajuda a explicar por que faz. sentido que pers- pectivas de “alhutes” sejam aplicadas a assuntos regionais. O Estado de Israel se estabcleceu rechacando as populagées palestinas para alhutes, ¢ chega a ver os judeus de outros lugares como mal situados para entender as vérias raz6es pelas quais, em nome da democracia, 0 dominio colonial deve continuar. O argumento de que ninguém de fora deveria julgar 0 que acontece Ia busca restringir quaisquer deba- tes que possam existir dentro do quadro nacionalista de Israel, Mas se olharmos |4 “dentro”, descobriremos que “alhures” jé esta dentro do regional, definindo-o es- sencialmente. Os palestinos estao tanto dentro quanto fora das fronreiras do Esta- do estabelecido; as préprias fronteitas estabelecem uma relacio duradoura com as terras ¢ com os povos que elas excluem e monitoram. A relagao é caracterizada pela despossessao violenta, pela vigilancia e pelo controle maximo, por parte do Estado de Israel, dos direitos dos palestinos a mobilidade, & terra € 4 autodeterminagao politica, Portanto, a relagio € consolidada nessas linhas, ¢ totalmente ignébil. Quando dizemos que essa ideia de relacionalidade ética ¢ “derivada” de fontes judaicas, surge um problema semelhante. Por um lado, trata-se de uma afirmacko verdadeira (0 que nao quer dizer que essas sejam as tinicas fontes de que deriva, tampouco que tais ideias nao derivem de nenhuma outra fonte). Como deixa claro 6 debate entre Jiitgen Habermas ¢ Charles Taylor’, faz diferenga afirmar (a) que ar € Charles Taylot “Dislogue”, em Jonathan van Ancwerpen e Eduardo Mendieta (orgs), The ne 8 Puli Sohere (Nova York, Columbia Univesity Press, 2011). Lyrropugio certos valores detivam de fontes religiosas depois se traduzem num dominio de racionalidade que, por fim, é considerado como nao pertencente a nenhuma religiéo (Habermas), ou (b) que as raz6es religiosas que damos para agit do modo como agimos pertencem a certos idiomas ¢ jamais podem ser totalmente extraidas daque- Jes campos discursivos (Taylor). Quer assumamos a primeira posicio, quer a segun- da, nao deixa de ser necessdtio entrarmos no campo da traducao, uma vez que ou, de algum meio, o contetido secular tem de ser extraido do discurso religioso, ou discurso religioso tem de se fazer comunicével além da comunidade de quem com- partilha o idioma, Assim, mesmo que certo conceito seja “derivado de” recursos judaicos, ele precisa passar pela traducéo para ser mais amplamente comunicavel, ¢ para que sua relevincia se estabeleca fora de um quadro comunitario (scja religioso, seja nacional). As origens de uma pratica, como afirma Nietzsche, “esto a mundos de distancia” de seu uso ¢ sentido finais — essa é uma contribuigio importante de sua nogéo de genealogia’, Ainda assim, para que esse cruzamento de mundos seja possivel, é necessdrio um processo de tradugao cultural. Certa transposigio da tra- dicéo acantece com 0 passar do tempo (de fato, tradigées no podem prevalecer sem uma repetigao institucionalizada dessas transposicées). E isso significa nao s6 que a tradigao sc estabelece ao se afastar de si mesma, repetidas vezes, mas também, que um recurso 6 se torna “disponivel” para propésitos éticos se primeiro passar pelo campo da traducio da transponibilidade. Isso nao implica uma traducao do discurso religioso para o secular (sendo o “secular” entendido como um discurso gue transcendeu suas formulacdes religiosas), tampouco significa necessariamente que ele continua sendo imanente a seu préprio quadro comunitirio. Em vez disso, significa que o que comeca como um “recurso” no qual nos baseamos passa por uma série de mudancas durante 0 processo de nos basearmos nele. Com efeito, para que um discurso se torne incisive ou esclarecedor no presente, cle precisa passar por certa trajet6ria temporal; um “recurso histérico” s6 afeta o presente ¢ se torna apli- cavel ou renova sua efetividade depois de passar por uma série de deslocamentos € transposigoes, Essa trajetéria temporal é a0 mesmo tempo, espacial, posto que o movimento de um fopos para 0 outro nao pode assumir uma base geografica nica, continua e estdvel; 0 movimento remapeia a prépria topografia, principalmente quando as questbes relacionadas & terra se vinculam a afirmagées histéricas, O que dé legitimidade a uma tradi¢ao muitas vezes é aquilo que atua contra sua efetivida- de. Para ser efetiva, uma tradigéo deve ser capaz de se afastar das circunstancias particulates histéricas de sua legitimagao e provar set aplicdvel a novas ocasi6es no tempo € no espaco. Em certo sentido, tais recursos s6 podem se tornar efetivos a0 perder seus fundamentos em precedentes histéricos ou textuais. Isso significa que somente “cedendo espago” um tecurso ético do pasado pode prosperar em outro lugar e de uma forma nova, no meio de reivindicagGes éticas convergentes ¢ confli- rantes, como parte de um processo de tradugdo cultural que é também um rema- peamento dos vinculos sociais ou mesmo do prdprio espaco geogrifico. Fiiedrich Nicwsche, On she Genealogy of Monals (Nova York, Vintage, 1989) fed, bras. Genealogia da maral sume polémica, tra, Paulo Césat Lima de Souza, Sao Paulo, Companhia das Letras, 2008). q7 (Catuvitos DivecENtEs Erica, POLATICA E A TAREFA DA TRADUGAO Voltat-se para a tradugio pde em risco dois tipos de problemas. Por um lado, seria possivel considerar que a traducéo ¢ uma integracio de significados religiosos em quadros seculares estabelecidos, Por outro, seria possivel considerar que a tra- ducao é uma tentativa de encontrar uma linguagem comum que transcenda os discursos particulares. Mas se a traducio for vista como wma cena em que os lim tes de uma dada episteme sdo expostos, ¢ forcados a se rearticularem de manciras que nao encerrem de novo 2 alteridade, teremos entio aberto um terreno que nfo presume a superioridade dos discursos seculares nem afirma 2 autossuficiéncia dos discursos religiosos particulares. Além disso, se aceitarmos que a secularismo se origina de fontes religiosas que nunca sio totalmente superadas nesse pracesso, essa forma especifica de polarizar a discussao nao mais parecera util, Meus esforsos para pensat sobre o lugar da tradugio no encontro ético derivam em parte dos recursos judaicos, mas também sao adaptados e reformulados para a filosofia politica. Desse modo, minha prépria trajetoria marca dois sentidos de afastamento: 0 primeiro toma a tradicio judaica como um ponto de partida para meu proprio pensamento; 0 segundo ¢ entendide como uma ruptura com um discurso comunitdrio que néo tem como fornecer recursos suficientes para a vida em um mundo de pluralidade social ou o estabelecimento de uma base para a coabitagio com a diferenca religiosa ¢ cultural. Como tentativa de superar uma divisio marcada entre a ética e a politica, os cae pitulos que se seguem buscam mostrar como € recorrente a sobreposigéo dessas duas esferas. Uma vez que a ética deixa de ser entendida exclusivamente como disposicéo ow ago fundamentada num sujeito predeterminado e passa a ser vista como pratica relacional que responde a uma obrigagéo que se origina fora do sujeito, cla entio contesta as nogGes soberanas do sujeito ¢ as afirmacses ontoldgicas da identidade pessoal. De fato, a ética passa a significar o ato pelo qual se estabelece um lugar para aqueles que so “nao-cu", conduzindo-me além de uma reivindicacdo soberana, na diregio de um desafio a si-mesmidade que eu recebo de alhures. A questio de como, se ¢ por qual caminho “ceder” ao outro torna-se parte essencial da reflexdo ética; em outras palavras, a reflexdo nao devolve o sujeito a ele mesmo, mas deve ser entendida como uma relacionalidade ex-tatica, um modo de ser conduzido além de si mesmo, um modo de ser despossado da soberania e da nagdo em resposta 2s reivindicagdes feitas por aquele que nao se conhece plenamente e nao se excolhe plenamente, Dessa concepgio da relagdo ética segue-se uma reconceituagio tanto dos vinculos sociais quanto das obrigacées politicas que nos levam para além do nacionalismo. Quero sugerir uma reforma dessa importante concepeao de ética por uma linha diferente. A exigéncia do Outro, evocando por ora os termos de Lévinas, sempre chega por intermédio de uma linguagem ou de algum meio de comunicagio: desse modo, se essa exigéncia for atuar sobre mim, solicitando uma resposta, ou, de fato, provocando meu senso de responsabilidade, ela tem de ser “recebida” por um ou outro idioma. Nao adianta dizer que a exigéncia € pré-ontolégica e, portanto, ante- rior a toda e qualquer linguagem. Faz mais sentido dizer que a exigéncia de alhures 18 Inrropugao parte da propria estrutura de interpelagio pela qual a linguagem opera para ligar pessoas. Ainda assim, se aceitamos essa ultima interpretagao, temos de aceitar bém que a “propria” estrutura de interpelagao é sempre conhecida e vivenciada r meio de “alguma’ linguagem, “algum” idioma, meio de comunicacao ou algo do , ou ainda algum ponto de convergéncia entre cles. E claro, a estrutura de inter- cio pode deixar de fora quem foi estabelecido como sujeito dentro de sua 61bi ta. As vezes ha “alguém” que nao € interpelado de modo algum, ou que é definido precisamente no limite — como o excremento — de um conjunto de interpelacoes ‘estabelecidas. Esse alguém, entio, nao ¢ interpelado; mas, para reclamar sobre isso, ele precisa ter algum senso de sua propria interpelabilidade. Esse alguém poderia ser interpelado se ao menos os modos de interpelagio pendessem na direco dele. Ou encio um termo ou uma descricéo entram no caminho dele ¢ esto de algum modo “errados”, mas ¢ na distancia entre a interpelacao falsificadora eo senso de inexatidao desse alguém que ele se encontra— uma condigo intersticial, para ser exata. E por isso que podemos ser multiplamente interpelados ou mal interpelados, ou solicitados a responder, de maneiras contradirdrias ou inconsistentes, a certos chamados que recebemos ou que so registrados no nosso mundo ambiental, Além disso, alguns cchamados vém acompanhados por estatica na linha, ou seja, nem sempre temos certe- za do que exatamente nos pedem ou do que devemos fazer (as varias mensagens nao ‘entregues de Kafka parecem servir como uma importante ressalva de Lévinas nesse sentido, assim como as reflexées de Avital Ronell sobre telefonemas perdidos)?. © mandamento é um excelente exemplo. Se eu tiver de assumir uma exigéncia ética que me é dada, preciso ser capaz de discemir a linguagem em que ela me é passa- dace descobrit meu caminho dentro de seus termos. “Receber” 0 mandamento dificil- mente é algo garantido, como sabemos pela historia dos seguidores de Moisés, que perderam a fé na chegada do chamado, e do proprio Moisés, que quebrow as primeiras tabuas dos mandamentos antes de carregd-las até 0 povo. Ouvimos varias verses dife- rentes dessa histdria, que chega até nds vinda do pasado. Para Lévinas, ela chega até ids, em cada momento presente, pelo “tosto”, que nos ordena nao matar c que nao depende de nenhum precedente histérico ou textual. Para Lévinas, trata-se de um momento néo interpretativo, embora saibamos que é possivel discutir sobre 0 que conta como rosto € © que nao conta®. Qualquer sinal de susceptibilidade conta como. 0 “rosto”. Se a exigéncia ética vem do passado, na forma de “recurso” para mim no presente — uma mensagem de um texto antigo, uma pritica tradicional que de alguma maneira esclareca o presente ou possa me direcionar para detcrminadas condutas no presente —, ela s6 pode ser “tomada” ou “recebida’ se for “traduzida” em termos pre- sentes, A receptividade sempre é uma questo de tradugao — um ponto psicanalitico sustentado por Jean Laplanche. Em outras palavras, nao posso receber uma exigéncia, muito menos um mandamento, de um alhures historico sem que haja tradugdo, como > Avital Ronell, He Telephone Book (Lincoln, University of Nebraska Press, 1989). © Para Levinas, orosco nzo é necessariamente o osto literal; é uma injungéo ano violencia condusida por vérios sentido. Dai 0 porqué de Levinas se refer a “nuca” como 0 rosto, sugerindo que o “rosto” éa dimenséo da vida humana que careys sua vallnerabilidade e impde uma obrigaséo éiea a quem ele se mostra Ver 0 meu Precarious Life: The Power of Mourning and Violence (Londres, Vetso, 2004), p. 131-40, 19 CamiNtios nIvERGENTES a tradugdo altera o que transmite, a “mensagem” muda no decorrer da transferéncia de um horizonte espacotemporal para outro. Segundo Gadamer, esses horizontes se “fun- dem” nos momentos da tradugao”, mas a isso ett contraponho o abismo que a tradugio abre na propria presuncao de continuidade histérica pressuposta por Gadamer c outros pensadores da tradicio hermenéutica. O que acontece quando o horizonte falha ou quando no ha horizonte? Até mesmo as tradig6es que parecem sustentar a continui- dade nao se reproduzem no tempo permanecendo iguais. Como iteriveis, clas estao sujeitas a desvios ¢ sequéncias imprevisiveis. Certo abismo ¢ a condi¢ao para que a tradicio ressurja como nova. O idioma pelo qual se transmite uma exigéncia nao é 0 mesmo pelo qual ela é recebida, principalmente se ela estiver passando de uma topo- grafia temporal para outra. Algo se perde no caminho até chegar aqui e agora, ¢ algo novo é acrescentado, pela forma de transmisséo, ao que As vezes & chamado de “con- teido” da mensagem. A continuidade é em parte, rompida, © que significa que o passado nao é “aplicado” ao presente nem surge intacto depois de varias viagens. O que se mostra vibrante no presente é a ruina parcial daquilo que foi anteriormente. Entao, se tentarmos refletir sobre o que isso significaria hoje para nds, descobriremos rapidamente que no sabemos exatamente © que queremos dizer com esse “nds”, ou qual é a melhor maneita de pensar sobre a temporalidade em que vivemos. No deve- mos lamentar essa desorientaco, ¢ sim consideré-la a precondica’o para qualquer tentativa de pensar sobre territério, propriedade, soberania e coabitagao de uma nova maneira. Afinal, se 0s recursos de uma tradicio religiosa sio miiltiplos, entio “exigén- cias” de vitios tipos podem nos ser feitas com base em diferentes ramos da tradicio: {sso € 0 que explica o debate aberto sobre as Escrituras, as disposig6es talmiidicas e as diferengas hermenéuticas na leitura do Alcorao. £ também por isso que os mandamen- tos levinasianos, apesar das reivindicagées do préprio Lévinas, néo podem preceder ou anular a exigéncia por interpretacao ou tradugo. Como sabemos, a hermenéutica nao s6 a ciéncia de como interpretar melhor os textos religiosos, mas também a de como interpreté-los no presente ¢ atravessar melhor as divisies temporais e geogrdficas que caracterizam as condigées de seus primérdios e de sua aplicabilidade no presente’. ‘Ver Hans-Georg Gadamer, Tush ae Method (Nova York, Continuum, 2004) (ed. bras. Vad e metodo, ead livio Paulo Meurer, Petropolis, Vozes, 1999], para uma discusséo importante, embora falival sobre Walter Ben jamin, tadugto e a faso ee horizonces. © O estuda contemporineo da hermenutica deve 4 obra de Dilthey e Schleiermacher ~ ambos fizerar referén- cia problemas dla hermenéutica biblica enquanto buscaram esrabelecer o fiundamento das cincias hunsanas (ou Grisesutsenschafien(ciéncas do espltits)), A questi de como ler passagens biblicas com a vantagem de una s- cago histéxica postesor & cscrita dela suit a questo da ligacio invariével da ineerpretagto com a passagern do tempo, Embora Gadamer tendesse a extabelecer a continuidacehistrica da tradieo fazendo uso de umm conceito th inerpretagéo dilégica, sues ideias ni explicavars aquelas formas de eupraracemporal em que modosanverio~ res de auroridade encram em crise e perden sua legisimidade, Apesar de esa critica ter feito com que Habermas entasse explicara legtimagéo por meios néo tradicionais ¢ pré-culturais, ea levou pensadotesinfluenciaios por ‘Walter Benjamin aquele aos de traducho em que o pasado deve efeivamente se desmantela para sec introdusido no futuro. As duas versées reeusam aqueles modos de continuidade histériea que suscentam a tadisao € a auto ade, mas enquantoaabordagem de Habermas é quase transcendental, 2 benjaminiana se concentra nas disjungdes remporas plas quis se da waduei. a necesidade de desmanche, au disperso, que forma o vedadeiro pano de fundo deste estudo. # intesessante quc isso também apele a uma versio da tradigso messinica dentro do judas mo. Mas se seguitmos aqui as ideias de Benjamin, a forma messiinica de dispersio que aparece cm sta obra jé ‘um afistamento das formas anteriores, Em ouctas palavras, € uma dispersio subsequence do jé disperso, 20 Isropugio Perante uma visio que consideraria a continuidade do “Verbo” através do po, desenvolvendo uma ideia de tradugdo como veiculo puro de retransmissio continuidade, precisamos voltar ao abismo que torna a tradugao possfvel € nsiderar 0 que significaria, para um recurso ético do passado, entrar no campo tradugéo com recursos oriundos de tradigées bem distintas e internamente plicadas. E aqui néo me refiro apenas a miltiplos ramos da tradigio judaica bora isso ainda scja importante), mas as maneiras pelas quais os recursos ju- iicos sio tomados ¢ elaborados nos discursos no judaicos ¢ por que essa forma cifica de cruzamento linguistico é de fato central para o que sao ¢ podem ser recursos judaicos. Os recursos éticos especificos s6 se tornam generalizdveis cazes a0 entrar no campo da tradugéo cultural. Essa ndo ¢ apenas uma frase ‘ctitiva: as tradig6es religiosas s6 prosperam ao entrar em contato com outros lores, instituigées ¢ discursos religiosos ¢ nao religiosos. Ela ¢ também um valor si, A tradigéo 86 trava algum tipo de contato com a alteridade, com o campo “nio-eu”, quando deslocada e transposta de uma configuracao espacotemporal outra. © que adoto de Lévinas é.a afirmagao de que esse contato com a alte- ‘ridade dé vida a cena érica, a relacio com 0 outro que me compele. Desse modo, ‘fe abismo na traducio torna-se a condicéo de contato com o que est fora de mim, veiculo para uma relacionalidade ex-titica, e a cena em que uma linguagem ‘encontra outra e algo novo acontece. Ao pensar sobre como os preccitos éticos enredados na tradigéo tornam-se presentes, tendemos a rastrear as idas da tradigéo de um lugar e momento para ‘outro. Mas, se a tradugio serve como veicule que transpée da linguagem na qual uma exigéncia é formulada para a linguagem em que ela seré recebida, entao pre- ccisamos pensar tanto a linguagem quanto a temporalidade de maneira diferente. Se uma exigéncia vem de alhures, nao imediatamente de meu préptio idioma, entéo meu idioma é interrompido pela exiggncia, 0 que significa que a prépria ética requer certa desorientagio do discurso que me é mais familiar. Ademais, se essa interrupsao constitui uma exigéncia para a traducio, entao a tradugio nao pode ser simplesmente a integracio do que ¢ estrangeiro naquilo que é familiar; cela deve ser uma abertura ao nao familiar, uma despossessao do solo anterior, ¢ até mesmo um desejo de ceder ao que nao se pode conhecer de imediato dentro dos campos cpistemolégicos estabelecidos. Esses limites ao que € conhecfvel so esta- belecidos precisamente pelos regimes de poder; portanto, se estamos dispostos a responder a uma reivindicacao que nao é de imediato assimilével a um quadro de referéncia ja autorizado, entio nossa disposigio ética 4 exigencia se envolve numa relacio critica com o poder. Nesse sentido, como afirma Spivak, “a traducao é um campo de poder”. Qu, como observa Talal Asad sobre a prética da traducio cultural: ela est “inevitavelmente enredada nas condigées de poder” 7 Gayatri Chalaavorty Spivale, “More Thoughts on Culeural Translation”, abr. 2008. Disponivel em: chitp:/ cipep.net/tansversa/0608/spivaklen>. Aeeso em: 14 out, 2016. Talal Asad, “On the Concepr of ‘Culeural Translation’ in British Social Anthropology”, cm James Clifford ¢ George E. Marcus (orgs. Writing Cultures The Poetics ana Politics of Exbmography (Berkeley, Universi of Califor- nla Press, 1986). ae (Camantios pivercentes Portanto, a ética s6 pode surgir dentro de uma matriz de poder ao passar por modos de conhecimento invertos € néo autorizados. Tudo isso significa que as tradigdes cedem algo de sua continuidade ¢ espago em resposta as reivindicacées que emergem de campos discursivos contradizentes, campos que poem em diivida a idoneidade dos quadros epistemol6gicos tradicionais. Nesse sentido, a traducao representa tum encontro com os limites epistémicos de qualquer discurso dado, colocando-o numa crise da qual ele nfio pode emergir por nenhuma estratégia que busque assimilar e conter a diferenea. Se entendemos a obtengao de acesso a um conjunto original de exigéncias ou injungGes como uma tradugio, entio esse acesso ndo acontece por meio de um retorno histérico ao tempo ao lugar do conjunto original — 0 que, em todo caso, é impossivel. Ao contrario, sé podemos nos voltar para o que a tradugio nos dis- ponibiliza, nos mostra, ilumina, no presente. Desse modo, a perda do original éa condicaa de sobrevivéncia de determinada “exigéncia” transmitida pela linguagem e através do tempo. O que sobrevive, por conseguinte, ¢ arruinado e também vi- brante. As dimensées destrutiva e iluminadora da traducdo se tornam 0 que quet que ainda estejaativo, 0 que quer que ainda reluza, ¢ isso significa que a traducio € 0 recurso religioso que afeta o presente, Em termos académicos, seria possivel dizer que s6 se pode entender a exigéncia levinasiana pelo relato benjaminiano da traducdo — mais adiante voltarei a esse ponto. A traducéo torna a exigéncia dispo- nivel, quando a torna. Mas isso também significa que a exigéncia pode nem sem- pre ser legivel; cla apenas pode chegat — se de fato chegar ~ em pedacinhos, ¢ assim ser apenas parcialmente cognoscivel. Se o proceso da traducao chega a definir retroativamente os recursos religiosos para o pensamento ético, entio derivar desses recursos um imagindrio politico alternative é 0 mesmo que crié-los de novo ou, na verdade, dispersd-los e transmuti- -los. Nesse sentido, é possivel discernir na ideia de “disseminagao” em Derrida um. certo retornante da dispersio messiinica'', Talvez seja um exemplo de termo reli- gioso que se traduz num significado textual (¢ que, é claro, sempre teve algo de significado textual) e questiona a possibilidade de retornar a origens hipotéticas. Sua significacéo implicita de uma disperséo cabalistica da luz divina talvee dé sentido A prépria passagem que Derrida fax da disseminacao (em suas primeiras obras) para o messinico (nas tilrimas). Seria um erro dizer que Derrida de repen- te se tornou religioso, ou que certos conceitos, como messiainico ¢ messianicidade, continuaram furtivamente religiosos em sua escrita. Afinal, a escrita é 0 cendrio da transposicio ¢ do deslocamento, nao sé inspirada pela ideia de “dispersio”, mas também dispersando essa mesma ideia. Debates recentes tendem a por em questéo como os discursos religiosos podem ser traduzidos em discurso piiblico e mods democtiticos de participasio ¢ reflexio, com a consequéncia de que a tradugéo nulifica 0 primeito discurso em prol do Para ama consideragio do messdnics'na obra ce Ders, ver Jacques Devt, Aes of Relig (ong. Gil Avila, Nova York, Routledge, 2002). Vee também Jeeques Derrida e Giaan Vattime (org), Religion (Stanford, Stanford University Press, 1998); Gideon Offa, The Jewish Derrida (Syracuse, Syracuse University Press, 2001), 22 Inrropucio do. O principio ¢ 0 de que a religiao é uma forma de particularismo, tribalis- ou comunitarismo que deve se “traduzir” numa linguagem comum ou racional garancir um lugar legitimo e restrito na vida publica. Os termos do debate com tiéncia presumem que existe uma linguagem ptiblica comum ou uma forma ular de raz4o que nao so em si religiosas, mas que podem e devem servir como iadoras das reivindicagées religiosas. Fora isso, a religiao ameaga se tornara base discurso piblico, da participagio politica, e o terreno que legitima o préprio ido. Essas perspectivas foram contestadas pelas vastas obras de Talal Asad ¢ Saba ood sobre o islamismo, de Charles Taylor sobre o cristianismo ¢ de muitos 08, para os quais a religio nao é superada pelo secularismo, mas estabelece sua emonia usando os préprios termos do secularismo. Ou o secularismo é em si produto religioso, imbuido de valores religiosos (Pellegrini, Jakobsen), ou a isdo entre o secular eo religioso éem si um instrumento para manter a hegemo- ia do cristianismo (Mahmood, Hirschkind) e o apagamento do islamismo. © caso de Israel tende a complicar esses debates, pois suscita-a questéo da “judai- dade” em seus sentidos religioso ¢ nao religioso, a qual esti ligada 3 questdo do card- religioso ou nao da judaicidade do Estado de Israel. Alguns liberais afirmam que um Estado judaico ¢ que deveria ou servir como excecao ao postulado liberal que o Estado deve ser secular (por causa das circunstincias excepcionais do genoci- nazista contra os judeus), ou ser defendido como uma democracia liberal exclusiva 05 judeus, por mais paradoxal que isso parega'? — apesar de suas leis de cidadania 1¢ conferem privilégios impressionantes aos judeus no interior de suas fronteiras, mitindo ¢ solicitando 0 retorno dos judeus diaspérticos 4 Palestina ¢, a0 mesmo po, proibindo aos palestinos o direito de retorno a rerras tomnadas & forga em 1948 -repetidamente durante os anos seguintes. Os sionistas de esquerda lamentam o ad- to da dieita religiosa cm Israel ¢ veem a si mesmos como uma alternativa secular. © que significa “secular” no contexto de um Estado judaico? Poderiamos argu- tar que “judaico” nao significa adetir ao judaismo religioso; esse motivo levou fannah Arendt a escrever intencionalmente sobre a “juidaicidade” como uma catego- ‘tia cultural, histérica e politica que caracterizou a situacio histérica de populagbes que podem ou nao se envolver em praticas religiosas ou se identificar explicitamente com ‘© judaismo!. Na verdad, a judaicidade, na visio de Arendt, é um termo que tenta seunir uma multiplicidade de modos sociais de identificagio sem set capaz de concilié- os. Nao ha uma tinica definicao, nem pode haver. A visdo dela seria suficiente se nao srouxesse consigo o pressuposto da origem da afinidade europeias: essa qualidade, “judaicidade”, tende a nio incluir os judeus mizrahim, cujas origens culeurais sio ara ‘bes'4, ¢ os sefardim, cuja historia de exilio da Espanha (cla prépria um espago liminar © Ver Yael Tamir, Liberal Navionatem (Princeton, Princeton University Press, 1993) © VerHannah Arendt, The Jewish Writings (org. Ronald H. Feldman ¢ Jerome Kohn, Nova York, Schocken, 2008) fed. brass Evry judo, tad. Lausa Degaspate M. Masearo, Luciana Garcia de Oliveira e Thiago Dias daSilva, Barueri, Amarilys, 2016), * Yehouda Shenhav, The Arab Jews: A Postcolonial Reading of Nationalion, Religion, and Fthnicty (Scanford, Seanford Universiy Press, 2006); Ella Shohat, “Rupture and Return: Zionist Discourse and the Study of Arab Jews’, Socal Tet, 21, n.2, 2003, p. 49-74, 23 CaMiNitos DIVERGENTES do imaginério europeu) resultou em entrelacamentos culrurais complexos com virias outras tradigdes (grega, turca e norte-africana, para citar algumas). Se jirdaico jé € consi- derado um termo secular, entao Israel nao é um Estado religioso, mas tem de se defen- der dos extremistas religiosos, Ser possivel, de alguma maneira, extricar totalmente a judaicidade de seu pano de fundo religioso, ou sera sua forma secular um resultado ou efeito de determinada histdria religiosa? Qu serd endémico aos religiosas — os judeus, nesse caso — se afastar constantemente de sua historia religiosa? Proponho esas questées sem saber as tespostas, sem sequer saber se devo saber as respostas a fim de prosseguit com este livro. Afinal, nao estou escrevendo um livro sobre hist6ria da religiéo, nem mesmo sobre filosofia da religido. Na realidade, © que tento é entender como o exilico — ou, mais enfaticamente, 0 diaspérico — estd incorporado na ideia de judaico (ndo em termos analiticos, mas histéricos, ou seja, no tempo); nesse sentido, “ser” judeu é estar se afastando de si mesmo, jogado num mundo dos nao judeus, fadado a progredir ética e politicamente justo ali, naqucle mundo de uma heterogencidade irreversivel. A ideia de exilio ou galur na cultura judaica caracteriza uma populagio que perdeu um lugar e nao foi capaz de retornar a outto. A ideia de “retorno” continua implicita na ideia de exilico, na medida em que ¢ ligada a Sido eo sionismo. Assim, dentro do discurso sionista, a galut é considerada um dominio decaido, um dom{nio que sé pode ser retificado restaurado pelo retorno a patria. O diaspérico funciona de modo diferente, signi- ficando uma populacéo ¢ até mesmo um “poder” que dependem da coabitacao com 05 no judeus e evitam a ligagio sionista da nagio com a terra!’. A distingdo se dé de mancira bem diferente em relacao aos palestinos de 1948, ou mesmo para todos os que foram despossados a forca de suas terras na Palestina histérica. Quando no explicitamente destrufdas, as populagdes judaicas certamente foram despossadas de suas terras ¢ de suas casas sob o regime nazista, mas nao da Palestina. AA ideia de que a despossessio forcada de outros poderia compensar por direito 0 fato de terem sido despossados a forca nao segue nenhuma linha de raciocinio ética ou legal que seja legitima. Mas, caso se entenda que a base para a lei judaica do retorno é biblica, teremos certamente de nos opor ao uso da religio como justificativa para perpetrar crimes internacionalmente reconhecidos de despossessio ¢ despovoacéo contra os palestinos. Certamente serd preciso pensar com cuidado sobre o dircito de rezorno (palestino) em relagdo & Lei do Retorno (israelense), especialmente quando o em- penho em retificar uma forma de exilio instituindo outra claramente repete 0 crime em vez de resolvé-lo. Espero mostrar por que traver de volta & Palestina a ideia de didspora—o que signi- fica ver como ela jé se dé ma Palestina, de diferentes maneiras — pode ser titil para en- contrar uma maneira de pensar a coabitagao, o binacionalismo e uma critica da violéncia de Estado. Seguindo as importantes reflexdes de Edward Said em Freud e os do europeus, estou tentando imaginar o que aconteceria se duas “tradigoes” de deslo- camento convergissem para produzir uma ordem politica pés-nacional baseada nos direitos comuns dos refugiados e no direito de serem protegidos contra formas ilegitimas ‘Ver Daniel Boyarin ¢ Jonathan Boyatin, Powers of Diaspora, cl. 24 Inrropugto devioléncia do direito e militar. Para refletir a respeito dessa proposta de Said, teriamos de estabelecer as condicées de tradugao entre uma forma de deslocamento ¢ outra ~e também determinar os limites da traduzibilidade. As formagées culturais de exilio e didspora, diferentes entre si, serio importantes para qualquer tradugio do tipo’. Por mais que o proprio Said fosse um defensor de ideais seculares, ele entendia © tipo de convergéncia de histérias ¢ as proximidades de exilio que poderiam constituir um novo éhas ¢ uma nova politica na regiéo. No timo capitulo do livro falarei sobre como poderiamos pensar nisso. Para Said, trata-se de uma tare- fa impossfvel, mas, justamente por isso, ndo menos necessdria. Outra visdo é apresentada por Etienne Balibar, que conecta a pratica da tradugéo com uma de- fesa do secularismo ¢ da promessa politica da didspora. Balibar escreve: “Processos de tradugao podem ocorrer entre universos religiosos, mas essas tradugées envolvem justamente o fato de tais universos no serem puramente religiosos, O ‘religioso’ como tal é um ponto de intraduzibilidade””. Temos motivos para cogitar se esse € 0 caso". A tradugio sempre diz respeito ao que resta € ao que é apresentado, Alguma coisa deixa de ser apresentada, é claro, mas isso vale tanto em relacao a uma tradugio de Kafka a partir do alemdo ou de Lispector a partir do portugués quanto em relacio a diversas deliberagées das Nagdes Unidas. Alids, existe alguma dugdo que nao dependa, em algum nivel, do intraduzivel? Se nao Fosse assim, todas as traducdes seriam perfeitas, o que significaria que todo elemento de um primeiro texto encontraria correspondéncia adequada num segundo texto, Na verdade, acho que essa idcia da traduzibilidade plena pertencia justamente aquelas -tradiges religiosas que buscavam traduzir 0 Novo Testamento com perfeico — ou | seja, sem sobras — em diversas linguas, De fato, se a palavra putativa de Deus — ou as injungées divinas, de modo mais geral — tiver de ser transmitida integral- mente ¢ sem falhas, é preciso aceitar a possibilidade de uma tradu¢io perfeita € _ transparente. No entanto, Balibar identifica a religiao como o “intraduzivel”, su- gerindo que ela perde sua qualidade religiosa pelo veiculo da tradugio; a traducéo, portanto, desnuda toda afirmagao de sett elemento teligioso™ "Ver Najat Rahman ¢ Hale Khamis Nasser (orgs), Mahrnoud Darwish, Exile Poet: Critica Bays (Northampeon, MA, Olive Branch, 2008). ° Frienne Balibas “Cosmopolicanism ancl Secularism: Controversial Legacies anc! Pempecsive Interrogations”, Grey Room n, 44, 2011, p. 21. Para uma ideiaalternativa, vee Talal Asad, "On the Concept of ‘Cultural ansation’ in British Social Anch ology” cir. | Etienne Balibar, “Cosmopolitanism and Secularism’, cit. p. 21. Bolibar esereve que as diferengas rcligiosas “devem ser ‘mediadas’ pela introdugio do discurso, que [..] deve parecer ‘herético’ do ponto de vist de todos ¢ uaisquer religiées, Portanto, para qu os vitiosdiscursosreligiosos se tornem rautuamente compativeis ne mesmo espaco pilblicn ou se envolvam niuma conversa ‘vt’, é preciso a inttodugao ou intervengéo de um elemento axse- ligioso adicional”(p, 21-2), Além disso, cle afirma que o elemento herético “€ ‘performative’ ¢, em primeira ins- nea, penforma sua prépria parresiz, ou enunciacio de verdade, contra todas as teologias € mitologias que exercem poder" (p. 23). A questo susctada por esse argumento € se 0 momento herético € invariavelmence “arreligioso” = nesse caso, apenas 0 “arteligioso” pace fazer a media;ao entre as diferencasreligiosas, Mas se 0 momento herét= co ota pessibilidade herérea s4o consciturivas da prépria religido, como muitos argumentaram, entio o herético se torna a ocasdo para a taduigio entre as dferengas religioas sem presumir que exsi mediagio s6 € possivel pela twanscendéncia ou negacio da religito. Essa ideia, no entanto, pressupoe « pergunta sobre sea tradugio deve ou sdevera afnal cr considerada como mediagio. 25 (Cextsos pivercenes Mas se a traducao tem uma histéria teolégica, serg que essa historia teoldgica simplesmente desaparece quando a tradugio é posta como drbitro neutro das idcias religiosas? Alids, ¢ se a uaducdo for em si um valor teligioso, como sugerem as primeiras obras de Benjamin”? Como descrevemos a situagio? A traducio ja su- Perou totalmente sua procedéncia religiosa? Ou ela simplesmente reformula para rnés, em um conjunto diferente de rermos, o problema do significado religioso? A traduedo estabelece a heteronomia como um risco constitutive de qualquer “trans- missa0” religiosa, Nesse sentido, a tradugéo “dissemina’ o original, projetando-o 20 no religioso ¢ no profano, dispersando-o, podemos dizer, justamente em uma heteronomia de valores. Nesse sentido, a tradugao percorre as ruinas, suscitando © passado de vez em quando. Balibar volta ao processo de tradugo quando a conecta 4 didspora, numa tentativa de articular formas transnacionais de cidadania. Para ele, © que parece formar a condi¢io do multiculturalismo efetivo [..] também esté inti- mamente associado aos processos transculturais de hibridizagéo efliagSes muikipla, © quedificuleaa ligados 4 melancolia do exilio -, mas forma a condicéo material para o desenvolvimen. to dos processos de traduco entre universos culeucais distantes,2! para individuos e grupos “diaspdricos” — pois tais processos esto No entanto, se nos recusamos a santificar o momento da tradugao come pu- Famente secular (e o secularismo tem seus modos de aurossantificagio), segue-se que as significacées religiosas si0 continuadas, disseminadas ¢ transmutadas na ocasido da uadugéo. Nés ago abandonamos 0 campo religioso por um nao reli gioso, tampouco permanecemos dentro de um universo religioso autorreferente. No processo, 0 religioso ¢ transmutado em outra coisa, € ndo exatamente trans- cendido. Ao mesmo tempo, essa transmutago barra um retorno a algum sentido original, o que significa que o religioso € disseminado ¢ disperso, significando apenas no contexto de uma trajetéria diaspérica, pés-nacional e néo identitéria — uma impureza afirmativa. Por um lado, estou descrevendo uma trajetéria contra-hegeménica da tradugio, Um discurso ¢ interrompide por outro; ele cede do terreno hegeménico para dar espago ao que desafia seu esquema de inteligibilidade, A traducio torna-se a con. digéo de um encontro transformative, um modo de estabelecer a altcridade no niicleo da transmisséo. Por outro lado, estou considerando maneiras de formular a ética que comecem com a questao das condicoes para receber mensagens, injuun- g6es ou comandos de outra esfera discursiva, uma esfera que nao é prontamente integrada 4 nossa, Assim, injuneées como “néo matards” ou “amai ao préximo” 6 podem ser entendidas e assumidas sob a condi¢ao de serem traduzidas nas circuns. Sanclas coneretas em que se vive, no ambiente dotado de sentido histOrico ¢ geo- Brifico, nas cenas de violéncia que permeiam a vida cotidiana. Nesse sentido, nao ist Benjamin, “A aca do duos", em Birr sobre mit linguager (tad, Susana Kampf Lages © Fie nnani Chaves, Sio Paulo, Duas Cidades/Ed. 34, 2011), p. 101-19, *Feienne Balibas, “Cosmopolitanism and Seculatisn’ city p. 21, 26 herropugio 4 resposta ética 4 reivindicacao do outro sobre nds se nao houver tradugéo; do ntrdrio, estarfamos eticamente Vinculados apenas a quem jé fala como nés, na gua que j4 conhecemos. Por essa raz4o, se tomamos a relacao com o nao judeu 0 nao judaico como uma obrigagao érica e uma exigéncia de judaicidade, aquilo que estou descrevendo como trajetéria histérica da tradugao sera, ao mesmo tem- po, o movimento ético de responder &s reivindicagées feitas por quem nao é ple- mamente reconhectvel como parte da “nagio” e cujo status ¢tico implica um deslocamento da nagio como quadro exclusivo das relacées éticas. Esse desloca- mento é seguido de uma luta coletiva para encontrar formas de governo politico ‘que insticuam principios de igualdade e justica para toda a composic¢ao demogré- fica da regio. Desse modo, poderiamos dizer que existe um caminho judaico para certa ideia de justica social e politica democratica, posto que a igualdade e a justi- a estariam disponiveis para todos, independentemente de religido, raga, naciona- lidade, origem. Pode parecer paradoxal dizer que existe um caminho judaico para 2 constatacao de que a igualdade deve ser assegurada a uma populacio indepen- dentemente da filiagio religiosa, mas essa é a consequéncia de uma universalizagao que mobiliza um trago ativo dessa formacao com outra, bem como uma ruprura com sua forma original. ALEM DE FORMAS IGNOBEIS DE BINACIONALISMO_ E claro que existem muitos argumentos excelentes, articulados num quadro de referéncia que se autodeclara secular, para combater o sionismo politico, csta~ belecendo uma ordem politica fundada na igualdade para palestinos e judeus nas rerras da Palestina histérica; para combater formas racistas de cidadania dentro das fronteiras de Israel; para deter ¢ reverter décadas de confisco de terras ¢ de assentamento de colonos pelo Estado de Israel, dando apoio a autodeterminagao palestina; ¢ para se contrapor ao uso brutal da forca policial ¢ militar voleada a manter uma ocupacio ilegal e privar populagaes intciras de direitos reconhecidos internacionalmente’?. De fato, esses argumentos tém a grande vantagem de falar uma linguagem entendida como universal, requerendo direitos para se contrapor 2 subjugacéo colonial que se aplicaria a toda e qualquer populacao privada de autodeterminagao efetiva, mobilidade e cidadania, Esses argumentos so muito fortes, e espero promover alguns deles nas préximas paginas. Minha tinica diver- géncia quanto a cssa importante tradicao secular é que sugito que alguns de nds chegamas a esses prinefpios por meio de diferentes formagées, ¢ nossas formagoes nio séo necessariamente anuladas no momento em que chegamos a constatagées por exemplo, Ilan Papp, the Ethnic Cleansing of Palestine (Oxford, Oneworld, 2006). Num debate sobre de que maneira ot intelectuaisjadaicos deveriam formular sua oposigio a0 sionismo como violagio de dicicos hhumanos, Anat Bilerzki defendew que os direitos humanos devem se bascar na raxio, set identficados estrtamen te com o secularismo, e, asim, nfo podem set coligidos de footes religiasas. Se hi boas cazies para defender os direitos humanos nos textos tcligiosos, é pelo fato de eles se basearem numa forme de taxéo que funcione indepen- ddentemente de toda religito, Ver “The Sacred and the Humane”, The New York Ties online, The Opinionaton 1? jul. 2011. Disponivel em: chetp!fopinionatorbiogs.nytimes.com/201 1/07/17/the-sacred-and-the-humane!?_r-0>. Acesso em: 5 nov. 2016, 27 CamuNHos DIVERGENTES como esas: somente com 0 fim do sionismo politico, entendido como a insistén- cia em fundar o Estado de Israel nos principios da soberania judaica, ¢ que se pode realizar naquela regiao os principios mais amplos de justica. Isso deixa de lado a questao do sionismo cultural, que ndo est4 necessariamente ligado & defesa de uma formagio estatal especifica, e que ocasionalmente insiste na distineao entre Tsrael, entendido como nagao, e Eretz Yisrael, entendido como a terra. Na verda- de, debates sionistas iniciais, nas décadas de 1920 e 1930, questionaram se o sionismo implica alguma reivindicagao territorial & terra. Escrevo nao como uma sionista cultural ou politica, embora acredite que a histéria da distingao mostre que tais termos passam por reversbes © transmutagées histéricas que efetivamen- te esquecemos, ‘Na maioria das veres, nos Estados Unidos, quando perguntam “Vocé é sionista?”, © que querem dizer é“Vocé acredita no direito de existéncia de Israel?”. A pergun- ta sempre pressupée que consideramos que a forma atual do Estado fornece funda- mentos legitimos para sua prpria existéncia. Mas a declaracao de que os fundamentos atuais para sua existéncia, bem como a forma atual do Estado, podem do ser legitimos € tida como uma posigo genocida, Desse modo, uma discussio politica sobre o que constitui os fundamentos legitimadores de qualquer Estado naquela regido é imediatamente silenciada, pois perguntar sobre a legitimidade (sem saber de antemio como a pergunta sera respondida) é tido nao como um momen- to reflexivo essencial para qualquer ordem politica democratica, mas como um desejo dissimulado de ver determinada populacio aniquilada, Obviamente, nenhu- ma discussio ponderada sobre a legitimidade pode acontecer sob condicdes como essas. Além do mais, dado que o sionismo se tornou equivalente a reivindicag6es de soberania judaica sobre terras antes pertencentes aos palestinos e habitadas por eles, uma pergunta melhor seria: que forma de ordem politica poderia ser considerada legitima para terras atualmente habitadas por israelenses judeus, palestinos israelen- ses palestinos que vivem sob ocupacio, ¢ que nao sio mais habitadas por centenas de milhares de palestinos despossados de suas terras por um padrao sistematico ¢ recorrente de confisco de terras, parte integrante do projeto continuado de colonia- lismo de povoamento? Quem pergunta que tipo de ordem politica honraria todas essas reivindicacGes aparentemente nao é mais sionista no entendimento contem- poraneo do termo. Nesse cendrio foram deixadas de lado nao apenas as varias formas de sionismo que rejeitavam as reivindicagées territoriais, mas também aquelas formas primeitas que pretendiam autoridades confederadas para estabelecer 0 binaciona- lismo, Ser a favor do binacionalismo hoje é supostamente, uma posigao antissio- nista, embora nem sempre tenha sido assim. De todo modo, dadas as formacées contemporaneas do sionismo, acredito que no se pode ser sionista e lutar por um fim justo subjugaco colonial ao mesmo tempo, Até mesmo os experimentos de carter socialista que caracterizaram 0 movimento kibutz faziam parte do projeto colonial de povoamento, 0 que significa que, em Israel, o socialismo era entendido como compativel com a subjugacio ¢ a expansio colonial, E claro, muitas pessoas de formagées ¢ afiliagées judaicas chegaram a posigdes antissionistas ¢ concluiram que néo podem mais ser judias. Tenho a impressio de 28 Ivrropueko 0 Estado de Israel as parabenizaria por terem chegado a essa conclusao. Alias, 2 oposigao de alguém as politicas atuais do Estado de Israel, ou ao sionismo de lo mais geral, levar essa pessoa 4 conclusao de que nao pode mais se denominar ia, tal decisio ratifica efetivamente a nocao de que ser judeu é ser sionista, uma yuacdo histérica que deve ser contra-atacada caso se queira que a judaicidade nega ligada 3 luta pela justica social. Ha ainda outras pessoas de formacées afiliagdes judaicas que se encontram silenciadas pelo estado atual da politica is- nse. Com frequéncia elas abominam a ocupagao, ficam estarrecidas pelos jnes militares de Israel contra civis em Gara, ¢ As vezes até desejam formas de acionalismo que propiciassem estruturas politicas mais justas, mais vidveis nos violentas para a regiao. Mas elas temem que encampar essa critica va atigar antissemitismo, e sustentam que é inaceitavel fazer uma critica publica que po- ia ser instrumentalizada para aumentar 0 antissemitismo e os crimes violentos contra o povo judeu, Na verdade, esse dilema praticamente se tornou constitutivo para muitos judeus na didspora. O que significa no ser capaz de expressar abertamente os principios que foram de extrema importancia para a dessubjugacao do proprio povo judeu? No que se segue, vou considerar como esse impasse mudo se deu no discurso pitblico de Primo Levi e Hannah Arendt e examinar quais séo suas implicagées para a critica publica contemporanea, seus limites autoimpostos ¢ 0s riscos que ele corre. Afinal, ‘se aceitamos que toda e qualquer critica sobre Israel é efetivamente antissemita, ‘entio ratificamos essa equacio especifica toda vex que nos calamos. A vinica ma- neira de lutar contra a equacdo que associa a critica de Israel ao antissemitismo é mostrar clara e repetidamente, e com um forte apoio coletivo, que critica de Israel é justa € que todas as formas de antissemitismo, assim como outras formas de ra ‘cismo, sio absolutamente inaceitdveis. Somente quando essa dupla posi¢ao se sornar legivel no discurso piblico é que sera possivel “apreender” uma esquerda jedaica, n’o sionista, c, portanto, uma esquerda judaica/nao judaica que possa se ‘colocar como “parceira pela paz”. Ainda que meus pontos de vista sejam claros, é importante considerar que eu senha chegado a esses principios ¢ valores gracas a uma formacao especifica, a saber, 2 educacio escolar ea formacao que tive, na primeira infincia, dentro de comuni- les judaicas, bem como um envolvimento com programas educacionais da minha sinagoga que me estimularam a estudar filosofia. Eu diria que alguns dos ‘valores que se formaram nessa infincia e adolescéncia reaparecem agora na minha sesisténcia ética € politica ao sionismo. F claro, tenho uma histéria pessoal — pro- elmente diversas ~, mas introduzo o elemento autobiogréfico nessa conjuntura para ir atrds dessa histéria espectfica (embora, talvez, eu venha a fazé-lo em cro lugar, explicando algo sobre as perdas da minha familia sob o regime nazis- € como isso afetou meu trabalho sobre género e até mesmo meu entendimento fotografia e do cinema). Para esse fim, no entanto, quero destacar que: (a) ‘0 entendimento dos valores judaicos diaspéricos é crucial para formular uma itica sobre o nacionalismo eo militarismo; (b) a relagdo ética com os nao judeus e continua sendo parte de uma abordagem antisseparatista e nao identitiria da 29 (Canaisnios DIVERCENTES relacionalidade ética, da pluralidade democrética e dos modelos de coabitagéo global; (c) a resisténcia ao uso ilegftimo da violéncia do direito ¢ de Estado (que também ratifica ¢ sustenta a exploragio econémica ¢ a regulacio do empobreci- mento) pertence a uma histéria de movimentos sociais radicalmente democréticos em que estiveram envolvides, de modo central, judcus contrérios: & destruicao gratuita infligida a populacées por Estados que buscavam manter o controle he- geménico ou totalitdrio; e a formas legalmente sancionadas de racismo, junto com todas as formas de subjuga¢ao colonial e despossessao territorial coercitiva. Além disso, destaco que: (d) as condig6es dos apétridas e dos refugiados foram cruciais para meu entendimento dos direitos humanos € da critica do Estado-nagio, das prisdes € das detengées, da tortura ¢ de stta ratificacao pela lei ou pela politica, ¢ por fim me levaram, depois de um atraso de muitos anos, obra de Hannah Arendt, cuja critica do Estado-nagao e do sionismo em particular permitiu uma ligagao fundamental entre a despossessdo softida pelos judeus na Europa c a justica das exigéncias daqueles que foram coercitivamente despossados de suas casas, verras dircitos de autodeterminacao politica, incluindo os palestinos. Por fim, destaco que: (c) as priticas de luto (0 repouso da shite e a reza hadis/)) na tradicéo judaica acentuam a importincia do reconhecimento comunitirio e publico das perdas como uma mancira de continuar afirmando a vida. A vida nao pode ser afirmada enquanto estamos sozinhos —ela requer outras pessoas com quem e diante de quem podemos lamentar abervamente. Mas se apenas certas populasées so consideradas dignas do lamento ¢ outras nao, lamentar-se abertamente por uma série de perdas torna-se o instrumento de negaco de outra série de perdas. Se os judeus s6 lamen- tama perda de judeus nos conflitos no Oriente Médio, entao afirmam que somen- te os que pertencem a sua religifo ou nagao sto dignos de luro. Essa forma de diferenciagio entre populagdes valiosas € no valiosas néo € apenas o resultado de conflitos violentos; ela também dé a condicao epistemolégica para 0 proprio conflito. Ouvimos repetidas vezes no discurso ptiblico israclense que uma tinica vida israelense vale mais do que intimeras vidas palestinas, No entanto, para que © princtpio da igualdade social ¢ politica comece a ser determinante, antes é pre- ciso que esses cileulos obscenos falhem em definitivo e todas as populagées sejam consideradas dignas de lamento. Nesse sentido, a capacidade de lamentar a perda de vidas é uma precondicao de valor, e néo pode haver tratamento igualitdrio sem a compreensio prévia de que todas as vidas tm o mesmo direito de serem prote- gidas da violéncia e da destruicao. Embora eu recorra a alguns conceitos religiosos, meu objetivo com isso nao é “fundamenta:” meu argumento numa base religiosa. Em vez disso, estou rastrean- do a generalizagao de certos princ{pios que derivaram de formagées religiosas, modes de pertenga culcural ¢ histérica, padrées de autorreflexio ¢ anilise, ¢ con- vencées especificas que controlam modos de resisténcia e a articulacao de ideais de justica social. Seria fcil dizer que essa criatura formada que sou simplesmente extrapolou de minha formagao e de meu ambiente para chegar a principios uni- versais cuja legitimidade ¢ aplicabilidade séo totalmente separadas dos caminhos pelos quais cheguei até eles. Se isso fosse verdade, entéo minha formagio — na 30 Inropugio -, qualquer formacao cultural ~ seria como uma escada usada para atingir nado objetivo, mas que ¢ abandonada ~ ou jogada fora — quando o obje- ‘atingido, Na verdade, os valores com que nos colacamos em questées poli- tipo surgem, em parte, de nossas formages culturais. Alids, sem dtivida 105 um erro quando reduzimos a questio da religiao @ fidelidade de um estabelecido a certas “ctengas”, sendo que a religiao geralmente funciona am conjunto de praticas e, de fato, como uma matriz da formagio do sujei- eu no pudesse ser quem eu sou sem que tivesse havido determinada religiosa, 0 que de modo algum implica um conjunto especifico de religiosas a respeito de Deus (a redugio metafisica) ou modos de crenga s da razio (a redusio epistemoldgica). Certos valores impregnam as prati- ‘mio podem ser “extraidos” facilmente delas ¢ transformados em “crengas” sitas formuladas em proposicées. Eles sao vividos como parte de praticas in- das, formadas e sustentadas dentro de certas matrizes de valor. entanto, como sou pouquissimo determinada por essa formacéo, embora iente parcialmente por seus termos (is vezes certamente sem querer), luto uma sétie de transposigdes que nem sempre sao previsiveis e, alids, nem sem- So amplamente compartilhadas. De modo semelhante, como vivo com outras que nao compartilham da mesma formagao que eu, encontro-me desorien- na minha propria orientacio, expulsa de seu quadro, ¢ essa é a trajetéria de- tadora de movimentos tanto éticos quanto contra-hegemdnicos. As ivas para os processos de tradugao cultural que desprovincializam minha taco surgem a medida que deparo com quadros conflitantes e reconhego as .G6es politicas especificas que procuram estabelecer certos aspectos de minha co como marcadores de hegemonia ou nacionalidade (como faz 0 sionismo co). Realmente, cu chego a principios generalizaveis gracas a uma série de upgdes ¢ transposigdes do quadro dado. Mesmo que 0s processos de univer- ico possam acontecer ¢ acontecam por meio de formas mais especificas de G40, nao existe universal que nao seja transposto na (ou como a) conjuntura discursos*. Certos regimes do universal se mostram limitados, ou sao instrumentalizados inviabilizar certas reivindicagées ou obliterar 0 modo como elas sao feitas. im, 0 que parece idiomatico ou extrinseco ao processo de universalizagao con- liz seu cardter “universal”, Se o processo de universalizagao se torna um proces- que integra discursos especificos num regime estabelecido, entio ele eleva 0 icularismo do regime ao status de universal ¢ efetivamente oculta seu proprio ier hegeménico. Os modos de universalizacao que contrariam os regimes de ler em questao de forma mais efetiva s4o aqueles que, ao mesmo tempo, expdem inassimildvel” como precondi¢ao de um modo corrente de universalizagao e cxigem dissolucéo ea reformulacio do processo de universalizacao em nome do inassimi J. A questéo nao € converter 0 inassimilivel em assimildvel, mas contestar os Ver meu argumento em “Competing Universalitios’, em Judith Butler, Slavo) Zidek e Ernesto Laclau, Connin- Hegemony, Usiveralin: Conternporary Dialogues on the Lefi (Londres, Verso, 2000) 31

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