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1- Negrinha - Monteiro Lobato Negrinha era uma pobre érfa de sete anos. Preta? N&o; fusca, mulatinha escura, de cabelos rugos € olhos assustados. Nascera na senzala, de mae escrava, e seus primelros anos vivera-os pelos cantos escuros da cozinha, sobre velha estelra e trapos imundos. Sempre escondida, que a patroa nao gostava de criangas. Excelente senhora, a patroa. Gorda, rica, dena do mundo, amimada dos padres, com lugar certo na igreja e camarote de luxo reservado no céu. Entaladas as banhas no trono (uma cadelra de balango na sala de jantar), al bordava, recebia as amigas € © vigério, dando audiéncias, discutindo o tempo. Uma virtuosa senhora em suma — “dama de grandes virtudes apostélicas, esteio da religiéo e da moral”, dizia o reverendo. Otima, a dona Inacia. Mas néo admitia choro de ctianga. Ai! Punha-lhe os nervos em came viva. Vidva sem filhos, néo a calejara o choro da carne de sua care, e por isso ndo suportava o choro da came alheia. Assim, mal vagia, longe, na cozinha, a triste crianga, gritava logo nervosa: — Quem é a peste que esta chorando ai? Quem havia de ser? A pia de lavar pratos? © pil&o? © forno? A mée da criminosa abafava a boquinha da filha € afastava-se_com ela para os fundos do quintal, torcendo- lhe em caminho beliscdes de desespero. —Cale a boca, diabo! No entanto, aquele choro nunca vinha sem razéo. Fome quase sempre, ou frio, desses que entanguem pés e méos e fazem-nos doer... Assim cresceu Negtinha — magra, atrofiada, com os olhos eternamente assustados. Orfé 0s quatro anos, por ali ficou feito gato sem dono, levada a pontapés. Néo compreendia 1 idéia dos grandes. Batiamthe sempre, por ago ou omissdio. A mesma coisa, o mesmo ato, a mesma palavra provocava ora risadas, ora castigos. Aprendeu a andar, mas quase no andava. Com pretextos de que as soltas reinaria no quintal, estragando as plantas, a boa senhora_punha-a na sala, ao pé de si, num desvéo da porta. —Sentadinha ai, ¢ bico, hein? Negrinha imobilizava-se no canto, horas e horas. — Bragos cruzados, jé, diabo! Cruzava os bracinhos a tremer, sempre com o susto nos olhos. E 0 tempo corria. E 0 relégio batia uma, duas, trés, quatro, cinco horas — um cuco téo engragadinho! Era seu divertimento vé-lo abrir a janela e cantar as horas com a bocarra vermelha, arrufando as casas. Sortia-se entéo por dentro, feliz um instante. Puseram-na depois a fazer croché, € as horas se Ihe jam a espichar francinhas sem fim. Que idéia faria de si essa crianga que nunca ouvira uma_palavra de carinho? Pestinha, diabo, corvja, borata descascada, bruxa, pata-choca, pinto gorado, mosca-morta, sujeira, bisca, trapo, cachortinha, coisa-ruim, lixo — néo finha conta o némero de apelidos com que a mimoseavam. Tempo houve em que foi a bubénica. A epidemia andava na berra, como a grande novidade, e Negrinha viu-se logo apelidada assim — por sinal que chou linda a palavra. Perceberam-no e suprimiram-na da lista. Estava escrito que ndo teria um gostinho sé na vida — nem esse de personalizar a peste... © corpo de Negrinha era tatuado de sinais, cicatrizes, vergées. Batiam nele os da casa todos os dias, houvesse ou dio houvesse motivo. Sua pobre came exercia para os cascudos, cocres € beliscées a mesma atragéo que o ima exerce para 0 ago. Méos em cujos nés de dedos comichasse um cocre, era mao que se descarregaria dos fiuidos em sua cabega. De passagem. Coisa de rire ver a careta... A excelente dona Indcia era mestra na arte de judiar de criangas. Vinha da escravidéo, fora senhora de escravos — e daquelas ferozes, amigas de ouvir cantar o bolo e estalar o bacalhau. Nunca se afizera ao regime novo — essa indec€ncia de negro igual a branco e qualquer coisinha: a policia! “Qualquer coisinha”: uma mucama assada ao foro porque se engragou dela o senhor; uma novena de relho porque disse: "Como € ruim, a sinha!” © 13 de Maio tirou-the das méos 0 azorrague, mas ndo Ihe tirou da alma a gana. Conservava Negrinha em casa como remédio para os frenesis. Inocente derivativo: — Ail Como alivia a gente uma boa roda de cocres bem fincados!. ha de contentarse com isso, judiaria miéda, os niqueis da crueldade. Cocres: mao fechada com raiva e nés de dedos que cantam no coco do paciente. Puxdes de orelha: © torcido, de despegar a concha (bom! born! bom! gostoso de dar) e o a duas méos, 0 sacudido. A gama inteira dos beliscdes: do miudinho, com a ponta da unha, 4 torcida do umbigo, equivalente ao puxdo de orelha. A esfregadela: roda de tapas, cascudos, pontapés e safanées a uma — divertidissimo! A vara de marmelo, flexivel, cortante: para "doer fino” nada melhor! Era pouco, mas antes isso do que nada. La de quando em quando vinha um castigo maior para desobstruir 0 figado e matar as saudades do bom tempo. Foi assim com aquela histéria do ovo quente. Nao sabem! Ora! Uma criada nova furtara do prato de Negtinha — coisa de rir — um pedacinho de carne que ela vinha guardando para o fim. A crianga néo sofreou a revolta — atirou-Ihe um dos nomes com que a mimoseavam todos os dias. — "Peste?" Espere ail Vocé vai ver quem é peste —e foi contar o caso 4 patroa. Dona Inécia estava azeda, necessitadissima de derivativos. Sua cara iluminou-se. — Ev curo ela! — disse, e desentalando do trono as banhas foi para a cozinha, qual perua choca, a rufar as saias. —Traga um ovo. Veio 0 ovo. Dona Indcia mesmo pé-lo na agua a ferver; e de maos 4 cinta, gozando-se na prelibagdo da tortura, ficou de pé uns minutos, & espera. Seus olhos contentes envolviam a misera crianga que, encolhidinha a um canto, aguardava trémula alguma coisa de nunca visto. Quando 0 ove chegou a ponto, a boa senhora chamou: —Venha cé! Negrinha aproximou-se. — Abra a boca! Negrinha abriv aboca, como 0 cuco, e fechou os olhos. A patroa, entao, com uma colher, firou da dgua “pulando” o ovo e és! na boca da pequena. E antes que o urro de dor saisse, suas méos amordagaram-na até que o ovo arrefecesse. Negrinha urrou surdamente, pelo nariz. Esperneou. Mas s6. Nem os vizinhos chegaram a perceber aquilo, Depois: — Diga nomes feios aos mais velhos outra vez, ouviu, peste? E a virtuosa dama voitou contente da vida para o trono, a fim de receber o vigario que chegava. — Ah, monsenhor! N&o se pode ser boa nesta vida... Estou criando aquela pobre 6rfa, filha da Ceséria — mas que trabalheira me dé! —Acaridade é a mais bela das virtudes cristas, minha senhora —murmurou 0 padre. im, mas cansa.. — Quem dé aos pobres empresta a Deus. Aboa senhora suspirou resignadamente. —Inda é 0 que vale.. Certo dezembro vieram passar as férias com Santa Indcia duas sobrinhas suas, Pequenotas, lindas meninas louras, ricas, nascidas e criadas em ninho de plumas. Do seu canto na sala do trono, Negrinha viu-as irromperem pela casa como dois anjos do céu — alegres, pulando e rindo com a vivacidade de cachortinhos novos. Negrinha olhou imediatamente para a senhora, certa de véla armada para desferir contra os anjos invasores 0 raio dum castigo tremendo. Mas abriu a boca: a sinhé ria-se também... Qué? Pois no era crime brincar? Estaria tudo mudado — e findo 0 seu inferno — e aberto 0 céu? No enlevo da doce iluséio, Negrinha levantou-se e veio para a festa infantil, fascinada pela alegria dos anjos. Mas a dura ligéo da desigualdade humana Ihe chicoteou a alma. Beliscéio no umbigo, e nos ouvides, 0 som cruel de todos os dias: "J4 para o seu lugar, pestinhal Nao se enxerga”? Com légrimas dolorosas, menos de dor fisica que de anglstia moral —sofrimento nove que se vinha acrescer aos j& conhecidos — a triste crianga encorujou-se no cantinho de sempre. — Quem é, titia? — perguntou uma das meninas, curiosa. — Quem hé de ser? — disse a fia, num suspiro de vitima. — Uma caridade minha. Nao me cortijo, vivo criando essas pobres de Deus... Uma érfé. Mas brinquem, filhinhas, a casa é grande, brinquem por af afora: — Brinquem! Brincar! Como seria bom brincar! — refletiu_com suas lagrimas, no canto, a dolorosa martizinha, que até ali sé. brincara em imaginagéio com 0 cuco. Chegaram as malas logo: — Meus brinquedos! — reclamaram as duas meninas, Uma criada abriu-as e tirou os brinquedos. Que maravilha! Um cavalo de paul... Negrinha arregalava os olhos. Nunca imaginara coisa assim téo galante. Um cavalinho! E mais... Que é aquilo? Uma criancinha de cabelos amarelos... que falava "mamé’”... que dormia.. Era de éxtase 0 olhar de Negrinha. Nunca vira uma boneca e nem sequer sabia o nome desse brinquedo. Mas compreendeu que era uma crianga arfificial — E feita?... — perguntou, extasiada. E dominada pelo enlevo, num momento em que a senhora saiu da sala a providenciar sobre a arrumagéo das meninas, Negrinha esqueceu © beliscdio,0 ovo quente, tudo, e aproximou-se da criatura de louga. Olhou-a com assombrado encanto, sem|eito, sem dnimo de pegéla. ‘Asmeninas admiraram-se daquilo. —Nunea viv boneca? — Boneca? — repetiu Negtinha. — Chama-se Boneca? Riram-se as fidalgas de tanta ingenuidade. — Como € boba! — disseram. — E vocé como se chama? —Negrinha. ‘As meninas novamente torceram-se de riso; mas vendo que 0 éxtase da bobinha perdurava, disseram, apresentando-Ihe a boneca —Peguel Negrinha olhou para os lados, ressabiada, como coragéo aos pinotes. Que ventura, santo Deus! Seria possivel? Depois pegou a boneca. E muito sem jeito, como quem pega o Senhor menino, sortia para ela para as meninas, com assustados relangos de olhos para a porta. Fora de si, iteralmente.. . era como se penetrara no céu € os anjos @ rodeassem, e um filhinho de anjo Ihe tivesse vindo adormecer ao colo. Tamanho foi o seu enlevo que néo viu chegar a patroa, j4 de volta. Dona Indcia entreparou, feroz, esteve uns instantes assim, apreciando a cena. Mas era tal a alegria das héspedes ante a surpresa extética de Negrinha, e t&o grande a forga lmadiante da felicidade desta, que o seu duro coragdo afinal bambeou. E pela primeira vez na vida foi mulher. Apiedou-se. Ao percebé-la na sala Negrinha havia tremido, passando-Ihe num relance pela cabega a imagem do ovo quente e hipéteses de castigos ainda piores. E incoercive pavor assomaram-|he aos olhos. Falhou tudo isso, porém. O que sobreveio foi a coisa mais inesperada do mundo — estas palavras, as primeiras que ela ouviu, doces, na vida — V&o todas brincar no jardim, e vé vocé também, mas veja Ia, hein? Negrinha ergueu os olhos para a patroa, olhos ainda de susto e terror. Mas néo viu mais a fera antiga. Compreendeu vagamente e sorriu, Se alguma vez a gratidao soriu na vida, foi naquela surrada carinha... Varia a pele, a condigéo, mas a alma da crianga é a mesma — na princesinha e na mendiga. E para ambos é a boneca o supremo enlevo, Dé a natureza dois momentos divinos & vida da mulher: 0 momento da boneca — preparatétio —, e o momento dos filhos — definitive, Depois disso, esta extinta a mulher. Negtinha, coisa humana, percebeu nesse dia da boneca que finha uma alma. Divina ecloséo! Surpresa maravilhosa do mundo que trazia em si e que desabrochava, final, como fulgurante flor de luz. Sentiu-se elevada 4 altura de ente humano. Cessara de ser coisa — e doravante ser-lhe-ia impossivel viver a vida de coisa. Se ndo era coist sentia! Se vibrava! Assim foi — e essa consciéncia a matou. Terminadas as férias, partiram as meninas levando consigo a boneca, € a casa voltou ao ramerro habitual. $6 n&o voltou a si Negrinha. Sentia-se outra, inteiramente transformada. Dona Indcia, pensativa, j a no atazanava tanto, e na cozinha uma criada nova, boa de coragao, amenizavarlhe a vida. Negrinha, néo obstante, caira numa tristeza infinita. Mal comia e perdera a expressdio de susto que finha nos olhos. Trazia-os agora nostdlgicos, cismarentos. Aquele dezembro de férias, luminosa rajada de céu trevas adentro do seu doloroso infemo, envenenara-a. Brincara ao sol, no jardim. Brincaral,.. Acalentara, dias seguidos, a linda boneca loura, to boa, téo quieta, a dizer mamé, a cerrar os olhos para dormir. Vivera realizando sonhos da imaginag&o. Desabrochara-se de alma. Morreu na esteiinha rota, abandonada de todos, como um gato sem dono. Jamais, entretanto, ninguém morreu com maior beleza. O deliio rodeou-a de bonecas, todas louras, de olhos azvis. E de anjos... E bonecas e anjos remoinhavam-lhe em torno, numa farandola do céu. Sentia-se agarrada por aquelas maozinhas de louga — abragada, rodopiada. Veio a tontura; uma névoa envolveu tudo. E tudo regirou em seguida, confusamente, num disco. Ressoaram vozes apagadas, longe, e pela ultima vez 0 cuco Ihe apareceu de boca aberta. Mas, imével, sem rufar as asas. Foi-se apagando. O vermelho da goela desmaiou... E tudo se esvaiu em trevas. Depois, vala comum. A terra papou com indiferenga aquela carnezinha de terceira — uma miséria, trinta quilos mal pesados. E de Negrinha ficaram no mundo apenas duas impressées. Uma cémica, na meméria das meninas ricas. — "Lembras-te daquela bobinha da fitia, que nunca vira boneca?" Outra de saudade, no né dos dedos de dona Iné — "Como era boa para um cocrel.. lagrimas de 2 - BUGIO MOQUEADO - Monteiro Lobato —Uno! Ugarte.. —Dos! Adriano.. —Cinco.. Vilabona.. Mé colocagGo! Minha pule é a 32 e ja de sida 0 azar me pe na frente Ugarte... Ugarte furdo. Na quiniela anterior foi quem me estragou 0 jogo. Querem ver que também me estraga nesta? —Mucho, Adriano! Qual Adriano, qual nada! Nao escorou 0 saque, e Id esta Ugarte com um ponto ja feito, Entra Genta agora? Ah, é outro ponto seguro para Ugarte. Mas quem sabe se com uma torcida... — Mucho, Genta! Raio de azar! — Genta "malou" no saque. Entra agora Melchior... Este Melchior 4s vezes faz 0 diabo. Bravos! Esté agUentando... Isso, rijo! Uma cortadinha agora! Buena! Buena! Outra agora... Oh!... Deu na lata! Incrivel... Se 0 leitor desconhece o jogo da pelota em cancha publica — Front&o da Boo-Vista, por exemplo, nada pescard desta giria, que é na qual se entendem todos os aficionados que jogam em pules ou “torcem”. Eu jogava, e portanto, falava e pensava assim. Mas como vi meu jogo perdido, desinteresseime do que se passava na cancha e pusme a ouvir a conversa de dois sujeitos velhuscos, sentados 4 minha esquerda. ... C0isa que vocé nem acredita, dizia um deles. Mas é verdade pura. Fui testemunha, vi Via méirtir, branca que nem morta, diante do horrendo prato...” “Homendo prato?” Aproximei-me dos velhos um pouco mais ¢ pus-me de ouvidos, alerta — “Era longe a tal fazenda”, continuou o homem. "Mas la em Mato-Grosso tudo é longe. Cinco léguas é “ali”, com a ponta do dedo. Este troco mitido de quildmetros, que vocés sam por ca, em Mato-Grosso ndo tem curso. E cada estiréo! “Mas fui ver 0 gado. Queria arredondar uma ponta para vender em Barretos, e quem me tinha os novilhos nas condigées requeridas, de idade e prego, era esse Coronel Teoténio, do Tremedal. “Encontrei-o na mangueira, assistindo & domagao dum potro — zaino, ainda me lembro. E, palavra d’honra! nao me recordo de ter esbarado nunca tipo mais impressionante. Barbudo, olhinhos de cobra muito duros e vivos, testa entiotada de rugas, ar de carrasco. Pensei comigo: Dez mortes no minimo. Porque Id é assim. No hd soldados rasos. Todo mundo traz galées...e aquele, ou muito me enganava ou finha divisas de general. “Lembrou-me logo o célebre Panfilo do Aio Verde, um de “doze galées”, que “resistiv” ao tenente Galinha e, gragas a esse benemérito “escumador de sertSes", purga a esta hora no tacho de Pedro Botelho os crimes cometidos. “Mas, importava-me Id a feral — eu queria gado, pertencesse a Belzebu ou a Séo Gabriel. Expus-the 0 negécio e partimos para o que ele chamava a invernada de fora. “La escolhio lote que me convinha. Apartamo-lo e ficou tudo assentado. “De volta do rodeio caia a tarde e eu, almogado as oito da manhé e sem café de permeio até aquel’hora, chiava numa das boas fomes da minha vida. Assim foi que, ‘apesar da repulsdo inspirada pelo urutu humano, néo lhe rejeitel o jantar oferecido. “Era um casaréo sombrio, a casa da fazenda. De poucas janelas, mal iluminado, mal arejado, desagradavel de aspectos e por isso mesmo toante na perfei¢&io com a cara e 0s modos do proprietario. Traste que se no parece com o dono é roubado, diz muito bem © povo. A sala de jantar semelhava uma alcova. Além de escura e abafada, rescendia a um cheiro esquisito, nauseante, que nunca mais me saiu do nariz— cheiro assim de came mofada.. "Sentamo-nos & mesa, eu € ele, sem que viva alma surgisse para fazer companhia. E como de dentro néo viesse nenhum rumor, conclui que o urutu morava sozinho — solteiro ou vibvo. Interpela-lo? Nem por sombras. A secura e a mé cara do facinora néo davam azo & minima expansdo de familicridade: e, ou fosse real ou efeito do ambiente, pareceu- me ele inda mais torvo em casa do que fora em pleno sol. “Havia na mesa feijéo, arroz e lombo, além dum misterioso prato coberto em que no se buliu. Mas a fome é boa cozinheira. Apesar de engulhado pelo bafio a mofo, pus de lado © nariz, achei tudo bom e entrei a comer por dois. "Correram assim os minutos. “Em dado momento 0 urutu, tomando a faca, bateu no prato trés pancadas misteriosas. Chama a cozinheira, calculei ev. Esperou um bocado e, como néo aparecesse ninguém, repetiv 0 apelo com certo frenesi. Atenderam-no desta vez. Abriu-se devagarinho uma porta e enquadrou-se nela um vulto branco de mulher. "Sonémbula? ive essa impressdo. Sem pingo de sangue no rosto, sem fulgor nos olhos vidrados, cada- vérica, dir-se-ia vinda do timulo naquele momento. Aproximou-se, lenta, com passos de autémato, e sentou-se de cabega baixa. “Confesso que esfriel. A escuridéo da alcova, o ar diabélico do urutu, aquela morta-viva morre-morrendo, a meu lado, tudo se conjugava para arrepiar-me as cames num calafrio de pavor. Em campo aberto néo sou medroso — ao sol, em luta franca, onde vale a faca ou 0 32, Mas escureceu? Entrou em cena o mistério? Ah! — bambeio de permas e tremo que nem geléia! Foi assim naquele dia "Mal se sentou a morta-viva, 0 marido, sorrindo, empurou para o lado dela o prato misterioso e destampou-o amavelmente. Dentro havia um petisco preto, que néo pude identificar. Ao vé-lo a mulher estremeceu, como horrorizada: — "Sirva-se!” disse o marido. “N&o sei porque, mas aquele convite revelava uma tal crueza que me cortou 0 coragéo como navalha de gelo. Pressenti um horror de tragédia, dessas horrorosas tragédias familiares, vividas dentro de quatro paredes, sem que de fora ninguém nunca as suspeite, Desd'ai nunca ponho os olhos em certos casarées sombrios sem que os imagine povoados de dramas horrendos. Falam-me de hienas. Conhego uma: o homem. "Como a morta-viva permanecesse imével, o urutu repetiv o convite em voz baixa, num. tom cortante de ferocidade glacial, — "Sitva-se, faga 0 favor!” E fisgando ele mesmo a nojenta coisa, colocou-a gentilmente no prato da mulher. “Novas fremuras agitaram a maértir. Seu rosto macilento contorceu-se em esgares e repuxos nervosos, como se © tocasse a corrente elétrica. Ergueu a cabega, dilatou para mim as pupilas vitreas e ficou assim uns instantes, como 4 espera dum milagre impossivel. E naqueles olhos de desvario li o mais pungente grito de socorro que jamais a afligéo humana calou... "O milagre n&o veio — infame que fui! — e aquele lampejo de esperanga, o derradeiro talvez que Ihe brilhou nos olhos, apagou-se num lancinante cerrar de palpebras. Os tiques nervosos diminuiram de freqU€ncia, cessaram. A cabega descaiu-the de novo para o s € a mortavviva, revivida um momento, reentrou na morte lenta do seu marasmo sonambUlico. “Enquanto isso, 0 urutu espiava-nos de esguelha, € ria-se por dentro venenosamente.. "Que jantar! Verdadeira ceriménia funebre transcorrida num escuro cércere da Inq Nem sei como digeri aqueles feljes! “A sala tinha #rés portas, uma abrindo para a cozinha, outra para a sala de espera, a terceira para a despensa. Com os olhos jé afeltos & escuriddo, eu divisava melhor as coisas; enquanto aguardévamos o café, coros pelas paredes e pelos méveis, distraidamente. Depols, como a porta da despensa estivesse entreaberta, enfiei-os por ela @ dentro. Vi 16 umas brancuras pelo cho sacos de mantimento — e, pendurada a um gancho, uma coisa preta que me intrigou. Manta de came seca? Roupa velha? Estava eu de rugas na testa a decifrar a charada, quando 0 urutu, percebendo-o, siivou em tom cor tante: —"“E curioso? O inferno esta cheio de curiosos, mogo... “Vexadissimo, mas sempre em guarda, achei de bom conselho engolir 0 insulto € calar- me. Calei-me. Apesar disso o homem, depois duma pausa, continuou, entre manso e irénico: — "Cosas da vida, mogo. Aqui a patroa pela-se por um naco de bugio moqueado, e ali dentro ha um para abastecer este pratinho... Ja comeu bugio moqueado, mogo? — "Nunca! Seria o mesmo que comer gente.. — "Pols ndio sabe 0 que perdel... flosofou ele, como um diabo, a piscar os olhinhos de cobra. Neste ponto o jogo interrompeu-me a estéria. Melchior estava colocado e Gaspar, com tr8s pontos, sacava para Ugarte. Houve luta; mas um “camarote” infeliz de Gaspar deu o Ponto a Ugarte. “Pintou” a pule 13, que eu nao tinha. Jogo vai, jogo vem, “despintou" a 13 e deu a 23. Pela terceira vez Ugarte estragava-me 0 jogo. Quis insistir mas néo pude. A estéria estava no apogeu e antes “perder de ganhar” a préxima quiniela do que perder um capitulo da tragédia. Fiquei no lugar, muito atento, a ouvir o velhote. “Quando me vi na estrada, longe daquele antro, criei alma nova. Fiz cruz na porteira. “Aqui nunca mais! Credo!” e abri de galopada pela noite adentro. Passaram-se anos. “Um dia, em Trés Coragées, tomel a servigo um preto de nome Zé Esteves. Traquejado da vida e sério, meses depols virava Esteves a minha mao direlta. Para um rodeio, para curar uma bicheira, para uma comisséo de confianga, néo havia outro. Negro quando acerta de ser bom vale por dois brancos. Esteves valia por quatro. “Mas néo me bastava. O movimento crescia € ele sozinho néo dava conta. Empenhado em descobrir um novo auxiliar que o valesse, perguntel-he uma vez: — "No teria vocé, por acaso, algum irmao de sua forga? “Tive, respondeu o preto, tive o Leandro, mas 0 coltado nao existe mals. —"De que morreu? —"De morte matada. Foi morto a rabo de tatu... e comido. —"Comido? repeti com assombro. — “E verdade. Comido por uma mulher. A estéria complicava-se e eu, aparvalhado, esperei a decifragéo. — “Leandro, continuou ele, era um rapaz bem apessoado e bom para todo servico. Trabalhava no Tremedal, numa fazenda em... “...€m Mato-Grosso? Do Coronel Teoténio? — Isso! Como sabe? Ah, esteve ld! Pols dé gragas de estar vivo: que entrar na casa do car- rasco era facil, mas sair? Deus me perdoe, mas aquilo foi a maior peste que o raio do diabo do barzabu do canhoto botou no mundol.. —O urutu, murmurei, recordando-me. Isso mesmo. — "Pols 0 Leandro — no sei que inirigante malvado inventou que ele... que ele, perdéo da palavra, andava com a patroa, uma senhora muito alva, que parecia uma santa. O que houve, se houve alguma coisa, Deus sabe. Para mim, tudo foi feitigaria da Luduina, igdo. aquela mulata amiga do coronel. Mas, inocente ou nGo, foi que o pobre do Leandro acabou no tronco, lanhado a chicote. Uma novena de martirio — lepte! lepte! E pimenta em cima... Morreu. E depois que morreu foi moqueado. "eee" — “Pols entéo! Moqueado, sim, como um bugio. E comido, dizem. Penduraram aquela came na despensa e todos os dias vinha & mesa um pedacinho para a patroa comer. Mudei-me de lugar. Fui assistir ao fim da quiniela a cingdenta metros de distancia. Mas néo pude acompanhar o jogo. Por mais que arregalasse os olhos, por mais que olhasse para a cancha, no via coisa nenhuma, e até hoje no sei se deu ou néo a pule 13. Monteiro Lobato, 1925

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