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TERCEIRA EDICAO REVISTA E-AMPLIADA a £ NESP © 2002 Editora UNESP Direitos de publicagéo reservados &: Fundagéo Editora da UNESP (FEU) 0101-900 — Tel: (One 1) 3242-7171 Fox: (Oex11) 3242-7172 Home page: www.editora.unesp.br E-mail: feu@editora.unesp.br Dodos Intemnacionais de Catalogacéo na Publicagéo (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SR Brasil) Hordman, Francisco Foot Nem pétria, nem patréo!: meméria operdria, cultura e literature ne Brasil / Francisco Foot Hardman. —3. ed. rev. e ampl. ~ S60 Paulo: Editora UNESP, 2002. Bibliogratia. ISBN 85-7139-430-X 1. Anarquismo — Brasil 2. Cultura - Brasil 3. Igreja e trabalho ~ Brasil 4. Literatura e sociedade — Brasil 5. Movimentos sociais ~ Brasil 6. Trebalho e classes trobalhadoras - Brasil - Afividade politica |. Titulo. Il, Meméria operéria, cultura ¢ literatura no Brasil. CDD-320.570981 indice para catélogo sisteméti “ }. Brosil: Anarquisme: Ciéncia politica 320.570981 Editoro ofiliado: anep Be seco Prana ‘rors Uniertan S Vill Imprensa operaria, espago publico e resisténcia: notas de leitura Historia e classes subalternas A revisdo critica empenhada em superar os ocultamentos da hist6- ria oficial e dominante deve procurar alternativas que situem parametros adequados paraa construcdo de uma “hist6ria do trabalho”. Nesse senti- do, ha um artigo de Eric Hobsbawm (1974a) que representa um marco analitico de reavaliacao dos mais decisivos. O autor realiza a desmonta- gem de varios dos procedimentos ideolégicos mais comuns a historio- grafia corrente sobre o tema. Para tanto, estabelece uma distingao basica entre niveis de andlise (classe, movimento e partido), ressaltando que os equivocos mais freqiientes dos historiaclores do trabalho so produzi- dos a partir damescla e da identificacao precipitada desses conceitos entre si, Hobsbawm, ao diferenciar esses termos, pretende sugerir uma dada hierarquia explicativa e uma ordem de determinacao entre eles: assim, historicamente, as quest6es relativas 4 org anizacdo partidaria do proleta- riado devem estar determinadas pela situiaco concreta da experiencia real do movimento operario, Considerado em suas formas deluta e mani- festacées, liderancas e ideologias. Por sua vez, o movimento operatio é determinado pela natureza histérica da classe como tal, pelo processo Francisco Foot Hardman de sua formacao e sua composi¢ao atual. Tanto movimento quanto parti- do, portanto, s4o expressées historicas e politicas da classe operdria espe- cificamente configurada. Essa linha de preocupacao localiza-se no interior dos debates, em certos setores politicos europeus, que tratam das relacGes partido-sindi- cato/classe diante dos impasses histéricos do movimento operdrio em paises capitalistas centrais, como Franca e Itdlia. Nesse sentido, varios autores, como Serge Mallet (1974) ou Angiolina Arru (1974), tentam recuperar, dentro da tradi¢ao marxista, um fio condutor que reaproxime os problemas da organizacao politica aos interesses histéricos da classe operdria e as experiéncias concretas acumuladas em seu movimento real. Assim, desde a participacao de Marx e Engels na Primeira Internacio- nal, passando pelas andlises de Rosa Luxemburg (1979) sobre a greve geral de massas e pela experiéncia revoluciondria de um “poder operério” fundado nos sovietes, até os escritos de Antonio Gramsci (1974, 25-42) anteriores aos “Cadernos do carcere” sobre os conselhos operdrios de fabrica no movimento de Turim, o que se tenta é apreender uma mesma tradi¢do: aquela que busca as bases da organizagao politica na classe e em seu movimento. Ora, a retomada dos elos partido/classe, ressaltan- do-se o cardter determinante desta ultima, recoloca a importancia dos estudos e debates em torno da prépria classe, no que diz respeito a sua composi¢ao, formacao histérica e praticas sociais especificas. Além da experiéncia prépria e espontanea do movimento, é relevante ainda indagar dos processos culturais peculiares a “mas sa majoritaria dos nao-organiza- dos” da classe operaria, o “modo de vida” e as priticas sociais cotidianas que Ihes conferem singularidade histérica. E interessante notar como Marx, era 1871, recomendava ao Conse- Iho Geral da Internacional a elaboracao de “uma estatistica geral da classe operaria”: longe de veleidade académica, esse plano era tido como neces- sario e fundamental para a propria coord enagao das lutas operarias, para a organizaco do movimento internacional, sendo antes de mais nada “uma questo de solidariedade que se tem de conhecer absolutamente” (Arru, 1984, p.47). Tal atitude lembra de perto a constante preocupacao de Gramsci em torno da necessidade poli tica de um “mapeamento cultu- ral” da Itélia, privilegiando as manifestacées das classes populares. Rosa Luxemburg (1979, p.34), ao analisar ass explosdes revolucionarias na Nem pétria, nem patrao! Russia de 1905, esteve atenta as condicdes hist6ricas especificas do movimento operario local, desde as eupces grevistas iniciadas em 1896- 1897 a partir dos operarios téxteis de Sao Petersburgo; ressalta a existén- cia de um “painel imenso e variado da batalha geral do trabalho contra o capital” e, citando uma jornalista que acompanhara os levantes do vero de 1903, destaca a atmosfera de festa que envolve a classe operdria em luta, rompido 0 seu cotidiano fabril: Abracos fraternais, gritos de entusiasmo e contentamento, cinticos de multidao de milhares de pessoas indo e vindo através da cidade, de manha a noite. Reinava uma atmosfera de euforia; quase se podia crer que uma nova e melhor vida principiara na terra. Espetaculo profundamente comovedor, idilico e enternecedor a0 mesmo tempo. (Luxemburg, 1979, p.30-1) ‘Assim, estou querendo sugerir que 0 acento no enfoque especifico sobre a classe nos estudos de “histéria do trabalho” subentende, de um lado, uma atitude politica de reconsideracao das questdes atinentes a ‘organizacio partidaria (de uma perspectiva que recupere os pressupostos de uma “democracia operaria”) e, de outro, implica um esforgo de des- vendamento histérico dessas sombras que cobrem boa parte das priti- cas socioculturais vividas cotidianamente pela classe. Claro esta que parte significativa dessas sombras permanecerao como tais, dadaa impossibilidade total de acesso a certas fontes, irremediavel- mente perdidas. Seria ingénuo pretender uma reconstrucao continua de todo o processo hist6rico vivido pela classe. Ha que se tet em conta o cardter necessariamente “desagregado e descontinuo” da hist6ria das clas- ses subalternas, j4 que a unidade hist6rica das classes dirigentes dé-se por intermédio do Estado: a condi¢ao de excluidos e de subalternos confe- re ao processo histérico de forma¢Ao das classes operdrias um cariter inerente de descontinuidade (Granasci, 1974a, p.491-3). Assim, a rigor, a historia que se fizer dos setores Subalternos da sociedade sofrera, de maneira inevitavel, as vicissitudes dessa descontinuidade: Ahistéria dos grupos sociais subalternos € necessariamente desigre- gada e epis6dica. Nao ha duivida dle que na atividade hist6rica desses gra pos hd uma tendéncia a unificacae, ainda que seja em niveis provisérios; mas essa tendéncia rompe-se corastantemente pela iniciativa dos grupos Francisco Foot Hardman dirigentes ... Os grupos subalternos sofrem sempre a iniciativa dos domi- nantes, inclusive quando se rebelam e s¢ levantam. Na realidade, inclusive quando parecem vitoriosos, os grupos subalternos encontram-se em uma situacdo de alarme defensivo... Por isso, todo indicio de iniciativa auténoma dos grupos subalternos tem de ser de inestimével valor para o historiador da totalidade; disso se depreende que uma hist6ria assim nao pode tratar-se mais do que monograficamente, e que cada monografia exige um acimulo muito grande de materiais freqiientemente dificeis de encontrar. (Gramsci, 1974a, p.493) Nesse sentido, dada a prépria concepsao de classes sociais e suas relagdes com o Estado que norteia o campo tebrico deste estudo, deve-se evitar igualmente © pélo oposto aquele privilegiado pela historiografia dominante, isto é, 0 isolamento da andlise da classe operaria. A preocupa- do com qualquer “indicio de iniciativa auténoma” (cultural e/ou politi- ca) verifica-se pelos sinais de sua efetiva atuacao nas metamorfoses das relacdes de hegemonia vigentes na sociedade de classes. E, portanto, nesse confronto, e nas relagSes da classe operdria com as classes dominan- tes e com o Estado, que se localiza a dinamica da virtual unificacéo dos setores subalternos, pela passagem dial ética de sua descontinuidade his- térica 4 agregacdo mais continuada de suas praticas e politicas. Classes subalternas e cultura A rigor, ndo se pode falar em “cultura operaria”. Trotski (1969, cap.VI, VIL, VIII) j demonstrara que € praticamente impossivel a uma classe dominada, com reduzido tempo livre e sem condicées materiais, produ- zir obras e idéias compardveis ao acervo da cultura dominante. Portanto, entendendo-se “cultura” no sentido de uma producao mental e material de obras, idéias e artefatos de uma dada sociedade (como falamos, por exemplo, em “cultura ocidental”), est claro que a classe operaria nao possui condicdes minimas para consti tuir um arsenal de “cultura” pré- prio eauténomo. Mesmoentendendoa nogéode “cultura” em um sentido mais amplo, além da produgao de artefEatos ou de um “corpo de trabalho imaginativo e intelectual”, cultura coro “todo um modo de vida”, como propée Raymond Williams (1969, ver “Conclusées”) a partir da andlise do surgimento e evolugao desse conceito na literatura inglesa desde a Nem pétrio, nem patrao! Revoluco Industrial, permanece adificuldade em se pensar um “modo de vida operério”. Sabemos que uma das tendéncias do capitalismo indus- trial éa homogeneizaco dos hdbitos de consumo, unidimensionalizando padrées de vida e comportamento social. Se a pobreza é um traco perma- nente de amplos setores subalternos, nao poderfamos elegé-la, por si s6, como um “modo de vida proletario”: a miséria nao é critério convincente para se definir uma “cultura operdria”, a menos que se assuma uma pers- pectiva burguesa de encarar de forma pitoresca pauperismo advindo da exploracao de classe. A pobreza nao pode ser fundamento de um modo de vida autenticamente operario simplesmente porque a classe operdria nao aelegeu, sendo-lhe imposta como resultado de sua posicao no proces- so de producao capitalista. Por outro lado, como salienta ainda Williams, a producao industrial capitalista tende a uniformizar os campos do lazer, da habitacao, do ves- tuério e, inclusive, o da lingua. Nesse sentido, o autor lanca a hipstese: “A distincao crucial esté em formas alternativas de se conceber a natureza da relacdo social” (p.333). Em torno dessa assertiva, contrapde o indivi- dualismo proprio a viséo burguesa das relages sociais a solidariedade ou ao coletivismo inerentes as concepsées de mundo da classe operéria. Parece que essa tendéncia de encarar o problema é, de certa forma, andloga ade Gramsci ao referir-se este autor a “concepcGes do mundo e da vida” préprias as classes populares, apesar de seu carter ndo-elaborado, des- continuo e até mesmo contraditério. De qualquer forma, ao lado dessa marca distintiva ligada a “concep- Go da vida social” (dificil de detectar por se encontrar confundida na pratica e no discurso das classes operdrias que incorporam, simultanea- mente, aspectos das ideologias dominantes), a presenca cultural das clas- ses subalternas verificar-se-ia também, sempre segundo Williams, em sua contribuicao difusa, porém real, a constituicao do proprio proceso cultural mais abrangente de toda a sociedade. Nao se pode, da mesma maneira — no que diz respeito a criacdo cultural -, falar rigorosamente de uma “cultura burguesa”; come é produzida numa sociedade de clas: ses, constitui exatamente esse cad inho de contradigées. Claro esta que a “cultura” assim gerada favorece ¢lobalmente aos interesses das classes dominantes; revela, porém, nos intersticios de seu discurso, a presenga efetiva das “aspiracdes coletivistas” proprias da contribuigdo operiria. Francisco Foot Hardnan A andlise que o autor faz da literatura inglesa examina em grande parte esse processo contraditério da “cultura”: como, enfim, uma literatura Jominante acaba por assimilar valores, temas e significados muitas ve- ze sintomaticos da atuagdo real das forcas dominadas, nos processos ideolégicos de uma sociedade em transicao.’ Estar atento ao problema da cultura especifica das classes subalter= nas, ou constatar que hé efetivamente contribuig6es do “coletivismo ope- rario” incorporadas 4 “cultura dominante”, nao esgota, porém, a ques: tao. E necessdrio tentar precisar melhor o sentido daquela “concep¢io de mundo” propriamente operdria. Tim Patterson (1975), em artigo polé mico, faz uma avaliagao critica das alternativas para uma teoria cultural marxista, da perspectiva do interesse pela “cultura da classe operdria”, nogao que é distinta de uma mera “cultura operaria”. Situando a atualidade do tema a partir das contribuigdes de Thomp- son e Hobsbawm, que tém ressaltado a conexo entre fendmenos cultu- rais e formacao de classe, Patterson faz uma sintese da contribuicao ofe- recida pela vertente que denomina “anélise ideol6gica”, vinculada a Georg Lukacs e Lucien Goldman, entre outros. Se se trata de uma abordagem fitil para a andlise de artefatos da “alta culcura”, sua aplicacao aos estudos da cultura entre as classes operdrias é contudo problematica, por se tratar aqui de fendmenos habituais, efémeros, semi-articulados e até mesmo ndo-verbais - que requerem meios de andlise mais adequados a sua es- pecificidade. Analisando, por outro lado, as principais linhas da Escola de Frankfurt, que chama, em seu conjunto, de uma aborclagem “psicossocial”, Patterson argumenta que, de inicio, essa perspectiva possui a vantagem de permitir 1 Acredito que esse veio seja dos mais fecundos pare se examinar a contribuicio popular efeti~ va~independentemente das origens de autores e movimentos ~a ruptura estética e ideolé- ‘gica que representou o modernismo na hist6ria Cultural da sociedade brasileira. E nessa mesma linha, para citar outro exemplo, que Bakiatin analisa o significado da inovagio de linguagem ocorrida com a obra de Dostoiévski. AC analisar os géneros literdrios carnavali- zados, em suas modalidades do “didlogo socraticm” da “sétira menipéia”, o autor salienta a forte tradi¢ao popular que informou a sua criaceio (Bakhtin, 1970, cap.1V). 2. Classe, no sentido de E. B Thompson, entendidi no como uma “estrutura” ou “catego- ria", mas como um “fenémeno histérico, unificamide um niimero de eventos, dispersos € aparentemente desconectados, tanto na matéria-potima da experiéncia quanto na conscién- cia” e, portanto, como “algo que de fato ocorre—e pode ser demonstrado ter ocorrido - nas relagdes humanas” (apud Patterson, 1975, p.258—9). Nem pétria, nem patréo! um tratamento teérico do funcionamento e do contetido da cultura domi~ nante (eda propria “industria cultural” na concep¢ao de Adorno); a anili- se frankfurtiana acaba, porém, segundo Patterson, por dificultar a conside- racdo das questées atinentes & presenca da consciéncia no coletivo da classe. A proposta dos autores ligados 4 abordagem “psicossocial” aproxi ma-se de uma teoria psicolégica da alienacao, faltando um alcance “antro- poldgico” mais decisivo as suas andlises, conforme a interpretagao de Patterson.? O autor propée, finalmente, considerar a contribuicao de Gramsci em torno da interdependéncia entre os processos culturais e po- Iiticos como uma alternativa mais adequada para o estudo marxista dos fenémenos culturais entre as classes subalternas. No interior da teoria gramsciana, Patterson privilegia a questao da necessidade que tém as classes subalternas de elaborar, utilizar e reter um estrato auténomo e proprio de intelectuais organicos em sua luta contra a hegemonia burguesa, a qual se configura nao somente como série ideolégica mas, muito mais que isso, como experiéncia de vida. A supera- cao da hegemonia dominante deve-se dar, portanto, no contexto da vida cotidiana (e nao meramente no plano abstrato das idéias). A existéncia de um estrato de intelectuais, como recurso de classe, permite uma media- cao bisica entre a hegemonia burguesa e a consciéncia global da classe operiria, tornando viavel a emergéncia de uma concepgao de mundo dis- tinta, elaborada a partir da generalizacao e compreensao da experiéncia concreta e peculiar da classe. Nesse sentido, entrelacam-se luta cultural e lutapolitica: “A alternativa gramsciana estabelece o mecanismo de prote- ao eresisténcia, socialmente, e mede liberdade e autonomia em termos de uma ‘zona liberada’ de atividades controladas e coordenadas por mem- brosda classe” (Patterson, 1975, p.279). Além de traduzir, de forma si- muhanea, fenémenos politicos, a concep¢o de Gramsci deve facilitar 0 tratamento histérico da cultura da classe operdria por situar as “concep- Sesdo mundo e da vida” no processo concreto e coletivo da experiéncia cotidiana da classe. 3 Cancordo apenas parcialmente com as consideragbes de Patterson sobre a Escola de Frankfurt certos textos de Adorno, tais como “Discurso sobre lirica e sociedade” ou “Posigiio do nar dor na novela contemporanea”, acredito que oferegam amplas perspectivas para aplics Go de um enfoque mais “sociol6gico” ou “antropolégico”, tendo em visa a presenga do oletivo nas producées culturais e artisticas. Quanto Walter Benjamin, sia de todo injusio to reconhecer o alcance “antropol6gico” de sua critica cultural Francisco Foot Hardman Completando esse quadro, ressalto ainda os trabalhos de Michelle Perrot (1968, 1973), os quais, ao estudar as greves como formas de luta privilegiadas do movimento operario francés anterior 4 Primeira Guerra Mundial, sublinham, de maneira radical, as quest6es relativas ao discurso dos operdrios e a sua vivéncia sociocultural imediata.‘ E, nesse sentido, a greve, fendmeno complexo, revela, simultaneamente, as determina¢oes econémicas de certas conjunturas, o nivel politico e ideolégico das corre- laces de forca ante o Estado e as demais classes e também esse outro nivel, nao menos importante, das microtessituras socioculturais e cotidia- nas do mundo operdrio. Uma cultura de resisténcia 0 Amigo do Povo e Aurora representam no Brasil duas amostras signifi- cativas da chamada imprensa operdria de cunho libertario. O primeiro, um jornal em forma de tabldide, impresso em 4 paginas a 4 colunas, pu- blicado irregularmente em Sao Paulo, de inicio, como semanario, aos s4- bados; durante um certo periodo, na base da inscri¢ao “sai quando pode”; depois, durante mais de um ano, como quinzenério, terminando assim sua existéncia, entrecortada, apenas, por uma tentativa frustrada de vol- tar a semanério. Durante a maior parte do tempo que durou sua publica- do, esteve sob a responsabilidade de Neno Vasco (“toda a correspondén- cia dirigida a”), substituido por Manuel Moscoso apenas entre junho de 1903 e marco de 1904. A publicaco chega a iniciar seu terceiro ano, indo de maio de 1902 (n° 1) a novembro de 1904 (n° 63), quando o jornal termina por agravamento da situacdo financeira, deficitaria durante toda sua existéncia (o Arquivo Edgard Le uenroth, Campinas, possui a cole- ao quase completa). Aurora, revista também sob a res ponsabilidade de Neno Vasco e re- digida no mesmo local do antigo jornal (Rua Bento Pires, bairro do Bras, Sao Paulo), representa um esforco de continuidade do grupo editor ante- rior, no sentido de uma maior “especializacao” da propaganda libertai A revista sai mensalmente, autodefinsindo-se como publicagao “de critica social e literatura”. A colecdo Leuen roth possui os exemplares de n° 1 4 Cf também Julliard (1974). Nem pétria, nem patréo! (fevereiro/1905) aos n° 8-9 (setembro-outubro/1905) , com excegao do n° 7. Faltam-nos dados para saber se 0 periédico extingue-se realmente em outubro. Parece claro, entretanto, em razo da situagao crénica de pentiria e da distribuicao reduzida, que seu periodo de existéncia nao deve ter ido muito além de 1905. Era impressa em formato de caderno, tama nho pequeno (in 8°), com 16 paginas a 2 colunas. A leitura desses dois periédicos possibilita uma visdo significativa da propria atividade de propaganda anarquista em seus infcios (como os editores mesmos 0 reconheciam), a partir da constituicao de pequenos grupos libertarios em Sao Paulo. O periodo abrangido (1902-1905), justa- mente por nao representar nenhum ascenso mais decisivo do movimento operario (pelo contrario, trata-se de uma fase generalizada de refluxo que antecede a conjuntura de ascenso verificada com as agitacées operdrias do periodo 1906-1908), torna-se exemplar para acompanhar o esforco de propaganda e de penetracdo no meio operdrio desenvolvido pelos anar- quistas. Parece que esses primeiros cinco anos do século XX marcam um momento crucial de “instala¢éo” do movimento anarquista em Sao Paulo, na tentativa de formacdo de bases sdlidas de apoio na classe operaria em seus primeiros movimentos, dentro e fora desse Estado. De maneira geral, nessa fase inicial pelo menos, parecem confirmadas amplamente as hip. teses de Michael Hall (1975): por um lado, tendéncia ao relativo isola- mento das liderancas anarquistas em rela¢ao a classe operaria como um todo e, por outro, relativa fragilidade dos niveis de consciéncia de seus interesses e de sua organizacio, ao contrario do que afirmam as mitolo- gias heréicas que se tém construfdo em torno da inesgotavel “combati- vidade” da antiga classe operaria. Essa producdo cultural, materializada na atividade da imprensa de propaganda anarquista, representa o que chamarei de cultura de resistencia, dado seu papel aglutinador buscando manter a integridade ideolégica vivencial do operariado emergente, contra o sistema politico dominante e-em prol da chamada “emancipacdo social”. Se existiu uma “politica li- bertdria” (oposta 4 politica institucional, vista em seu conjunto como bur- guesa), esta consistiu basicamente nessas atividades depropaganda: que- to dizer que esto imbricados de forma global o sentido cultural e © sentido politico da pratica anarquista. Francisco Foot Hardman Por outro lado, se a “subcultura” anarquista representou uma regiao rivilegiada da cultura da classe operaria nascente, ela nfo chegou a preen- her 0 esparo operdrio em sua totalidade. Retornamos & idéia de que o anar- uuismo nao é a expressao maxima e acabadada classe operaria do perfodo nem mesmo em Sao Paulo): assim, também no plano cultural, ao lado , ha indicios da resenca de outras praticas culturais, diversas e até antag6nicas ao “puti- anismo” dos anarquistas (Fausto, 1976).5 Esses outros lados do espago perdrio constituem sombras ainda mais espessas, soterradas nao s6 pelo fiscurso das classes dominantes, mas também pelo discurso anarquista. Logo num dos primeiros niimeros de O Amigo do Povo, lé-se uma equena nota que ilustra o caréter integrado das promocées culturais & sropaganda libertaria. O que é mais relevante, entretanto, é 0 tratamento ndiferenciado que o Estado dava as atividades anarquistas, o cardter adical da exclusao, reprimindo um espetaculo beneficente da mesma ‘orma que reprimia greves: essa “cultura de resisténcia” propriamente libertari CRONICAS A policia ~ Sabado, 7 do corrente, realizava-se, no Casino Penteado, um espeticulo em favor da propaganda pelo opiisculo em portugués, ou- via-se atentamente e pacificamente o Primo Maggio, de Gori, quando os mantenedores da desordem buguesa vieram perturbar sossego. Disse- ram-lhes que o espetaculo era particular. Os homenzinhos teimaram em entrar; e como houvesse protestos, irromperam furiosamente, chamaram tropas ~até cavalatia! ~assustaram mulheres e criancas, revistaram os espec- tadores, declararam suspenso 0 espetéculo, prenderam trés camaradas ~ Torti, Marconi e Cerchiari. (n.6, p.4) © jornal é um mosaico de pequenas notas, frases de Nietzsche, Shakespeare, Rousseau, Malatesta, Guerra Junqueiro etc., compondo uma visio comum contra os poderes estabelecidos ¢ autoritarios, paladinos da vontade individual e de uma genérica aspiracéo & liberdade. Um certo iluminismo proprio das tradigSes do enciclopedismo francés do século XVIII informa ainda a erudicao e o pensa-mento dos artigos anarquistas, & Bascio-me aqui em virias consideracbes do autor a respeito da “subcultura anarquista” (cf 28parte, cap.1:“Correntes organizatGrias seu carr po de incidéncia”, com especial referéncia ‘0 item “A subcultura”) Nem pétria, nem patréiol especialmente nas matérias de fundo doutrinal. Também o positivisiie eo evolucionismo de cunho naturalista do século XIX permeiam boa parte dos discursos. Nao é facil perceber os sinais do movimento operario concreto: silo poucas as noticias sobre condicées de vida e de trabalho, as informagées pormenorizadas sobre greves, associacdes de classe e composicao do proletariado. Aqui, deve ser levado em conta que isso nao se deve a um mero desinteresse dos anarquistas, mas sim As condi¢des concretas do momento, isto é, o préprio carater estacionario do movimento operario Aquela altura e, também, as dificuldades inerentes A cobertura dos even- tos por parte de uma imprensa operdria nascente e pequena, além de pas- sivel de repressao. Predominam, portanto, nessa fase, os artigos de propa- ganda libertaria que em seu aspecto cumulativo revelam, além de uma retérica algo rebuscada que faria inveja aos parnasianos, redundancia abu- siva na forma, estilo e tematicas. Diga-se que a maior parte desses arti- gos é traduzida dos tedricos anarquistas (Kropotkin, Malatesta, Reclus etc.), Hé também notas regulares sobre o movimento operario na Rtissia, Itélia, Franca. Nesse sentido, percebe-se claramente a importancia da imprensa operéria como “material ideolégico”, nos termos de Gramsci, ou seja, como verdadeira correia de transmissao das ideologias interna- cionalistas do movimento operario por meio de intensa circulagao e inter- cambio entre as liderancas anarquistas da Europa, América Latina e Brasil. Tal processo dava-se por meio da troca regular de periédicos, correspon- déncia internacional, bibliotecas e notas bibliograficas, tradugdes de ar- tigos e obras, viagens de liderangas etc. Numa época em que os grandes meios de comunicacao de massa inexistiam, a imprensa, em especial 0 jomalismo, possuia um papel decisivo como vefculo social deinformagio e formaco: a imprensa operaria, em particular, destaca-se por sua fun- ode articuladora de interesses hist6ricos de classe, como fator de agi- tacéo e propaganda, na tentativa de aglutinar elementos de uma conscitn- ciaoperdria comum. Nessa tendéncia predominante de matérias tedricas e doutrinarias, que embaralha as pistas que levam a classe operéria no Brasil do perio- do, minha leitura concentrou-se no sentido de descobrir pequenos frag- mentos. Indicios nebulosos e retalhos que constituissem alguns rastros dotema investigado: so “pequenas notas”, avisos de reuniées ao pé da Francisco Foot Hardman pagina, notificagdes de balanco sobre a “subscri¢do voluntéria” para 0 jornal, “chronicas” ¢ outras secdes menores, regra geral impressas na uiltima pagina. Assim, na pesquisa do que é esse painel de fragmentos (que oferecem, ao lado da periodicidade irregular do jornal, marcas ex- pressivas da prépria descontinuidade da historia das classes subalternas), ressalte-se nos primeiros nimeros do jornal a duplicidade lingiifstica (Portugués e italiano), fenémeno que tende a diminuir, para cessar quase por completo depois de alguns meses. A necessidade de propaganda em portugués revela a preocupacao em penetrar os setores nacionais da classe operdria (embora bastante reduzidos em Sao Paulo), muitas vezes explicitada pelo grupo editor. Deve-se levar em conta, também, a presenga significativa de imigrantes portugueses entre o operariado emergente (é © caso dos préprios editores do jornal - Neno Vasco e Manuel Moscoso). Ainda na fase bilingtie, os primeiros néimeros de O Amigo do Povo trazem uma interessante se¢ao em italiano, que deixa de existir por ocasiao da “unificagao lingiifstica”: trata-se de Parla 'Operaio (I magnati italiani al Brasile¢ il lavoro), onde se narram, com certos detalhes, as condicdes de trabalho ~ inclusive salariais - de algumas categorias profissionais em que certamente predominavam 0s italianos, como os pipeiros e 0s tijoleiros (n.7, p.3) € 08 carroceiros (n.8, p.4). O nascimento de grupos libertarios ou de associacGes de classe apare- ce com alguma freqiiéncia, revelando bem o clima de “primérdios” que domina o periodo. Em julho de 1902, surge em Sao Joao da Boa Vista (SP) 0 “Grupo Germinal”, sob a lideranga de J. Jimenez (n.7, p.3). Em Sao Paulo, no mesmo momento, sobressaiam as atividades da “Liga de Resisténcia entre Chapeleiros e Annexos”, em cuja ordem do dia de reu- nigo inclufa-se, ao lado da leitura de ata e problemas financeiros de uma greve no setor, uma indispensdvel Festa social (n.8, p.4). Avenda de livros e folhetos pelo grupo editor é permanente, incluin- do desde os “classicos” anarquistas, passando por Germinal de Emile Zola e chegando até A Igreja e 0 proletariacdo, de H. Salgado. Alguns artigos doutrinais utilizam a forma de diélogo “entre camaradas” para apresenta- do e defesa das idéias: cria-se, ento_, uma incoeréncia entre a forma ~ que sendo dialégica deveria abrir-se a 0 debate efetivo de concep¢des do mundo e da vida - ¢ os temas que repaetem 0 mesmo refrao doutrinério usual de outros artigos. O didlogo nao..se expande: torna-se seco, esttico, Nem patria, nem patréol artificial. Outras vezes, as imagens naturalistas chegam ao extremo, como no caso de um artigo que identifica o Estado com o percevejo (n.8, p.3). Em agosto de 1902, um dos redatores do jornal, Alessandro Cerchiari, anuncia uma viagem ao interior paulista com fins de divulga- fo libertdria, enquanto em Sao Paulo nasce 0 “Grupo Anarchico Nuova Civilté”. A Liga dos Chapeleiros anuncia, em italiano, uma Festa operdria: Sabato 9 corrente alle ore 8 1/2,pom. nel Casino Paulista (antigo Eldorado) la Societé Filodrammatica Andrea Maggi. reappresentara il dramma in 5 atti — Una notte a Firenze — de A. Dumas. Questo spettacolo é stato organizzato dalla Liga di Resistenza fra Cappelai. (n.9, p.4) Nesse mesmo espaco, lé-se uma primeira nota sobre movimentos gre- vistas: uma greve dos marceneiros no Rio, quase geral nesse setor (800 grevistas em 1.000 trabalhadores da categoria), segundo o artigo de Mota Assungao. A greve é espontanea e motivada, ao que parece, por ques- t6es de remuneracao do trabalho (diminuicdo da tabela de precos em 30% desde 1901) e de desemprego. O jornal desenvolve intensa campanha, com avisos bilingiies aos marceneiros de Sao Paulo, para nao irem ao Rio substituir o trabalho dos grevistas (n.10). Enquanto isso, em Sao Paulo, carroceitos e carregadores reuniam-se na “Liga Democritica Italiana” a fim de criarem uma Cooperativa de Trabalho, Producao e Consumo. Per- de-se o desfecho da greve carioca, pela falta dos ntimeros subseqiientes do jornal, mas, ao que tudo indica, em razio da auséncia de solidariedade (financeira e grevista) das “outras classes operarias”, tendeu ao fracasso, apesar do apoio de Evaristo de Morais. Nessa simultaneidade prépria da linguagem jornalistica, vejamos o que comenta o jornal,, a respeito da festa dos chapeleiros em Sao Paulo: Entre chapeleiros ~ Espléndida a festa realizada, no Casino Paulista, na noite de sabado, 9 do corrente, pela Liga de Resistencia entre chapeleiros. Representou-se o drama de A. Dumas ~ Una Notte a Firenze ~ que, franca mente, estavaali um pouco deslocado. Em seguida, disseram algumas pal vras, referindo-se sobretudo a greve da fabrica de Matano e Serrricchic de Sorocaba, os companheiros Raimundo Valentim Diegoe Benjamin Mota Depois duma comédia num ato fechou a bela festa um baile farniliar, Nie havia um sé lugar vago: foi uma enchente completa. (1.10, p.1-2) Francisco Foot Hardman Outro local preferido pelos operdrios para realizar espetaculos erao Casino Penteado (Bras), onde o “Nucleo Filodrammatico Libertario” promoveu uma festa, em setembro de 1902, com o seguinte program: “1) Bozzetto dramitico social Il Primo Maggio, de P. Gori; 2) Conferéncia de B. Mota e V. Diego; 3) Rifa de objeto de valor e outros de surpresa; 4) Uma engracadissima farsa; 5) Baile familiar; (senhoras e criancas acompa- nhadas nao pagam convite)” (n.11, p.2). Na mesma data e hordrio, realizava-se outra festa no teatrinho Andrea Maggi (Rua dos Imigrantes, Brés) em comemoracio ao primeiro aniversario do Circolo Educativo Libertario “Germinal” réncia de Elisabetta Valentim; entre-acto dramético La Miseria de A. Ban- doni; loteria gastronémica artistica e humoristica; conferéncia de A. Bandoni, Le piague sociale; baile familiar (n.11, p.2). A distribuigao do jornal ampliava-se: a subscricdo voluntaria atinge Rio de Janeiro, Porto Alegre, Santa Catarina e Rio Claro (SP), entre ou- tros locais. Em outubro, o jornal diminui seu tamanho pela metade, in- troduzindo uma epigrafe de Dante: “Liberté va cercando che é si cara/ Come sa chi per lei vita rifiuta”. Além disso, a subscrigao torna-se permanente e, em lugar do “sai aos sabados”, introduz-se o “sai quando pode”. Uma longa nota na seco “Crénicas” do jornal, intitulada As nossas festas, merece ser citada, por se tratar do melhor exemplo encontrado a respeito da concepcao anarquista de festa operéria (subordinada aos fins da propaganda, nunca puro lazer): Mais uma bela noite de propaganda: a de sabado passado, 18, Foi a primeira representacao do drama em um pr6logo e 2 atos do camarada G. Sorelli — Giustiziere!. O assunto ficaré conhecido, dizendo nés que se baseia numa tragédia cujo prélogo se passa nas ruas de Milo e cujo epilogo se desenrola em Monza. Giustiziere! é Gaetano, aquele a quem tanta miséria, tanto sofrimento faz erguer o brago raum gesto desesperado de protesto de vinganca. O nosso caro Sorelli nao é um escritor, nfo é um dramaturgo; mas um operirio e a vida que ele nos pde em scena conhece-a, vive-a. Por isso foi bem sucedido no prélogo, agradou e aigradou muito, como lho mostraram os quentes aplausos que recebeu. Ai est4 um bocado de teatro que nos vai dar pretexto para muita propaganda. O desempenho foi bom. Especiarlizemos apenas a sig. E. Camilli que esteve magnifica no seu papel de GEuditta. E va 14: falemos também do Nem pétria, nem patréo! Hirsch, que fez figura no seu papel de doutor (e ficou-Ihe o nome!) € no de cav. Arnaldi, em que, juntamente com Pozzolo ~ 0 futuro comendador sig. Gervasi (que patifel), conseguiu fazer-se odiar pela sala. Valeu seres dos nossos, amigo Hirsch. Ainda assim fica-te o nome de doutor: quem nao quer ser lobo, nao Ihe vista a pelle... Depois do drama, a sig. Dacol e uma graciosa pequerrucha recitaram poesias. Falaram em seguida os camaradas Cerchiai e Morales. Ricardo Goncalves disse ainda algumas palavras sobre Zola. Seguiu-se uma rifa de varios objetos e uma comédia, em que um padre se viu em palpos de ara- nha e fez rir toda a gente. Depois 0 baile do costume. Quanto mais festas destas melhor. (n.14, p.2) Ao lado do antincio da rifa de um grande retrato de Zola, “magni- ficamente encaixilhado”, em beneficio do grupo Nuova Civilta, desponta a noticia de uma greve de 300 operarios téxteis no Bom Retiro em repa- dio a arbitrariedades dos contramestres. Para auxiliar 0 movimento pa- redista, realiza-se, no Eldorado, “uma grande festa pro sciopero” (greve e festa caminhando juntas), organizada pela Liga de Resisténcia entre Te- celées Tecedeiras de Sao Paulo. O programa entrosa-se com a situac&o das grevistas, incluindo, além do baile e conferéncia habituais, uma poe- sia de Ada Neri — “Sciopero” ~ e um drama social sobre uma greve: Fine de festa, de P. Gori (n.16, p.4). Noinfcio de 1903, nota-se que 0 jornal enfrenta sériacrise financeira. Realizam-se reunides de anarquistas, com o intuito de revigorar a pro- paganda: o grupo editor do jornal estuda a fundacao de um Centro de Estudos. Tudo indica uma maré de forte refluxo. PropGe-se o incremento da propaganda em lingua portuguesa, apesar de se considerar necess4- ria a manutengao de matérias em italiano. Por outro lado, nos pseud6n mos escolhidos pelos assinantes para as listas de subscric4o voluntiria, percebe-se uma atitu de brincalhona que convive coma seriedade dos ideais libertérios: “Ur turco”, “Io”, “Viva PAnarchia!”,, “invoce de bonde”, “Um qualquer”, “Um sobrinho dum cura vasco”, “Un sinverguenza’”, “Un que quiera la destrucciér del edificio social” etc. (n.20, p.4). J& em junho de 1903, 0 jornal retoma seu formato anterior, sendo a “correspondéncia” (os anarquistas nao usam por principio o termo “dire~ 40”) assumida por Manuel Moscoso. A redacao transfere-se da Rust Guilherme Maw, no baiirro da Luz, paraa Rua Bento Pires, no Bras. Nesse Francisco Foot Hordman mesmo momento, anuncia-se a fundacio de um Centro de Estudos So ciais “Jovens Libertarios”, dedicado a propaganda libertaria na Barra Funda, por meio de cursos, conferéncias, leituras e discuss6es (n.29, p.4). Ao que parece, nesse curto periodo, o movimento tenta reativar-se; de pois de longo tempo sem noticias de greves, aparecem trés: mais de 700 operarios das oficinas do Lloyd Brasileiro no Rio, em protesto contr abusos do chefe, param o trabalho; greve na fabrica Carioca, no Rio (sem maiores informes); greve geral dos cocheiros, carroceiros e carregadores em Sao Paulo em protesto “contra disposi¢6es vexatérias da municipa- lidade”, que dura quase uma semana e softe violenta repressio policial (n.29 e 31). Um ponto a ressaltar sao as restrig6es feitas pelos anarquistas 4s festas operarias. Negam-se a encard-las como mera forma de diversio (cf. a critica a representacdo de Alexandre Dumas, na festa dos chapelei- ros). Um certo puritanismo extravasa também, por exemplo, na critica ao drama escolhido para ser representado por um grupo filodramético de criangas (“Attore Infantile”): ‘Todos 0s petizes muito bem. Pela dificuldade do papel, fez-se notar a menina que fez a Giorgina do drama; e a este propésito torna-se necessaria uma observacao: a peca é excessivamente tragica para criangas. Para elas, querem-se coisas alegres e ligeiras, com as quais também se pode fazer boa propaganda. Foram torturd-las obrigando-as a fingir dores que elas nao ndo abusem; a pega era absolutamente imprépria. No final de agosto, estourano Rio a greve mais importante no periodo abrangido pelo jornal, segundo as suas préprias fontes: trata-se de uma greve geral de varias categorias, que dura mais de uma semana ¢ envolve cerca de 25 mil operarios (o que é bastante, considerando que a popula- ao total da capital federal estava por volta de 1 milhao de habitantes, conforme dados do jornal). A greve alast ra-se com uma rapidez e intensi- dade incriveis, a partir de duas fabricas téxteis (Cruzeiro, onde os “rapazitos” exigiram aumento salarial e receberam um espelhinho, ape- nas, como gratificacdo; e Alianga, onde s@ deu um conflito entre uma ope- riria e um mestre que a despediu depois: de té-la engravidado). A greve totalmente espontanea ¢ atinge a totalidade dos tecelées, alfaiates e Nem patria, nem patrol chapeleiros (que, em seu conjunto, somam cerca de 22 mil trabalhado- res). Parece ter havido, também, solidariedade por parte dos carpintei- ros, ourives, sapateiros, ferrovidrios, empregados de bondes e outros. O jornal O Paiz deu amplacobertura ao acontecimento, sendo bastante sim- patico A causa dos grevistas. Deputados, advogados e outros*intelectuais das classes médias do Rio intervém no conflito a favor dos operatios. A greve é derrotada, segundo andlise dos anarquistas, “pela insuficiéncia de solidariedade, pela falta de consciéncia, de orientaco”. Alcancaram-se algumas concessées salariais, mas 700 operdrios considerados responsé- veis pelo conflito foram despedidos (n.33 34). Essa greve, ao que tudo indica, confirma as hipéteses de Boris Fausto a respeito da maior proximi- dade de certos setores sociais intermedidrios em relacdo ao movimento operdrio carioca (imprensa, militares, profissionais liberais, politicos), diferenciando de forma contrastante a realidade do Rio de Janeiro da situa- do paulista: tal aproximagdo entre setores médios e setores operarios define-se pela maior diversificacao da estrutura social no Rio, acompanha- da de uma menor dependéncia de camadas médias e do aparelho repressi- vo local em relacdo ao poder oligarquico, além do peso maior dos seto- res nacionais e do emprego piiblico, dentro do perfil de composicao do operariado carioca.° E logo depois desse conflito, em setembro de 1903, que o grupo editor de O Amigo do Povo se transforma em Centro Libertario de Estu- dos Sociais, como forma de desenvolver outras atividades paralelas de propaganda (“ensino mituo”). Por essa época, 0 jornal publica um poe- ma em espanhol, recitado por S. Collado durante uma festa; em verda~ de, trata-se de uma recriaco, como atesta o titulo (“Poesia reformada e imitada”), Nao apresenta grande novidade em relagdo aos outros poemas libertirios: métrica solene, grandilogiiéncia das imagens, redundancia no tema e na forma (3.35, p.3). Ressalte-se a publicacao, nessa fase, do romance social de Fabio Luz, Ideélogo, no Rio: 0 livro é bastante elogiado pelo jornal. A partir de novembro, anuncia-se o aparecimento, em breve, de uma “revista anarqquista de propaganda revolucionaria”, também no Rio, editada por Elys-io de Carvalho: Kultur. Oferece-se um prémio aos encatregados de listass da subscrico, “um excelente retrato de Emile Zola, 6 Fausto (1976, cf. 2 parte, cap. item sobre “0 ‘trabalhismo’ cariocs’) Francisco Foot Hardman um dos tiltimos tirados pelo genial romancista: fotografia do célebre Nadar, formato grande, comprado em Paris” (n.38, p.3). A revista saird no inicio de 1904, mas tera vida efémera; seu anarquismo seria menos “operario” e mais decadista, filiado aos utopismos ultra-romanticos do fim-de-século. Entre a correspondéncia e periddicos recebidos irregularmente pelo jornal, vindos do exterior, destacam-se as notas referentes 4 América Latina (Argentina, principalmente, Uruguai, Peru, Paraguai, Chile e ou- tros). Os mineiros do salitre de Iquique, por exemplo, de certa feita come- tem a gafe de colocar uma foto de Rodrigues Alves na primeira pagina de seu jornal como homenagem aos “companheiros do Brasil”, sendo pronta- mente rebatidos pelos daqui. De Buenos Aires, onde o anarquismo const tuia certamente um movimento mais forte, so recorrentes as noticias sobre greves, manifestagoes e festas libertarias. Oreste Ristori passa al- gum tempo em Montevidéu, de onde analisa a situacao do movimento operario local.’ O inicio de 1904 é marcado por greves dos trabalhadores maritimos, em Fortaleza e no Rio de Janeiro. No Ceara, pelo menos seis grevistas sio fuzilados pela policia. No Rio, o movimento estende-se aos cocheiros e carroceiros, pressionados por um novo imposto sobre as bestas de tiro (n.42, p.1). Paralelamente, enquanto expulsava um italiano do Rio, sob a acusacio oficial de “vagabundagem”, 0 governo retirava do Congresso, ao mesmo tempo, o projeto de lei que oficializava a expulsio de estrang ros, apés protestos veementes de certos setores da grande imprensa cario- ca. No que concerne & organizacao ope raria, deve-se notar a fusao e uni- ficacao de associacdes de classe, em S20 Paulo, no setor dos chapeleiros e dos gréficos. Nao hé maiores detalhes, mas parece que o movimento de fusao acabou favorecendo e ampliando a influéncia dos anarquistas nesses dois setores do trabalho (n.44, p.4). Realiza-se, a partir de marco, uma rifa em beneficio de O Amigo do Povo e de sua biblioteca. Os prémios s&.0 doados ao jornal: além dos inti- meros folhetos, opiisculos e livros de propaganda anarquista, aparecem 7 Ainda esté por ser feito um estudo pormenoriz_ ado desses contatos latino-americanos ¢ in- ternacionais do movimento anarquista: tal teratativa deveria passar pela dificil reconstru- ‘edo da biografia politica das principais lideran¢a=s anarquistas, com énfase em sua mobilidade ‘geogrifica constante. Nem pétria, nem patréio! alguns objetos nas listas dos prémios que chamam a atencdo por sua sin- gularidade. Sao pequenos sinais de importante significado cultural, pois configuram certos gostos e valores préprios aos operarios (que doam e recebem os prémios). Vejamos alguns exemplos: “um lindo barquinho de adorno”; “uma coleccao de bilhetes postais com gravuras sobre greve geral eo Almanaque de la Revista Blanca para 1902”; “uma bonita aquarela representando uma aventura de estudante”; “um chapéu de casca de arvo- re equatorial, oferecido pelos camaradas chapeleiros T. Soderi e Gismon- do”; “um relégio despertador, oferecido pelo camarada C. Sonetti”; “Lucfola, romance de José de Alencar” e Imperatore e Galileo, “drama em duas partes de Ibsen”; “um violao oferecido por E. Nervo”; “um cinto de couro para mulher, oferecido por Attilio”; “uma estatueta”; ¢, finalmente, © que é considerado pelo jornal como sendo “o prémio gordo”: uma citaral... (n.43, p.4; n.44, p.4; 0.45, p.3; n.50, p.3). A partir do ntimero 45, toda a iiltima pagina do jornal é dedicada a uma extensa “Bibliografia Libertaria”, com titulos variados ¢ referéncias a bibliotecas de propaganda anarquista em varias linguas. Nota-se uma tentativa de incremento aatividade de divulgacao de idéias, o que coincide com 0 reinicio da fase de semanério. Revitalizam-se as “conferéncias contraditérias”, isto é, que incluiam polémicas entre anarquistas ¢ socia- listas, patrocinadas pelos primeiros. No Rio, a 20 de marco, ocorria um fato inusitado: a fundagao da Universidade Popular de Ensino Livre, sob a direcdo de Elysio de Carva- Iho. Contava com um corpo docente bastante eclético eerudito, que in- cluia Silvio Romero, José Verissimo, Rocha Pombo, Fabio Lixz, entre outros. Vicente de Souza, lider operdrio de tendéncias populistas e presi- dente do Centro das Classes Operarias, esteve presente as solenidades. Os discursos inaugurais so publicados na integra. A iniciativa fracassaria meses depois por falta de condigées financeiras. Todo 0 projeto esteve muito distante das condigGes concretas da classe operdriacarioca, a quem especialmente era destinada a nova universidade. Nota-se 0 predominio de intelectuais das classes médias, tanto no que se refere a iniciativa e participagio quanto ao rebuscamento erudito dos discursos (n.48). Em Sio Paulo, sucedem-se conferéncias e festas. Ummomento privi legiado paraa andlise sera, logicamente, 0 Primeiro de Maio. Os anarquis tas criticam o carter “comemorativo” que se dava 4 data, alegando que Francisco Foot Hardman a luta deve ser travada todos os dias: 0 1° de Maio é “um dia que passa como outro qualquer” (n.52, p.1). O proprio desenrolar das festas marca um contraste bem njitido entre Sao Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre, indicando, ao mesmo tempo, a separacao real existente entre as inten= Ges menos festeiras dos anarquistas e acarnavalizacdo da efeméride pelas massas operétias. A partir desse quadro de diferencas, pode-se atentar para a riqueza e variedade de formas que os processos culturais da classe operaria podem assumir, com relacdo a um mesmo evento histérico.* Assim, ainda no 1° de Maio de 1904, do Rio de Janeiro, por exem- plo, escrevia Manuel Moscovo, num tom de contrariedade e ironia: Em breve percebeu (algum burgués) que toda aquela atividade era destinada a preparar coisas mais importantes do que todas as emancipa- es do mundo: os estandartes e as coroas, as bandeiras para as sedes das associagées, as bandas de miisica da policia, exército e marinha, as fitinhas ~ 500 rs. cada uma — para o braco ou para a lapela, as missas por alma de companheiros mortos, e assim por diante. Os trabalhadores interpretam aqui 0 1° de Maio como qualquer festa religiosa. Nestas celebracdes operérias como foi o 1° de Maio, ha estandar- tes com frases alusivas a datas e pessoas (santos), coroas sobre andores carregados ao ombro por criancas, hinos & liberdade, 4 humanidade, a paz universal (outros tantos santos e virgens), inauguragdes com profusao de bandeiras, sess6es solenes, onde oradores oficiais (pregadores d’antemao designados) pregam sermées que terminam exortando os operirios a espe- rar, a ter f6 na sua Santa Causa, a mais justa de quantas existem por esse mundo fora, e que por isso, pela prépria forca da sua justica, hé de triunfar mais tarde ou mais cedo, e entao serd o paraiso... (n.53, p-1) E, depois de criticar a “assimilacao” da data por setores dominantes da sociedade (entre eles, 0 Jornal do Brasil ¢ a maconaria, que realizou sesso solene), prossegue o relato de Manuel Moscoso comprovando a predominancia de tendéncias reform istas e populistas no movimento carioca da época: 8 Seria relevante um trabalho pormenorizado «de histéria social que elaborasse o perfil do comportamento social da classe operéria diarnte do Primeiro de Maio, no decorrer de um longo perfodo hist6rico. Tl clivagem permitiria, certamente, o exame de implicagdes cultu- i as decisivas para os prOprios cortwes de periodizacao da histo Nem patria, nem patraol Uma das sociedades que mais se distinguiram foi a Unido Opeririado Engenho de Dentro: as 5 da manha, salva de 21 tiros; as 10, passeata até a residéncia do deputado Américo de Albuquerque para Ihe entregar 6 diplo ma de sécio benemérito; depois coroas, hino nacional, confetti. A Unio dos Artistas Sapateiros celebrou 4 noite uma sesso solene sendo convidado para falar o dr. Monteiro Lopes, intendente municipal Que honra para os operirios! Os operitios da fabrica de calgado “Globo” fizeram uma manifestacao de apreco aos patrées, por estes nao haverem aderido ao “Centro Industrial dos Fabricantes de Calado”, oferecendo-lhes uma linda cesta de flores artificiais, ao que os patroes corresponderam com um lauto lunch, E hé quem julgue impossivel a harmonia entre o capital e 0 trabalho! A “Federacao Artistica (!) Operdria” celebrou também 0 1° de maio com uma sessio solene, elegendo para presidi-la o politicante dr. [rinew Machado. A emancipacio dos trabalhadores, etc. (n.53, p.1) Jdem Porto Alegre, o quadro é bem distinto, de acordo com a narra- ¢a0 dos festejos, feita também em tom de critica pelo Grupo Anarquista dos Homens Livres. No Sul, as correntes libertérias, naquele momento, aparentemente perdiam a hegemonia do movimento operdrio em razao do maior alcance obtido pelos “socialistas democraticos”: Para verem o que sera o 1° de maio aqui, leiam essa noticia extratda duma folha local. Esse aviltamento dos operarios passaria sem coment4- rio, se ndo nos lembrassemos do famoso apelo lancado pelos socialistas democraticos daqui no 1° de Maio de 1903. Devem estar satisfeitos: tam o seu dia de festa santificado por uma enorme bebedeira. Para comemorar a data de 1° de Maio, os operarios das oficinas da Companhia Progresso Industrial preparam animadas festas, durante as quais sera observado 0 seguinte programa: 1°—As 6 hrs. da maha soltar-se-4 uma girdndola de foguetes em saudacaio a gloriosa data; 2° ~ As 6 1/2, reunido dos operarios defronte a fabrica; 3° - As 7, partida do préstito com o estandarte da faibrica a sua frente € uma banda de mtisica, seguindo em direco ao Prado, onde foi escolhido um aprazivel local para as diverses a se efetuarem durante o dia; 4° — Chegada ao Prado, onde havera churrasco, vinho e cerveja; Diversoes: ~ Corridas em sacos; Jogo da frigideira; A galinha cega; 0 pau ensebado; O duelo de Cristéfalo; - seguindo-se outras diversées que nio é preciso mencionar; Francisco Foot Hardman 5°~ Ao escurecer, regresso do préstitocom sua banda de misica e ilumina- o a fogos de bengala, feitos especialmente para esta festa, e nesta ordem iré cumprimentar diversas redag6es de jornais, depois do que seguir para a praga, ao lado da fabrica, onde assistiré a subida de um balao nunca visto nesta capital, expressamente feito pelo habil profissional sr. Manoel M. das Neves, que gentilmente concorre para o brilhantismo destes festejos. O diretor da festa seré o st. Caetano G. da Fonseca, chefe das oficinas. (.53, p.1) Fisionomia ainda oposta, tanto as festas cariocas quanto gatichas, verifica-se em Sao Paulo onde, ao contrario da mera diversio pontilhada de homenagens oficiais, predomina o tom de austeridade inerente aos propésitos de propaganda libertéria dos anarquistas. Vejamos essas passa- gens do relato do préprio jornal: Passou o 1° de maio deixando de si boa recordac’o, e a idéia de que devia repetir-se a todos os dias e ndo somente cada ano. Diremos rapidamente quanto por parte dos anarquistas foi feito. Na noite de 30 de abril, no Eldorado, © grupo filodramético juvenil representou discretamente, mesmo bastante melhor que 0 costume entre ‘0s nossos amadores, as duas pequenas pecas de P. Gori - “Primo Maggio” e “ideale”. Nos intervalos falaram os camaradas A. Bandoni e O. Ristori; 0 primeiro, sobre 0 1° de Maio, procurando o seu verdadeiro significado, mostrando como ele foi mistificado e inutilizado e como a ago deve ser quotidiana e ndo com datas prefixas; e 0 segundo, ocupando-se particular- mente da mulher, do casamento da educacio infantil. A assisténcia era numerosfssima, ¢ composta em partes aproximada- mente iguais pelos dois sexos. Na mesma noite, no teattinho do Cambuci, esse distante arrabalde onde contamos tantas simpatias, foi tamabém representado o “Primo Maggio” Por alguns mogos de boa vontade, que foram bem sucedidos. Falou depois © amigo G. Sorelli, explicando a origem e o significado do Primeiro de Maio, Foi outra enchente, predominan.do o elemento feminino. No dia 1° de Maio, as 3 hr. da tarde2, comecou o companheiro Ristori a sua anunciada conferéncia, perante um. auditério composto sem diivida de mais de 400 pessoas. Como a conferénciza fora bem anunciada assistiu grande nimero de pessoas estranhas as nossa. idéias, Nem pétria, nem patréo! Ristori ocupou-se do governo, exemplificando com as oligarquias repu> blicanas da Argentina, da América do Norte e do Brasil, cujas facanhas siio jd célebres. Ninguém aceitou 0 contraditério. No mesmo dia, Bandoni foi a Piracicaba realizar uma conferéncia, con- seguindo ser ouvido com interesse por uma boa concorréncia, Acrescentemos que em todos esses atos se distribuifram profusamente jornais e optisculos em portugués e italiano, e teremos o balango do dia. Boa propaganda, que deve ser continuada todos os dias. (n.53, p.2) J&em meados de 1904, a propaganda anarquista tentava penetrar 0 interior paulista, mormente Piracicaba. Enquanto isso, iniciavam-se as atividades da Escola Libertaria “Germinal!”, no Bom Retiro, dedicada & educa¢ao dos filhos dos operdrios. O jornal divulga a existéncia da escola, mas nao traz grandes informes sobre seu funcionamento interno, em ter- mos mais concretos. Esse tipo de experiéncia é dos mais relevantes na configuracao de uma cultura de resisténcia, na medida em que pode ser tomado como indicador das praticas socioculturais que tentam reafitmar uma autonomia ideolégica da classe operdria ante os fatores de consenso da hegemonia dominante. A respeito dessas escolas libertarias, o jornal A Lanterna (Sao Paulo) chegou a fornecer uma cobertura mais ampla, in- cluindo dados sobre as atividades didaticas e contendo, inclusive, algu- mas fotografias de grupos de criangas operdrias posando ao lado de seu mestre anarquista. E também em meacios de 1904 que surge, em Sao Paulo, 0 jornal La Battaglia, editado em italiano, como novo marco da atividade libertaria. No Rio, edita-se 0 romance social Regeneragio, de Curvello de Mendonca: © livro, de tendéncia tollstoiana (no que diz respeito a visio de mundo), € elogiado pela critica anarquista. Aparentemente, o anarquismo conse- Buia jdmajor penetrac4.. Mesmo assim, havia dificuldades e diferencas; a critica a uma festa op-erdria dos graficos, em Sao Paulo, por exemplo, assinala algumas divergéncias dos anarquistas nesse setor: O drama “Amor e Desventura” (que titulo!), arcaico dramalhao de capa e espada, com dauelos e grandes frases grotescamenteherdicas, borra- cheira idiota, capaz de fazer evacuar uma sala cheia de gente de born gosto is depressa do que= uma carga de cavalaria com 0 “salvese quem puiler” Francisco Foo! Hardman clos momentos de panico, pode servirpara muita coisa, inclusive para como ver as pedras, mas para educar os asiistentes nem por sombras! Nem yale a pena falar da comédia e do baile ...(n.57, p-4) No Rio de Janeiro, por outro lado, a situacao parecia ser ainda mals lamentavel, do lado dos anarquistas. Uma carta de Luis Magrassi, que visita o Rio depois de 12 anos de auséncia, reclama da situagao em que se encontra a classe operdria carioca: A maioria embrutecida pelo trabalho excessivo, pelo Alcool, pelo jogo, pela prostituicéo, imbuida de mil prejuizos. (n.62, p.3) Em setembro e em novembro de 1904, o jornal nao circula, em raziio das crescentes dificuldades financeiras. O tiltimo mimero explicita-se como tal. Aomesmo tempo, o projeto de uma nova revista, Aurora, édivul- gado. As redefinicdes do grupo editor ocorrem em fun¢ao do meio opera- rio que os anarquistas visavam atingir: Entre os camaradas que nos tém incitado a continuar, alguns quereriam um periddico de propaganda elementar, comezinha, local, ocupando-se dos fatos da vida brasileira, das prepoténcias das fabricas e das fazendas, etc,; outros, parecendo-lhes que O Amigo do Pavo tem feito mais obra de revista do que de orgio de propaganda num meio atrasado como o nosso, aconse- Iham-nos a publicagao duma revista; outros ainda desejariam a revista e 0 quinzenario de propaganda popular. (n.63, p-1) A diferenca de condigao entre Rio de Janeiro e Sao Paulo é realcada: No Rio existe j4 O Libertério; e esté bem porque lé numeroso 0 proletariado brasileiro e portugués, € é escandalosa a exploragio politica. (.63, p.1) Assim, “as necessidades do meio” e o déficit acumulado precipitam a criagao de Aurora. Possivelmente de tiragem mais reduzida, a revista continuaria a tradigao de precariedade material de O Amigo do Povo. Ten- tou manter um raio amplo de distribu icdo, pela colaborasao isolada de companheiros anarquistas residentes fo ra de Sao Paulo: Jundiai, Sorocaba, Santos, Piracicaba, Ribeirdo Preto, no imnterior paulista e Rio de Janeiro ¢ Curitiba. O problema maior parece localizar-se no contetido da revista, Nem pétria, nem patrol feita quase cem por cento & custa de artigos doutrinarios traduzidos, afora as matérias do proprio Neno Vasco. Até as pecas teatrais sao tradugées, como é 0 caso de A escala (“Fantasia num acto por Eduardo Norés” ~ og prenomes dos autores também sao traduzidos), drama romanesco que se passa em Paris, envolvendo duque, servo, banqueiro e um cio. Os te- mas tornam-se mais ecléticos, em toda a revista, dando lugar a um artigo de Antonio Piccarolo (“O espiritismo”) ou a proposta de uma lingua inter- nacional, a partir das notas musicais (“O solrésol”, de C. Papillon). A maioria das informacGes diz respeito ao movimento operario inter- nacional (Russia, Itdlia, Franga), pelas sedes “Volta ao mundo em 30 dias” (assinada por Lucifer) e “Folheandoa imprensa”. Algumas notinhas sobre o Brasil aparecem na tiltima pagina, de maneira esparsa e ligeira, pelo, por exemplo, “Registro de entrada”, relativo a periédicos (apareci- mento de O Alfaiate, no Rio, e de Accordem!, também no Rio, érgao dos carpinteiros ~ cf. n.5, p.16, junho/1905), ou ainda, por exemplo, das “Notas e avisos” (Grupo Dramitico “Primeiro de Maio”, de Santos, de- seja intercambio de pecas teatrais com outros grupos ~ cf. n.5, p.16). Nessa fase, provavelmente, a cultura anarquista no Brasil permane- cia relativamente afastada da cultura das classes operdrias emergentes como um todo, alcancando uma maior proximidade apenas em Sao Paulo. Dentro do imenso mosaico descentralizado do operariado nascente, o espaco ocupado pelo anarquismo, em suas varias modalidades, era ainda diminuto, aquela altura. Essa constatacdo, porém, nao deve negligenciar o esforco real desenvolvido pelas lutas libertarias. Dentro dos limites de uma reptiblica oligirquica e de uma sociedade avessa as vicissitudes do mundo operario, a resisténcia anarquista representava uma voz, de rele- vancia considerdvel, a perturbar o exercicio tranqiiilo da hegemonia das classes dominantes.

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