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arquivos analiticos de politicas educativas Revista académica, avaliada por pares, independente, de acesso aberto, e multilingte Arizona State Universiy Volume 26 Niimero 84 23 de julho de 2018 ISSN 1068-2341 Por uma Pedagogia Decolonial na América Latina: Convergéncias entre a Educagao Popular e a Investigagao- Agio Participativa Joao Colares da Mota Neto Universidade do Estado do Para Brasil CitagZo: Mota Neto, J. C. da. (2018). Por uma pedagogia decolonial na América Latina: Convergéncias entre a educacio popular e a investigago-acio participativa, Arquivos Anatitens de Politicas Educativas, 26(84). btp:/ /dx.doiorg/ 10.14507 fepas,26.3424 Resumo: O artigo analisa possibilidades de convergéncia entre a educagio popular e a investigagio~ acio participativa, tomando como referéncia 0 pensamento do pedagogo brasileiro Paulo Freire e do cientista social colombiano Orlando Fals Borda. Em particular, perscruta estas convergéncias com vistas a identificar elementos para a constituigio de uma pedagogia decolonial na América Latina. ‘Trata-se de uma pesquisa inscrida no campo da histéria comparada do pensamento social latino- ameticano, utilizando-se como fontes primarias diversas obras de Paulo Freire ¢ Orlando Fals Borda. O artigo defende o argumento de que a convergéncia entre a educacio popular ¢ a investigagio-acio participativa é uma das mais fecundas, criativas ¢ instigantes contribuigdes intelectuais jé produzidas na América Latina, capaz de apontar para uma pedagogia decolonial que enfrente o colonialismo intelectual, o tradicionalismo pedagdgico ¢ o autoritarismo da ciéneia modero-colonial. Palavras-chave: Pedagogia Decolonial; Educagio Popular; Investigigio-Agio Participativa; Paulo Freie; Orlando Fals Borda Pagina web: htp:/ /epaa asu.eds/ois/ Arsigo recebido: 22/9/2017 Facebook: /EPAAA, Revisées reeebidas: 26/2/2018 “Twiter: @epaa_aape Aceito: 26/2/2018 Por uma Pedagogia Decolonial na América Latina 2 ‘Toward a decolonial pedagogy in Latin America: Convergences between popular education and participatory action research Abstract: The article analyzes possibilities of convergence between popular education and participatory action research, taking as a reference the thought of the Brazilian pedagogue Paulo Freire and the Colombian social scientist Orlando Fals Borda. In particular, it examines these convergences in order to identify elements for the constitution of a decolonial pedagogy in Latin ‘America. It is a research inserted in the field of the comparative history of Latin American social thought, using as primary sources several works of Paulo Freire and Orlando Fals Borda. The article defends the argument that the convergence between popular education and participatory action research is one of the most fruitful, creative and instigating intellectual contributions ever produced in Latin America, capable of pointing to a decolonial pedagogy that confronts intellectual colonialism, Pedagogical traditionalism and the authoritarianism of modern-colonial science. Keywords: Freire; Orlando F \ecolonial Pedagogy; Popular Education; Participatory Action Research; Paulo s Borda Para una pedagogia decolonial en América Latina: Convergencias entre la educacién popular y la investigacién accién participativa Resumen: Bl articulo analiza las posibilidades de convergencia entre la edueacién popular y la investigacién-accién participativa, teniendo por base el pensamiento del educador brasilesio Paulo Freire y el cientifico social colombiano Orlando Fals Borda. En particular, examina estas convergencias con el fin de identificar elementos para la constitucién de una pedagogia decolonial en América Latina, Se trata de una investigacién inserta en el campo de la historia comparada del pensamiento social latinoamericano, utilizando como fuentes primarias varias obras de Paulo Freire y Orlando Fals Borda. Bl articulo plantea el argumento de que la convergencia entre la educacién popular y la investigacién accién participativa cs una de las contribuciones intelectuales mas fructiferos, creativas y estimulantes ya producidas en América Latina, capaz. de apuntar a una pedagogia decolonial que enfrente el colonialismo intelectual, el tradicionalismo pedagégico y el autoritarismo de la ciencia moderno-colonial. Palabras-clave: Pedagogia decolonial; Educacién Popular; Investigacion-Accién Participativa; Paulo Freire; Orlando Fals Borda Introdugao Na virada do século XX para o XX, uma parte da academia latino-americana € estadunidense viu emergir o debate sobre a decolonialidade. Os agentes principais desta inovagio sio intelectuais que desde o final dos anos de 1990 tém se reunido em torno de um programa de investigagao da modernidade/ colonialidade latino-americano, assim como foi inicialmente denominado por Arturo Escobar (2003), mas também ja chamado, por Santiago Castro-Gémez e Ramén Grosfoguel (2007), de grupo madernidade/colonialidade, e por Eduardo Restrepo ¢ Axel Rojas (2010) de coletividade de argumentario da inflexéa decolonial Este programa tem se constitudo a partir de uma contumaz critica 4s visdes eurocentradas da modernidade, propondo uma forma de entendé-la a partir de sua exteriridade, isso é, nfo por aquilo © por aqueles que estio fora da modernidade, mas pelo que foi subalternizado por ela, mais particularmente, pelo que foi periferizado pela faceta oculta da modernidade, chamada por eles de colonialidade, Unificou os autores do programa, cujos m Quijano e Walter Mignolo, a ideia de que a modernidads iores expoentes sio Entique Dussel, Anibal > € um fenémeno intraeuropeu, mas Arquivos Analtios de Poltcas Educativas Vol. 26, No. 84 3 uma construgio simbélica e hist6rica naseida da violéncia colonizadora ou da subalternizagio dos povos “originarios” da América Latina e de outras regides colonizadas do mundo, Individualmente ou em rede, os intelectuais do programa tém produzido um significativo conjunto de categorias de andlise sobre a modernidade/colonialidade, especialmente nos campos da filosofia, dos estudos culturais, da sociologia, da historia e da andliseliteriria. Eles tém procurado investir na construcio de uma perspectiva epistemolégica emergente desde a América Latina, um “paradigma Outro” (ao invés de mais um paradigma no contexto da ciéncia moderna), uma “cpistemologia de fronteira”, questionando a subalternizagio dos conhecimentos dos grupos, oprimidos de nossa regiao ¢ propondo uma légica de pensar diferente, que considere ¢ inclua a densa trama hist6riea ¢ simbélica que esta implicada em tais conhecimentos subalternos. Dentre os conceitos partilhados, ¢ que constituem parte da linguagem comum dos membros do programa, destaca-se o de declonialidade'. Na interpreragio de Castro-Gémez ¢ Grosfoguel (2007, p. 13), este conceito tem sido stil para questionar a ideia de que vivemos em um mundo descolonizado € pés-colonial instalado com o fim das administracdes coloniais ¢ a formagio dos Estados-nacdo na periferia, Contrapondo-se a essa ideia, o programa modernidade/colonialidade parte do pressuposto de que: 1a divisi6n internacional del trabajo entre centros y periferias, asf como la jerarquizacién étnico-racial de las poblaciones, formada durante varios siglos de expansién colonial europea, no se transforms significativamente con el fin del colonialismo y la formacién de los Estados-nacién en la periferia. Asistimos, mas bien, a una transiién del clonialismo moder a la colonialidad glohal, proceso que ciertamente ha transformado las formas de dominacién desplegadas por la modernidad, pero no la estructura de las relaciones centro-periferia a escala mundial (Castro-Gémez & Grosfoguel, 2007, p. 13). Entendem, assim, que o fim da guerra fria terminou com o colonialismo da modernidade, mas deu inicio 4 colonialidade global, entendida como um enredado padrio de poder que continuou sustentando, no chamado mundo pés-colonial, relagdes desiguais entre centro-periferia, bem como relagdes assimétricas de poder nas esferas raciais, de género e de trabalho. ‘Ao reconhecer que o fim do colonialismo nao significou a supressio das relagoes desiguais de poder otiginadas na situaco colonial, mas ressignificadas no capitalismo e na colonialidade global, os autores do programa defendem que devemos viver uma segunda descolonizacio, que complete a primeira, ¢ que estenda a emancipagio para um nivel mais amplo que © meramente juridico-politico, incluindo a economia, a ciéncia, a igualdade racial e de genero, a educagio € a ctiagio de novas formas de sociabilidade e de interagio com as pessoas, as culturas ea natureza, Ea esta segunda descolonizacio que se tefere 0 conceito de decolonialidade’, | Walsh 2014) esclarece que ainda que o programa modemnidade/colonialidade tenha comegado a usar 0 termo cm 2004, sua heranga é muito mais ampla que este grupo, Afirma que as feministas chcanas queer Chela Sandoval e Emma Perez ji se referiam a decolonialidade e a0 decolonial desde as décadas de 1980 e 1990. Nas décadas de 1950 ¢ 1960, Frantz Fanon pensou na descolonizagio em termos similares aos que sustentam a concepeio decolonial de hoje. E, evidentemente, os povos indigenas da América Latina, por mais de 500 anos, tém empreendido formas de luta decolonial. Por isso, considera que programa nao inventou, propriamente, o conecito, mas contribuiu para sua visibilidade, particularmente no mundo académieo- intelectual, ¢ para sua utilizagio como uma categoria de anise. 2 Restrepo € Rojas (2010) reforgam as diferengas entre os conceitos de descolonizacio (a primeira descolonizacio, nos termos de Castro-Gémez ¢ Grosfoguel) ¢ decolonialidade. Por descolonizacao se indica tum processo de superagio do colonialismo, geralmente associado fs lutas anticoloniais no contexto de estados coneretos, 20 passo que decolonialidade se refere ao processo que busca transcender historicamente a Por uma Pedagogia Decolonial na América Latina 4 Na esteira destes autores, utilizamos o conceito de decolonialidade como um questionamento radical e uma busca de superacio das mais distintas formas de opressio perpetradas pela moderidade/colonialidade contra as classes € os grupos sociais subalternos, sobretudo das tegides colonizadas ¢ neocolonizadas pelas metr6poles euto-norte-americanas, nos planos do existit humano, das relagdes sociais e econdmicas, do pensamento da educacio (Mota Neto, 2016). A construgio da perspectiva decolonial se da mediante o didlogo com formas nio ocidentais € nao académicas de conhecimento, mas também encontra inspiracio em um amplo niimero de fontes teéricas produzidas no Sul global, como a América Latina, Africa e Asia. Segundo Escobar (2003), algumas destas fontes so a teologia ¢ a filosofia da libertacZo, a teoria da dependéncia, 0 grupo sul-asidtico dos estudos subaltcrnos, a teoria feminista chicana, a teoria pés-colonial ¢ a Filosofia africana, ‘Com base em trabalho anterior, defendemos o argumento de que a educagio popular © a investigaaa-agao participativa (LAP), em patticular no que toca is contribuigdes teéticas do pedagogo brasileiro Paulo Freire (1921-1997) e do cientista social colombiano Orlando Fals Borda (1925 2008), devem estar inseridas na genealogia da decolonialida . Por seus significativos aportes & critica da colonialidade enraizada nas ciéncias sociais e na educacio e, sobretudo, por aptesentarem elementos de descolonizagio do pensamento, do fazer cientifico ¢ da pedagogia, Fé nesta direcio que o presente artigo busca analisar possibilidades de convergéncia entre a le na América Lati educagio popular e a investigagio-acio participativa, tomando como referéncia os dois intelectuais, mencionados, com vistas a identificar suas contribuigdes para uma pedagogia decolonial na América Latina, ‘Trata-se de um artigo situado no campo da histéria comparada do pensamento social latino. americano, utilizando-se como fontes primérias diversas obras de Paulo Freire ¢ Orlando Fals Borda, escritas em diferentes momentos de suas trajetérias intelectuais. Na primeira parte do artigo, tratamos de conceituar ¢ caracterizar a educagio popular ca investigacio-a¢ao participativa, analisando especialmente seus pontos de convergéncia. [Em seguida ¢ por fim, refletimos sobre uma pedagogia decolonial como expressio da educardo popular perquisadora ¢ partiipativa, nos termos dos autores analisados. Convergéncias entre a Educagio Popular e a Investigacao-acao Participativa (IAP) As décadas de 1960 ¢ 1970 sio de grande efervescéncia politica ¢ intelectual na América Latina, A lota contra as ditaduras civil-militares que varriam varios dos paises de nosso continente correspondia, no plano intelectual, a luta contra a ditadura do pensamento nico, hegeménico, rnstrugdes intelectuais mais auténomas, que buscavam exprimir as contradigdes € problemiticas proprias de nossas sociedades latino-americanas, foram emergindo em vatios campos do conhecimento ¢ deram origem, por exemplo, A /eoria da dependéncia, & teologia da libertasao, a0 teatro do oprimido, & flesofia da libertagao ©, a0 que nos interessa mais de petto neste artigo, A educaio popular e A investigardo-aso partcipatina, Segundo Mejfa (2013), a reagio contra o eurocentrismo que earacteriza estas construgses intelectuais dos anos 1960 constitui o “gérmen de um pensamento proprio latino-americano”, que colonialidade, isso €, subverter 0 padrio de poder colonial, que permaneceu mesmo apés 0 fim da situaglo coloaial, Arquivos Analtias de Poltcas Educativas Vol. 26, No. 84 5 buscou diferenciar-se das formas eurocéntricas de conhecimento € das perspectivas de leitura da América Latina a partir “de fora”, possibilitando a articulacio de um conjunto de linhas de aco discutsos tedticos criticos ¢ anticoloniais, tais como a educacio popular ¢ a LAP. Vale ptecisar que o termo “educagio popular”, na América Latina, tem histéria antiga € remonta as lutas de independéncia dos paises latino-americanos no século XIX. Naquele contexto, educagio popular era entendida como instrugio pablica para todos, fundamentada em um discurso liberal que associava educagao 20 “espirito” republicano do progresso ¢ da liberdade. ‘Ao longo do tempo, 0 termo sera ressignificado. Nos anos 1960, ao redor das experiéncias politico-pedagégicas de Paulo Freire no Brasil, a educagio popular assume uma oricatagio “libertadora”, profundamente mais critica ¢ radical, que ja nao se limitava a defender a universalizacao da escola, mas que questionava os principais pilares que sustentavam a educagio moderno/colonial. Mais do que isto, questionava os fundamentos mesmos da sociedade capitalista, as remanescéncias da situagio colonial ¢ toda forma de opressio social, de raga e género, defendendo uma mudanga estrutural da sociedade ¢ da educacio. Educagio popular, nesta petspectiva, designa ao mesmo tempo um movimento (uma pritica, uma experiéncia, um processo de luta) € um paradigma (um discurso, uma teoria, uma ideologia), que tem como objetivo, por meio da educagio, empoderar as classes populares para que enfrentem diversas modalidades de opressio, lutando assim por uma sociedad solidaria ¢ inclusiva Para Moacit Gadotti ¢ Carlos Alberto Tortes (1994, p. 8), a educagio popular € “um paradigma teérico que surge no calor das lutas populares. Trata de codificar ¢ decodificar os temas geradores dessas lutas, busca colaborar com os movimentos sociais e os partidos politicos que expressam essas lutas”, Para eles, a educagdo popular trata, assim, “de diminuir o impacto da crise social na pobreza ¢ de dar vor & indignacao c ao desespero moral do pobre, do oprimido, do indigena, do camponés, da mulher, do afro-americano, do analfabeto ¢ do trabalhador industrial” (p. 8) De acordo com Carrillo (2012, p. 22), enfatizando as intencionalidades transformadoras da educagio popular, este conceito designa um conjunto de priticas sociais ¢ elaboragdes discursivas no Ambito da educacao “cuya intencionalidad es contribuir a que los diversos segmentos de las clases populates se constituyan en sujetos protagonistas de una transformacién de la sociedad en funcién de sus intereses y utopias”. Para este mesino autor, © que define a educagio popular é sua conviecio de que sio 0s préprios sujeitos populares — chame-se de classe operéria, setores populares, movimento popular ou movimentos sociais — 0s chamados a levat 2 cabo as transformagGes sociais que garantirio a sua libertagio, Mas, ao mesmo tempo, a educagio popular assume que sua tarefa € contribuir para que estes sujeitos populares se construam, se fortalegam e teconhegam sua capacidade de protagonismo histérico (Carrillo, 2012). Brandio (1994), por sua vez, aptesenta quatro caractetisticas da educacio popula latino- americana, que vém sendo assumidas desde os anos 1960) nos diversos projetos inscritos nessa legenda. Sao elas: 1— A educagio popular propde uma teoria renovadora de relagdes homem — sociedade — cultura — educagio e uma pedagogia que pretende fundar, a partir destas, relagdes, uma educacio libertadora. 2.— A educacio popular realiza-se inicialmente no dominio especifico da educagio de adultos das classes populates, definindo-se, aos poucos, como um trabalho politico de libertagio popular ¢ de conscientizagio dos movimentos populares. 3 — A educacao popular afasta-se de ser apenas uma atividade de escolarizagio popular (o autor da como exemplos a alfabetizacio ¢ a pés-alfabetizagio) pata ser toda € qualquer pratica sistemtica de intercimbio de saber, partindo das proprias, priticas sociais populares. Por uma Pedagngia Decolonial na América Latina 6 4— A educagio popular € um trabalho politico de mediagio a servigo de projetos, sujeitos © movimentos populares de classe, visando a construgio de uma nova hhegemonia no interior da sociedade capitalista dependente, Nao 4 toa, a educagio popular tem sido considerada como uma das maiores contribuigdes que a América Latina deu a pedagogia e ao pensamento social mundial, Suas intuigdes originais, igndas no somente @ construgao de uma nova pedagogia, mas também 4 epistemologia que Ihe funda, somadas a uma praxis sensivel 4 dor de pessoas e grupos oprimidos, renderam-Ihe notoriedade e um varivel destaque nas academias universitérias, mas, sobretudo, nos movimentos sociai ‘Muitas das experiéncias de educagio popular iniciadas nos anos 1970 articularam-se na década seguinte em torno do Conselho de Educacio de Adultos da América Latina e do Caribe (CEAAL)’, 0 qual se converteu, por meio de suas redes, publicagdes ¢ eventos, no principal foro de discussio ¢ de consteucdo da educacdo popular como campo intelectual critico, na avaliagao de Valencia ¢ Cartillo (2011). Gadotti e Torres (1994), tendo em vista o cariter plural da educagio popular, enumeram alguns dos seus locais de experimentacio na América Latina: a educacio popular vinculada aos movimentos sociais, como no estado de S40 Paulo; 8 comunidade educativa, como no projeto de Pais ¢ Fithos em Santiago, no Chile; a educagio popular vinculada a reformas revoluciondrias do Estado, como a da Nicarigua e a de Granada; a educagio indigena mapuche nos pampas argentinos; a formacio de cooperativas nas agrestes montanhas Tarahumaras no México; ou as eampanhas de alfabetizagio no Fquador, apoiadas pelo setor piblico e pelas organizagdes da sociedade civil e inspiradas na melhor tradigio transformadora da educacio popular, além de diversas experiéncias de educagao popular de género, o sem-ntimero de movimentos de afirmacao da mulher, a minculao entre educagio popular e pesquisa partiipante et. A vinculagio entre a educagao popular ¢ a pesquisa participante (chamada na Colémbia de investigacio-acio participativa) é 0 que aproxima, portanto, os pensamentos de Paulo Preise € Oslando Fals Borda. J4 explicitada a concepedo de educacdo popular, o que vem a ser a IAP ¢ como clas se articulam? AAP é,a um s6 tempo, um método de investigasio, uma Honica educativa € uma agao politica. Nao € somente investigar, nem somente educar, nem somente atuar. F, uma triade permeada por uma filosofia de vida, que a satura como um todo € com a qual se poderia reconstruir a sociedade como uma forga nova. A TAP é, desse modo, uma metodologia dentro de um processo viveneial (Fals Borda; Zamosc, 1985). Combinando a pesquisa cientifiea com a acio politica, 2 TAP visa a transformar radicalmente a realidade social e econdmica e construir 0 poder popular em beneficio dos excluidos. Neste complexo proceso estio incluidos a echucacio popular, o diagnéstico das situagdes, a anilise eritica € a pritica como fontes do conhecimento para sondar os problemas, as necessidades ¢ as dimensdes da realidade (Fals Borda, 1985). Os propésitos finais da IAP, de acordo com Fals Borda (1985), sfo os de: 1) capacitar as, classes ¢ grupos explorados para engendrar com eficdcia o peso transformador que Ihes, corresponde, traduzido em projetos, obras, lutas ¢ desenvolvimentos concretos; ¢ 2) produzir ¢ claborar 0 pensamento sociopolitico proprio de tais bases populares. Em suas proprias palavras, Fals Borda (1998, p. 182) assim definiu a IAP: un método de estudio y accién que va al paso con una filosofia altruista de la vida para obtener resultados iitiles y confiables en el mejoramiento de situaciones colectivas, sobre todo para las clases populares. Reclama que el investigador 0 5 Ataalmente rebatizado para Conselho de Educagio Popular da América Latina ¢ do Caribe. Arquivos Analiias de Poltcas Educativas Vol. 26, No. 84 7 investigadora base sus observaciones en la convivencia con las comunidades, de las que también obtiene conocimientos vilidos. Es inter 0 multiiseiplinaria y aplicable en continuos que van de lo miero 2 lo macto de universos estudiados (de grupos a comunidades y sociedadles grandes), pero siempre sin perder el compromiso existencial con la filosofia vital del cambio que la caracteriza. Do excerto acima, podemos definir a [AP como “um método de estudo e ag2o” e “uma filosofia de vida”, que visa “melhorar a situagio de vida das classes populares”, ¢ cuja produgio do conhecimento bascia-se “na convivéncia com as comunidades”, na “inter ou multidisciplinaridade” ¢ no “compromisso existencial” entre os distintos sujcitos da investigacio. A LAP é uma experiéncia politico-pedagégica, no preciso sentido da educacio popular, na medida em que busca armar ideolégica c intelectualmente as classes mais exploradas da sociedade, para que estas assumam conscientemente o seu papel como atores da historia, Para Fals Borda (1978), este & 0 destino final do conhecimento, validado pela prixis ¢ orientado pelo compromisso revolucionitio. Seguindo o sentido da educacio popular como processo politico-pedagdgico de organizacio das camadas populates, Fals Borda (1985) considera a IAP como um método cientifico de trabalho produtivo (¢ nio apenas de investigacio), que implica organizar ¢ impulsionar movimentos sociais de base, de modo que resulta dificil e improdutive distinguir entre estuco e militincia, AAP, portanto, como estratégia de produgio e difusao do conhecimento, como mecanismo de organizacio das hatas das camadas populares e como ferramenta conscientizadora ¢ de educacio das massas, assume-se como uma nadalidade de educacio popular, em nossa perspectiva. Neste mesmo sentido, o educador popular Carrillo (2010) propde a compreensio da IAP como uma “pedagogia da praxis”. Diz cle: ‘A partir da perspectiva pesquisadora e pedagégica da IAP, a superagio entre sujeito € objeto de conhecimento e de ensino deve set superada pelo principio da “reciprocidade simétrica”, esta parte do reconhecimento de pesquisadores € pesquisados, educadores ¢ educandos como sujeitos “sentipensantes”, assim como, da necessidade de vinculos horizontais ¢ da construcio coletiva de conhecimento. ‘Também implica que, em toda pesquisa participativa, se deva realizar uma “devolugio sistematica” ou socializagio pedagogica dos resultados, fazendo uso da combinacio de linguagens narrativas ¢ analiticas (Carrillo, 2010, p. 357). Embora desde o seu inicio, nos anos 1970, a IAP jf apresentasse este componente pedagégico — Freire, nZo a toa, é considerado por Fals Borda como um antecedente desta metodologia -, com 0 passar do tempo o didlogo de Fals Borda como o movimento da educacio popular vai se aprofundando, bem como com outras expresses da pedagogia critica, como Ivan Illich, John Eliott ¢ Stephen Kemmis Em relagao origem da IAP, Fals Borda (1986) menciona quatro correntes intelectuais Jatino-americanas que para ele estiveram na base de sua formulacio: 1) a teoria econdmica da CEPAL, 0 duo brasileiro Fernando Henrique Cardoso ¢ Enzo Faletto, conectados com Celso Furtado € outros na formulagio da feoria da dependéncia, ¢ que pata ele foi o primeito grito de independéncia intelectual latino-americano; 2) uma releitura do marsismo, superando © dogmatismo € © colonialismo intelectual de esquerda, que pode ser encontrado na obra de Pablo Gonzalez Casanova, Agustin Cueva, Edelberto Torres Rivas, entre outros; 3) a contrateoria da subversio, vivenciada na pritica revolucionaria de Camilo Torres; € 4) a educa papular de Paulo Freire © a contribui¢io do “dialdgico” como forma de superacio da dicotomia sujeito-objeto. Por uma Pedagogia Decolonial na América Latina 8 A convergéncia entte a educacio popular ea IAP tornou-se conhecida em toda a América Latina por meio da influéncia do CEAAL, entidade que chegou a ser presidida pelos préprtios Paulo Freite ¢ Orlando Fals Borda em momentos distintos dos anos 1980 ¢ 1990, Neste sentido, Lola Cendales e Jairo Mufioz (2013) destacam que a articulagio entre a investigagio-agio patticipativa ea educagio popular constitui o niicleo politico-epistémico fundante do CEAAL. Alias, o préprio Fals Borda (2004) jé havia antes afirmado que a formula somatéria EP + IAP parece ser um dos aportes principais do CEAAL, e que inclusive esta foi uma das conclusdes do 9* Congresso Mundial de Investigasio-Agao ¢ Gestio de Processos realizado na University of Ballarat (Australia), em 2000. ‘Como principal entidade aglutinadora de educadores populares ¢ maior expresso continental do movimento libertador da educacao popular, o CEAAL, por meio de Paulo Freire, Fals Borda e outros, contribuiu para pensar a educacao popular em suas vinculagdes com a critica do colonialismo intelectual ¢ a necessidade de se reinventar 2 pesquisa social, com procedimentos patticipativos ¢ dialégicos. fase na particpagdo, segundo o entendimento de Fals Borda (2004), constituiu um dos principais aportes da IAP 4 educacio popular, o que reforcaria a sua busca origindria de superar a telacio vetticalizada entre sujeito (professor) ¢ objeto (aluno). Pata o socidlogo, a essa dimensio dialigica interpessoal somam-se outras contribuigoes: epistemaligica, pela afiemagio do diflogo de saberes; institucional, pela necessidade de construgio de universidades ou escolas participativas; € paradignétice, pelo estimulo 4 constituigao de novos modos de conceber a realidade e produzir conhecimento, (Outta contribuigao fundamental de Fals Borda para a educacio popular reside na defesa do principio de que 0 educador é um investigador, cuja inspiragio Ihe veio pelas maos dos educadores ingleses Lowrence Stenhouse ¢ John Elliot ¢ do educador australiano Stephen Kemmis, mas que também converge com o pensamento de Paulo Freire, que ha muito jé defendia essa ideia. Pals Borda acreditava (2010 (1995}) que houve um salto qualitativo na educagio popular a partir da combinagio da docéncia com a pesquisa, estimulada pelo CEAAL. Dizia que os educadores devem envolver-se com tarefas de pesquisa participativa para conhecet melhor a tealidade escolar € comunitéria; para vincular € motivar os estudantes de todas as idades, até que cheguem ao ponto de serem gestores de sua prdpria aptendizagem; e para afirmat o papel de lideranga ¢ orientacio coletiva que tém os professores. A partir dessa combinagio, a sala de aula seria concebida como um. “sistema articulado de comunieacién, investigacién y construceién del conocimiento entre todos sus estamentos, para llegar a una especie de comunidad educativa integral” (Fals Borda, 1998, p. 208). Fals Borda (2010 [1995)) defendia, nestes termos, uma educacao popular pesquisadora ¢ partcipativa, fazendo convergit os elementos da pedagogia freireana com 0 seu proprio pensamento sobre investigacao participativa, Educagio popular que, como veremos, é expressio de uma pedagogia decolonial nascida em nosso continente latino-americano. A Pedagogia Decolonial como Expresso de uma Educagao Popular Pesquisadora e Participativa Se o pensamento decolonial denota as priticas epistémicas de reconhecimento ¢ transgressio da colonialidade, que se produziram na América Latina e em outras repides colonizadas como respostas 4 situac2o de dominasio, podemos dizer que a pedagogia decolonial refere-se as teorias priticas de formac3o humana que capacitam os grupos subalternos para a luta contra a logica opressiva da modernidade/colonialidade, tendo como horizonte a formacio de um ser humano ¢ de uma sociedade livres, amorosos, justos ¢ solidarios. Arquivos Analties de Poltcas Educativas Vol. 26, No. 84 9 Para Walsh (2013), 0 enlace do decolonial com © pedagdgico comeca com a invasio colonial- imperial e as resistencias 2 ela. A pedagogia, portanto, deve ser vista no contexto das lutas decoloniais, que pretendem a viabilizagio da humanidade contra a matriz colonial ¢ seu padtio de racializagio-desumanizagio que ha mais de 500 anos vém oprimindo e vitimando homens € mulheres. As pedagogias decoloniais so ages que promovem e provocam fissuras da ordem moderno/colonial, as quais tornam possfvel ¢ dio sustento e forga a um modo distinto, inteiramente outro, de estar no ¢ con 0 mundo (Walsh, 2014), Para Diaz, (2010), por sua vez, uma pedagogia decolonial assume como horizonte de trabalho as categorias propostas pelo “giro decolonial”, scus significados ¢ propésitos, mas de uma mancira que 0 pedagégico seja 0 cixo, 0 horizonte ¢ o dispositive para sua coneretizacao. Neste sentido, as pedagogias decoloniais estimulam o pensar a partir de genealogias, racionalidades, conhecimentos, priticas ¢ sistemas civilizatérios ¢ de vida distintos. Sao pedagogias que incitam possibilidades de estar, ser, sentir, existit, fazer, pensar, olhar, escutar e saber de outro modo, pedagogias encaminhadas cm directo a processos € projetos de cariter, horizonte ¢ intencio decoloniais (Walsh, 2013). Catherine Walsh afirma que esta concepeio se alia 4 chamada pedagagia critica iniciada pot Paulo Freite nos anos 1960 ¢ retomada por muitos educadores populates ¢ ativistas-intelectuais 20 redor do mundo até os anos 1990, quando comega a enfraquecer devido 20 auge do projeto neoliberal e & dissipacio da utopia revolucionaria marxista, no contexto da queda do muro de Berlim € da fragmentagio da Unido Soviética (Walsh, 2013). No entanto, também nos anos 1990, emerge com forca os movimentos indigenas no continente latino-americano, renomeado como Abya Yala! Deste momento em diante, a luta por transformagio é redirecionada e ressignificada. Afirma Walsh, (2013) que jé nao esta em pauta apenas a questo social, ligada & equidade ¢ A climinacio da desigualdade, mas também as questées étnicorraciais assumem lugar de destaque ¢ d30 novos contornos e propésitos 4 pedagogia, hoje também chamada de decolonial. "Tendo por base esta concepcao de pedagogia decolonial, como podemos percebé-la no seio da educacio popular latino-americana? Como Freire Fals Borda se articulam ¢ contribuem para a construcio deste projeto a partir da educagio popular? Quais os elementos de convergéncia, presentes no idedrio sociopedagégico dos dois autores, que se entrelagam com a concepgio pedagégica decolonial? Paulo Freire ¢ Orlando Fals Borda, insctitos no movimento da educagio popular latino- americana, sio referencias intelectuais politicas deste projeto de afirmagio de uma pedagogia decotonial, Fles fornecem elementos fundamentais para a articulagio entre 0 pedagégico e 0 decotonial, isso é, tanto para pensar pedagogicamente a decolonialidade quanto para refletir, em termos decoloniais, sobre a pedagogia. Procuraremos explorar esta afirmacio sustentando que em Freire e Fals Borda a concepsio de pedagogia decolonial: a) requer educadores subversivos; b) parte de uma hipétese de contexto; c) valoriza as memérias coletivas dos movimentos de resisténcia; d) esta em busca de outras coordenadas epistemolégicas; ¢) afitma-se como uma utopia politica Pedagogia que Requer Educadores Subversivos "Tanto em Freire quanto em Fals Borda encontramos a ideia de que nao é possivel apartar a subjetividade, da objetividade; o ctiador, da criatura; o educador, da educagio; 0 individuo, da sociedade, Ou seja, no se pode construir uma pedagogia decolonial com educadores que atuem de « Abya Ayla € 0 nome com que os indigenas Kuna, do Panamé e da Colémbia, chamavam o continente americano antes da Conquista espanhola, Significa “terra de plena maturidade” ou “terra de sangue vital” Por uma Pedagngia Decolonial na América Latina 10 modo a reproduzie © modus operandi da opressio. Afinal, o colonialismo nfo se expressa apenas no plano do pensamento, mas também no das priticas e das relagdes sociais, Portanto, uma pedagogia decolonial requer educadores subversivos, no sentido falsbordiano de que a subversio esta ligada, teleologicamente, a um projeto de reconstrugio da sociedade (Fals Borda, 2008 [1967)). Requer, em termos freireanos, educadores progressistas, democriticos, criticos, que desenvolvam estratégias de trabalho que possibilitem aos oprimidos revelarem sua situagio de opressio e se engajarem na luta por sua transformacao (Freire, 1987) Freire e Fals Borda, seja em seus escritos, seja em suas trajetérias, delineiam o perfil de um. educador decolonial. Trata-se de alguém comprometido politicamente com as classes populares ¢ os grupos oprimidos; com sensibilidade ética para lidar com a dor ¢ o sofrimento do outro; que tenha capacidade de lideranga democritica, impulsionando projetos coletivos e sendo guiado por eles; com humildade c fé na capacidade das pessoas mais sofridas; que possua respeito pelos saberes populares € conhecimentos ancestrais, embora sem ser populista; que desenvolva capacidade de trinsito em distintos espagos sociais, sabendo que seu lugar prioritirio ¢ ao lado dos movimentos de resistencia; que seja auténtico nas suas relagdes com as camadas populares, ou seja, que demonstre seu compromisso orginico, mas sem pretender se confundir com elas Este vinculo orginico e participative com os subalternos, que € uma caracterfstica do edueador decolonial subversivo, requer, também, que ele desenvolva sua pedagogia a partir das fissuras ou das feridas abertas pela colonialidade/modernidade, ou seja, que ele seja um testemunho critico da opressio e um transgressor das relagdes de dominacio, junto com os outros oprimidos. Por isso, no cabe a arrogiincia, o elitismo e 0 acadlemicismo to presentes nos educadores bancérios tradicionais, devendo-se abrir espaco para um didlogo franco e constrativo com as bases, como 0 fizeram em vida ¢ obra Freire ¢ Pals Borda. Freire, neste sentido, construiu os primeiros tragos de sua pedagogia junto aos famintos ¢ aos pobres do Nosdeste brasileiro, Mas os oprimidos com os quais dialogou ao longo de sua trajet6ra sentipensant’, ao redor de todo 0 mundo, incluem os trabalhadores rurais sem terra € 08 operitios da construgio civil do Brasil, os camponeses chilenos, as mulheres de cor € 0s negros dos _guetos estadunidenses, os imigrantes na Europa, os revolucionatios sandinistas da Nicaragua, os afticanos em luta independentista, dentre muitos outros. Fals Borda, também, construiu a investigacio-aglo participativa (IAP) e a educacio popular na Colémbia em intimo dilogo com os campesinos andinos € easferas, os negros dos palenguet ¢ os indigenas da Amazdnia colombiana. O educador decolonial, por isso mesmo, enfrenta junto com os oprimidos os seus desafios € suas sitaie-limites. Eneste sentido que Freire e Fals Borda nfo s6 apoiaram intelectualmente a diversos movimentos de resisténcia e processos revolucionérios, como se engajaram coneretamente neles. Vale lembrar que ambos estiveram juntos na Revolugio Sandinista e na Africa p6s-colonial, contribuindo, a partir da educagio popular e da IAP, para a luca revolucionaria. Ambos estiveram envolvidos, também, na construgio de partidos politicos democriticos, assumindo com radicalidade a natureza politica da educacio popular e da pesquisa social ‘Mas, com capacidade de trinsito, ambos se movem entre a politica, a luta revolucionétia, os movimentos sociais, a academia, 0 governo ¢ as organizacées nao governamentais, o que fornece uma feigio frontirca 20 perfil de educador decolonial que estamos aqui deseavolvendo, Na realidade, 5"Teemo exiado por Fals Borda, para quem sentipensante é “aquella persona que trata de combinar la mente con el corazén, para guiar la vida por el buen sendero y aguantar sus muchos tropiczos” (2003, p. 9}."Trata-se, assim, de uma aposta na possibilidade de um outro perfil de educador, de investigador, de militante e de intelectual, em franca oposicio A atitude fria e supostamente neutra do cientista positivist, tradicional ¢ euroeéntrico. ©O equivalente colombiano dos quilombos brasilciros. Arquivos Analtios de Poltcas Educativas Vol. 26, No. 84 n no se trata apenas de viver na fronteira ou de pensar a partir dela, mas de ser politcamente estratégico, endo o contexto € verificando em quais espacos sua atuaco poderia surtir os melhores efeitos. Pedagogia que Parte de uma Hipétese de Contexto Outro legado de Freire e Fals Borda para a pedagogia decolonial € 0 ensinamento de que a educagio, para tet sentido e ser efetiva, precisa estar “organicamente” ligada is situag6es de vida dos grupos oprimidos ¢ & sua realidade regional, nacional e transnacional Orlando Fals Borda chamou de hipétese de contexto para a necessidade de adequagio dos marcos de referéncia cientificos aos contextos geogrificos, culturais ¢ histéricos concretos, caso cfetivamente se queira enfrentar o colonialismo intelectual ¢ construir uma ciéncia prépria latino- americana (Pals Borda & Mora-Osejo, 2007). Paulo Freire (1987, 2003, 2008), no mesmo sentido, desde os seus primeiros escritos, foi ctitico do mimetismo intelectual ¢ das “teceitas prontas” vindas de contextos exégenos 4 realidade local dos trabalhos de edueagio popular. Dizia que para que seja transformadora, a educagio deve estar ligada aos interesses das camadas populares, superando a invasio cultural que ha séculos tem servido como instrumento de dominagio dos opressores sobre os optimidos. Uma pedagogia decolonial, em nosso entendimento, deve partir desta hipétese de contexto que esté presente nas ideias tanto de Freire quanto de Fals Borda. Ora, nfo € possivel enfrentar a invasio cultural, a coloniatidade e © colonialismo intelectual e pedagégico se nao aprendermos a estabelecer outta relagio com o saber local, com as histérias de vida dos educandos, com as necessidades concretas dos movimentos sociais, com os desejos e os medos das classes populares. Desse modo, a educagio popular, ao enfrentar essa racionalidade estreita, cotalitiria, propondo o que Fals Borda (2010 [2005]) chamou de didiago de saberes ¢ Freire (1987) de siutese cultural, contribui para a consolidacio de uma pedagogia decolonial em nosso continente, valorizando as culturas populares, as memérias c os saberes das classes populares. ‘A partir da leitura dos dois autores, entendemos que o reconhecimento do contexto conereto a valorizagio dos sabetes culturais se dio a partir de dois mecanismos: por um lado, por meio da pesquisa, que Pals Borda (1985) chamou de investigardo-arao partiipativa, como ja sabemos, ¢ Freire (1987) de pesquisa do universe tematic; por outro, através do didlogo profundo, construtivo € permanente com as camadas populares, em todos os momentos do processo educativo. Hi uma série de convergéncias entre as duas concepedes de pesquisa. Em primeiro lugar, ambas estio ligadas a uma intencionalidade transformadora. Nao sio apenas um recurso de “descoberta” da realidade, mas uma estratégia de leitura eritica do mundo e conscientizacio dos grupos oprimidos para a mudanga social. Em segundo lugar, tanto a IAP quanto a pesquisa do universo tematico (ou investigagao dos temas geradores) superam a dicotomia sujeito e objeto tipica das pesquisas tradicionais. Em terceito lugar, consequentemente, 2 investiga¢io assume um carder dialogico e participativo, sendo as classes populares protagonistas da investigacio/educa¢io/mudanga social Pedagogia que Valoriza as Memérias Coletivas dos Movimentos de Resisténcia Procedimento de fandamental importincia para a pedagogia decolonial, e que constitui parte do legado intelectual de Paulo Freire e Orlando Fals Borda, é a valorizagio das memérias coletivas dos movimentos de resistencia, Estes movimentos, ha mais de 500 anos, tém resistido & dominagio colonial, imperial, capitalista, armazenando em seus acervos seculares (¢ até milenares) de conhecimento uma série de estratégias de sobrevivéncia ¢ enfrentamento da opressio. Sio conhecimentos que, apesar do epistemicidio promovido pela modetnidade/colonialidade, teimam em tesistir, ¢ sio repassados de peragio a geragio pot meio de Por uma Pedagogia Decolonial na América Latina 12 priticas formativas muito peculiares, que infelizmente a ciéncia pedaggica, de dominincia positivista e eutocéntrica, tem ignorado. ‘Mas qual a importincia da memétia coletiva e como isso articula Freire, Fals Borda ¢ a decolonialidade? Para Walsh (2013), a meméria coletiva tem sido o espago onde se relaciona, na pritica mesma, o pedagdgico ¢ o decolonial, Por isso, a autora nos diz. que a pedagogia decolonial esta relacionada as memérias que os povos indigenas ¢ afrodescendentes, por exemplo, vieram mantendo como parte de sua existéncia e de sua luta, Para ela, a meméria coletiva articula 2 continuidade de uma aposta decolonial, é como “este vivir de luz y libertad en medio de las tinieblas” (2013, p, 26). Para Marin (2013), os projetos ¢ as priticas no campo da meméria podem ser concebidos no interior do horizonte da decolonialidade, por dois motivos: primeiro, pela visibilizagio de spistemes que foram subalternizadas pela légica do poder colonial e pela colonialidade; segundo, porque mobilizam dinimicas de transformagio dos legados coloniais que ainda hoje persistem. Ainda de acordo com Marin (2013), a recuperacio coletiva, segundo Fals Borda ¢ Freire, nos mostrou a possibilidade de produzir conhecimento a partir da prixis politica e ética, assim como 2 pattir das diversas logicas de saber no interior dos setores populares. Em conseq a produzit “outras” natrativas histéticas, que assumiram forma dissidente em telagio 4s oficiais, apontando para um conhecimento produzido no seio do movimento popular. Com efeito, compée a proposta da LAP o que Fals Borda (1985) chamou de reuperapao cleiva da bistiria, que visa 2 recontar 2 histéria a partir do ponto de vista dos “oprimidos”, das classes populares, dos campesinos, dos indigenas, dos negros, dando visibilidade a seus herdis, a suas lutas, 1a suas tradigGes artisticas, a suas memérias, em geral silenciadas ou deturpadas pela histéria oficial. rias classes populares, com a ajuda dos intelectuais orginicos, que contribuem pela restituigio sistematica ow para a Esta recuperagao, na concepsio falsbordiana, deve ser feita pelas pr6 popularizacio de técnicas de pesquisa cientifica, tornando a investigacio um procedimento dialégico € conscientizador. E. assim que a proposta de Fals Borda se soma ao pensamento de Paulo Freire, que também. defenden a investigacio do universo temitico, a selegio dos temas e das palavras geradoras, 0 didlogo com as comunidades populares, a valorizacio do saber de experiénda feito, 0 protagonismo das classes populares na construcio do conhecimento ¢ a sintese cultural entre o saber popular ¢ o saber cientifico (Freire, 1987) A construgio de uma ciéneia popular, fecundada no dilogo entre saberes, na recuperacio coletiva da histéria e na intencionalidade transformadora e educativa de todo e qualquer procedimento de construcio do conhecimento apresenta-se, em nossa visio, como um fundamento de uma pedagogia decolonial latino-americana ¢ uma ligio ensinada por Freire e Fals Borda para 0 movimento da educagio popular e para as ciéncias sociais erfticas em nosso continente. rneceu contribuigdes neste sentido da recuperacio coletiva, quando, por exemplo, Pedagogia em Busca de Outras Coordenadas Epistemolégicas Freire ¢ Fals Borda constrairam contundentes criticas 20 colonialismo ¢ a colonialidade também no plano do pensamento cientifico ¢ filos6fico. Pals Borda (1970), desde o inicio dos anos 1970, quando publica Ciencia Propia y Colonialisme Intelectual, denunciou © colonialismo intelectual ¢ © eurocentrismo que, reproduzido nas academias de toda a América Latina, reforcam o silenciamento de nossa realidad ¢ inferiotizam nossos quadros intelectuais, Freire (2003), jé na sua tese elaborada pata ingresso na cadeira de Historia ¢ Filosofia da Educagio da entio Universidade do Recife, critica, junto ao aspecto epistemoldgico, a forga do colonialismo que se faz presente no patriarcado, no tacismo, no latifiindio, na invasio cultural, na cultura do siléncio, na violéncia, no mutismo, na passividade, no assistencialismo. Arquivos Analtias de Poltcas Educativas Vol. 26, No. 84 13 Ambos estavam muito conscientes das relagdes inteinsecas entre colonialismo intelectual, capitalismo, racismo, patriarcado ¢ imperialismo, propondo repensar a pedagogia e as ciéncias sociais —consequentemente 2 educagio popular ~ a partir de bases nfo eurocéntricas, mas endgenicas, 908 termos de Fals Borda (2007). Fm suma, defenderam a nossa autonomia intelectual € o nosso diteito A autodeterminago, ou seja, a possibilidade de os povos do Sul trilharem o seu préiprio caminho, o que Freire (2014) chamou de sulear. Evidentemente que esta posicao intelectual é reforgada pela estratura de sentimentos (Williams, 1997 [1975)) da época. Como jé vimos, a segunda metade do século XX. é marcada, na obra de um conjunto crescente de intclectuais criticos, por um terceiro-mundismo ou latino-americanismo que encontra expressio na sociologia, pedagogia, filosofia, teologia, nio a toa identificadas como sendo a libertagao. Isto no representou um fechamento em relagio aos ensinamentos de tradices eriticas vindas da Europa ou dos Estados Unidos. Afinal, tanto Freire quanto Fals Borda viveram nestes locais e construiram relacies com intelectuais e movimentos aliados. Mas, sem negar 0 didlogo, este terceito-mundismo significou uma busca por novas coordenadas epistemol6gicas, mais autdnomas, que representassem melhor ponto de vista das camadas populares do Sul global. Isto explica a maneira nfo ortodoxa com que Freite ¢ Fals Borda incorporaram, por exemplo, o marxismo. Negando 0 economicismo ¢ o estruturalismo muito evidentes em parte do marxismo latino-americano, que, diga-se de passagem, mio rato foi uma reprodugio eurocéntrica do marxismo pensado em outras latitudes, estes educadores foram capazes de introduzir a cultura quando s6 havia economia, o ser humano quando s6 as estruturas “falavam”, a emogio quando s6 havia espago para a fria razio, a religido quando esta era apenas 0 “6pio do povo” ntendemos quc isto nao se deve apenas A influéncia, de fato importante, de Antonio Gramsci, mas também de outros personagens da periferia mundial, que heterodoxamente releram © marxismo ocidental, como Amilcar Cabral, Frantz Fanon, Camilo Torres ¢ Che Guevara. De igual forma, deve-se 4 influéncia sobre Freire ¢ Fals Borda de tradicées de pensamento latino-americanas, que cruzaram o marxismo com outras correntes filos6ficas, como a teologia da libertagio, que aproximou Marx ao humanismo cristdo. ‘Além da teologia da libertagio e da releitura do marxismo, Freire e Fals Borda também busearam outras coordenadas epistemol6gicas dialogando com perspectivas tedricas emergentes no final do século XX, como a pés-modernidade de oposieo e o multiculturalismo e, no caso de Fals Borda, também com a teoria pés-colonial ¢ os estudos culturais. Isto no significou, em nenhuma hipétese, o abandono dos marcos de referencia anteriores, mas uma atualizacio e ampliagio do seu discurso tedrico. Nesta busca por outras coordenadas epistemolgicas, esté muito evidente em ambos os autores o enfrentamento de binarismos clissicos do pensamento moderno, como objetividade x subjetividade, razio x emogio, individuo x sociedade, cultura x economia, psicologia x sociologia, macropolitica x micropolitica, fé x ciéncia, ensino x aprendizagem, pesquisador x comunidades, lideranga x povo, cultura erudita x cultura popular, local x global. E, ao buscar a superacio destas dicotomias, verificamos neles a valorizacao daquilo que Fals Borda (2010 (1986)) chamou de raconalidade de cotidiano, ¢ a necessidade de se fazer ciéncia a partic desta racionalidade. Ou seja, suas propostas combinavam o vivencial com o racional, subvertendo a légica hierarquizadora e dicotémica da ciéneia moderna, Entendemos que a construcio de uma pedagogia decolonial requer a tranggressio da ciéncia moderna € uma busca de outras coordenadas epistemoldgicas. Assim como Freire (1978) falou em “descolonizar as mentes” e em “reafricanizar as mentalidades”, defendemos que uma pedagogia decotonial, em nosso continente, deve “latino-americanizar as mentalidades”,e nisto Freire e Fals Borda contribuiram significativamente.

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