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Ouvir estrelas e ‘ aprender do universo nsinaram-nos as Escrituras judaico-cristis que Deus, muitas vezes e pelos modos mais diversos, revelou-se & humanidade (Sio Paulo aos Hebreus, I, I). Entre os muitos modos, ressaltam trés, fundamentais: pelo préprio universo, por intermédio da imensa diversidade de sistemas de relagdes e de seres relacionados; pela sabedoria dos povos, inspirada pelo Espirito e consignada em seus livros sagrados; e pela vida e gesta de pessoas carismiticas e exemplares, durante toda a histéria — particularmente por Jesus de Nazaré, em quem os cristos vemos a presenga imediata do proprio Deus, que se encarnou em nossa miséria e grandeza. Desses trés modos fundamentais, 0 primeiro, pelo universo; apresenta-se seguramente como o mais universal, pois todos os seres humanos, letrados ou iletrados, tém acesso a ele e lhe co- nhecem o alfabeto bdsico..O universo tem muitas ligdes a nos dar. Ele vem carregado de mensagens. Os espfritos atentos po-_ dem capté-las, colher muita sabedoria e aprender grandes virtu- des. Um de nossos poetas,parnasianos nos aconselhava a “ouvir estrelas”. Vamos nos ater apenas & consideragdo do universo como um incomparivel mestre e ao seu magistério infalivel. A cosmologia contempordnea, bem como as ciéncias da Ter- ra, nos apresenta uma imagem extremamente rica do universo, certamente mais complexa e fecunda do que todas as outras que herdamos qo passado. Essa imagem nos ajuda a ouvir estrelas e a aprender do universo. Ele nos ensina, de forma infalfvel, a sabedoria, a humildade e a espiritualidade. Antes de mais nada, importa dizer 0 que entendemos por universo. O universo € mais do que 0 conjunto de todos os objetos existentes e potenciais. E a relacdo e a comunhiio que todos eles entretém entre si. Essa rede de relagdes que enreda todos os objetos reais e virtuais possui as caracteristicas pré- prias de um sujeito: histéria, interioridade e espiritualidade. Entiio, podemos dizer que 0 universo 6 0 conjunto de todos os sujeitos reais e potenciais interconectados entre si. Todos os seres emergem a partir de um longo processo de evolugdo hist6rica. Ao evoluir, vao se enovelando sobre si mes- mos, a ponto de possufrem nfveis de interioridade. Essa_ interioridade faz com que eles apresentem graus de conscién™ cia cada vez mais altos, até alcancar a forma reflexa no ser humano. Por isso, dizemos que 0 universo € a coexisténcia, a relag&o e a comunhio de todos os sujeitos reais e potenciais, originando uma rede intrincadissima de inter-retroconexdes de energia, de matéria e de informagdes, compondo uma imensa sintonia césmica. Em segundo lugar, devemos considerar qué 0 universo niio 6 estitico, mas dinfimico, pois est4 em evolugo, em expansiio e em permanente proceso de autocriagiio. Nao est ainda acaba- do, encontra-se em gestagiio e em génese. Com razio, fala-se entio: de cosmogénese, assim como de antropogénese e de cristogénese. O cosmos e todos os seres nele existentes, espe- cialmente o ser humano, apresentam-se como sistemas abertos, cheios de virtualidades a novas relagGes e a novas sinteses. 125, eet ‘Scanned with CamScanner Quanto mais avanca a evolugdo, mais diferenciagdes permite mais nfveis de complexidade e de ordens e de consciéncia revela, Alguns fisicos quanticos, como Amit Goswami, Richard E. Reed e Danah Zohar, admitem que o universo seja autoconsciente, ‘Vamos apresentar tio-somente trés vertebragdes da nova perspectiva cosmogénica que nos ajudardo a escutar a palavra do magistério césmico, a mensagem que o universo continua- mente nos dirige: a relagio/re-ligagdo, a diversidade/complexi- dade ¢ a interioridade/espiritualidade. A relagdo/re-ligacdo: a dinamica fundamental do cosmos Desde o , ap6s a grande explosao do bigue-bangue, atua © assim chamado princfpio cosmogénico, aquela dinamica bisi- ca, misteriosa e sempre presente que produz a gutocriagio e a auto-organizagio do universo. Criam-se, desde o primeirissimo momento, relagdes entre os pfons, quarks e protons origindrios (as particulas materiais mais elementares do universo). A partir dai, estabelecem-se redes de relagées com outros seres que vio surgindo. Surgem conjuntos constitufdos de partes interconec- _ tadas entre si, dando origem a sistemas e totalidades, na forma de campos energéticos, ecossistemas com seus subsistemas, dentro dos quais se encontram os representantes “inertes”, como galéxias, estrelas, planetas, continentes, montanhas..., € vivos, como animais, plantas, seres conscientes... Trata-se de emergéncias de um mesmo e tinico processo cosmogénico de bilhdes e bilhdes de anos dentro de uma grande unidade sistémica. Todas as forcas conspiram para que emerjam seres mais e mais complexos e relacionados com tudo o mais, 126 Alei suprema é a da solidariedade e da sinergia entre todos. ‘Todos siio interdependentes e se necessitam entre si. ‘Todos se entrelagam num imenso evento de comunhio. Aconsciéncia humana é capaz de captar essa realidade rela- cional que a todos liga e re-liga. Dessa percepgao nasce a re- igido, pois deriva de religare. A re-ligiao foi, possivelmente, a forma mais arcaica de consciéncia. Nossos ancestrais antropéi- des, de milhées de anos atrés, conseguiram ver o Elo que tudo ligava e re-ligava, Chamaram-no com mil nomes. Depois 0 chamaram de simplesmente Deus. Esse Deus 6 compreendido como a forga misteriosa que cria e organiza todo o universo, Esta em agdo em cada movimento, em cada conexiio, em cada ascensio. A moderna cosmologia refere-se a um abismo omninutridor que atua desde 0 comego do universo, hé 15 bilhdes de anos. Nao se trata de um lugar fisi- co, mas de algo inominvel, uma espécie de energia suprema que gera todos os seres ¢ os absorve quando desaparecem. f um oceano incomensurivel de virtualidades, possibilidades e proba- bilidades, Se todas as coisas do universo, por uma hipstese impossfvel, evaporassem, conforme nos diz. um cosmélogo con- temporneo, Brian Swimme (The hidden heart of the cosmos, Nova York, 1996, p. 100), sobraria somente um Infinito de puro poder generativo. Dele, todos viemos; nele, todos encontramos consisténcia; e para ele todos retornamos. Se niio é Deus - porque Deus é sempre mais do que podemos imaginar e captar -, é, pelo menos, um poderoso sinal de sua presenga. ‘Scanned with CamScanner Diversidade/complexidade: © caos generativo O processo de cosmogénese tende a criar mais e mais dife- rengas. Somente nos estdgios mais primitivos existe a clona- gem. Quanto mais se avanga, mais se deixa a reprodugio do mesmo para tris e surgem diferenciagdes crescentes. A com- lade significa a sofisticagdo interna e externa com todos os demais sistemas e partes. E o que chamamos de equilfbrio dinamico, sempre a se fazer e refazer. Inicialmente, havia a extrema simplicidade da energia originéria, chamada de ener- gia X (por falta de outro nome), que se subdividiu nas quatro forcas permanentes e inalterdveis que entram na composi¢go de todo o universo e de cada ser, inclusive o ser humano: a gravitacional, a eletromagnética, a nuclear forte e a fraca, A harmonia e 0 equilibrio dinamico nao sio um dado inicial. Tu- do comegou com uma quebra da harmonia misteriosa daquele Ponto infinitesimal de energia e matéria condensadfssima, antes de sua inflagdo seguida da grande explosio. Houve uma incomensuravel instabilidade, um caos original. A expansiio se faz criando ordens e harmonizagdes cada vez mais sutis e com- plexas. O caos, portanto, nio é caético, mas generativo e orde- nador. Dé origem a diversidades e a ordens cada vez mais altas. € ricas de relagdes. Ele cria 0 cosmos como ordem e beleza criadas, embora sempre instdveis e abertas a novos avangos. ‘Tal fungao positiva do caos nos ajuda a ressituar o problema do mal que tantas indagagSes e dramas suscita. O mal nunca deixa de ser um mistério e um desafio a toda compreensio racional, Af est o Jé eterno, sempre insatisfeito com as solugées racionais apresentadas. Mas a perspectiva cosmogénica de caos/cosmos 128 nos ajuda a langar sobre essa obscuridade alguma luz. O mal re- presenta a condigio originéria da qual a forga criadorae 0 abismo omninutridor fazem emergir os mais diversos seres, todos provi- soriamente incompletos, porém todos enredados na necessidade intrinseca de evoluir, de ter de passar por varios estagios até chegar a sua plenitude posstvel. Essa é uma realidade objetiva que pertence A ordem da criagdo. Na dimensio subjetiva, da consciéncia humana, pecado é a atitude de recusa dessa dinimi- a; 6 querer ndo evoluir; é resistir & chance de passar a uma ordem mais alta, com mais possibilidade de evolugio e de perfeicao. Interioridade/espiritualidade: 0 coragdo secreto do universo \ Quanto mais complexo se apresenta um ser, mais enovelado sobre si mesmo ele se encontra, ou seja, mais interioridade ele possui, mais singularizada aparece sua estrutura e mais sofisti- cada 6 sua organizago interna. Com a carga de informagées que acumulou por meio de todas as relagdes que estabeleceu com os outros seres € 0 meio ambiente, mais caracteristicas pr6prias assume. A isso chamamos interioridade. Espirito significa a capacidade de relagao € de criagio de uma unidade orginica. Essa capacidade existe desde o pri- meiro momento da criagio, quando se estabeleceu a primeira unidade relacional. Essa interatividade de tudo com tudo se chama espfrito. Ela 6 crescente & medida que a evolugio avanga até chegar a uma certa culmindincia no ser humano. Nele, a consciéncia é reflexa. E ele se revela como um ser de relagio, uma pessoa que, por definigio, significa uma realidade relacional. $6 na relagao é que constréi sua identidade. ‘Seamed with CamScanner O espirito possui, pois, uma dimensio césmi seres siio portadores de espfrito - e, Teds Por exceléncia, o ser hy mano. Quando ele se sente unido ao todo, como : v Parte ¢ parcela do universo, é 0 momento em que o espfrito emerge conscientemente nele. E nao teria emergido nele se antes nao estivesse presente no cosmos. Vive a espiritualidade quando faz. a experiéncia interior desse sentimento de pertencimento e de conexiio com 0 Todo. Entio enche-se de respeito e de veneragio pela grandeza do universo e pela complexidade das relag6es que se estabelecem entre todos. Acolhe o sentido der- radeiro de todo esse incomensurdvel processo. Pronuncia 0 nome de amor aquele que tudo criou e ordenou: Deus, Pai e Mae de todas as coisas. 0 magistério do universo: um convite a sinergia Temos muitas lig6es a aprender do universo. Ele é um mestre sdbio e infalivel. Essas ligSes sdio importantes no quadro da crise de civilizagéo que atravessamos. HA séculos que o ser humano vive exilado. Todos perdemos a conexio com 0 cosmos e com a propria Terra, nossa casa comum. Tratamo-la como algo inerte, um reposit6rio de recur- sos a serem explorados até a exaustiio pelos seres humanos. Negamos-lhe subjetividade e direitos. Os antigos e os modernos compreenderam bem que a Terra é um superorganismo vivo. E que nés somos seus filhos e filhas. Fomos a consciéncia da bios- fera terrenal; 0 momento em que a Terra se transfigura em consciéncia, em linguagem, em comunicago e em celebracdo. Jamais devemos esquecer que entramos em cena quando jé 130 Ouvir estrelas e aprender do universo 199,98% da hist6ria do universo e da Terra se haviam completado. Fomos 0 tiltimos a chegar. E ainda imaginamos que os seres 6 possuem sentido & medida que se ordenam a nds e estio disponfveis ao nosso bel-prazer, Quase tudo no universo se fez sem precisar do ser humano. E ele que pertence ao universo, e nfo o contrério. Pelo fato de possufrem mais ancestralidade que nés, de serem nossos irmios e irmis césmicos, os demais seres mere- cem ser respeitados e venerados. Todos eles falam, pois tém uma hist6ria a contar, inscrita em sua estrutura ou no seu c6di- go morfoldgico ou genético. Temos perdido a capacidade de escutar as falas e as mensagens dos seres e, assim, de aprender es de sabedoria deles, das plantas, dos animais, dos passaros, dos peixes, das vérias culturas humanas. Acostumamo-nos a falar tdi alto que somente a nossa voz se faz ouvir. E assim vive- mos solitarios, em vez de sermos solidarios com todos. © universo, como um sistema aberto, nos ensina a sermos também sempre abertos e atentos a0 novo, que pode irromper a qualquer momento. O universo sabe trabalhar com 0 caos €. a desordem; faz deles fatores de mudanca, de elaboraciio de um novo equilibrio. Devemos aprender a trabalhar nossas crises e nossos fracassos; sto o hiimus para novas formas de vida e oportunidades de acrisolamento e de ascensio que enriquecem nossa experiéncia e nossa humanidade. universo é em tudo cooperativo, pois todos os seres sfio interdependentes entre si. A lei orientadora na evolugio dos seres vivos nfo visa A sobrevivéncia dos mais fortes (se assim o fosse, os dinossauros estariam ainda entre nés), mas 4 preser- vagiio do equilfbrio dinamico, para que todos possam estar inseridos, possam viver e se desenvolver. © propésito da vida ant ‘Scanned with CamScannet nilo consiste na sobrevivencia pura ¢ simples, mas na realizagdg das potencialidades presentes no universo e em cada ser, poten- cialidades que querem vir & luz e fazer seu caminho hist6rico, Hi de se aprender do universo a convivéncia com todas as diversidades. Nele vigora uma verdadeira biocracia e democra- cia césmica. Nao hé lixo nem exclufdos. Tudo é inclufdo e de tudo se tiram novas energias e novas ordens. Tal fato nos obri- gaa sermos humildes, acolhedores, ternos e fraternos com todos os seres da criago, Importa renunciar a toda arrogincia do antropocentrismo que nos coloca acima dos outros € nio junto e ao pé deles, como irmios e irmis, na mesma casa comum. Quanto mais vivemos nossa prépria esséncia de seres de relagdo, mais nos fazemos ouvintes da palavra que vem de todos os seres, das redes de comunicagao que eles estabele- cem entre si e com 0 todo, mais nos fazemos também seres de comunhio e de integragio. Porque todos os seres sio impregnados de espfrito, todos devem ser considerados sujeitos e, como tais, respeitados; so portadores de valor, de dignidade e de sacralidade. Se nos habituamos a dialogar com eles e a escutar o que nos tém a dizer, também facilmente aprendemos a amé-los e a cultivar compaixio por aqueles que sofrem, e farfamos tudo para ajudar a sané-los, Encher-nos-famos de indignagao contra as técnicas que isolam, por exemplo, vacas, porcos, patos e galinhas de seu ecossistema natural, para alimenté-los apenas com nutrientes quimicos, degradando-os a méquinas de produzir came. Cruéis e sem piedade, ficamos indiferentes ao sofrimento que injusta- mente lhes impomos em nome da ganincia de lucro. Por fim, 0 universo nos remete continuamente a seu Cria- dor. Ele anuncia sua presenga pelo dinamismo criativo e auto- Ouvir estrelas ¢ aprender do universo organizativo da evolugio, pela seta do tempo que aponta sem- pre mais para a frente e para cima, na diregao de formas mais altas de relagao e de vida. Nao nos podemos recusar & beleza de um céu estrelado, & admiracdo pela complexidade dos organismos vivos, 3 fascinagio de um olhar apaixonado, & cons- tatagiio de um sentido que perpassa todos os processos, fazendo do universo cosmos, e no caos. ‘A missao do ser humano reside em poder captar os mil ecos que vém dessa grande Voz que reboa de ponta a ponta do uni- verso € que vibra em cada ser. Cabe-nos unir nossa voz a esse eco universal; somos chamadbos a ser sinfénicos e a venerar 0 maestro dessa imensa orquestra eésmica. Deus, vivificador e atrator de todas as coisas para o seu seio paternal e maternal. Na escuta do magistério do universo, fazemos todos a expe- rigncia descrita pelo mistico poeta inglés William Blake: “ver 0 mundo num grio de areia, 0 céu numa flor silvestre, conter 0 Infinito na palma da mio e a eternidade numa hora”. Nessa capacidade de escuta e de aprendizado, revelamos, humildemente, nossa grandeza, realizamos nossa missio € encontramos nossa paz. ‘Scanned with CamScannet A voz do SEXTANTE ‘Scanned with CamSeanner

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