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A LINGUA DO MOVIMENTO Débora Pereira Bolsanello Através dos autores do livro, podemos concluir que os métodos de Edu- cagio Somitica tém objetivos comuns: 0 ensino de movimentos visando diminuir sintomas dlgicos, melhorar a coordenagao motora, prevenir a recaida em padrées de movimento que causam lesGes, restabelecer 0 vigor fisico mental, transformar habitos posturais inadequados ¢ desenvolver o potencial de expressao. Fortin (1999) cita Mangione (1993), que distingue: [...] #rés periodos no desenvolvimento da Educagao Somatica: da virada do século [XX] aos anos 30, quando os pioneiros desenvolviam seus métodos, geralmente a partir de uma questéo de autocura: 1930-1970, periodo que conheceu uma dis- seminagdo dos métodos gracas aos estudantes formados por esses pioneiros; e dos anos 70 até hoje, onde vemos diferentes aplicagdes se integrarem as praticas e estudos terapéuticos, psicolégicos, educativos e artisticos. Aos trés momentos definidos por Mangione, acrescento um quarto mo- mento, pelo qual os profissionais brasileiros passam atualmente: o desejo de uma definigdo concertada do que é a Educagio Somatica em territorio nacional. Os capitulos anteriores nos mostram que cada método de Educagao Somati- ca tem principios, técnicas e vocabulario proprios. Essas particularidades sio um re- flexo da propria personalidade de cada um dos fundadores dos métodos, do contexto historico e sociocultural onde foi criado e desenvolvido 0 método, bem como das influéncias e adaptagdes que imprimem os profissionais que perpetuam seu uso. Tal como ocorre na ciéncia e na arte, os métodos de Educagio Somitica ndo escapam da mestigagem. Alimentam-se uns aos outros ontem e hoje. Deixam-se inspirar de exercicios j4 existentes, reformulando-os, dando a eles novo sentido, Nova dtica. Nao se pode esquecer a influéncia de Rudolf von Laban sobre a criagdo do Bartenieff Fundamentals, como nio podemos deixar de mencionar a inspiracao que Bartenieff deu a0 Body-Mind Centering. Gomez, a criadora do Somaritmo, nao esconde que o método é filho do Body-Mind Centering. Moshe Feldenkrais usou eed do que aprendeu do Judé na sistematizagio de seu método ¢ estudou os traba- ean eharetg Ivanovich Gurdjieff, Matthias Alexander e Elsa Gindler (a precurso- balango a Pa ae como a Ginastica Holistica). Por sua vez, Seijas usa 0 Nao podemos neeligc rent de Posturas de yoga ¢ movimentos feldenkraicianos. Méziéres e que ne que a Antiginastica recebeu forte influéncia de Francoise leine Béziers ¢ de coe Bertazzo bebeu das fontes de Suzanne Piret, Made- gdes comecaram a part ve Denys Struyf. Emilie Conrad revela que suas investiga- haitiano. ir do contato que ela teve com as dangas de transe do vodu A lingua do movimento 403 Mas, 0 que distingue os métodos de Educagao Somitica de praticas como 0 yoga ¢ 0 tai chi? E das psicoterapias corporais ¢ terapias manuais? Esse ‘s ia os para uma prdxima publicagao. : oe : Por hora, optamos por tracar algumas distingdes entre o tratar ¢ ensinar, cu- jas fronteiras ainda parecem indefinidas dentre os profissionais que trabalham com movimento. Em um momento onde os profissionais brasileiros se questionam sobre a identidade da Educagaio Somiatica, é de grande relevancia uma reflexao sobre os limi- tes entre 0 terapéutico € o educacional dentro do campo da Educa¢ao Somitica. ENTRE TRATAR E ENSINAR Para os somatoeducadores que fazem atendimentos individuais, é tenue 0 limiar entre terapia e educagao. A Técnica de Alexander aborda o aluno individual- mente também através do hands on'. O Método Feldenkrais tem a Integragdo Fun- cional e 0 Método Danis Bois, a Fasciaterapia, ambos desenvolvidos em sessdes individuais. A distingdo entre tratar e ensinar se complexifica ainda mais quando o somatoeducador tem uma formagao em psicologia, fisioterapia ou outra area médica. O Regroupement pour I'Education Somatique (RES) possui um cédigo de ética que identifica claramente: A Educagéio Somitica nao é em si uma terapia. Ainda que possa claramente ha- ver beneficios no plano terapéutico, ela ndo possui nenhuma caracteristica que a identifique ao campo médico. Ela nao tem um discurso sobre a patologia, nao es- tabelece diagnéstico, ndo faz tratamento nem mesmo prognéstico de resultado, seja no plano fisico, psicoldgico ou comportamental. [..] Os somatoeducadores respeitam os limites de seu trabalho endo envolvem seus alunos em investigagbes do tipo medical ou terapéuticas. {..] A Educagdo Somética no tem relacao al- | iguma com qualquer seita, religido ou pritica esotérica, Os somatoeducadores fa- vorecem a autonomia ¢ a responsabilizagao das pessoas, através de um melhor ! conhecimento somatico de si préprias ...] (RES, p. 1-2, tradugao da autora) Uma sesso individual de Educagao Somatica é considerada terapia? E qual lugar da emogao no contexto das aulas de Educa¢do Somitica? Essas questdes ainda esto por serem examinadas coletivamente pelos profissionais do movimento. Citamos Bertazzo (1998), que desconfia da necessidade de se interpretar 0 Besto a luz do psicolégico: E preciso limpar o gesto de nossos processos mentais (..] Por isso, nos momentos de exercicio, é importante evitar toda e qualquer associagao psicologizante. A in- capacidade de conquistar determinado movimento é um fator que nos conduz muito facilmente ao psicoldgico. Remetemo-nos a associagdes que emperram ain- da mais nossa psicomotricidade, 0 que conduz a novas e desesperadoras associa- ces psicolégicas, numa bola de neve desastrosa tanto para 0 psiquismo quanto para o aparetho locomotor |...) Na meia hora de pratica, 0 aluno conseguiu dar outro trajeto — no locomotor — a seus impulsos emocionais, uma trégua a suas } elaboracbes psiquicas [...] O melhor é ndo associar o gesto a nada, realizando-o dentro de nossas possibilidades, sem convocar a todo instante alguma reflexdo ou ee amen '©1™0 inglés Hands on indica que o profissional aborda o aluno através do toque. 404 Débora Pereira Bolsanetio uvaliagdo sobre seu desempenho {...] O movimento pode provocar alegria, raiva, tontade de chorar, Isso & natural: 0 gesto nos afeta coloca-nos em comato com nossa emotividade ¢ com nossas pulsdes bisicas. Porém, todas essas sensagdes podem circular perfeltamente por nossos tecidos e serem elaboradas a contenty no proprio dmbito corporal {...] Nao hd por que interromper a fluéncia do movi. mento ¢ mesmo o brotar dessus sensacdes para analisar suas causas remotas, cemocionais ou intelectuais, (Bertazzo, 1998, p. 27) Strazzacappa (2009) sublinha que a historia de desenvolvimento dos mé- todos testemunha que: Os reformadores do movimento® ndo tinham como objetivo 0 desenvolvimento de técnicas terapéuticas, nem queriam questionar as prdticas médicas de sua época. O objetivo deles era encontrar solugdes para seus respectivos problemas. (Strazzacappa, 2009, p. 50) A meu entender, a intengao do profissional é que define se sua abordagem & educacional ou terapéutica. Jens Johannsen’ engrossa a lista dos que se preocupam com os limites de atuago dos métodos de Educacgao Somatica e afirma que durante uma sesso individual com uma pessoa, ele a toca “de maneira educativa”. Johann- sen defende que: “Educagdo é terapia preventiva e terapia é a educacao... tarde demais."* Thomas Hanna (1991) explica: Primeiro eu manipulo as pessoas para que elas encontrem maior conforto ¢ en- 1do, gradualmente elas se tornam mais conscientes de como podem fazer para manter esse conforto. Nao libero as pessoas enquanto eu nao vir que eles sabem como se manter, que eles estdo aptos, proprioceptivamente, a perceber 0 que esté acontecendo, por exemplo, na lombar deles, de modo que eles possam perceber 0 que eles tém feito inconscientemente a si préprios. O procedimento da Educagao Somdtica é wazer consciéncia ao que antes eram hdbitos inconscientes e pernici- osos. (Milz, 1991, tradugao da autora)® Lima (2010, p. 62) acrescenta: Como médico e educador, agrada-me sustentar a tese de que toda agao terapéuti- ca sd se completa ao manifestar-se também como acdo pedagégica educativa, as- sumindo, como contrapartida, que toda agdo educativa so estard completa se apresentar como resultado circunstancial uma faceta terapéutica. Por mais que isso possa parecer contraditério com 0 que foi dito antes {...] cumpre entender que a ideia traz como analogia: a ignordncia como doenca a ser tratada e 0 pro- cesso educacional como método terapéutico a ser aplicado. EE Marcia Strazzacappa utiliza 0 termo “reformadores do movimento” para referr-se aos criadores dos métodos. Jens Johannsen, alemo, formador do método Body-Mind Centering, comunicagao verbal em forma- $40, Sao Paulo, 2009. s Education is therapy early enough; therapy is education... to late." Tradugao da autora. jidirst do manipulations to let them become more comfortable, and they gradually become aware of mannfiky fan maintain this comfort. 1 do not release people until 1 know that they know: how 10 Tower back seve. that they can proprioceptively sense what is happening, for example, in their edith: 82 that they can sense what they have being doing to themselves unconsciously. The re wdc procedure of somatic education is to make conscious that what was previously and unconscious and Pernicious habit,” A lingua do movimento 405 Hanna (1991) define: Educagao § outra como s tica sig mation & essencialmente um nar auto. nto breve onde uma pessoa ensina a er assim, porque Educagdo Soma: 7. 1991, tradugdo da autora)’, ¢ livro © do discurso desses pesquisadores, fi ; vo Somitica privilegiam estratégias educacionai jas pessoas. A meu entender, isso se evidencia através de X sducadora, Tem i mifica educar para a independéncia (Mil Através dos artigos d claro que os métodos de Edu para abordar as queixa uma linguagem. Haveri veria, ento, uma linguagem propria ao campo da Educagio Somatica? ¢ € © questionamento que inicici na primeira edigdo do livro ¢ sobre o qual it to nessa segunda edigiio. : Laban’ foi o primeiro a pensar ¢ estruturar uma lingua especifica ao mo- yimento do corpo. Junto as contribuigdes de scus colaboradores ¢ alunos, as ideias de Laban deram origem a duas vias de codificagio do movimento, que conhecemos hoje como Labanotacaio ¢ Labanilise. 0 movimento nao é a expresstio de alguma coisa. O movimento é expresso. E nessa fresta que entra a Labanélise, que compre- ende um movimento nao como rapido ou devagar c sim como acelerado ou desa- celerado, 0 que nos leva a considerar antes um continuum de qualidades do que simples oposigdes. Se 0 somatocducador tem conceitos fixos, cle pode achar que seu aluno esta executando 0 movimento rapido demais e isso nao sendo “correto”, 0 aluno deve ser corrigido. Nesse caso, 0 somatoeducador evacua a subjetividade de seu aluno, imprimindo nele seus préprios conccitos de “certo” ou “errado”. Sabemos que a partir dos anos 1960, a Educagio Somatica no Brasil ¢ no exterior colou-se as artes cénicas. Porém, EM PLENO CORPO evidencia 0 fato de que os métodos de Educagio Somitica nao beneficiam somente os corpos de baila- Tinos ¢ atores, mas vém ganhando espaco nas universidades ¢ clinicas de fisioterapia pela atual e crescente preocupa¢ao com a qualidade de vida. Os autores dao teste- munho de como o campo da Educagio Somatica tem complementado diferentes campos do saber, influenciando-os ¢ sendo influenciado por eles. Profissionais das dreas de educagao fisica, psicologia ¢ fisioterapia optam por atualizar-se através de métodos de Educagao Somiatica porque atestam que a consciéncia corporal ¢ 0 au- tocuidado sao fatores indispensaveis tanto no desenvolvimento da expressao, quanto na recuperacdo e prevengao de estados patolégicos das pessoas com as quais lidam. No nivel académico, a cada dia tomo contato com pesquisas de especiali- zagao, mestrado e doutorado que voltam seu olhar para a Educagao Somatica. Neide Neves (2008) traga paralelos entre as recentes descobertas das ciéncias cognitivas (Anténio Damésio®, Francisco Varela’) e as certezas que a pratica da Educagao So- — “Somatic education is essentially a brief event whereby one teaches another person how to be self- | teaching. It has to be that, because somatic education is education for idependence. * Rudolf von Laban (#1879 + 1958) nasceu na Hungria. Foi coredgrafo, dangarino, pintor, arquiteto ¢ escritor. * “Antonio Damasio (* 1944), médico neurologista e neurocientista portugués. Atualmente ¢ professor , _ de Neurosciéncia na University of Southern California. Francisco J. Varela, (*1946 +2001), bidlogo ¢ filésofo chileno, foi diretor de pesquisas do Laborat6- rio de Neurociéncias Cognitivas do Hospital Universitario da Salpetriére, em Paris. 406 Débora Pereira Bolsanello © tempo; enquanto José Lima (2010) foca nas interfaces entre a Educagdo Somitica ¢ as areas de educagao, satide e artes, O que nos interessa no presente artigo é sublinhar que embora 0 vocaby. lario do somatoeducador seja um amalgamado de termos oriundos tanto do Sistema Laban quanto de intimeros outros sistemas de saber — fisica, arquitetura, psicologia, artes etc. — frequentemente ele toma outro significado durante as aulas. Por exemplo, a“Inibigdo” da Técnica de Alexander nao tem nada do termo freudiano. : Se de um lado, a linguagem da Educagdo Somatica é hibrida ¢ esta em formagiio, estejamos de acordo que se trata de um modo de se propor movimentos que dirige 0 foco do aluno a uma autoinvestigacdo, definida pelas seguintes balizas no processo de aprendizado: 1. OBSERVAR: Colocar sua atengao no processo do movimento. 2. PREPARAR: Adotar uma posi¢do adequada antes de fazer os movimentos. 3. VARIAR O RITMO: Retardar ou acelerar o tempo de nascimento- desenvolvimento-morte de um movimento. SENTIR;: Atentar a sensagiio dos movimentos. RECONHECER O IMPULSO MOTOR: Perceber a iniciagao do gesto: de onde ‘o movimento nasce e até onde ele chega. 6. MODULAR O TONUS: Adequar o tdnus ao tipo de esforgo a ser realizado. 7. CONSCIENTIZAR-SE DO “COMO”: Tomar consciéncia da maneira com a qual os movimentos propostos sao executados. 8. FAZER CONEXOES: Investigar se hé relagdes entre sua maneira de mover-se © suas queixas, dores, maneira de pensar, emogdes, relagdes sociais, erengas etc. 9. INTEGRAR: Aprender a distinguir diferengas entre 0 antes ¢ 0 depois da aula. 10. EXPRESSAR: Apropriar-se da experiéncia, comunicando sua experiéncia aos demais verbalmente ou por outro meio (desenho etc.). ll. TRANSFERIR: Dar testemunho de possiveis mudangas na qualidade e eficacia de seus gestos cotidianos a partir das vivéncias feitas em aula. Para operarem, essas balizas do aprendizado somatico sedimentam-se an- tes de mais nada no nivel conceitual. O discurso dos autores nos leva a perceber que os métodos de Educagao Somatica tém conceitos similares que sustentam esse modo proprio de falar o corpo. Reuni em trés esses conceitos: descondicionamento gestual, autenticidade somatica ¢ tecnologia interna. matica vem corporeificando ha muite we DESCONDICIONAMENTO GESTUAL E AUTENTICIDADE SOMATICA [..] vocé néo aprenderd nada de novo, mas um certo nimero de habitos adguiridos ao longo de sua vic (Brennan, 2006, p. 210, tradugao da autora) desaprenderé a vida, is vous désapprendrez un certain nombre d'habitudes | vous n 'apprendrez rien de nowveat que vous avez acquis au cours de votre vic A lingua do movimento 407 Uma colega fis a oterapeuta trata de um pianista profissional cuja cifose atin- giu tal grau que a deformagio da coluna pie em jogo 0 bom funcionamento de seus Satemas respiratirio ¢ digestivo. Anos de estudo do piano sem qualquer enquadramen- to educacional-somiatico tiveram por resultado a fixagdo de padrées de movimento itamente performiiticos no nivel musical porém nocivos para a coluna do pianista, "Se eu endircitar minha coluna, ndo vou conseguir tocar", afirma 0 misico. Casos desse tipo sio muito comuns. Desde nossa infancia, aprendemos a suprir nos: idades através de uma gama de movimentos. Aprendemos por repetigdo a dar respostas motoras a fim de garantir nossa sobrevivéncia, Aprende- mos a colocar a colher na boca, a andar, a permanecer sentado diante do quadro negro na escola, a descascar legumes, a falar diante de uma plateia, controlando nosso nervosismo. Movimentos que se fixam em constelagées ¢ se tornam padres. Movimentos que cumprem a funcao de nos manter vivos. O problema nao esta no estabelecimento de padrdes de movimento. Sem cles ndo conseguiriamos repetir tarefas das quais dependem nossa sobrevivéncia. Po- rém, problemas como o fenédmeno da dor, por exemplo, aparecem quando a resposta que aprendemos a dar no é adaptada a novas circunstancias. Se néo expandirmos a rede neuronal ligada ao sentido cinestésico através do aprendizado de novas maneiras de mover-nos, ao longo de nossa vida forjaremos um vocabulario gestual restrito. E esse vocabulario gestual limitado que termina por desgastar a estrutura somatica. Cada vez que o pianista Ié na partitura a nota MI, cle deve apertar 0 MI no teclado do piano. Porém, com o passar dos anos, ele associou o movimento de aper- tar o MI com o movimento de levantar os ombros. Talvez ele tenha associado esses dois movimentos porque a principio o gesto de levantar os ombros facilitava o gesto de apertar o MI. Ou talvez porque 0 momento da misica quando 0 MI se faz ouvir inspira certa emogdo que 0 pianista exprime levantando os ombros. Saber exatame te o porqué de certas associagdes se estabelecerem pode ser esclarecedor, mas nao é imprescindivel para que a pessoa aprenda a dissociar os gestos. Anos se passam ¢ muitos MIs sao tocados. O pianista sobrecarrega continuamente a articulagao dos ombros. Ele comega entio a sentir dor nos ombros. Em seguida, dores lombares. Em seguida uma sensagdo de falta de ar, cada vez que se senta para tocar. Uma estrutura que esta sobrecarregada por seu uso repetitivo e inconsciente termina por se desgastar. Com 0 desgaste da estrutura se desencadeiam dor, descon- forto ¢ perda de funcionalidade. Um quadro de dor crénica afeta 0 humor, a autoes- tima e a vida social de uma pessoa. Reflexos ¢ automatismos nos permitem sobrevi- ver ~ fisica ¢ emocionalmente, Mas cstamos na Terra no para sobreviver, mas para viver ¢ usar todo o potencial que temos como seres humanos. : : A Educagaio Somatica aborda esse tipo de problematica investigando jun- to com a pessoa a mancira com a qual cla se move. No caso do pianista, a maneira com 2 qual ele toca piano engendrou uma série de compensagdes que resultam em dor e perda de funcionalidade, tal como coloca Goldfarb (1998): crénica significa que os miisculos permanecem contra- Jes ndo podem mais fazer seu papel primordial de se contrair para fazer os ossos se moverem. Essa contragdo crénica ndo tem ppor efeito somente ade restringir a liberdade de movimento de uma articulagao, airs ola age também como um amortecedor, “absorvendo” 9 movimento ao invés Uma contratura muscular idos permanentemente. Por isso, e 408 Débora Pereira Bolsanello de deivié-lo transmitir-se ao resto do esqueleto. (Goldfarb, 1998, p. 51, tradugdo da autora)!" Se a atitude cifética do pianista muda, muda também a relago de sey corpo com 0 piano”, A perda de referéncia da relagao piano-corpo pode levar o pianista a perceber que “endireitando” a coluna cle ndo consegue mais tocar como costumava, Ele prefere entdo, manter a cifose do que perder o prazer de tocar oy ‘ameagar sua carreita de musico, caso sua performance seja ruim. Para contorar a associagao entre tocar o MI e contrair inutilmente mis- culos dos ombros ¢ pescogo, trés ctapas sfio necessarias ao pianista: sentir, perceber ¢ reaprender, Para executar uma mesma tarefa — pressionar a tecla MI do piano ~ indo um gesto livre de tensdes inuteis, é preciso em primeiro lugar sentir. Sentir aquilo que estou fazendo: meu dedilhar no piano, o MI acompanhado de um certo estado ténico. Perceber meu corpo de um Angulo diferente daquele com o qual estou habituado: perceber que o gesto de tocar o MI nao precisa de um esforgo muscular extra: esse gesto pode ser ancorado na cintura escapular, por exemplo. Em seguida, reaprender a conectar 0 movimento de tocar o MI com a rotagdo da coxo- femoral dentro do acetabulo, sustentado pelo apoio dos pés no cho e dos isquios na cadeira. Essas conexdes permitem o que a cintura escapular possa fazer seu trabalho: sustentar 0 gesto de tocar 0 MI, que nao esta isolado do resto do corpo € nao precisa de tanto esforgo para ser realizado uma vez que se usa 0 suporte dsseo das cinturas pélvica e escapular. O processo de descondicionamento gestual é um refinamento da capaci- dade de adaptarmos nossas respostas a diferentes circunstancias; um processo de reorganizacao de nossa imagem corporal; o agugar da capacidade de perceber o que Mario Veillette (2003) chama de Eco do Movimento. Se a pessoa experimenta ou- tras maneiras de mover-se, ela modifica seu funcionamento como um todo. Ter um vocabulario gestual rico equivale a se ter uma alimentagao variada. Se a pessoa percebe as transformagées que se operam nela, ou seja, se ela esta presente ao Eco do Movimento, por mais sutil que seja, a pessoa pode apropriar-se das mudangas, pois essas mudangas vém de dentro. O somatoeducador usa 0 terreno fisiolégico, fornecendo a pessoa ferra- mentas autoeducacionais das quais ela pode dispor no dia a dia ¢ obter respostas motoras renovadas. Goldfarb, professor do método Feldenkrais, esclarece qual o papel da Educagao Somatica em casos como esse: A primeira coisa que um aluno aprende é que é possivel sentir-se diferente. 4 partir disso, ele pode tornar-se consciente de sua maneira de mover-se e de que “Une raideur musculaire chronique signifie que les muscles restent contractés en permanence, - ce fait, ils ne peuvent plus jouer leur réle primaire qui est de se contracter pour faire se mow?! 4s. Cette contraction chronique n'a pas seulement pour effet de restreindre la liberté de mouse! d'une articulation, mais elle agit aussi comme un amortisseur en “absorbant” te mouvement al de le laisser se transmettre au reste du squelette.” Segundo as préprias palavras do pianista, sua relagdo com © meio ambiente também presen” mudangas: “Depois das sessdes com minha fisioterapeuta, comecei a perceber que eu olhav" mar para as pessoas”. A lingua do movimento 409 maneira ela esté atrelada aos problemas dos quais ele reclama. (Goldfa p. 131, tradugio da autora)!" : Se Matthias Alexander, criador da Técnica de Alexander, formulou 0 concei- to de Inibigao a partir das observagdes que fazia de si proprio: “Segundo Alexander. i imibicdo ndo & supressao, mas intencao. Ela nos permite realizar aquilo que dec “amos realizar.” (Brennan, 2006, p. 52, tradugao da autora)'*, Trata-se de descobrir novas solugdes para mover-se, que consiste em: “...] parar, antes de reagir instinti- hamente a uma dada situagao" (Brennan, 2006, p. 47, tradugao da autora)". inda Hartley explica que: A doenca, do ctincer aos problemas psicéticos, pode ser vista como expresso do grau ao qual 0 corpo-mente & incapaz de responder, de se abandonar, de mudar [..} Essa capacidade de responder & ao mesmo tempo 0 suporte ¢ a medida de nossa satide, (Hartley, 1995, p. 124-125, tradugiio da autora)'” Se 0 processo de descondicionamento gestual reflete uma nova capacida- de a responder em nivel motor c/ou em nivel afetivo, a ativagao da autenticidade somatica é reconhecer a si proprio em uma nova configuragdo, uma nova imagem corporal. Gomez (1997) usa o termo “modular” para indicar o resultado de um pro- cesso de descondicionamento gestual: Modular & passar nrelodicamente de um tom a outro. Geralmente se usa essa pala- vravem relagdo a sons e tons musicais. Aqui nos referimos @ capacidade de modular datencao e os movimentos através do corpo de diversas maneiras a fim de conse- ‘gui ajustar nossos estados internos ds exigéncias externas ¢ vice-vers do assim as nossas necessidades. (Gomez, 1997, p. 3, tradugaio da autora)"” Uma pessoa em processo de descondicionamento & alguém que cultiva a variedade de seu vocabulario gestual. Liberar a memoria corporal de gestos que nao. sio mais necessérios para se tocar a nota MI. Limpar 0 corpo das impressbes deixa- das pelas tensas relagdes do dia a dia. Reconhecer as diferencas er situagdes € estar apto a escolher dentre as cores de sua paleta gestual, as que sdo mais adequadas para o cumprimento de uma agao. possible de se sentir different. Cela érant, il “La premiére chose tar ee Tin dont cele et reise an troubles peut devenir conscient de la manicre dont il se plaint.” ‘lon Alexander, U'Inibition mest pas | nous permet d'accomplir ce que nous avons [ud s'arréter avant de reagir instinctivement “iliness, fom cancer at one end of the spectrtnn (4 PE ti an exprecsion of the degree to which the body-mind's mans sponsiveness supports and isa measure of OW" health. oe Ce eer tadicmente de too 010, Cement aero) cion com los sonidos y tonos musicales. Aqui "0% referimos a tad m acid ee a Ton monmtertan através del cuerpo de diversas MAMer para uso vice’ isfaver nuestras Nec ternos a las exigencias externas y viceve de bouger et de ‘expression d'une supression, mais d'une intention Elle dévidé d'accomplir.” ¢ situation donne: mi disorders at the other, maybe seen as [.u] This re- 1o respond, let go. change eas alabra se usa em rela- rsa y asi satis om 410 Débora Pereira Bolsanello O corpo nao é um animal que devemos domesticar; nao é uma maquina que devemos consertar; nao é um pecador que devemos punir, nem um escravo que devemos obrigar a trabalhar. O corpo ¢ um estado de consciéncia a ser explorado, Mas, entdo, porque tanto incémodo? Quem € 0 culpado do desconforto nosso de cada dia? Sera que é a sociedade, que nos impée padroes de beleza quase inalcangaveis? Ou um estilo de vida onde o corpo é tratado como maquina? Mas, se a sociedade é feita de nossa propria came, como é que fica? , Os somatoeducadores dispdem de um sem-nimero de técnicas para levar os alunos a ampliar sua nogdo de corpo, muitas vezes limitada ou deformada por valores socioculturais. Essas técnicas se fundamentam em uma visio de que a sade s6 se manifesta se a pessoa toma consciéncia do papel que seus habitos de vida tém tanto na origem e manutengao do quadro patolégico. Consciente de que seu bem- estar é sua responsabilidade, a pessoa compreende a importancia de tomar atitudes concretas em seu dia a dia para prevenir recaidas. Todos os métodos de Educagao Somiatica investem na reativagao do potencial de autorregulacao e autocura do orga- nismo humano. Os métodos de Educagio Somatica no ensinam sequéncias de movimen- tos pela repetigao. Repete-se os movimentos para se observar como sao executados. Gerda Alexander, criadora da Eutonia, diz que o objetivo nao é de se tornar um virtuoso: “Ndo se trata de se ter a maestria da técnica de um movimento, mas de ir fundo dentro de vocé mesmo e crescer como uma pessoa total. E um processo de maturagao do ser.” (David Bersin. Interview with Gerda Alexander. Johnson, 1995). Aparentemente, GYROTONIC" ¢ Pilates nao corroboram o conceito de descondicionamento gestual, pois a execugao dos exercicios é conseguida pelo aluno através do modelo que o professor encarna. Porém, nao podemos descartar o fato de que muitos profissionais que trabalham nessas duas linhas bebem da fonte de méto- dos somaticos que privilegiam o sentir. Se de um lado elencamos o GYROTONIC € 0 Pilates dentre os métodos apresentados como pertencentes 4 Educagao Somatica nesse livro, temos de admitir que cles vivem na fronteira do territério explorado pelos somatoeducadores'*. A autenticidade somatica emerge de uma intimidade com nossos proprios processos internos (fisiologia, sensagao, sentimento, pensamento, percepgao...) € ndo € contraditéria com a identidade sociocultural. A autenticidade somatica ¢ tal qual um vaso: fornece um container a identidade sociocutural. Somos ao mesmo tempo relacdo ¢ singularidade. Sem a autenticidade somatica como referéncia, nés seriamos apenas mascara, cla, trupe, “galera”, massa. Nos nos definiriamos apenas atraves do pertencer a um grupo e nossa singularidade seria abortada. Sentir(-se) equivale 2 reconhecer sua unicidade. Goldfarb conclui: “Sentir é apreciar uma diferenca, fazer uma distingdo.” (1998, p. 116, tradugao da autora) '” Foi proposial a incluso do Pilates e do Gyrotonic no Em Pleno Corpo. No Brasil, os profisions ue trabalham com movimento estio em uma fase de busca de identidade para o tipo de trabalho a fazem. Gindstica ou terapia corporal? Se é polémica a presenga do Pilates ¢ do Gyrotonic nest ro, sea lalvez porque chegou 0 momento dese defini, em concertagao,o que é Educagao Soma \0 Bras Sentir, c'est apprécier une différence, faire une distinction.” A lingua do Movimento. an De quem é me : uu corpo? O corpo contemporai caricdade de sua aparéncia; estore: erm deee fh Orkut: debate-se contra as incansiveis soticitagdes de consu Bor vive oa ie asenggneins de produtividade. Entdo, de quem & meu corpo afin sprrevive em meio utentici é singula ae vxsoe Utanticidade ¢ singularizagdo, © corpo como experiéncia. A medi uma pessoa refina sua capacidade de eae A sentir(-sc), mais 0 corpo se assume como instru: ot eligente, capaz de neutrali: ilibrios a rae ae ths mento inteligente, capaz de neutralizar desequilibrios através d 7 vec log ier s cl ia interna. al TECNOLOGIA INTERNA _ Vida é 0 que acontece a vocé enquanto vocé esta ocupado fazendo outros planos. John Lennon Aprender a manipular os instrumentos de uma tecnologia interna signifi- ca que a pessoa sabe como adaptar sua organizagaio corpérea durante a execugao de um gesto em um dado contexto de modo a nao deteriorar sua estrutura fisica nem comprometer sua integridade psiquica. Desde a Revolucao Industrial, testemunhamos 0 estabelecimento de um modo de vida cada vez mais ancorado na tecnologia. E claro que a inventividade & inerente ao Homem. O que queremos ressaltar é fato dessa produtividade desenfrea- da de tecnologia estar dissociada de valores humanos, divorciada do cuidado, na medida em que vale mais a quantidade de tarefas realizadas ¢ a rapidez com que sto executadas do que a qualidade na execugao dessas tarefas. A Educagao Somitica coloca 0 foco de atengdo no como se realiza uma acdo. O como ao qual me refiro nao é saber apertar um botio de uma camera foto- grifica para regular o foco. O como, visto pela dtica da tecnologia interna, ¢ 0 saber alinhar meu corpo junto com a cémera para tirar uma foto sem ficar com um torcico- Jo, por exemplo. Esse saber é muito til, sobretudo se eu sou fotdgrafo profissional ¢ o ato de fotografar é repetido muitas vezes por dia. Se sou garconete de um restaurante, de que modo seguro as bandejas pe- sadas para servir os clientes de forma a evitar dores na lombar? Se sou bancrio, seré que respiro enquanto conto as cédulas? Ou sera que diminuo minha amplitude respi- ratoria ao contar dinheiro, anestesiando meu ‘sentimento de descontentamento? Se sou funcionario de uma empresa, como estou sentado diante de meu computador? Sera que eu “torgo” meu corpo para me adaptar & tela ¢ termino minhas joradas de trabalho em um estado de fatiga insuportavel? Essas pequenezas do dia a dia se acumulam em nosso corpo. AS pan ie sobrevivéncia sao repetidas muitas vezes por dia a cada dia cane anos a ah 7 = tos de movimento engendrados por situagdes cotidianas nao po o ser Bre i on pelos profissionais da satide. Nao se pode ter um fisioterapeuta oi lado a ae horas por dia analisando como eu me movo e me dizendo como devo me : E na nogio de autocuidado que reside ae - chaves para se renovar nossos padrdes psicofisicos ¢ manter nossa een a De ue O cuidado é filho da reveréncia ¢ do sel . . cae vés do reconhecimento do valor da vida que podemos Si eae oe O valor é que nos dé a visio de um continuum entre ew € 0 q 412 Debora Pereira Bolsanello ermite © acesso a uma tecnologia interna de autoregulacdo, indica Ui 1999), o cuidado implica proximidade, intimidade, respeto. Hess meee TH meostitica inerente a todo ser vivo zela pelo equillbrio entre o individue eee 8 Se os mecanismos de autoregulagao estdo funcionando bem, & a desconstruir todas as marcas que uma crise de panico possam ter deixado n Porém, se os mecanismos de autorregulagaio nado estdo funciona tem de recorrer, de tempos em tempos, a medicamentos ou dr sintomas do panico. E se os mecanismos de autorregulagao est vados, a pessoa se torna dependente do consumo de medicamer de poder funcionar no dia a dia. (Calwell, 2001). : Se uma secretria se queixa de dificuldades em respirar, Pode ser que 9 automatismo de bloqueio da inspiragao ou da expiragao se solidificou Pouco a pou no seu ambiente de trabalho. Cada vez que o patrao chamava por ela, ela trancava, t respiragao, para poder suportar 0 possivel embate com seu patréio sem ceder a seus caprichos, mas temerosa de perder o emprego. Congelando a respiragao, a secretaria “sente” menos, como um animal que se imobiliza diante do predador, fingindo que estd morto, Durante meses a secretéria vem sobrevivendo no escritério e garantindo seu pao de cada dia através desse mecanismo de defesa que cria um desbalancea- mento t6nico. Esse estado de desequilibrio ténico é construido no decorrer do tempo por movimentos repetitivos do cotidiano ¢ ¢ sedimentado pela atitude da pessoa, ou seja, a maneira com a qual ela se percebe ¢ se comporta no mundo. Os mecanismos de defesa siio necessarios ¢ funcionais em nossa vida. Mas, uma vez que o mecanis- mo de defesa se cristalizou, o tonus se torna disfuncional. O patrio da secretaria foi transferido para outra filial da empresa, mas a secretaria continuou com a respiracao curta. Possive} 10 corpo, indo bem, a Pessoa ‘ogas para reduzir os ‘Go totalmente desati. ntos ou drogas a fim Nenhum dos métodos de Educacdo Somitica ensinaria a secretaria como respirar. E como querer ensinar um peixe a nadar. Mas, é possivel ensinar que se libe- rarmos tensdes musculares initeis, a respiragdo fisiolégica ocorrera livremente. Nesse caso, nao se trata de acumular conhecimentos, mas de renovar o ato de conhecer. Mesmo se 0 mundo “externo” no esta a nosso “favor” nas correntes si- tuagdes do cotidiano que nos parecem injustas, entendiantes, demasiadamente exi- gentes ou absurdas, a tecnologia interna ¢ um espaco de liberdade. Por tecnologia interna ndo queremos dizer que, para manter sua liberdade, uma pessoa deva pensar em uma casinha de campo com passarinhos cantando cada vez que uma situagao de estresse se apresenta. Tecnologia interna é 0 acesso voluntario que podemos ter a0s processos fisiolégicos que nos autorregulam. Por exemplo, em uma fila de banco insuportavel, posso observar que meu maxilar se fecha, se contrai, os olhos se cris- pam e uma sensagdo de frustragao comega a me tomar. A frustragdo pouco a pouc comeca a se tornar mais intensa, na medida em que os meus companheiros de eG péem a reclamar da falta de funciondrios suficientes para atender a uma fila 3 grande. Através do que vivi em aulas de Educagaio Somética, para modular oe sées que comecam a se acumular em meu corpo diante da longa espera na fil ine irritabilidade geral dos presentes, lembro-me de respirar, sacudir minha Ca ie perceptivelmente, ancorar meus pés no chao, destravar meu maxilar deixando ee entreaberta, os labios timidos e o olhar periférico, amplo. Brinco com meus propr, processos fisioldgicos porque sou capaz de reconhecer o mal estar que IN fe i presente situagdo e sou capaz de me dirigir intencionalmente ao bem ¢ A lingua do movimento 413 -xperimentei nas aulas de Educacio Somitica, Aceder & tecnologia interna é impedir cxf) estresses inerentes a vida se acumulam no soma, a ponto de se tornarem itre- Mediaveis. Sei reconhecer o que me faz mal e sei ativar mecanismos que me permi- mf retornar a um estado de bem-cstar. conceito de comando intencional de Goldfarb esclarece as premissas acima’ O comando intencional, ou seja, a possibilidade de escolher, se fundamenta em um processo de comparacdo ancorado na faculdade de perceber diferencas. No- taremos que a escolha pressupée diferenca: sem diferenga, nado hé escolha possi- vel. (Goldfarb, 1998, p. 97, tradugdo da autora)”. SABER O CORPO Frequentemente limitamos nosso vocabulario gestual aqueles movimentos que nos trazem o resultado esperado, mesmo se esses movimentos desgastam nossa estrutura ¢ geram dor. Associamos gesto X a resposta desejada Y. Desta forma, terminamos por nao ousar gestos diferentes dos habituais, por medo de que as res- postas sejam diferentes daquelas desejadas. O papel do educador somatico é 0 de levar o aluno a melhorar o estado de sua satide através de uma autoinvestigacdo do movimento de seu corpo. Dentro das aulas, so propostos aos alunos movimentos cuja intengdo é a desenvolver sua pro- priocepedo. A partir do sentir emerge o perceber. O aluno toma consciéncia de que sua maneira habitual de mover-se est ligada ao problema do qual se queixa. Uma vez percebida que a maneira habitual de mover-se tem relago e/ou mantém uma dor, o aluno entra em um processo de descondicionamento gestual, ou seja, aprende novas maneiras de mover-se que previnam lesdo e promovam bem-estar. Se body building significa “construindo 0 corpo”, Educagéo Somatica significa “descondicionar 0 corpo”. E se “malhar” significa “dar forma, batendo com um malho”, educar-se somaticamente corresponde ao trabalho do joalheiro lapidan- do uma pedra preciosa. Enquanto 0 fitness evoca a busca de um corpo que se “cn quadra” nos modelos da moda (do inglés to fit), os métodos sométicos desatam o corpo de uma série de concep¢des que engessam a imagem que temos de nds mes- Mos ¢ anestesiam nossa relagdo com os demais. Uma vez que 0 aluno permitiu-se entrever a possibilidade de sentir-se di- ferente do que ele sente habitualmente, ele entra em um processo de busca de sua autenticidade somdtica, Autenticidade somdtica € 0 sentir-se ‘nico e livre, porém Vinculado a familia dos seres vivos. Esse conceito aponta em diregao a defini¢éo que Maharaj Nisargadatta faz do corpo: “O que hd é um fluxo de sensagoes, percep¢oes, memérias e idéias. O corpo é uma abstracao criada por nossa tendéncia a gerar unidade na diversidade [...]" (1973, p. 135, tradugao livre da autora)". oe ™ ; A female ‘La comande volontaire, c'est-d-dire la possibilite de choisir, se fonde sur um processus conparaisn repocan Iuicméme sur la facuté de percevoir une diférence. On notera que le choix résuppose une difference : sans différence, pas de choix possible. ; “There is only a stream of sensations, perceptions, memories and ideations. The body is an abstrac- tion, created by our tendency in creating unity in diversity [.]- 414 Débora Pereira Bolsanello Ninguém pode parar o fluxo de mudangas da vida. Mas, como ¢ possivel alguém mudar um padrao motor de defesa, se ela vive em um ambiente de violéncia, pressionada a uma produtividade insana, competigdo, ao medo, a injustiga social : 4 poluigao sonora, moral, visual? Como lidar com as mudangas som: ¢ ticas que expe. rimentamos no contexto das aulas. elas entram em conflito com o estilo de vida que levamos? Quando uma pessoa nao tem acesso 4 sua interioridade, o mundo “exterj- or” é sua iiniea realidade ~ fonte de prazeres ¢ infelicidades aos quais ela se sent submetida. A pritica dos movimentos propostos pelos métodos de Educacéo Som tica leva o aluno a cultivar sua capacidade de observacdo do proprio funcionamento e de sua relacdo com o mundo. O contexto das aulas de Educaco Somatica éui laboratério onde o aluno refina sua capacidade psicomotora de adaptacdo a varias demandas. Mais a pessoa tem intimidade com seus préprios processos fisiolégicos, mais ela encontra dentro de si estratégias criativas para negociar com as exigéncias do “mundo externo”. A esse processo denominamos tecnologia interna: 0 uso intencional dos mecanismos de autoregulagao. Hanna explica: “O que busco a estimular em outros seres humanos é o desenvolvimento de auto-habilidades, de modo a que eles pos- sam se tornar mais livres.” (Milz, 1991, p. 50, tradugdo e grifo da autora)”. O esta- do de bem-estar vivido em aulas de Educagao Somatica é transferido para situacdes que acontecem fora da sala de aula: testemunho um possivel desequilibrio se instalar € comando intencionalmente o reequilibrio usando recursos de meu préprio soma. EM PLENO CORPO deixa claro que cada método de Educagao Somitica tem uma histéria ¢ principios pedagégicos proprios. Porém, os métodos possuem em comum uma linguagem que permite que o conhecimento emerja da experiéncia corpérea. Acreditamos que seja a linguagem da Educacao Somatica uma pista que aponta em dire¢io a uma defini¢o do que é 0 campo da Educaciio Somitica. Sabe-se que a morte de uma lingua significa a morte de um conjunto de conhecimentos. Muito além de um conjunto de técnicas de consciéncia corporal, os métodos de Educagfio Somiatica séo guardides de um modo de falar o corpo, de educar os sentidos. Trata-se de uma linguagem especifica que aborda o movimento do corpo em primeira pessoa do singular. . Negligenciar o saber sensorial que a linguagem somatica veicula significa testringir nosso potencial de comunicagio com o meio ambiente. Reorganizar a execugao de um movimento equivale 4 mudanga na qualidade da expressao. Apren- der uma lingua significa favorecer 0 nascimento de novas conexdes neuronais Do mesmo modo age a linguagem dos métodos de Educagao Somatica, nos impulsio- nando a usar o potencial de saber que 0 corpo encerra. A caminhada da realeza Alua na estrutura dssea Como um todo encaixado ee 2 “What I seek to enc become freer.” wt 1 ther ‘ourage in other human beings is a growing selfcompetence, 0 the! A lingua do movimento 415 ‘ax bacia joelh Volumes claros e presen re sentes Relacionando-se entre sj Na plasticidade neuronal A coluna alonga-se Liga as cinturas Escapular e pélvica, Em linha joethos e pés A cabega sem peso Se solta posicionada. Os bragos orientam E as mos acariciam o ar. E confortdvel habitar um corpo Que distribui sua forca Na leveza de si mesmo E experimenta a raiz Do movimento Na trajetéria de um destino. Como num circuito Vai e volta ao ponto de partida Em espirais... dngulos E retas horizontais Verticais diagonais. A respiragdao acontece natural e fluida O peito e as costas S€ abrem Na caminhada da realeza Ganhamos espacos Por todos os lados Volumes & direcdes Tridimensionalidade Passo firme € leve. Habita-se um corpo Com autenticidade a kinesfera Chega-se a Na esfera do sensivel. Se ane Abs 2s Referg tn meno, sto Paulo: SUTIN rmemta eno Corpo: Educate o jronomia do mov! ee Cae Ban ald, (198), Cidade eon: idee rag (OTE yra Perel < 2008), Preficio do livro. In Débot ica, movimento e satide. Curitiba: JU Debora Pereira Bolsanello f1¢__ tora Perera Boone cuidar: ética do humano, compaixdo pela terra, Rio de Janeiro: Vozes Jnnique Alexander: maitriser votre posture et votre vie. Patis: Les Editions de Boff, L. (1999) Saber Brennan, R. (2006). La tec Homme. oe i Caldwell, Christine. (2001). ‘Addiction as somatic dissociation. In Hellen, M. Flesh of the soul: the body wwe work with, Berne, Suica: Peterlang. Femandes, Ciane. (2006). 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