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capituto 1Q STC Cae Me MAN TELCOS * Jodo Roberto Oliveira do Nascimento * Franco Maria Lajolo Objctiv Este capitulo tem por objetivo apresentar conceitos bésicos relativos 8 biotecnologia de alimentos, com énfase no desenvolvimento de matérias-primas vegetais derivadas de ‘organismos geneticamente modificados. As principais etapas envolvidas no desenvolvimento desses alimentos, assim como alguns exemplos de variedades de plantas com beneficios agronémicos ou nutricionais, so apresentados. Ao final sio discutidas questoes relativas & seguranca e a rotulagem desses alimentos. Introducao A biotecnologia pode ser conceituada, de modo bastante abrangente, como 0 conjunto de tecnologias de manipulago de seres vivos, tecidos ou organelas para obtengao de produ- tos ou processos de alguma utilidade. No contexto alimentar, exemplos tipicos de produtos bioieenoldgicos sio os alimen- tos obtidos por fermentagao, como queljo, vinho, pio ¢ cerveja. Nesses casos, 0 processo natural de fermentagio microbiana ¢ utilizado com o propésito de modificar a compo- sigdo quimica ¢ caracteristicas sensoriais de matérias-primas alimentares, A inoculagao © 0 desenvolvimento de micro-organismos espceificos leva ao consumo de substratos sobretudo agiicares, ¢ consequente formagio de produtos da fermentagao, como acidos onganicos e etanol, que além de terem ago autolimitante sobre o crescimento do mi- cro-organismo fermentador dificultam ou retardam o ereseimento de micro-organismos deteriorantes. Portanto, uma matéria-prima como o suco de uvas, extremamente perecivel por ser rico em agiicares ¢ outros nutrientes, ¢ convertide em vinho, pelo acumulo de etanol derivado da fermentacio, resultando em um produto que pode ser armazenado a temperatura ambiente por longos periodos A manipulagio de seres vivos com a finalidade de melhor atender as necessidades alimentares humanas € algo que acompanha a histéria da civilizagdo, ¢ nao se restrin- giu a obtengo pura e simples de alimentos por fermentagao. Nao bastou ds populagdes ancestrais fazerem uso deliberado de micro-organismos especificos para conservar ma- térias-primas pereciveis ou sazonais ¢, consequentemenie, dispor de seus nutrientes por periodos mais longos. Empiricamente foram identificades ¢ selecionados os micro-orga- 347 348 Biotecnologia de Alimentos nismos mais adequados as demandas humanas por maior produtividade, resisténcia a condigdes adversas e armazenamento, e também que resultassem em produtos com melhores caracteristicas organolépticas, como gosto ¢ aroma, Da mesma maneira, a manipulagao de seres vivos para me- Ihor atender as necessidades humanas nao se restringiu a seres unicelulares. O desenvolvimento da agricultura e da pecuaria mostra clara manipulagao das caracteristicas observiveis ou mensuraveis (fendtipo) de seres mais complexos, como plantas ¢ animais, com a finalidade diltima de satisfazer As demandas populacionais por alimentos. Plantas foram selecio- nadas por sua produtividade, maior resisténcia a pragas ou intempéries, pelo valor nutricional, ou pela seguranga para consumo, traduzida por niveis reduzidos de compostos indesejaveis, sejam toxicos ou antinutricionais. De modo analogo, animais foram selecionados por sua carne, porte, resisténcia a doencas, temperamento tolerante ao manejo humano, ¢ pelo ciclo reprodutive com- pativel com as condigdes de cativeiro, dentre outras caracteristicas. Essa manipulagao empirica, conduzida e aprimorada ao longo de milénios em varias partes do globo, baseada no interedmbio de espécies, no cruzamento de individuos selecionados ¢ na fixago de caracteristicas de interesse, resultou na grande diversidade de espécies e variedades de animais ¢ plantas atualmente utilizadas como matérias-primas alimentares. O melhor entendimento da base genética por tras de varias caracteristicas de interesse em animais e plantas utilizados com alimentos ajudou a direcionar o aprimoramento dessas espé- cies. Portanto, novas variedades de animais ¢ plantas utilizadas com matérias-primas alimentares foram desenvolvidas por meio do que se convencionou chamar melhoramento genético con- vencional. Nesse caso, as caracteristicas de interesse so buscadas em meio ao acervo genético disponivel na espévic, pela observagae ¢ triagem acurada de individuos, e também por meio de cruzamentos programados, com selegio da progénie resultante. No caso das espécies vegetais, processos como a mutacao induzida por agentes quimicos e por radiagdo ionizante foram bastan- te utilizados, sobretudo em meados do século XX, resultando em variedades amplamente utiliza- das como alimentos. A importincia da abordagem mutagénica para a obtengio de variedades de interesse pode ser ilustrada, no Brasil, pela criagdo do Centro de Energia Nuclear na Agricultura (CENA-USP), que tinha entre suas atribuicdes originais empregar a radiago ionizante como elemento indutor de mutagdes para a obtengiio de variedades de plantas com caracteristicas agro- ndmicas superiores. Em que pese 0 sucesso dessas abordagens na obtenco de variedades de animais e plantas, 0 fato & que o processo de melhoramento convencional apresenta limitagdes em razio da natureza das modificagdes genéticas efetuadas. O cruzamento de individuos, por meio da reprodugao se- xuada, resulta em um embaralhamento genético que tora pouco previsivel a manifestagao das caracteristicas agronémicas de interesse. Da mesma maneira, os processos de mutagio quimica ou por radiagiio so inespecificos, afetando um grande nimero de genes, ¢ eventualmente os potencialmente relevantes. Dessa forma, 0 melhoramento genético convencional pode ser con- siderado um processo de manipulacio de caracteristicas genéticas com um significative grau de imprevisibilidade, de dificil controle, ¢ bastante afetado pelos limites impostos pela reprodugio sexuada ou pela disponibilidade da caracteristica de interesse no agervo genético da espécie. €xpressao génica Tendo sido apresentada a importancia que a genética tem para as caracteristicas de interesse em animais e plantas utilizadas com alimentos, é oportuno destacar alguns aspectos do processo de expressiio dos genes. A informagio genética de um organismo esta compilada em seu genoma, fisicamente repre- sentado pelos pares de cromossomos. Estes silo estruturas presentes nas células de procariotos e eucariotos (células com niicleo), constituidos por fitas duplas de DNA — a molécula carreadora da informac3o génica, Os genes si segmentos das fitas duplas de DNA que representam unida- des de informagao genética, levando a sintese de proteinas. Essas proteinas podem desempenhar Biotecnologia de Alimentos 349 Nacleo Citoptasma Transcrigao Tradugéo DS _ Priva 7 nascente a> Ss NA Proteina Figura 10.1. Esquema ilustrativo das etapas da expressdo génica em um organismo eucarioto com material genético no nucleo. as mais diversas fungdes, estruturais, cataliticas, de defesa, regulatorias, dentre outras, levando manifestagdo da respectiva earacteristica codificada pelo gene. O fluxo da informagio genética se propaga na diregao da formagao de proteinas, passando pelas etapas de transcrigdo e tradugao, de acordo com a Figura 10.1, Na transcrigdo, a informagao contida no DNA ¢ repassada a uma molécula de RNA mensageiro (mRNA), por meio de uma RNA polimerase. Essa molécula de mRNA consiste numa fita simples de nucleotideos que serve de molde para a sintese de proteinas, no processo conhecido por traducao. A tradugio de proteinas se di pela interagao das moléculas de mRNA com os ribossomos ¢ a participagio de pequenas moléculas de RNA transportador (tRNA), que so os carreadores de aminodeidos. No ribossomo, ocorre a jungdio dos aminodcidos ea sintese da proteina, a partir da sequéncia predeterminada pelo mRNA, que por sua vez deriva da informagao contida no DNA. As proteinas podem ainda sofrer modificagdes adicionais depois da tradugio, como, por exem- plo, pela remogao especifica de parte de sua sequéncia de amiroacidos, pela adigo de grupos, come catboidratus ou fosfato, O conhecimento sobre o fluxo da informagao génica proporcionou a base para o desenvol- vimento da tecnologia do DNA recombinante, que possibilitou a manipulagdo dos genes dos organismos. A tecnologia do DNA recombinante € o desenvolvimento de alimentos Os significativos avangos trazidos pela elucidagao da estrutura do DNA e pelas técnicas de ma- nipulagao de acidos nucleicos resultaram na chamada tecnologia do DNA recombinante, em que moléculas de DNA de um organismo podem, de maneira bastante especifica e precisa, ser isoladas, fragmentadas e recombinadas, copiadas ¢ transferidas de um organismo a outro por via assexuada, tornando possivel, inclusive. a transferéncia de genes entre espécies. O entendimento de que 0 cédigo genético é uma base de informagio universal entre as seres vivos, assim coma 0 avangos técnicos que resultaram na reagao em cadeia da polimerase (PCR), € no sequencia- mento em larga escala que possibilita a descrigaio de genomas completos, possibilitaram levar a capacidade de manipulago de sequéncias génicas a um nivel sem precedentes. A tecnologia do DNA recombinante, ao possibilitar a modificagao das caracteristicas de um organismo em um grau mais apurado, por meio da manipulagdo genética mais precisa e direta, forma a base da chamada transgenia. 350 Biotecnologia de Alimentos ‘A produgao de novas variedades de animais ¢ plantas de interesse agrondmico é um impor- tante capitulo da bioteenologia modema, sendo os alimentos geneticamente modificados (GM) a face mais em evidéncia, Um alimento geneticamente modificado pode ser definido como aquele derivado de um animal ou planta que passou por um processo de modificagao genética, com introdugao, remogo ou modificagdo de sequéncias génicas, originadas da mesma espécie ou de outra, por meio da tecnologia do DNA recombinante, com a finalidede de conferir caracteristicas desejaveis da panto de vista agranémico ¢ industrial on heneficios diretos para o consumidor final, Em que pese o fato de que no melhoramento convencional também ocorre 0 desenvolvi- mento de organismos com caracteristicas genéticas de interesse, 0 termo geneticamente modifi- cado ¢ restrito aqueles alimentos obtidos por transgenia, ou seja, derivados da manipulagao de sequéncias génicas por técnicas de DNA recombinante. €tapas do desenvolvimento de novas mateérias-primas alimentares O desenvolvimento de novas matérias-primas alimentares por transgenia (Figura 10.2) resulta da combinago de éxitos nas seguintes etapas técnicas: 1) identificagdc do determinante genético da caracteristica fenotipica de interesse; 2) manipulagao in vitro e obtengao das novas sequéncias génicas; 3) transferéneia das novas moléculas de DNA para células do organismo receptor; 4) regencragdo de urganisinvs vidveis a pattir das eélulas uivdifivadas; 5) selegtio do organismo modificado com manifestagio da caracteristica de interesse. Os detalhes dessas etapas sio dis- cutidos a seguir. Identificagao do determinante genético da caracteristica fenotipica de interesse A etapa de identificagio do determinante genético por tras da caracteristica fenotipica de interes- se 6 essencial para o sucesso no desenvolvimento de um alimento GM, pois do conhecimento dos genes envolvidos depende a subsequente manipulagio das sequéncias, Essa etapa ¢ resultante do aciimulo de uma grande quantidade de informaco biolégica, em geral obtida a partir de estudos bisicos de fisiologia, bioquimica, genética e biologia molecular. Se, por exemplo, pretende-se desenvolver uma variedade vegetal com niveis aumentados de um determinado nutriente, € pre- ciso, antes de tudo, conhecer as rotas metabélicas que levam a sua sintese, identificar os genes += Obtengéo do gene de interesse $ @moniagem do transgene ~~ Clonagem O Transformagaio Regeneragao O 4g) | —— Vetor de transformagao Célula vegetal ® transformada Planta regenerada Célula vegetal Figura 10.2 Esquema ilustrativo das etapas de desenvolvimento de uma planta geneticamente mo- dificada, Biotecnologia de Alimentos 351 responsaveis ¢ os fatores ou condigdes que modulam a sua expressio, Ao final, espera-se que gene determinante para a expresso da caracteristica seja inequivocamente identificado e que haja suficiente conhecimento sobre a regulago de sua expressio. Manipulacao in vitro € obtencado das novas sequéncias génicas Uma vez. definido © gene que seré modificado para a obtengio da variedade geneticamente madificada, 6 necessiria praceder A sna manipulagio in vit. A expressiio de um gene depen- de da presenga de elementos génicos regulatérios, como a sequéncia promotora ¢ a sequén- cia terminadora, além de outros motivos envolvidos com a destinagao subcelular da proteina produzida, como as sequéncias de peptideo-sinal ou de peptideo de transito, por exemplo. A regido promotora apresenta os elementos necessarios para o inicio da transcrig&io do respectivo mRNA, ¢ geralmente apresenta motivos ou trechos de interaydio com fatores de transcrigio, 0s quais siio capazes de modular o processo de transcrigao. A regio terminadora determina 0 fim do processo de transcrig2o e, portanto, o tamanho da molécula de mRNA produzida pela RNA polimerase. A modificagao genética capaz de conferir uma caracteristica de interesse envolve a mani- pulagio de trechos de DNA originados de diferentes organismos, de modo a resultar numa se- quéncia génica que seja efetivamente expresea Fesas diferentes moléculas de DNA devem ser manipuladas ¢ ordenadas numa sequéncia funcional, perfazendo o que se convencionou chamar construgao, transgene ou cassete de transformagao. Na Figura 10.3, € apresentado esquema do transgene de uma soja GM, Na montagem dessa nova molécula de DNA sio necessérias, além da regio codificadora dos aminoacidos, as regides promotoras ¢ terminadoras e, eventualmen- te, trechos de DNA responsaveis pela destinagao subcelular de proteina produzida. Essa nova construgdo génica, produzida com as téenicas de DNA recombinante, pode ser montada num vetor de transformagao, que consiste numa molécula circular de DNA, derivada de segmentos de plasmideos e DNA de virus bacteriéfagos, para posterior transferéncia para o organismo hospe- deiro. Em geral, a montagem da construgo de interesse no vetor de transformagio é associada a um gene marcador, que pode ser um gene que propicia ao organismo receptor resisténcia a um determinando antibidtico. A finalidade do gene marcador é indicar a presenga do transgene no organismo receptor, uma vez que, por estarem montados no vetor, ambos sero despachados para as células durante 0 processo de transformagao. A utilizagao de um gene mareador se faz necessaria porque nem sempre a caracteristica de interesse, conferida pelo transgene, pode ser manifestada em etapas iniciais do trabalho, em que so manipuladas apenas eélulas ¢ no um organismo complexo, como uma planta ou animal, Transgene da soja com resisténcia ao glifosato @ E358 = promotor da transcrigao do virus do mosaico da couve-flor (© CTP4 = sequéncia de enderegamento para cloroplasto @ crsePsps = enzima fosfoenol piruvato shiquimato sintase @ Nos = terminador da transcrigao da nopalina sintase Figura 10.3 Representacao esquematica da composicao do transgene da soja resistente ao glifosato. 352 Biotecnologia de Alimentos Transferéncia das novas moléculas de DNA para células do organismo receptor Uma vez que o transgene foi preparado com todos os elementos neeessarios para a expressio da proteina de interesse em um vetor de transformagdo, deve ser feitaa sua introdugao em células do organismo hospedeiro. Ao processo de transferéneia dessa nove molécula de DNA a células hospedeiras, com passagem para o niicleo e integracdo no genoma, di-se 0 nome de transfor- magao. No ambito da producdo de novas matérias-primas alimentares, esse processo pode ser feito por método fisico ou biolégico. A escolha de um ou outro depende em grande medida do material bioldgico objeto da transformagao, pois alguns sio eficientemente transformados por um método, mas no por outro, ‘Transformacao por biobalistica A transferéncia das novas moléculas de DNA para células do organismo receptor por método fisico diz. respeito ao uso da biobalistica. Nesse caso, as molécules de DNA da construgao ou transgene so adsorvidas na superficie de microparticulas de material inerte, com tungsténio ou ouro, ¢ aceleradas contra células ou tecido do organismo a ser modificado geneticamente, Essa aceleragio se da em um equipamento especifico, por meio do dispato de uma carga de gis com- primido, de modo que as particulas ao serem disparadas em alta velocidade penetrem nas células e possam alcangar o nicleo, Nessa organela, as moléculas de DNA sao liberadas das particulas e, por meio de recombinagao aleatéria, podem se integrar ao material genético do organismo alvo da transformagio. Nesse processo, muitas células sio danificadas ¢ mortas, mas uma parcela pode receber o novo material genético sem grandes danos. Dentre essas células receptoras das particulas car- reando DNA, algumas poderdo ter 0 material genético integrado em posigdes no genoma que nao comprometam severamente suas fungdes biolégicas, havendo a possibilidade de expressio do transgene. Transformacao por agrobactéria O método de transformagao genética por agente bioligico diz respeito ao uso do micro-organis- mo Agrobacterium tumefasciens. Essa bactéria do solo é capaz de infectar tecidos vegetais, com transferéncia de material biolégico para as células hospedeiras, que passam entio a se multipli- car € a produzir opinas, aminodcidos no proteicos que niio so utilizados pelo vegetal, mas que podem ser metabolizados pelo micro-organismo. Esse é um processo natural de patogenia vege- tal que leva a formagdo de deformidades nos tecidos, normalmente conhecidas por galha de co- roa em caules e raizes, cujo elemento chave é um plasmideo presente nas células da agrobactéria, proceso biotecnolégico de transformagio vegetal por meio da agrobactéria langa mao de um fendmeno que ocorre na natureza ~a eficiente transferéncia de material genético do mi- cro-organismo para a célula vegetal, com a diferenga que os genes presentes no plasmideo sto previamente manipulados in vitro. O plasmideo é modificado pelas técnicas de recombinagao, de modo que a regidio do DNA de transferéncia contendo os genes relacionados com a biossintese de opinas e horménio vegetal é substituida pelo transgene. Assim, em vez de indugao de um tumor vegetal capaz de produzir 0 alimento da agrobactéria, ocorre a transferéncia e integragao dos genes presentes na construcao genética no genoma do vegetal. Regeneracao de organismos viaveis a partir das células modificadas Uma vez que o transgene tenha sido transferido, seja carreado em particulas veiculadas por biobalistica, seja por intermédio da agrobactéria, é necessario identificar quais dessas células 0 receberam € 0 tiveram integrado em seu genoma. Nessa etapa do trabalho, as células transforma- das so cultivadas em meio seletivo, ou seja, em meio de cultura contendo um agente quimico para 0 qual o gene marcador confere resisténcia, Esse agente pode ser um antibistico, herbicida, Biotecnologia de Alimentos 353 ou algum metabélito especifico, e a sobrevivéncia das eélulas transformadas indica a presenga do transgene integrado ao genoma, pois na montagem da construgo o gene de interesse foi as- sociado ao gene marcador. A selegdo das células transformadas possibilita passar a préxima etapa do processo, que & a regeneragio de organismos vidveis. A principio, as células sic individualmente cultivadas em meio nuttitivo adicionado do agente de seleg3o para que haja multiplicaco e formagdo de uma massa de células indiferenciadas. Fragdes da biomassa originada de uma tnica célula transfor- mada sfo entao transplantadas para meio nutritive adicionado de horménios vegetais, Do balan- 0 entre esses horménios sao criadas as condigdes que propiciam a indugio do desenvolvimento de raizes ¢ caules. A manipulacao das condigdes de cultura dos tecidos resulta na formagiio de uma plintula, que ao ser adequadamente adaptada a condigdes ambientais mais severas pode resultar numa planta com plena capacidade de ser cultivada em condigdes de campo. Selecao do organismo modificado com manifestacao da caracteristica de interesse Feita a regeneragio das plantas transformadas, ¢ necesséirio nao apenas identificar aquelas que receberam o transgene mas também as que stio capazes de expressar a nova caracteristica de interesse, sem, no entanto, perda de suas qualidades agronémicas, Isso se justifica pelo carater aleatdrio da integragZo no genoma, fazendo com que a modificagdo genética possa resultar na incorporagao do transgene em uma posigo desfavoravel do genoma, causando a interrupedo de sequéncias génicas que podem de algum modo comprometer a viabilidade da planta em condi- gOes de cumpo, ou prejudicar o seu crescimento © produtividade. A transferéneia e integracdo do material genético em uma célula compdem um evento iinico, em que a probabilidade de ocorréncia idéntica em outra célula transformada é bastante baixa, Diante disso, os experimentos de transformagio partem de um néimero relativamente grande de individuos para a triagem, de modo que possa ser encontrado um individuo que apresente o melhor compromisso entre a manifestagao da nova caracteristica introduzida pela modificagaio genética e a preservagdo das qualidades agronémicas. Para isso, a identificagao de um even- to de transformagdo que possa resultar numa variedade geneticamente modificada depende da avaliagdo de seu desempenho em condigdes de cultivo comercial, estando sujeito as condigdes ambientais reais, ou seja, intempéries, insetos, micro-organismos ete. Deve ser avaliada nao s6 a manifestago da nova caracteristica de interesse como, por exemplo, a resisténcia a insetos, mas tambem se foi preservada a taxa de crescimento, 0 porte, a produtividade ete, Variedades vegetais com vantagens agronémicas ou tecnolégicas As variedades da primeira geragio de geneticamente modificados foram desenvolvidas, em sua maioria, com 0 objetivo de prover matérias-primas alimentares com propriedades tecnolégicas ou caracteristicas agronémicas superiores a de seus andlogos convencionais. Um exemplo cl 0 0 tomate, que apresenta significativas perdas pos-colheita em razio da polpa extremamente macia quando maduro, Uma vez que as caracteristicas organolépticas ou tecnologicas mais va- lorizadas, como cor, gosto ¢ aroma, so alcangadas quando a fruta esta madura e, portanto, mais fragil e susceptivel a injérias, a colheita do fruto plenamente maduro resultaria em um produto de qualidade superior, mas com alto grau de perecibilidade. Desse modo, foi desenvolvida uma variedade de tomate com uma modificagao genética para suprimir a expresso do gene da poli- galacturonase (PG), uma enzima que atua sobre a pectina, um polimero da parede celular vegetal que contribui para a firmeza do tecido vegetal. O bloqueio da expresso dessa enzima durante ‘6. amadurecimento do tomate resulta num fruto mais firme, que pode ser colhido maduro, mais, tardiamente, e, portanto, com as caracteristicas desejaveis de core sabor plenamente desenvolvi- das. Essa variedade de tomate recebeu o nome fantasia de “Favr-Savr” e tem valor histérico por ter sido o primeiro produto vegetal geneticamente modificado com aprovagao para consumo hu- 354 Biotecnologia de Alimentos mano nos EUA, em 1994. Embora a expresstio do gene da PG tenha sido inibida em 98%, ainda assim houve algum amaciamento da polpa, 0 que, no entanto, nao impediu que o tomate pudesse permanecer na planta por mais tempo e a polpa derivada desses frutos apresentasse propriedades reologicas distintas. Dois exemplos bastante importantes de estratégias de modificagio genética visando 4 obten- gio de vantagens agronémicas sio as variedades de plantas resisterves a herbicidas aquelas que expressam proteinas inseticidas, algumas das quais jé autorizadas para plantio e comercializagaio no Brasil. A soja resistente ao herbicida glifosato foi a primeira variedade geneticamente modificada liberada para cultivo comercial no pais. Essa variedade diferencia-se da convencional por ter recebido uma variante do gene da enzima 5-enolpiruvil-shiquimato-3-fosfato sintase (EPSPS), que é insensivel ao herbicida. Plantas que so mortas pelo glifosato sofrem os efeitos nocivos justamente pelo fato de essa enzima, responsavel pela biossintese de aminodcidos aromaticos, ser inibida pelo herbicida. No caso das plantas resistentes, a presenga de uma versio do gene EPSPS insensivel 4 inibigGo, introduzida pela modificagao genética, garante a biossintese dos aminodcidos, ainda que a enzima original seja prejudicada pela presenga do composto. Desse modo, a aplicagao do herbicida leva as ervas-daninhas ou mesmo soja convencional a morte, mas niio causa prejuizo ds variedades geneticamente modificadas. Hoje em dia, ja existem diversos vegetais com esse tipo de resisténcia ou similares aprovados para caltivo. No Brasil, ha varieda- des comerciais aprovadas de soja, mitho e algodio, O ataque de insetos causa prejuizos significativos as lavouras de diversas culturas ¢ ha grande interesse em controlar a proliferagao dessas pragas. Um controle eficiente pode ser alcangado por meio da introdugo nas plantas de genes que codificam proteinas com agao toxica apenas sobre insetos, mas nao sobre seres humanos e outros animais. Existem proteinas produzidas pelo mi- cro-organismo Bacillus thuringiensis, conhecidas pelas siglas Cryl (Cry1Aa, Cry Ab, CrylAc), que tém ago inseticida especificamente sobre larvas de borboletas ¢ mariposas que infestam as lavouras. As plantas das variedades conhecidas como Bf, ou seja, resistentes por expressarem proteinas de Bacillus thuringiensis, dispensam a aplicagdo de insetividas quimicos e so nocivas apenas aos insetos que delas se alimentam. Assim como para a resisténcia a herbicidas, ha no Brasil variedades de milho, soja e algodio com a caracteristica Bt aprovadas para cultivo. Variedades vegetais com vantagens nutricionais ou funcionais Embora as plantas modificadas para obtengdo de vantagens agrondmicas sejam uma realidade em varios paises, o futuro aponta para o crescimento de novas variedades, capazes de proporcio- nar beneficios para o consumidor final em termos nutricionais, Exemplos dessa nova geragio de alimentos geneticamente modificados so: 0 arroz dourado e as variedades de soja com modifi- cago da composigio de seu leo, dentre outros. arroz dourado vem a ser uma variedade do cereal, desenvolvida por pesquisadores das universidades de Zurique (Suiga) e Freiberg (Alemanha), capaz de produzir -caroteno (provi- tamina A), o que explica sua denominagao, em razio da marcante mudanga de cor dos grios de branco para amarelo-laranja.' A produgao do pigmento foi conseguida por meio da introdugao dos genes das enzimas fitoeno sintase ¢ licopeno ciclase (obtidas de uma flor) e fitoeno desatu- rase (obtida da bactéria Erwinia uredovora), que a partir dos precursores disponiveis proporcio- naram a sintese de f-caroteno (Figura 10.4). Posteriormente, uma nova versio do arroz dourado foi obtida com a introdugio da fitoeno sintase de milho, resultando num teor de carotenoides superior ao da primeira versio do arroz.* consumo do arroz dourado representa uma importante arma no combate a deficiéncia de vitamina A na dieta em razio do aumento da ingestio de B-caroteno (Capitulo 6). Contudo, @ importancia desse gro para o combate & desnutri¢ao vai além do arroz dourado, pois sendo um alimento consumido por quase metade da populacdo mundial, e relativamente deficiente em Biotecnologia de Alimentos 355 (gone crt! de bacteria) Gcaroteno desaturase Rota bioquimica em plantas Rota bioquimica introduzida que acumulam carotenoides no arroz dourado geranilgeranil ifostato Fliceno desaturase Fitoeno desaturase (gene psy de flor) fitoeno Fitoeno sintase \ Fitoeno sintase G-caroteno | < Gans Licopeno ciclase Licopeno ciclase (gene lay de tor) i \ Figura 10.4 Representacao esquematica parcial da biossintese de carotenoides em plantas até a eta- pa de producao de f-caroteno, e rota de sintese do f}-caroteno em arroz dourado resultante da introdu- a0 de trés genes exdgenos. alguns nutrientes, oferece a possibilidade de biofortificagao pela transgenia. Abordagens biotec- nolégicas voltadas para a melhoria do valor nutricional do arroz envolvem o desenvolvimento de variedades cam maiores teores de folato, ferro ¢ aminodcidos essenciais, como metionina, cisteina, lisina e o triptofano. Hé grande interesse na modificagao da composigao de dleos vegetais de modo a proporcionar vantagens nutricionais ou menor exposigzio a compostos nocivos decorrentes do processamento, como os produtos da oxidagao € os cidos graxos trans. Nesse sentido, varios tipos de modifica do genética de soja podem contribuir para que esse objetivo seja alcangado. Uma soja transgénica com alto teor de um dcido graxo «3 polinsaturado de cadeia longa, 0 Acido estearidénico-(SDA) (18:4(n-3)), que é um intermediario metabslico na conversio do Acido linolénico em Acido cicosapentaenoico (EPA; 20:5(n-3)) edcido docosahexaenoico (DHA; 22:6(n-3)), foi considerada segura para consumo pela FDA (Food and Drug Administration), a agéncia americana responsavel pela regulamentago de alimentos e medicamentos. 0 consumo esse éleo pode ser uma importante contribnigao para a reducho do risco de desenvolver doengas cardiovasculares, como alternativa ao consumo de leo de peixe (fonte abundante de 3), pois proporciona aumento dos niveis de EPA nos eritrécitos. No organismo humano, ocorte sintese de EPA a partir de outro dcido da classe 3, 0 linolénico, mas isso se processa muito mais efi- cientemente a partir da SDA. O melhor desempenho do dleo de soja frente ao processamento térmico pode ser conse- guido pela modificagao genética levando ao menor teor de dcido linolénico (C18:3, 49,12,15), ‘ou maiores teores de dcido oleico (C18:1, A9), que possibilitam maior estabilidade & oxidagao 356 Biotecnologia de Alimentos lipidica, Outra vantagem importante das modificagdes do perfil de acidos graxos pode ser tam- bém a menor ingestdo de gorduras saturadas e © aumento de gorduras mono- e poli-insaturadas, consideradas mais saudaveis. Enquanto os 6leos produzidos a partir de variedades convencionais de soja contém 24% de dcido oleico, nos EUA e Canads existem éleos derivados de variedades geneticamente modificadas que fornecem dleo com 80% desse cido graxo. Uma importante contribuigdo da modificagao da composigio de dleos por transgenia pode ser famhém a menor ingestiin de Acids graxos trans Além disso, nos EUA e Canada ja existe disponivel um dleo de canola com alto teor de dcido estearico, o que diminui a necessidade de hi- drogenagao de éleo para a obtengao de gordura, amplamente utilizada na industria de alimentos. Seguranga de alimentos geneticamente modificados Novas tecnologias provocam diividas e por isso despertam desconfiangas nos consumidores, € com os alimentos geneticamente modificados a situagao nao é diferente, Contudo, a preocupagaio com a garantia da seguranga das matérias-primas alimentares derivadas da moderna biotecnolo- gia esta presente nas varias etapas de seu desenvolvimento, da concepgdo da ideia da nova varie- dade vegetal até a fase de aprovagao para cultivo comercial e liberacao para consumo humano Em esséncia, todo o trabalho de desenvolvimento é feito nao apenas para que haja a ex- pressio da nova caracteristica, com a necesséria prescrvagao das qualidades agronémicas da variedade parental, mas sobretudo que o produto final se mostre seguro para o ambiente e para © consumidor. A nova variedade derivada da modificagao genética deve apresentar um nivel de seguranga similar ao da variedade convencional que Ihe deu origem, Para isso, é necessario que 0s potenciais efeitos nocives assoviados ao consumo dessa nova variedade sejam avaliados e as probabilidades de ocorréncia sejam estimadas, de modo que o rises oferecido seja considerado aceitivel por ser similar ao oferecido pela variedade parental. Assim, os alimentos genetica- mente modificados sao avaliados segundo o processo de anilise de risco, que consiste na busca sistemaitica de informag6es cientificas sobre um determinado efeito adverso, de modo a avaliar 0 risco envolvido e tornar possivel a adogao de medidas para eliminar ou controlar sua ocorréncia, Os potenciais riscos das matérias-primas alimentares derivadas da transgenia, ¢ que sio objeto de avaliagio cientifica durante seu desenvolvimento ¢ aprovagio para consumo, esto relacionados com a possibilidade de ocorréncia de efeitos nao intencionais da modificagao ge- nética, Esses efeitos no previstos, e eventualmente indesejiveis, podem resultar do fato de que a moderna biotecnologia, apesar de ser um avango significative em relag’io a0 melhoramento genético convencional, pois ao contririo deste envelve um mimero infinitamente menor de se- quéncias génicas, ainda assim comporta certa dose de imprevisibilidade. Nao obstante envolver a transferéncia de alguns poucos genes muito bem caracterizados, no ¢ possivel prever com exatidao o sitio do genoma hospedeiro em que se dard a integragao do transgene, bem como as consequéncias dessa inserg3o na expressio de outros genes. Logo, as consequéncias da modifi- cago genética so avaliadas caso a caso, uma vez que cada organismo modificado deriva de um evento tinico de transformagio. Os principais pontos a serem considerados no processo de avaliagao de seguranga de alimen- tos geneticamente modificados, e que devem ser tomados com base no melhor conhecimento cientifico disponivel, sio: (1) 0 organismo objeto da modificagio genética, (2) a construgio genética ou transgene envolvido, (3) os produtos da expresso dos novos genes introduzidos, (4) a composicio quimica do organismo resultante, (5) 0 valor nutricional e o potencial toxico ou alergénico da nova matéria-prima alimentar. Organismo objeto da modificacgao genética O conhecimento detalhado acerca do organismo a ser modificaco é importante, pois possibilita antever eventuais pontos do desenvolvimento da nova variedade que podem merecer estudos mais aprofundados. Por exemplo, se o organismo objeto da modificagao é sabidamente rico em elementos toxicos ou antinutricionais, é importante verificar como a introdugao de novos genes Biotecnologia de Alimentos 357 poderia afetar os niveis desses compostos indesejaveis. Esse conhecimento ¢ importante nas eta- pas iniciais do desenvolvimento, pois permite que projetos que poderiam levar a matérias-primas potencialmente mais perigosas sejam abortados, possibilitando significativa economia de tempo e recursos, e também na etapa final de aprovagao para consumo, por parte de entidades ou drgtios regulat6rios incumbidos dessa fungdo. No caso de plantas, a caracterizagao deve abranger histé- rico de uso, cultivo, taxonomia, reprodugiio, composigiio quimica ¢ toxicolégica ete. Em suma, © arganisma ahjeta da madificacin genétien deve ser conhecido em profundidade, de modo a subsidiar etapas posteriores da avaliagio de seguranga. Construcao genética ou transgene envolvido A caracterizagio do transgene envolvido na modificagtio genética implica em profundo conhe- cimento a respeito das sequéncias génicas envolvidas na montagem da construgao. Ainda que 0 DNA, per se, seja considerado seguro, uma vez que est naturalmente presente nos alimentos convencionais, é importante conhecer detalhadamente as sequéncias que compoem o transgene. E preciso saber a fonte ou organismo de origem dos fragmentos de DNA utilizados, as suas se- quéncias de nucleotideos, com identificagdo das regides codificadoras, a presenga de elementos regulatdrios da transcrigdo e a eventual ocorréncia de elementos de transposigao. Embora 0 DNA seja facilmente degradado durante 0 processamento ou no trato digestivo, também é importante verificar a capacidade de resisténcia do transgene a essas condigdes, poi esse pode ser um dado importante na estimativa do potencial de transferéneia horizontal das se- quéncias envolvidas. A passagem de fragmentos de genes do alimento geneticamente modificado para células do trato digestivo ou para bactérias intestinais 6 um evento de baixa probabilidade de ocorréneia e sem consequéncias importantes, como atesta 0 fata de que nao nos tornamos trans- génicos com o consumo de alimentos convencionais, apesar das grandes quantidades de DNA ingeridas. No entanto, uma vez que muitos genes marcadores da modificagao genética sao genes de resisténcia a antibidticos, convém assegurar a baixa resistencia dessas sequéncias génicas ao processamento ou a digesta fim de garantir a seguranga para o consumidor. Estratégias mais atuais de triagem de células transformadas devem levar, num futuro bastante proximo, a0 abandono do uso de genes de resisténcia a antibicticos, ou a sua eliminagdo apés a etapa de selegao das células modificadas, quando deixam de cumprir qualquer finalidade nos onganismos delas derivados. Produtos da expressao dos novos genes introduzidos As proteinas resultantes da expresso dos novos genes introduzidos também merecem atengdo no processo de avaliagao de seguranca. E preciso conhecer detalhadamente essas proteinas, tan- to do ponto de vista estrutural, em relagio a sua sequéncia primaria, bem como conformagao ¢ interagdes, quanto em relagio a sua fungdo. As novas proteinas devem ser avaliadas quanto A fungo bioldgica desempenhada nos organismos de origem e de que maneira a sua presenga poderia afetar o organismo receptor. Se apresentar fungdo catalitica, os principais aspectos ciné- ticos e sua especificidade quanto a potenciais substratos utilizados devem ser conhecidos. Se a nova proteina for uma toxina, seu mecanismo de ago bem come seu espectro de ago devem ser claramente definidos. Composicdo quimica do organismo resultante Apés serem analisados os elementos diretamente resultantes da modificagao genética, ou seja, as novas sequéncias de DNA do transgene e seus respectivos produtos de expressio, as proteinas derivadas, é preciso buscar por efeitos ndo intencionais na composi¢ao quimica do organismo geneticamente modificado, A andilise quimica de um organismo obtido por modificagio genética pode ser extremamente complexa e resultar infrutifera se forem empregados conceitos toxico- logicos utilizados na avaliagao de compostos quimicos individuais, como pesticidas. Assim, foi estabelecido o prinefpio da equivaléncia substancial para nortear 0 processo de avaliagao de 358 Biotecnologia de Alimentos seguranga de alimentos derivados da biotecnologia. Esse principio preconiza uma ampla carac- terizagao quimica em relago aos principais macro e micronutrientes, ¢ aos metabolites secunda- rios com potencial atividade biolégica, de modo a subsidiar avaliagdes toxicoldgicas posteriores mais dirigidas ou especificas. A finalidade da aplicagdo desse conceito é estimar o grau de simi- laridade da variedade geneticamente modificada em relagdo a variedade convencional que Ihe deu origem quanto a aspectos nutricionais ¢ toxicolégicos. E importante destacar que eventuais diferengas de composigio quimica observadas entre a variedade geneticamente modificada ¢ sua andloga convencional devem ser analisadas em relagao a variabilidade observada na espécie em relagao as condigées de cultivo e entre as dife- rentes variedades convencionais. Pode ser que eventuais diferengas notadas entre a modificada ¢ a parental sejam muito menores do que aquelas que se observam quando se comparam duas diferentes variedades convencionais, ou quando uma mesma variedade convencional é cultivada em regides geograficas distintas, por exemplo. Valor nutricional € o potencial toxico ou alergénico da nova materi alimentar -prima Nao obstante as diferengas intencionais decorrentes da presenga do transgene, 0 que se espera da miodificugau yendtiva € que tesulle uuu variedade io segura quanto a variedade conven- cional que Ihe deu origem. Isso implica dizer que as variedades convencionais, apesar do amplo historico de seguranga, oferecem algum risco para o consumidor, Esse risco trazido pelas varie- dades convencionais pode ser exemplificado pela presenga de toxinas, fatores antinutricionais e compostos toxicos inerentes em muitas plantas utilizadas como alimentos ¢ sobre as quais no pairam quaisquer dtividas quanto & seguranga para consumo humano ou animal. Portanto, 0 risco trazido pelo consumo de uma matéria-prima alimentar geneticamente modificada deve ser equivalente ao da sua andloga convencional, cujo risco nao é zero, mas que apresenta um amplo historico de seguranga para consumo, Embora os dados de composigo quimica apontem significativa equivaléneia entre a mater prima convencional e a geneticamente modificada, ou as diferengas existentes serem pequenas ou nao trazerem consequéncias negativas, pode ser necessério, As vezes, atestar 0 valor nutricio- nal e a seguranga dessas matérias-primas por meio de ensaios com animais de experimentagio. O valor nutricional de uma matéria-prima geneticamente modificada pode ser confirmado nao 86 pela avaliagao criteriosa de sua composigao quimica mas sobretudo pela sua eficacia em pro- porcionar macro e micronutrientes a animais alimentados com rages derivadas dessas matérias -primas. Se, por exemplo, filhotes de aves ou suinos forem divididos em dois grupos, sendo um deles alimentado com ragao feita a partir da variedade convencional e o outro grupo alimentado com a rago derivada da matéria-prima geneticamente modificada, é possivel comparar as taxas de ganho de peso durante o periodo, bem como incidéncia de doengas, manifestagaio de eventuais efeitos adversos, mortalidade ete. ‘Auuttilizagdo de animais em fase de crescimento ¢ com desenvolvimento acelerado tem a van- tagem de ser um modelo extremamente sensivel as diferengas nos teores de nutrientes ou a pre- senga de eventuais fatores téxicos ou antinutricionais. Nesse sentido, ¢ importante destacar que a anilise sistematica de estudos de longa duraco e de estudos multigeracionais com animais, ou seja. envolvendo o acompanhamento de duas a cinco geracdes alimentadas com rages GM, no apontou nenhum efeito nocivo para a satide com base em pardmetros bioquimicos, hemato- logicos, histolégicos e de incorporagio de DNA. Ainda, quando foram notadas pequenas dife- rengas elas estiveram dentro da faixa de variagdo normal dos individuos."* De fato, a utilizagio de matérias-primas GM para a produgio de ragdes para alimentagio animal atesta a seguranga das variedades geneticamente modificadas aprovadas para cultivo ¢ comercializagao, pois até 0 presente nao foram observadas diferencas de desempenho no crescimento dos animais. Nao obstante essas evidéncias de seguranga para © consumo, a perspectiva de aumento de alimentos Biotecnologia de Alimentos 359 GM de segunda geragio, com alteragio significativa de sua composigao quimica, sinaliza uma demanda permanente de aprimoramento nos modelos experimentais com animais.* Alergenicidade Com relagao a alergenicidade dos alimentos obtidos por transgenia, é preciso considerar tanto a presenga das novas proteinas introduzidas pela modificagao genética quanto a eventual mudan- ga nos teares de proteinas alergénicas inerentes A matéria-prima convencional. Com relagao as novas proteinas, é possivel, ainda em fases bastante preliminares do desenvolvimento da nova variedade, compararas suas sequéncias de aminodcidos e sua estrutura com aquelas de alérgenos de importincia por meio de recursos de bioinformatica. Qualquer similaridade que implique na reprodugio de trechos com o potencial de desencadear a resposta imune (epitopos) observados em proteinas alergénicas deve ser evitado e isso pode ser suficiente para abortar 0 desenvolvi- mento de uma nova variedade. Além disso, se a nova proteina apresentar resisténcia a desnaturagio térmica ou ao pH, ou a igesto com pepsina ou tripsina em ensaios de simulago de fluidos gastrico e intestinal, isso pode ser suficiente para que sejam levantadas suspeitas quanto a sua seguranga. No caso de a modificagdo genética ser feita em uma espécie sabidamente alergénica, & necessirio investigar como 08 niveis das proteinas alergénicas foram afetados. Ainda que individuos diagnosticados como alérgicos a determinados alimentos devam evité-los, independente da origem, se conven- cionais ou derivados da biotecnologia, é importante que a modificago genética nao seja um fator que implique potencial aumento de risco para o desenvolvimento de alergia na fragao saudavel da populagio, como consequéncia do aumento dos teores e, portanto, dos niveis de exposicao a proteinas alergénicas. Rotulagem de alimentos geneticamente modificados ‘A seguranga de que o uso da modema biotecnologia nao causara danos @ satide humana ou a0 meio ambiente implica no estabelecimento de normas adequadas de manipulagao, anilise de ris- cos de produtos biotecnoldgicos, assim como de mecanismos e instrumentos de monitoramento erastreabilidade, No Brasil, a questo da biotecnologia é regulamentada desde 1995 (Lei n° 8.974/1995), € a nova Lei de Biosseguranga (Lei n® 11.105/2005) autoriza 0 uso dessa tecnologia no pais € estabelece normas de seguranga ¢ fiscalizagdo de atividade com organismos geneticamente mo- dificados (OGM) e derivados. Além disso, essa lei criow o Conselho Nacional de Biosseguranga (CNBS) e o Sistema de Informagio de Biosseguranga (SIB), bem como ratificou a criagao da Comissio Técnica Nacional de Biosseguranga (CTNBio) ¢ suas competéneias, Um aspecto importante da regulamentacio de produtos biotecnolégicos diz respeito a rotula- gem dos alimentos. O Decreto n° 4.680, de 24 de abril de 2003, estabelece que tanto os produtos embalados como os vendidos a granel ou in natura produzidosa partir de OGM, com presenga acima do limite de um por cento do produto, deveriio ser rotulados, e o consumidor deverd ser informado sobre a espécie doadora do gene objeto da modificagio, Diferentemente do que pode sugerir esse valor de 1% para rotulagem, isso nao tem qualquer relago com a seguranga dos produtos, pois uma vez que eles foram liberados para a comercia- lizagao eles s4 considerados seguros. Prova disso é o fato de que os limites para a rotulagem variam ao redor do mundo, havendo controles mais ou menos estritos. Na Unio Europeia é preconizada a rotulagem de todos os produtos derivados de matérias -primas geneticamente modificadas. Os produtos destinados 4 alimentagdo humana ou animal devem ser rotulados caso seja ultrapassado o limite de tolerdncia de 0,9%. Em contraste, ovos, leite e carne de animais alimentados com essas matérias-primas nao necessitam de rotulagem, No Japao existe o nivel para rotulagem de 5% para a soja, mas nao para o milho, enquanto na Australia e Nova Zelandia vigora o valor de 1% acima do qual a rotulagem é obrigatoria, 360 Biotecnologia de Alimentos No caso dos EUA, nao ha obrigagio para a rotulagem de alimentos derivados da moderna biotecnologia. Contudo, isso nao significa que os produtos aprovados niio tenham sido avaliados quanto & sua seguranga. O fato € que a FDA considera que a rotulagem deve ser justificada pela composigao ¢ nao pelo processo de obtengao do alimento. Uma vez que os alimentos geneti- camente modificados sao substancialmente equivalentes aos seus andlogos convencionais, nao se faz necessaria nenhuma rotulagem. Caso tenham conteiido nutricional muito diferente ou tenham potencial alergénico, ai sim a rotulagem seria justificada. €xpansao do plantio € uso comercial Desde o inicio do plantio comercial de culturas geneticamente mofificadas nos EUA, em mea- dos da década de 1990, a area plantada tem aumentado significativamente em todo o mundo, assim como o nlimero de paises produtores de culturas modificadas, A soja geneticamente modificada responde pela primeira posigdo, seguida do milho, algodao canola, ¢ os principais tipos de modificagao dizem respeito a resisténcia a herbicidas ou a insetos. Dados de 2011 do Servigo Internacional para a Aquisigao de Aplicagdes em Agrobiotecno- logia (ISAAA) apontam o Brasil como o pais coma segunda maior area dedicada ao cultivo de transgénicos, depois dos EUA, com 30,3 milhdes de hectares ocupados por soja, milho e algodio geneticamente modificados.* Atualmente (2013), apenas quatro culturas, algodio, milho, soja e feijao esto liberadas para comercializagao no Brasil, mas a lista de pedidos de autorizagio para liberagio comercial toma possivel vislumbrar um futuro com iniimeros produtos derivados da modema biotecnologia. Das culturas geneticamente modificadss aprovadas para comercia- lizagao no Brasil, apesar da soja ter sido a primeira ¢ atualmente contar com o total de cinco variedades, 0 maior nimero & de milho, com 18, seguido do algodio com 12 variedades. No caso do feijio, a unica variedade autorizada é um produto desenvolvido pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuairia (EMBRAPA), comercialmente denominado EMBRAPA 5.1, que tem como caracteristica a resisténcia ao virus do mosaico dourado do feijoeiro.? A diversidade de produtos comerciais geneticamente modificados devera crescer nos préximos anos, assim como a complexidade das matérias-primas, em razo da recente tendéncia de combina- ga0 de mais de um transgene em um mesmo organismo. Nesse sentido, melhoramento genético convencional pode ser combinado 4 transgenia para obtengdo de novas variedades comerciais, Variedades contendo varios transgenes podem ser desenvolvides a partir do cruzamento en- tre variedades parentais geneticamente modificadas, resultando no “empilhamento” ou “pira- midizagao” de genes (“gene stack"). Genes “piramidados” sao, portanto, aqueles originados de OGM, mas combinados por meio de melhoramento genético classico, Exemplo disso é o milho “SmartStax™”, desenvolvido nos EUA, que resulta do cruzamento de quatro produtos aprova- dos dos seguintes eventos: MON 89034 x TC1507 x MON 88017 xDAS-59122-7.* Essa varieda- de apresenta um total de oito transgenes diferentes (cry24b, cryA.105, cry IF, cry3Bbl, ery34, cry3SAbl, ep4, ¢ bar) que resultam na manifestago de trés caracteristicas, uma de tolerincia a herbicidas ¢ duas de resisténcia a pragas. No Brasil, a primeira variedade com genes piramidados data de 2009, sendo um milho com resisténcia a insetos ¢ tolerdncia aos herbicidas glifosato e glufosinato, obtido da combinagio dos eventos BT e GA21, desenvolvido por cruzamento do milho com o transgene para expres- sar a proteina Cry1A 0 milho expressando as proteinas PAT e mEPSPS? Além da “piramidizagao”, ha ainda a possibilidade de obtengo de hibridos geneticamente modificados, obtidos do cruzamento de uma linhagem recombinante com uma linhagem nao transgénica. Essa estratégia pode ser util para a transferéncia da caracteristica conferida pelo transgene para uma variedade convencional mais adaptada ao cultivo em determinada regio. Contudo, qualquer que seja a origem da variedade geneticamente modificada, € necessaria a avaliagao caso a caso de sua seguranga para o consumidor, de acordo com 0 que foi apresentado nos tépicos anteriores.

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