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A ETNOPOESIA DE HUBERT FICHTE Placido Alcantara RESUMO (0 artigo trata das elagdes entre Antropologia€ Literatur, mais precsamente de como elas so problematizadas pelo escntor alemdo Hubert Fiche, cujos textos. de fecto. sto resultado do estado da teria © da aplicaca0 de métodes da Antropoiogia ‘Versando sobre osincretismo das relgibes afro-americanas, a obra de Fichte.a partir dos anos stents, €denominada, pelo propio autor. de etnopoesia ito ¢, 2 expresso litera Go saber antropoligic. A rejlta a prota ce ntifea, © “etnopoeia”pretende ‘questionar a pretensacbjetividade ea utdpia onipoténca de pesquisadores e cerns correntes da Antropologia. Fase por fim, tm paralelo entre a entice Fichteanae a dos antrop6logos ates poe-modemos. resaltando-se que as afindades parentes entre ‘les ea Etnopoesia escondem divergéneias fancamentas, UNITERMOS, ETNOPOESIA - LITERATURA - RELIGIOES AFRO-BRASILEIRAS INTRODUGAO A etnopoesin, tat como era compreendida ¢ praticada pelo escritor alemao Hubert Fichte (1935-1986), é 0 tema deste ensaio. Para traté-lo ‘com alguma clareza © propriedade € preciso tomar certas precaugées. Em primeiro lugar, € necessério apresentar alguns dados da vida de Fichte, sem 0s quais a leitura de sua obra (em grande parte autobiogrfica) seria dificultada Em segundo lugar, dados o amplo escopo das preocupacdes de Fichte ¢ as limitagdes deste ensaio, precisamos assumir que a anélise de alguns dos muitos temas af envolvidos s6 pode ser extremamente modesta, Como veremos adiante, as diversas questoes suscitadas pela obra cm estudo (questdes vastas como: as implicagdes ideolégicas da antropologia © as possfveis relagdes entre esta ciéncia e a literatura; as religides afro-americanas: a crise daliteratura alema doP6s-guerra, como sintoma de um proceso mais geral; a relagdo entre rimeiro e terceiro mundos), formam um todo complexo, cujas partes. se isoladas descontextualizadas, perderiam muito de scu sentido. Somos, pois, forgados a um percurso por terreno amploe escorregadio. Nao podemos ignorar os riscos de acidentes. VIDA EESCRITA Recurso difundido (¢ criticado) na woria ¢ critica lterSria, ainterpretagio de textos a partir da biografia de seu autor €, aqui, um procedimento indispensdvel. Poderiamos justificar 0 imperativo com a simples afirmagao de que quase todos 0s romances ¢ ensaios de Fichte s4o marcados por aitido traco autobiogréfico. A relagio entre vida e escrita neste caso, entretanto, ainda mais complexa do que o terme “autobiografia” deixa supor. Fichte esclarece: “Meus livros ndo sdo disfarces. Descrever wm experimento: viver para encontrar uma forma de expresséo.” © que quer dizer exatamente este experimento (“Versuch”)? O termo. em alemao, permite interpretagdes varias, todas clas aplicaveis ao processo de escrita de Fichte. Remete. de um ldo. & idéia de pesquisa, de “recherche”, no sentido proustiano: arqueologia de si. Significa, de outro, ensaio, ou seja, texto analitico que serve & demonstragéo ¢ discussio de idéias. Mas “Versuch” € também experimento de laboratério. Talvez seja nesta ‘iltima acepedo que o termo designa com maior propriedade a escrita fichteana. Nao por acaso, © escritor define-se como “cobaia” (“Versuchperson”) de si mesmo. Por meio deste experimento, 0 escritor-cobaia tenta reapropriar-se de situagées vividase perdidas no esquecimento. Trate-se, para usar uma expressio de Fichte, de tentar “chegar as camadas mais profundas” de si “De repente — mas talver preparado por material que lentamente veio boiando até a superficie — descobri que todos os meus ensaios® até ali revelavam apenas um movimento: encontrar 0 caminho de volte as camadas anteriores.” Evidentemente, esse reapropriar-se do passado problemético ¢ seu sucesso depende de trabalho 4rduo ¢ met6dico. Mais ainda, trata-se de um processo (de certa maneira andlogo psicandlise) que, no limite, leva a uma reconstrucao da pessoa do narrador que ¢ confrontade com vivéncias que estavam recalcadas ou simplesmente esquecidas. experimento de Fichte ja € perceptive] em seu primeiro romance, “O Orfanato” (1965)*,n0 qual retrata a propria infancia, durante Secunda Grande Guerra. O personagem Detlev, ‘Mais oma vez aparece a palovrs “enc filho de pai judeu (a quem nao conhecia), € cenviado pela mac (alids. protestante) a um orfanato catélico na Baviera, na esperanca de que a policia néo va procurar uma crianga judia justamente num lugar desses. Detlev estard a salvo, mas teré que aprender rapidamente as regras de um mundo que até entao desconhecia. Detlev — um dos alteregos de Fichte, que reapareceré em obras posteriores — € um marginal que se esforca para ser aceito naquele ‘ocosmo de regras incompreensiveis, de rituais que néo The provocam reacéo nenhuma. Para aprender a scr como os outros, ele é forgado a observé-los ¢ entender 0 que si0. Os temas tratados em “O Orfanato” — a marginalidade. a necessidade de compreender 0 outro — sero recorrentes nos livros seguintes, sob novas formas. Isso se explica, em boa parte, lembrando-se que o proprio Fichte considerava-se triplamente marginal: filho bastardo numa época de moral tao rigida quanto hipécrita; judeu obrigado a esconder sua ascendéncia em pleno nazismo; ¢ homossexval numa sociedade predominantcmente heterossexual e hom6foba © critico Wolfgang Bader? observa que a escrita-experimento de Fichte néo € apenas um simples exereicio de meméria, mas sobretudo uma luta por “vivéncias diferentes”, que, por provocarem estranhamento em quem a elas se submete, ajudam a delimitar 0 que essa pessoa é realmente, Segundo Bader, essa exposicao a um mundo “outro” constituirse-fa, por um lado, ‘num instrumento apropriado a recuperacio do passadoe, por outro lado, em matéria mesma da prosa fichteana. Em resumo, hé dois movimentos, inter-relacionados, 20 ‘experimento de Fichte: pela escrita 0 aut “percorre a propria vida para apossar-se dela", a0 mesmo tempo em que prepara na vida a rmatéria de seu texto 5° comportanda todes o&significados que scabamos de mencionar O texto citado 6 lids trecho do prefacio do romance “Ensalo sobre « puberdade” (Versuch uber die Pubertat. Hof mann und Campe Verlag. Hamberg. 19% Trad. brat: Ea, Brasiliense.S Paulo 1986). “Des Walsenbans™ Fischer Verlag, Frankfur am Main, 1977, Trad. bras. Ed. Guanabara. Rio. 1985, 3 BADER Wolfgang. “Dos espacos da marginalidede wlemt Hubert “Einopoesta” Ea, Brasliense, Sto Paulo. 1987. 4 HEISSENBUETTEL. Helmot, “Hubert Flchte definitly” (in: “Text u universe das culturas afro-americanns” (in FICHTE. Krk", Heft 72. Goetungen. 1981). Cademnos ae Campo - nt = 1901 Mas quem € esse “outro” a que Fichte se expde? Nao se trata, certamente, de um “inteiramente outro”. Pelo menos, nio até ofinal dos anos sessenta, ou seja, antes do escritor realizar suas viagens de cstudo & Africa ¢ América. Por “outro” Fichte entende, nessa primeira fase, as existéncias marginais da sociedade em que vive (¢ da qual cada vez menos se sente membro), a Hamburgo que se Feconstr6i no Pés-guerta e onde se dard, na década de 60, uma considersvel transformacio nos costumes, principalmente dos jovens, movidos pelos ventos da contracultura, Estamos, pois, diante de um paradoxo: um eseritor que se define como t marginal considera estranhos justamente aqueles que também se encontram na marginalidadc. Mas trata-se de um paradoxo real ou apenas aparente? Vejamos. ‘O segundo romance de Fichte, “Die Palette” (APalheta. 1968)*, tem como personagens o bar “underground” que Ihe serve de titulo e seus freqientadores. A acao se dé no bairro portuario de St. Pauli, em Hamburgo, notéric pela concentracéo de boemia, prostituigio © homossexulismo, © livro € constitufdo por entrevistas realizadas com os habitués do bar: marginais de ume Alemanha que novamente ‘enriquece. asséptica ¢ ascética Entre os freqientadores do bar esta o intelectual Hubert Fichte, que j4 € ent reconhecido como escritor. “O Orfanato” fora bem recebido pela crtica, assim como o livro de contos que o antecedeu, “Auforuch nach Turku” (Fuga para Turku, 1963). Fichte havia também participado dos encontros do Grupo 47, que reunia os principais escritores de lingua alema do Pés-guerra, entre eles Peter Handke ¢ Hans Magnus Enzensberger. Por maior ‘identificagio que pudesse ter com a “fauna” de St. Pauli, Fichte cra, em certa medida, um “estrangeiro” naquele meio. Mesmo que circulasse com desenvoltura, ele também comegava a ter accesso ao universo dos intelectuais tolerados pelo “establishment”. Em Aetrovoesia ge Hubert Fente suma, a0 contrério dos personagens de “! Palette”, seu autor tinha maiores facilidades de atravessar pontes entre as margens e ocentroda sociedade em que vivia. Deve-se salientar, orém, que Fichte sempre rejeitou as benesses de uma existéncia “no centro”, adotando em relagéo a este (por exemplo, face aos circulos literdrios “oficiais”) uma atitude eritica e muitas ‘vezes francamente hostil. Em todo caso, é clara « diferenca entre 0 autor € seus personagens, Tal diferenca € ainda acentuada pelo fato de Fichte ter vivido boa parte de sua juventude fora da Alemanha, em viagens prolongadas pela Escandindvia, Franga ¢ Portugal. Seu vinculo ‘com o pais natal — mesmo com amarginalidade alemi da qual dizia fazer parte — era, portanto, ténue, Durante os meses em que frequentou assiduamente 0 Pallette. Fichte adotou uma Postura muito préxima daquilo que os antropélogos chamam de observacio participante, Fez contatos, ganhou a confianga dos membros da comunidade. tomou parte na sua vida, escolheu informantes, gravou longas centrevistas ¢, principalmente, anotou o que viv ‘num minucioso caderno de campo. O resultado dessa pesquisa pode ser lido como literatura “beat” (pelo universo que retrata) ou como antropologia pés-moderna (j4 que 0 autor usot ~ com certa liberdade — métodos de pesquisa dda antropologia para construir um textoem que dé voz a0 objeto ¢ onde se tenta suprimir qualquer interpretacéo do pesquisador). Retomaremos mais adiante a questio da pos-modernidade na antropologia, tentando mostrar que, apesar das aparéncias, Fichte ouco tem em comum com essa corrente. Nomomento€ importante ressaltar o quanto a relagio com 0 outro é decisiva e problemética za obra (¢, por extenséo, na vida) de Fichte, ¢ ‘como esse fato acaba aproximando 0 autor da antropologia. No fim dos anos 60 Fichte jé dedica boa parte de seu tempo a uma leitura sistematica dos cléssicos das ciéncias sociais, da antropologia principalmente. Esses estudos “Die Palcte™ (Fischer Verlag, Franklurt am Main, 1977), Sem raducéo para o portugués serio complementados com viagens & Bahia © 20 Haiti (1971-72), onde realiza pesquisas de campo sobre as religides afro-americanas, que marcario o inicio de seu projeto etnopostico. Antes disso, ainda no comeco dos anos 70 Fichte publica “Detlevs Imitationen — Grinspan” (As Imitagdes de Detlev — Azinhavre, 1971)°, espécie de continuagio de “0 Orfanato”, c “Interviews aus dem Palais amour” (Entrevistas do Palais d'Amour. 1972)’, com a mesma estrutura ¢ 0s mesmos personagens de “Die Pallette”. Nessa época realiza também diversas entrevistas com figuras piiblicas: Jorge Luis Borges, Leopold Sedar Senghor, Salvador Allende, Jean Genet e outros. ETNOPOESIA Em meados dos anos 70, Fichte esté completamente envolvido como estudo das religides afro-americanas. Passa longos periodos na Bahia e no Haiti, vai a Venezuela, 2 Sio Domingos, Trinidad, Sao Luiz do Maranhao. Antes disso, j@ tinha feito estudos sobre psiquiatria africana no Senegal. Enfim, 0 escritor estd mais e mais afastado da Alemanha € isso se refletira em seus livros. Normalmente, a critica divide a obra de Fichte em duas fases sem muitas caracteristicas comuns: a primeira “alema”, € a segunda, etnopoética — que compreende a trilogia “Xango” (1976), “Petersilie"(Salsinha. 1980) “Lazarus und die Waschmaschine” (L4zaro ¢ a méquina de lavar. 1985), além de “Das Haus der Mina in Séo Luiz do Maranhio” (A Casa das Minas em Séo Luiz do Maranhao. 1989)*, Poucos reconhecem a unidade da produgao de Fichte. Nessa perspectiva, 0 romance “Ensaio sobre a puberdade””, surge como uma obra problematica, j4 que ai so tratadas, simultaneamente, a questao do sincretismo religioso afro-americano ¢ a puberdade problemética do autor na Alemanha Pos-guerra Ora, como jé vimos, mesmo na chamada “fase alema” existe no autor a preocupacao com © outro ¢ seu interesse pela antropologia jé & perceptivel, ainda que em forma embrionéria, Pode-se tentar contestar tal aproximacio do ‘outro, afirmando-se que ela s6 serve, na verdade, como instrument de autoconhecimento para Fichte, como uma das etapas de sew “experimento”. Em outras palavras, a busca do ‘outro seria apenas o reverso da moeda de um centramento no eu do autor. Mas, mesmo que admitamos isso, no podemos deixar de ver que esse centramento no eu é também um ataque & pessoa do escritor, que € redefinida a partir da exposigdo a0 outro ¢ a partir da recuperagéo de vivéncias passadas. Assim, a “fase alema” aparecece coerentemente relacionada com a “etnopoética”, sendo a segunda uma radicalizacéo da primeira. ‘Além disso, toda a producio intelectual de Fichte € marcada por uma recusa da narrativa tradicional, linear, por uma reagéo ao romance bburgués, por um questionamento da capacidade do escritor de comunicar suas experiéncias pessoais, enfim por aquilo que Enzensberger chamou (um tanto apocalipticamente) de “morte da literatura”. O simples fato de todos os livros de Fichte serem expresso de uma recusa veemente a um certo tipo de literatura j6 thes confere uma consideravel unidade. Mais ainda, essa negacéo do romance europeu burgués € emblemética do questionamento que Fichte faz dos valores da cultura européia como um todo. Mas afinal o que Fichte entende por etnopoesia? Qual a relagéo desta com a antropologia? Quais as implicagées politicas deste projeto etnopostico? 8 “Detievs Imitationen: Grinspan” (Fischer Verlag. Frankfurt am Main, 1979), Sem tradugio para o portugues 7 tmterviews sus dem Palas PAmour” (idem) 5 *Xango”,“Peteralie” “Lazarus und dle Waschmaschine” ¢ “Das Haus der Mine in Séo Lui do Maranhio” (Fischer ‘Verlag, Frankfurt em Main) Sem traducto pura 0 portuguts. Este sltimo hvro faz parte de wma série chamada “Histérie dda sensibilldade”. que devena ter 17 volumes. mas nfo foi concluida por Fiche antes de sua morte. em 1986, publica -dctuma dos rascunhes deixados pelo autor vem senda fete gradualmente SFICHTE.H. “neato sobrea puberdade” (Ea. Fratiiente.S. Paulo. 1985) & Cademos ae Campo n8 +. 1991 Etnopoesia — € preciso enfatizar logo de inicio — nao € e nem aspira ser antropologia: € literatura ou, como querem alguns, “antropologia poética”. As criticas do “poeta-etndlogo” a ciéncia da antropologia sio portanto feitas de fora dela, utilizando (por livre escolha) uma linguagem que nao é cientifica Issodé a Fichte uma liberdade de expresséo que 6s antropélogos (cientistas) nio tém, mas. a0 mesmo tempo desqualifica (de acordo com os padrées académicos) a etnopoesia enquanto saber. Néo vamos aqui estabelecer uma ierarquia dos saberes, que nao teria utilidade nenhuma para este ensaio, além de scr um trabalho de Sisifo, Parece mais pertinente procurar discriminar os usos que Fichte faz da antropologia e como deles resulta um texto que formalmente se diferencia da prosa cientifica, “0 que aprendi com a etotogia? O hdbito incémodo da verificacao”™” Dito de mancira simplificada, a etnopoesia fichteana seria a apropriacao de alguns métodos de pesquisa ¢ teorias da antropologia. acompanhads de recusa da _linguagem cientifica. Obviamente a opgdo por um determinado tipo de linguagem est ligada 2 ‘uma concepeao de saber. Ao rejeitar a suposta neutralidade do discurso da ciéncia, Fichte esté também abdicando da neutralidade de pesquisador ¢ optando por uma colocagéo radical de sus subjetividade no trabalho que realiza “Revelar pressupostos ndo & uma exigéncia cientfica? Por que tal diretor de insttuto entrega a essa tal assistente 0 trabatho sobre 0 conceito de tempo? ‘Quem trabaiha sobre necrofilia e por qué? Serb uma vergonha confessar que se esié pesquisando sobre os Wolof porque se é homosexual? Centamente nao mais! Isso significa também um fato einoldgico ¢ seria uma informacdo erronea escondé-to. fo) E, por fim, seria proveitoso se todos os pesquisadores que tivessem flenado ou fletassem com idéias totalitérias nao escamoteassem esse lente ao longo de sua evolucdo ~ subtraindo, assim, ao aparetho cientifico, mudancas, desenvolvimento, tristeza, remorso, erro — ¢ si, empregassem sua forga em uma anélise ‘minuciosa desse fiene.” Lemos, nas palavras de Fichte, uma critica (sem divida pertinente) aos aspectos ideol6gicos escamoteados pela objetividade do pesquisador. Tal problema jé foi tratado por Giversos pensadores, sob variadas éticas (de Michel Foucault & Escola de Frankfurt) e, embora permancca polémico, sua simples formulagio hoje em dia corre o risco de parecer uma obviedade. Conquanto a colocagao de Fichte possa ser considerada trivial, € preciso, porém, destacar suas particularidades € seu lugar dentro da etnopocsia. Em primeiro lugar, & necessério esclarecer que a subjetividade, em Fichte, ¢ menos uma forga inelutével do que uma opgao refletida ¢ indo exclusiva. Como vimos, a escrita fichteana ¢ um experimento em que autor descobre os ‘outros ea si proprio. Essa exposigao a0 outro, ‘mesmo na fase etnopoética, esté sempre relacionada com uma busca de si mesmo. Sabemos que mais do que qualquer outro cientista social, 0 antropélogo tem uma relagio préxima com o seu objeto (néo raro com declarada simpatia por este) ¢ tem possibilidades de assumir (sem sair dos pardmetros cientificos) a propria subjetividade, ‘No momento em que formula suas experiéncias em texto, porém, 0 antropélogo se esforca para apagar 0s tragos dessa subjetividade. Suas hesitagdes, seus valores, seus enganos, seus acidentes de percurso e sua propria pessoa so suprimidos do texto — como se fosserm um “defeito”, que (quando muito) s6 poderia ser TO FIGHTE H “Krierioche Bemerlungen fr elne neue Wissenschaft von Menschen” (Observactes herdicas para uma ‘nova cinca dohomem in: “Petealle” (Fischer Verlag, Frankfort am Main. 1980).otrechocitadoestsinluidonacoletdnes de textos de Fiche, “Binopoesia” (Ed, Bresiiense, Paul. 1987), 11 FICHTE. H “Etnopoesia”™ A etnopoesi ae Huber Fiohte cy revelado na intimidade dos disrios. O texto fichteano. ao contrério, € uma tentativa de expressar todas as etapas do proceso de pesquisa e escrita e todos os interesses pessoais do autor. Em resposia & assepsia ¢ objetividade da prosa cientifica, Fichte propde uma eserita-alternativa que se aproxima muito do espirito barroco. Para comegar, Fichte nem sequer descarta 0 recurso ao texto “‘cientifico”, mas este € apenas parte de um exuberante arranjo lingiifstico onde coexistem vérios outros meios ret6ricos: construcdes cénicas, textos jornalisticos, sucessdes de metSforas ¢ metontmias, depoimentos, citagdes, etc. Para retratar um transe, por exemplo, Fichte constréi uum texto de cardter performativo™, isto é, que realiza aquilo de que fala (aqui cabe uma associago com Novalis, que escreve sobre literatura usando na pritica as idéias, a forma e © estilo que, justamente naquele texto, afirma serem seu ideal). No texto abaixo, 0 sentido ¢ dado sobretudo pelo ritmo das frases, que imita obater dos tambores. “Freddy comanda os tamiores. Freddy transforma-se no revolucionério Camillo Tomes Freddy dita mensagens aos tocadores de tambor. Freddy transforma-se no livenador Simon Bolivar. Simon Bolivar chora Simén Bolivar chora 0 destino de seu povo ¢ 4 miséria do mundo. Freddy wansforma-se no Indio perdido. Freddy transforma-se no negro Felipe." Alguns erfticos véem nessa tendéncia 20 bbarroco uma tentativa de adequar 0 texto 2 complexidade do assunto de que trata’. Seria proveitoso deseavolver um pouico mais arelacéo TE Sobre o conecltoge perfor do barroco com a modernidade, explorando talvezo filao aberto por Waltcr Benjamin cm sua tese “As Origens do drama barroco alemao”. ‘Mas, considerados os limites de nosso estudo, vamos nos ater a Fichte. Fichte empenha-se em construir um texto que expresse a pluralidade de seu objeto e langa mio de uma andlise interdisciplinar. Assim ‘como, por exemplo, Pierre Bourdieu, o escritor alemao leva em conta tanto aspectos sociolégicos (aprescntagéo dos contextos sociais © politicos em que se dao os cultos) como antropolégicos, Nao abre mao tampouco de andlises fenomenologicas, psicologicas (historia pessoal dos participantes das religiSes) estéticas, sempre que impostas pelo objeto, Para Fichte, 0 sincretismo religioso engendra necessariamente um texto ¢ uma anélisc igualmente sincréticos. “A cultura afro-americana se assemetha a uma fuga barroca. Temas, ritos se enlacam, sincopadamente se entrelagam, relacionam-se uns aos outros; a0 invertidos, acelerados, retardados, parecer sobrepor se, contradizer-se de modo desconexo: Elementos totalmente estranhos entre si ‘Sao perdidos de vista, esquecidos, nao se consegue visualizd-tos. E, noentanto, sao de wma grandeza, um todo, ‘que s6 se pode entender quando cada elementofor vivenciado dolorosamente, recuperando-se a visdo de conjunto de sociedades, continentes, epocas.""S Essa idéia de fuga barroca, de varias vozes que falamnuma mesma obra, que define taobem © texto (€ 0 assunto) de Fichte, 0 aproxima do conceitode texto “dialogico” ou “polifonico”, tal ‘como € esbogado por James Clifford. Nesse tipo de texto, € feita uma justaposigéo da vor do cientista ¢ da voz do objeto, numa tentativa de ‘minimizar a interferéncia do autor na obra. Essa interferéncia pode ser ainda mais reduzida — tividade, ef AUSTIN. John L, “How todo things with words” (Oxford University Press, New York. 1973). Sobre a performatvidade em Novalis. ef MOSER, Walter “La podtique de Fencyelopédle™ (mimeo). 13. FICHTE.op. ot 14 BADER op cit 1S FICHTE.op.ct. ‘Caaernos de Campo -nt 1 - 1991 acreditam os pos-modernos — por meio da supressio da interpretagao. Embora n3o caiba aqui uma discussio detalhada da antropologia pés-moderna, € preciso ressaltar que a presenca do autor inevitével numa obra, seja ela Cientifica ow ndo. E 0 autor, obviamente, que dé a palavra final. Mesmo se virias vozes s5o ouvidasem um texto, é0 autor que asharmoniza, & ele que, movido por seus proprios interesses, tealiza a colagem dos discursos. 34 a etnopoesia, embora permita que seu objeto fale 20 leitor, ndo pretende suprimir a mediagéo do autor. Diferencia-se também da antropologia pés-moderna no que diz respeito & interpretagio. Ficbte, em nenhuma de suas ‘obras ctnopotticas, abre mao dela, embora rejeite 0 papel de observador onipotente. O “poeta etn6logo” coloca-se inteiramente naquilo que faz, declara interesses, toma partidos, revela de onde, por que e para que fala. Além disso, a extrema preocupacio de Fichte com a elaboracdo da linguagem, ‘contrasta com a pouca inventividade literéria dos textas de autores como Paul Rabinow 0 escritor alemdo certamente nao thes toleraria & insipidez. Como vimos, © ponto mais problematic da relagéo de Fichte com 2 antropologia como um todo € justamente a linguagem e todas as suas implicagées ideolégicas. Se Fichte afirma (em tom de rovocacio) que a prosa cientifica € o residuo de uma concepgao de antropologia do século ppassado. de um saber a servico do colonialismo, fica evidente que a contribuicéo dos 'p6s-modernos para uma nova ciéncia do homem € (pelos padrées fichteanos) limitada, Pode-se argumentar, finalmente, que a emopoesia fichteana nio serve & comprovacao ou demonstracéo de nenhuma idéia original ou relevante (nos moldes aceitéveis pela antropologia) sobre as_religides afro-americanas. Mesmo que tal ilagio tivesse fundamento, seria necessério reconhecer que Fichte lanca a antropologia questées pertinentes € atuais, num momento em que essa ciéncia questiona suas posigées possibilidades no estudo das sociedades complexas, ‘Além disso, esté por trés do projetode Fichte a tentativa de articular um discurso livre da tentagéo de dominar o nmundo, que repense a relagéo entre centro ¢ periferia (numa escala mundial) ou centro € margem (no interior das culturas). Trata-se de um trabalho de militancia politica, que redefine suas estratégias de acordo com a instancia de poder que tem que cnfrentar, sempre em defesa do marginal, do plural, daquilo que sobrevive em meio a adversidades. TS Ch RABINGW. Paul “Representations are sola facts: Modernity and post-medernity in anthropology” ‘A etnopoesia de Huber Fite or

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