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[oxo eereeatods eira-vida Beira Vic ASSIS BRASIL Beira Rio Beira Vida (Shes rae, 2019-15" 0 ‘cocenewscs0EDTORAL leonard Disontgesonteo ewsto ea rio Sore Thiago prarcho abey Grea etre orn lange Portal enrtentes Se "= etapa grad. rerad ov onan men ee Rio Beira Vida A CONSCIENCIA DO AUTENTICO Bans Gana Li Beira Rio Beira Vida hi oito anos, quando tinha outro titulo e, embora fi fosse um excelente trabalho, estava longe da atual cristalizaglo criadora Eu proprio nao acrediava que ele se convertesse no grande romance que veio a ser. Nao porque julgasse © autor incapaz. de transformar sua obra, e menos stinda porque duvidasse da nobreza de seu material: € que Uificmente um autor reestrutura livros concluidos, sobretudo no Brasil, onde 0 acesso editorial € LO. precirio, © romance fica num passado cada vez mais istante, o eseritor perde as vivencias originais; ndo se enriquece um livro estagnado. Os livros longamente trabalhados, se as veres ficam mais perfeitos, também vido ficandd cada vex mais ftios. No caso de Assis Brasil, ele teve de enfrentar o desgaste — quase dria 4 autoesterlizagio — da atividade critica. E se afinal resultasse tudo num simples “romance de ertico"? Beira Rio Botra Vida causa um impacto pela sua qualidade. Tem inclusive uma vitude cada vez mais rata na fiegto moderna: a humildade criadora. Assis ‘Brasil mio impoe a seus personagens as regras do jogo. ‘© romance nao foi escrito para manter uma condigao de 5 1 Asis Bel» fecionista — como, infelizmente, & cada ver comun na literatura brasileira contemporinea — nem para sequir ccertas mods de momento, Ficario decepcionados os {que procurarem 0 pastiche faulkneriano e maisainda os queesperavamumlivro pastoso,cheio daquelesrecursos fatidicos da prosa de um Guimaraes Rost ou de uma Clarice Lispector, autores que Assis Brasil tanto aeimira. E um romance fii? De cena maneira, & um romance de leitura extremamente fill. Vencidas as primeiras dez ow vinte paginas (onde se encontram, alguns dos momentos mais belos da atwal ficel0 brasilein), 0 letor segue naturalmente, quase como se cestivesse fendo uma pega teatral, Mas 0 que € entao, que dificulta (para alguns) a tomada inicial de contacto com 0 livro? Em primeito lugar, porque se trata de um grande romance — € nem sempre o leitor se acha preparado para ler um grinde romance, © grande romance tem suas leis proprias. E ficil aceit-las quando 0 autor se chama Joyce eo livro € 0 tenrvel Lips, Em segundo lugar, porque Assis Brasil no se submetet 20 narrativo puro € simples, a0 anedético. Nio pretendia conta, como observador privlegiado, 4 historia de vidas que nio eram a sua, Party para o romance com uma agucada consciencia eriadora, mais, ainda, com a conscigneia do auténtico, Era necessirio ‘que 08 personagens vivessem por si s6s, como se rio fossem personagens, Desde a primeira pagina, criaglo se opera quase em estado de realidade — dai 0 ‘uso abundante do dilogo direto & do didlogo indireto, + eid Rio Beira Vida do mondlogo e do eco dos mondlogos. O processe foi ‘extremamente dificll(e perigoso para 0 romancist), mas permite que © leitor penetre profundamente no mundo das prostitutas de beira do rio, em Paraiba, Nao comete Assis Brasil 0 erro to frequente de nossos contistas € romancistas, que invadem © mundo proprio de seus personagens, que ficam pulando da tabega de um personagem para outro, como se fossem pequenos deuses funambulescos. A primeira vist, € pelos resultados, parece uma formula ficil. Todavia, © primeito passo em falso levaria 0 romance, e 0 romancista, perambeira abaixo. Beira Rio Beira Vida se sustenta em suas pr6prias vigas, sem estremecimentos, fs personagens nao Sto empurrados para dentro das paiginas como chumacos de algodao, E claro que, abolide quase totalmente o di © romance corria 0 risco de cair no teatro. Num conto, hemingwayano © pingue-pongue dialogal funciona, ‘A duris penas funcionaria num romance. A opcao de Assis Brasil revelou nele uma viva sensibilidade dos valores poéticos: pois em muitos trechos a solucao que ele adota € a do plano postico da realidade; © poético ‘drumatico, bem entendido. A poesia em sua aparente desagregacio promove uma totalizigio do universo, liga os pontos vitais da situago do ser humano dante de seu destino. Mas esse diflogo nao € inocente como pode parecer ao leitor desatento, nem se trata de mero recurso estrutural, Lembremo-nos de que o romance de sobretudo © romance comunista 5 + Assis Bras» rao do didlogo popukat: Aind hoje (8 escritores russos partem para os grandes discursos. Alem do que hii de direto no dislogo (e, € claro, no discurso), existe o fato expressionistico, © Beira Rio Beira Vida vive menos de seus dilogos do que dos siléncios € das pausas — dos vazios em torno dos didlogos. £ uma jronia que, numa época em que tantos poetas e ensaistas brasleiros se arrogaram a formu lagoes de uma literatura popular € de revolta, seja Beira Rio Beira Vida 0 ‘inico livro auténtico dentro dessus ondens dle ideias. O dislogo dlreto, a linguagem alusiva, a miséria vista pelos miseriveis, e nao pelos seus patronos inteleetuais. E 0 retrato insoltivel duma comunidade sufocada pelo primitivismo capitalist, um mundo em que a sociedade se estratificou implacavelmente, onde as prosttutas Sio prostiulas, os pobres slo pobres, os icos slo ricos — quase a revelia do eventual sildo financeiro, Nao existem vasos comunicantes, Quem quiser realizarse, terd de fugit, terd de ir para fora As dobradicas do sistema estio, porém, de tal modo cenferrujadas que a fuga & praticamente impossivel (© personagem Jess ‘4 quimera de uma ruptura com 0 meio, e € por ele destruido, O rio pertence 20s rieos, as casas pertencem ans ricos, a religito pertence aos icos, Os descontentes podem sumir simplesmente daqucle cendrio imutivels ‘mas se nao souberem, como Jesse, fuga atragao ativiea do lugar de origem, serio consumidos no fogo de sua nulidade social, Nao € com o dinheiro largado pelos é — sofrido e patético — alimenta 6 pr Hci Rio Hei Vida» _ homens que a rameita Cremilda — uma das figuras soberbas da nova ficgio brasileira — penetrari na sociedad, Num mundo de horizontes compactamente fechados, a miséria passa de pai a filho, de mae a filha, {quem conscientizar a sua desgraca vai sofrer em dobro. Mais uma ver Beira Rio Beira Vida é um livro oportuno, ‘porque aparece no momento em que nosso pais sofre a mais brutal pressio capitalista de sua historia, em que de todos 0s lados © povo vé fecharem-se as janelas dda respiragao econdmica. Entramos num processo de nivelamento por baixo, em que os de baixo sera ainda mais esmagados. As hoxboletas brancas, como no livro de Assis Brasil, sto vendidas a quilo para alimentar os peixinhos da Outra Grécia, Elas se erguem com uma ilusto de liberdade, apenas para se tornarem mais Visiveis e vulneraveis, Ha em Betra Rio Beira Vida essa declarada reivin- dlicagio social? Sem dlivida, O livro é construido como tum desses grandes espelhos que se constituem de pequenos retingulos — € por isso refletem melhor. Perto do final do romance, © autor — por inadvertén- da ou por desconfiar um pouco da visio de conjunto, do leitor — quase entra em cena, a fim de dar ideia da passagem do tempo e completar 0 quadro da transi¢ao social, Vejo af uma das raras falas do romance, do pponto de vista estrumural. E verdade que isso nao afeta 4 economia do livvo e até “ganha tempo" para o leitor. Betra Rio Beira Vida tem varias caracteristicas admiiveis, Em primeiro lugar, aquilo que certa vez Adolfo Monteiro, a propésito do romancista porugués Socio Pereima Gomes, chamou “a quali Se dade de seus personagens’, aqueka mistura de poesia € vida. A velha Cremildla, toda construida partir das reminiscéncias dialogais de sua filha Lutza, €, do ponto de vista literrio © humano, uma criacio magisral. Se diflogos com Jessé tm uma autenticidade pungent. Jesse & a segunda figura do livro, Jessé que esperi 0 milagre de salvar-se com 0 pequeno dinheiro, com os niqueis, numa sociedade que simplesmente 0 ignora. Luiza é uma espécie de barto original, a pani do qual slo formados s outros personagens. Seu sonho, sua uta, €a evasio pelo amor, num meio em que 0 amor tem cambio especifico. Realiza-se vicariamente através dda boneca Ceci (personagem’ as vezes demasiado litera em seu simbolismo ostensivo) e nao percebe {que de certa maneira venceu 40 nao conseguir passar a tocha da degradagio a sua filha. Mundoca nao ssi do limbo criador — como se estivesse fora do foco do romancista. E apenas 0 elo quebrado de uma cadeia [ela se conclui 0 processo através do qual uma soc dade petifcada elimina as sementes intteis. Outra qualidade do liveo é a perfeita transigio dialogal de Luiza para Cremilda e vice-versa, de forma que © romance vai tomando forma como uma construgio redonda e cuidadosa — que se fecha na ‘dima pagina, repetida na primeira. AS cenas Sio quase sempre descrits indiretamente (por vezes de forma alusiva), sem obediéncia a0 texto cronolégico. Nem por isso perdem 0 impacto: sirva de exemplo o incéndio do navio-gaiola em que morre Jessé, As cenas fem que aparece Cremilda tém um impulso proprio — um andamento algo frenético. Lembro a da venda do armazém, na qual Assis Brasil nos dt magistralmente 8 + Hci Rio irs Vida» ‘6 detalhe da primeira menstruagdo de Luiza. $6 essa pgina consagraria um esctitor, © tratamento da linguagem foi outra vitéria deAssis Brasil. O livo tem uma grande riqueza de Finuras vesbais e estiisticas, algumas das quais talvez escapem ao leitor 0 familiarizado com o falar rordestino, O que muitas vezes pode parecer ingenuo €, no entanto, a visio auténtica do mundo subsensivel dda personagem Luiza it Rio Beiea Vida (0 MENINO DO PIAUL Jest Candido de Carvabo “Tem nome de santo e sobrenome de tabeliio. Na integra €Franciscode Assis Almeida Brasil, Dosantoextat ‘Assis € do tabeliio guardou 0 Brasil. Ficou Assis Bras ‘Um mestre do romance eda eiica. De hoje e de sempre. Encontro Assis Brisl a0 lado de seus livios © originals. Assis € meio bicho de eoncha, meio cabrero tem dizer coisas de sua vida. E mais de escrever do que Ge falar E quando escreve € geralmente sob mecida Porque esse Assis Brasil de O Salto do Cavalo Cobridor ima das crituras mals bem onganizadas deste pais. O relogio nao ¢ para ele enfeite, Fa sua bussola © 0 900, guia. E medindo as horas que Assis planeja o da a dia. Como um hibil general plana sua bata. Determina: "You ler meio metro de livros e escrever dez paginas Lé 0 meio metro de letras redondas e escrever dez piginas que saem vivinhas de sua maquina e v20 fazer sucesso por esse mundo de Deus. Ceta feta, um diretor de jornal pedi que Assis escrevesse sobre a tragédia das secas.E Assis, sério, deixou cair na mest do dirctor esta pergunta quase estatstica E tragédia para duas laudas ou mais do que 150, doutor? (© pobre dowtor pensou que Assis estivesse brincand, Mas mo esava Mulata e pau-pereira Nao gosta de uisque, mio gosta de banquete no Iamarati nem de cidade grande. Também mio gosta ‘de multidio. Passou de tres pessoas, pega 0 chapéu, di boa-noite ¢ vai embora, cuidando que & comicio Mas se milo simpatiza com a cara dos banquetes do. lamarati, € vidrado por fejoada, tatuzada ¢ farofada. E Assis Brasil para andar quildmetsos a fim de descobsir ‘uma certa fritada de camarto de dois andares, heroica cc imonal, E anda 0 dobro no rasiro de uma mulata ou de uma portuguesa & moda de Lisboa. E de opinito que mulata com uma boa talagada de pau-pereira vale toda uma biblioteca. Que portuguesa 1 moda de Freixos-de-Espada-i-cinta, com bacalhau € batatas, € {0 importante como Os Lusfadas. Ou mais. Menino no espelho Uma lasca de tarde mete © bedelho em nossa sa. De repente, Assis Brasil esti em seus dias antigos, no Piaui dos seus 8 anos. Diz: — Minha recordacio mais distante esté ligada a velho, onde cada ano que passava alguém escrevia 1937, 1938, 1939, 1940. Foi quando comecei ater conscigncia do que acontecia & minha volta, O ano de 1940 foi um choque para mim. Além de ser um ‘ndimero sedondo, visualmente definido e acabado, eu, pla primeira vez, senti que envelhecia, ‘Uma tarde © menino Francisco de Assis fot a0. espelho, Uma lavoura de penugens comecava a brotar ‘em seu rosto. Recuou espantado: 2 tei tio Beira Vida — Virgem Nossa! Qualquer dia estou velho, De ‘boné e bengala na mao. ‘Tinha apenas doze anos. Era um menino em flor Pequeno retrato de 1932 ‘Assis Brasil foi inaugurado no ano de 1932 no Piaut da cidade de Parnaiba. Getilio fumava charutos, Sio Paulo explodia em armas. Um ilustre general, uum certo Bertoldo Klinger, comandava a revolugao ‘quatrocentona e inventava uma ortografia particular: “Keremos recomendar oa povo ke ce abstenha de abuses porkuanto © governo esti apto a reprimir atos ‘de cabotagem”, As senhoras paulistas ofereciam seus ‘ouros e brilhantes para Sio Paulo comprar armas. A. ‘chama da liberdade incendiava a gente de Fernao Dias Paes Leme. Em Palmeiral do Piaui, empoleirado ‘num bail de chope, © professor publico Antuerbes Falcio, depois de aderir em discurso 20 movimento quatrocentdo, declarou: — E 86 no pego em armas porque a minha dentadura postiga mio ficou pronla. E mio vou deslustrar os Faledes do Palmeiral do Piaut com esta ‘minha boca de vampieo piiblico, Viva Sio Paulo! Viva 4 Constituiglot E até amanha, E nascia no ano de Assis Brasil a mulata mais formosa deste pats, aqucla do Teu cabelo mio nega. Mulata inesquecivel. Defintiva ¢ imortl Saudade mede 27 anos A vida toda Assis Brasil vai pensar em sua Parnatba, nos banhos de ro, nos mistérios dos easardes B rr = + Assis Brasil ~ de pedrt © cal © nas brincadeiras de huse, Havia assombragbes que vinham a furo a fore dt noite. ‘Outras 86 apareciam tocadas pelo vento, E havia as ferias na Praia de Amarragio. Foi quando aconteceu ‘em Assis Brasil a primeira namorada, que ele descreve com seu inigualivel descrever. Neste jeito simples: — Nio me lembro mais de seu corpo, de sua roupa, de seu rosto. Mas me lembro que era muito branea e tinha uns cabelos pretos com uma franjinha na frente. Estdvamos sentados na grama, Ela pos a ‘mao em cima da minha, que estava apoiada no chio. sors, Bu tin 1nos. Pela primeira vez 0 mundo significava alguma coisa para mim. jo acabar com, ‘Praga 11°, Assis nunca mais esqueceu esse pedago de vida antiga. Nem da Praga 11, nem da moca de cabelos pretos. Que continuavam vivinhas em sua saudade, Uma saudade do comprimento de vinte € sete anos, Recorda que uma vitro canta,“ Mosqueteiros do Ceara Depois do Piaui, o Ceari. Fortaleza foi o quartet general de seus estudos. Cidade boa, cidade amiga Epoca, para Assis Brasil, das grandes descobertas. Olhava 4 vida como Pero Vaz. de Caminha deve ter olhado a “terra dadivost © boa”, do pau-de-tinta e do papagaio. Eserevia as primeiras erdnicas para as Folhas locas fazia suas primeiras incursoes pelo luae eearense. Recorda: — Os amigos da adolescéneia 0 08 melhor amigos, Era uma turma unida, a turma de Assis Brasil. Uma noite, depois de um vasto hanho na Lagoa de Parangaba, gue lembrou “ oie Kio Beiea Vida — Qualquer dia a gente vai embora, se dispersa vamos combinar um enconteo daqui a dez anos no Rio de Janeiro. De acordo? ‘Todos estavam de acordo. $6 0 destino € que nnio_havia_aprovado esse protocolo. Quase todos Sumiram, 08 amigos insepariveis de Fortaleza, Quando fs dez anos ou mais chegaram, os encontros foram ‘casuais; em etapas diferentes apareceram trés, como os mosqucteiros de Alexandre Dumas. Com 0 D'Aragnan Francisco de Assis Almeida Brasil no comando, Os ‘outros 0 tempo comeu. © dia mais longo © Rio de Janeito que © moco Assis Brasil viu cera um Rio ameno, 0 Rio da década de 50. A guerra de Hitler havia passado e com ele 0 seu bigode fatal © futebol dominava a vida. O Brasil, de garfo e faca almogava e jantava as selegdes inimigas na mest do Maracani, Uma tarde os nossos deuses de calgbes ‘© chuteiris pegaram 0 timao espanhol, © foi aquel pedaco de rapadura ao lado part sobremesa, ou um pedaco de boto de puba — ovtros preferiam 4 rapaduraraspads com frinha, Voeé nem aeredtou Gque cles comessem duas vezes por dia e tomassem tutto café com cachaga, Mas eu expliquel tudinho, fo foi, Mundocs? B NS ne ia de dois, carregando de arroz, fardo de algodao, quatro va de uma vez. Um ou outro, de vez aguentava 0 rojo, ficava cuspindo lr, falar, até cai de sono na rede de tucuu, para no pensar, pars nao pensar em quanta coisa, meu Deus? — HH esta dormindo, Mundocs? Nao queria olhar a casa caindo aos pedagos, aaquelas paredes encardidas, os retratos, 08 retrtos eles, 0s objetos, a cortina fA sem cor, que lembrava Tinha que falar, falar, para nao voltar aqueles tempos. © cas Ii estava o mesmo, retratado no mesmo barulho de todas as noites: a sineta de um navio-gaiola ‘que parti, o grito de um barqueieo na escuridio do rio —a gangalhada das mulheres, a eternidadle de suas Vidas se repetindo, — Hoje nao t Mundoca se sentava na janela, © cachimbo fumagando, sem olhar para nada em especial — uma baforada atris de outra, e ela que sofresse naquele silencio. Pegou Ceci pelo brago, experimentou-the uma blusinha florida — sorria da cara de espanto da boneca, to espantada, *viu alma?” —e passou, com a boca tora, a recortar a saia. Tinha um bom estoque de trapos, vestido novo em casa, era s6 escolher. Separou tum pedago de pano azul que cheirava a arroz pilado — a lingua do lado de fora, a cabega tort, a tesoura rangendo, “esti cheia de dente, vou mandar amolar” 4 a Hei Rio Hei Vida» A sineta do gaioks Amazonas avisou que estava ra hora do jantar © cais ficara coberto de um dia de trabalho sobre as pedras: arroz, algodao, milho, sderramados para os pombos e para os pés a filira de darmazéns € Flbricas. — Luiza, if pra casa |A mae Se guiava part o jantar pela sineta do ‘Amazonas ou de qualquer outra embarcagiio do Parnaiba, — Luiza, pra casa Tavava o rosto com um caneco d'igua na cozinha, ‘algava as chinelas, que davam uma gastura nos pés sujos —a mesa estava posta ars das sacas empilhadas, a mle com os brincos compridos, a rost nos cabelos, ccheia de dgua-de-colOnia — Luiza, ajanta estria ‘Ohomem usava duas cadeiras, uma fieava ao lado ‘da mesa com 0 palet6 de dragonas douradas, 0 quepe: anil € 0 talabarte de couro brilhante. Arregacava as mangas da camisa, comia com as asas largas e aberta. “— Esti quase uma moga, a Luiza Beliscava-the as pernas, tentava abraci-la — uma ‘argalhada forte enchia © armazém. — Ficando fornida de carne. Em 36 0 que ele sabia dizer, 0 que todos cles diziam, “Ticando fornida de came’, ea mae concordando com a cabeca — cortavam pedagos de pao, botavam no prato de sopa e comiam tudo de asas largas e abertas, E_a mie oferecendo, oferecendo, quer mais? Quase nao se serviu, a sopa é de repolho. Quer outro prato limpo? Luiza, traz outro prato al da prateleir 25 + Assis Hil + 0 que € isso af, Cremilda? —£ peixe frit, pescado de tarde. Jesse comia na cozinha —a mae dia: ele € mi sujo, come Ii mesmo — arriava o prato entre as pernas no chao, fazia um bolo com farinha, ia mastigando calado, até nao sobrar nada, TTerminava logo $6 para ver Jessé devorar os bolinhos de feijzo, que as vezes ele fazia e arrumava fem fila na beira do prato: ia comendo de um por lum, com gosto e método, Sua rede ff estava armada de lado, um pedago do cobertor marrom de fora — se levantava satisfeito, cheio de bolinhos de feifio, abria o pote, enchia 0 caneco, bebia se lambuzando, pelo peito, arfava e se queixava de cansaco como sempre — Brincar de se esconder, Jess6? — Hoje nao. — Ah, por qué? — Vou dormir, — Moleza. — Estou cansido de carregar arroz no ombro, Tua mae nao me di uma folga = Luiza? — Mama, estou aqui na cozinha com Jessé. — Fi pra rede, esti na hora de dorm. ‘A mae queria ficar sozinha com 0 marinheiro, cla jd sabia. Os aposentos lé no fundo do armazém, seu quarto © mais distante, mas ouvia as gargalhadas dela até tarde, Gargalhadas sofredoras, reconhecera mais tarde, quando também tivera de agradar aqueles ‘homens, muito mais tarde distante das primeirasrisadas aque escutara, Os marinheiros entravam ¢ saiam, suas visitas marcavam as gargalhadas, os antares fartos num 26 leans + Heirs Rio Heirs Vi pequeno periodo de fartura, Jess€ achava estanho e as Yveres reclamava: “Como tua me conhece marinbeiro ‘— Mainheiro ¢igua doce. Eki ouvira a frase em algum lugar © repetia como uma evasiva ou desculpa, para Jessé, para os homens do pilador de arroz, para qualquer pessoa que sugerisse o estranho que era a vida de sua male. Aprendeu que a frase era também uma defesa, luma especie de credencial que a tomava igual as pessoas que pareciam saber tanta coisa que ela ainda desconhecia. "Marinheiro d'igua doce", € os curiosos levemente batiam em sua cabega — Essa menina, = Luiza, a janta esiria (© outro homem usiva também duas cadeiras ‘uma ficava ao lado ca mesa com o palet6 de dragonas, douradas, o quepe azul ¢o alabarte de couro brilhante. Avregacava as mangas da camisa, comia com as asas Jargas ¢ aberas. — Quer outro prato limpor — Esti quase uma moga, a Luiza Alguns eram desdentados, cuspiam pelas gengivas roxas, soltavam a farinha do jantar repetido, — Brincar de se esconder, Jesse? — Vou dormir. Fram os dias iguais numa cadéneia plana. Nao pensava em crescer, em ficar mulher, mo pensava em nada — estranho, Jessé era as vezes 0 despertador de pequenas preocupacoes. Vivia entre aquele jantar suntuoso (© nico que conhecera até entao), os vestidinhos de Ceci, 0 rio € as lgeiras fugas com Jesse pelo capinzal — ali estava 0 mundo largo de seus passos mitidos. a et dee dataset + Assis Brasil» — tira, jd pra rede. (Os murinheiros sempre vinham jantar com a mesma farda bonita, do branca, de botdes dourados —a cadeira ao lado para nto machucar o dima, © quepe ul, 0 talabare sempre brilhante. Tinham ‘muita conversa e comiam tudo, a mie oferecendo, foferecendo, Olhavam 0 armazém, "Cremilda, como foi que voc’ conse isso?" — Com 0 mm Se eles zombavam, ela repetia — Com o meu santo suor — e fazia um gest com a mio na testa, para dizer que tinha suado muito. — Com 0 seu suor Essa & — Sim, senhor, nao é 0 que voce esti pensando, © pilador pilava seiscentas sacas por més — ela informava e, quando havia interesse por parte de algueém, se apaixonava pelos detalhes: — Quando o arroz esti seco, no quebra um $6 arto. Sentiase importante em presenga dos poucos operirios, dava © brago a0 marinheiro € percorria a ‘isa, que terminava sempre em seu quarto, com as sgargalhadas de encomenda, — Toma a beng a teu pai, menina (© homem a puxava para o colo, a barba comprida Ihe fazendo c6cegas na face. Fieava quieta por algum tempo — esperneava, queria se desprender daquele cheiro ruim de Fumo e eachaga, Nao vi, Luizinha, (© cheiro'ruim aumentava, os olhos da brihavam com uma satisfagio esquisita, Aqu 8 rT _grossas he apalpavam as pernas, a basba sspera rogava fem seu rosto para um beijo repugnante. — Quer ir para Tutoia, Luizinha? Fla queria era fugie daquele ser estranho, que a mie dizia ser seu pat — Nao quer ir com ele, Luiza? Tem muita coisa bonita ki no Maranhiao. (Os bodes dourados da farda the machueavam, as costas, foi escorregando pelas pemas do homem —ele agora se preocupava com o jantar—desprendeu- se, comeu, correu, e nunca mais 0 viu, s6 a barba nos outros homens, o cheiro de fumo e cachaca, a farda azul de gala, a farda branca, a gargalhada da mae qu fa se transformando, Go repetida nas noites, parecia tum chor. Correu para o cais, ultrapassou as. peas, ali haveria calma sempre no meio século de sua vida AS canoas velhas, para serem remendadas, redes de pescar estendidas, um apito distante, um grito — testemunhas monétonas, Nada mudaria, Mundoca _gostava da canoa verde e munca teria um filho, — luiza, tua mie mandou chama. “fi pra rede", disse ela Ali estava Jessé, como um eseravo, cumprindo fondens dela. Jessé era um eseravo — pensou isso ‘quantas veres? Ele, simplesmente,tinha medo “daquela mulher". Mas jd era um conforto estar a0 lado dele, a0 lado de seu siléncio horrivel Por que cle nunca fava? Nunca tinha uma opinio? tua mile mandou chamar, — JA vou, jf vou. Ele sentia tudo, mas nao dizia nada, 2» EN 1 Asis Beal» Jesse eine — Voce gosta da minha mae? eu de ombros, foi andando de volts — Nao sei. Eu preciso dela, tenho comida todos 0s dias, Pela manha a luta recomegava no armazém. ‘Oscaoctos se tepavam nos piladores, iam socando nas boeas quadradas o arroz em casca — a pocira subi, aquela nuver, eles ficavam de pestana branca Carror. que estava no depésito mofava por causa cla umidade — prejuizo com aquele inverno malt, (0 gros saiam quebrados, roxos, 0 peso das sacas. nao cera 0 caleulado, © dinheiro da mile estava enterrado ali, suor de muitos anos — 0 consumo da mercadoria era pouco, ki para cima o rio ainda estava seco, navios € barcas nao podiam passar. = Aqui chove desse jeito, li pra cima no cai uma gota — E mesmo, dona Crem. — Eeesse fio desgragado, cheio de pedra e lama centupindo o canal ‘A mae gritava por todo mundo nos dias que Faria bom sol para o secador: — Vamos aproveitare jogar 0 arroz no terreio. Enchiam as latas de querosene, 0 mofo recendia — comriam espalhando os gros amarelos na drea de ‘cimento, Nova poeita subia, as pestanas engracadas de Jessé, ele fazia aposta, "Ver quem bota mais arroz no sob" El m0 aguentava, 0 ombro ficava logo 30 7 + Meira Rio Beita Vida dolorido, a mae soltava descompostura — aquela filha s6 servia para encher a barriga, — Nio tem quem tape 0 rombo. Para encher a barriga e far como vagabunda na beina do rio, como se fosse viajante em ferias, Se 0 tempo se fechava, cheio de nuvens pesadas, bonito de chuva, novos gritos enchiam o armazém, nova, correria com as latas de querosene, nova aposta de Jessé, ver quem bota mais arroz no armazém, Lutza?” —Iaverno maldito, Da porta dos fundos, as maos nas cadeiras, a mae — Quando a gente nio precisa, chove aqui Devia ear gua era li na cabeceira do rio. ‘Mandava pane as miquinas. Sabia que aquele negécio nunca data certo. Quem jd viu uma mulher do ‘ais feito industria? As vezes sorria sozinha, cheia de ppensamentos, Bastava um marinheiro conhecido bater ra porta para que se transformasse. Dizi — Espere ai 14 dentro, botiva 0 melhor vestido, sala com a vventarola bordada se abanando imperiosa — Brincar de esconder, Jessé? You dormit — Luiza, pra rede. ‘As gargalhadas da mac até quase de manha, Jesse queria ser rico, $6 pensava em juntar dinheiro. Comegou com um litro de borboleta, que vendeu para os peixes da pergola. A Praga da Graca cestava sendo reformada, até o Prefeito vinha examinar 6s trabalhos — abaixavatse, dava a. mao aos pedreinos, folhava para 0 fot6grafo sortidente. Sujava 0 temo, branco de linho, media a largura do lago, queria mais, 31 + Assis Bras» fundo, bem fundo, que afogasse um homem de brago levantado — ji mandara providenciar peixes r1r0s, rio aqueles bichos sem graca do rio, que empestavam, as outras pragas, viviam morrendo, ninguém ligava. Encomendara peixes coloridos, azul, vermelho, roxo, — De onde, dr. Prefeito? — Da Grécia. A cada novo dliscurso, nova referéncia aos peixes coloridos para a inauguragio da praca remodelada, E tinha mais: os peixes de cor nao comiam as pobres borboletas brancas do rio, que os moleques cacavam sem descanso, Jessé teria que mudar de ramo de negécio, Chamou 0 Prefeito de nome feio, na frente dela — no se imporava com ninguém quando (queria, Pensou em comprar uma tarrafa. A tarde, depois de parado o pilador,tinha tempo para dedicar pesearia, Pensou em negociar com outras tantas coisas — preocupagao constante, — Inia, que voce acha, comprar aquelas Preparou com carinho, no fundo do quintal, um ambiente proprio para as marrecas compradas do Outro lado do tio, Puxou um pedaco de regato. Formado pela gua da caldeira do pilador, represou uma parte do terreno — com pouco 6 fundo do quintal tinh ‘uma nova paisagem. Temia que “tua mie” mandasse acabar com tudo aquilo, as marrecas iriam comer 0 aroz todinho, dar prejuizo. (© Prefeito voltava aos discursos — um nome para o novo ciramanchio, quem dava? Um nome bonito, tradicional — Caramanchio Padre Gonealo =O pace ficaria satisfeito, com aquela vaidade toda — As marrecas € 0s discursos, 6 rio solene e momo, 32 vr Beira Rio Heirs Vida» Muito antes, voeé se lembra, Mundoca, a gente amancava peixe Idina ponta do igarapé. Sea gente ‘quisesse roupa pra lavar, nao faltava freguesia E emprego? O dono do bar Mundico esta af mesmo pra confirmar. Voce ndo quis, na cidade era melhor, cera uma Toja com muita fazenda bonita, podia até sganhae vestido. SO influéncia de comeco, cadé os vestidos? Quanto corte tem ficado ai no bat esperando por linha. Ainda cheguei a dizer, voeé sabe, Mundoca, que ela ia cuspir na cara da gente o favor Feito. Voce fica Ii como amostra: essa af € a filha de Lufza, nao se lembra? Aquela? E quanto nao tem inventado pra se valorizat Por mim, a gente voltava li para 0 igarapé, ce jd disse, no quero sacrificio de ninguém, muito menos de voce, Mundoca. D4 pouco dinheiro, sei, ‘mas nunca tive boca grande, nem voce, © tempo passava, hein, Mundoca? E a Voce ter que se esconder delas ow ficar exposta como um tabuleiro de fruta, Nossa chegada ‘em casa era como uma festa, carregada de coisa, peixe, siri, camardo, era mesmo que uma festa, descascar os bichos, ferver a agua, fazer o pirio, comer sentindo 4 quentura, 0 gosto bom, era mesmo que uma festa. A gente nem reparava que comia s6 uma vez por di voce sabe, Mundoca. Voce bem sabe disso, Ea vida dei? Se casando com um homem muito ‘mais velho, vinte anos mais velho, Jacinto comegou ‘com uma quitanda Ii na rua do Passeio, 66 vendia furno 33 _ + Assis Hr» ‘carnauba; de tarde botava uma cadeira do outro lado dda calkada e ficava li na sombra. Fla, nesse tempo, fi passava pra cima e pra baixo, vigiando. Ele foi subindo, Subindo, bom negociante, comprou um bar na praca da Graca ¢ depois a loja’da rua do Rosirio, Voce ji tinha nascido quando nasceu © Tomazinho. Eu sei disso tudo porque, porque, quantos anos ‘eu tenho? Ab, voce, Mundoca, foi quem envelheceu Tigeiro. Sabe li, aquele caramanchio do padre? Eu fui na inauguraglo, Eu € Jessé. Se voce tivesse conhecido © Jessé. Um sujeito bom, mesmo depois de botar a dentadura. Minha mae conheceu ele, criou ele, vesti, ddeu comida, Jessé nto tina nada’ quando chegou. ‘Ai dew na munia de querer fiear rico, ser negociante, jumtando dinheiro na mao dela, juntando, até se ‘enrabichar pelo fio, Nao era ento mais negociante cera embarcadigo, remeiro e foi o fim dele. Eu estava esperando vor@, na ‘eu queria um menino, um meninozinho alvo e de ollio quando Jessé_ descobriu, Gaul. Fiquel envenoaha Que jeito ele podia dar? Jessé queria dar um jeito, sim. Tu acreditava, esperava, minha mae nunca acredi tou, ela sempre soube que se ele voltasse era morto, Minha barriga estava por acoli, ¢ foi a tnica vez ‘que tive vergonha na frente de um homem. Minha mae resmungou quando tudo estava acabado: nao disse? Disse cla — eu sabia, eu sabia, se enfeitando toda como se fosse gente, Ela sabia, sim, sempre soube, ‘mesmo quando nao esava pensindo no assunto, Voce nasceu, Mundoca, passel a esperar por Nuno, ela morrey, todos os marinheiros © embarcadicos tiraram © boné quando ela passou pelo cas. Ea A casa std ution, voce disse quando eu voltei do enterro, ¢limpamos tudo para uma nova vida, para ‘comecar de novo. Para comegar de novo, A casa ficou maior mesmo, (os marinheiros tinham mais liberdade, no lugar da rede suja dela uma rede branca de varanda. bordada. les viam pela porta voc dormindo como uma pedra, cles se-admiravam, tu filha nto sabe? Tus ila nao € da vida? ‘Nunca vi nada, Mundocx? Eu tinha tanto medo, ela vai aprender, eu pensava, cla vai saber de tudo © depois jogar na minha cara, dlzer que nao teve culpa Fiz tudo isso, Mundoca. Fiz, sim, Minha mie nunca me perdoou. A vinganea foi ver minha vida repetindo a sua, toda noite, todo dia, até 0 fim. Ela teve culpa, mas, no sei por qué, nunca se julgou culpada, Quem sabe ‘0 que mio sofreu da propria me! ‘Com voce, Mundoca, tudo foi diferente desde 0 ccomeco, Deus 1¢ abengoe, Nada com os homens, Deus fe abenoe. Que natureza, Achava esquisita essa tua vida, cheguei mesmo a no me conformat sed cochilando, eriatun® A noticia passou pelo cais com os comicios, os retratos de pose pelas paredes — os igarapés seriam aterrados, luz eletricae caleamento, empregos melhores, melhores salrios, novas Fabrics, outras promessas — 0 Prefeito discursava, Os barqueiros se revoltaram — 0 rio continuava nas chelas a invadir as muas, a Coroa alagida, a gua barrenta na beira da praca da Graga — as murigocas nao deixavam ninguém dormir —o Prefeito discursava, Para que aquela praca mais enfeitada ainda, com peixes coloridos da Grecia? 35 i Rio ies Vi» Assis rail —Vamo espiat, Luiza. De longe olhavam o movimento, Jessé queria pular a grde, examinar de perto os enfeites. O guards barrigudo fazia que ndo com a cabeca — proibida a entrada, O bigode descia grosso do nari vravaas pontas ddos lados da boca, enrolados pelos dedos amarclos, acompanhava as palavras, subia, desca, subi. ‘Os meninos tinham medo da barrga fardada, 0 cinto caido segurando a banha. Nao deixava ninguém pisar na grama nem subir no busto do Governador. As rove da noite dava um apito — hora de menino nao fandar na ta, hora de moca namorar perto de cass, 0s amorados podiam ficar um pouco mais nos bancos da praca, podiam se sentar comportados, sempre sob — Aquele guarda era um diabo, Mundoca, (© posto, mio deixava: da pérgola a “mulher nua’ ‘em frente 2 Biblioteca; da Biblioteca, em freate 3 “mulher pergola, Os mesmos passos, cuspia de ancl passiva 0 punho na boca, ajetava o bigode de um lado, do outro — om frente a igreja Jevantava 0 quepe, na ida ‘ena volta, na volta e na ida, no esquects Na inaygurago da praca todos se vingaram, correram na grama, eslregaram os pés, esfregaram, ‘macio, era bom, brincaram de esconde-esconde, se ‘reparim nas palmeiras. = Ver quem vai mais alto, Lui Subiram no busto do Governador, a cabeca pela, lisinha, fizeram camaradagem com uns meninos amarelos da cidade — Ele usa suspensério, Luiza = E rico, desta © altorfalante mio parava, discursos, discursos, ao Beis Vika 0 Prefeto repeta, “pénguls moderna, ext pengula fmodemm” — a bands de misiea aprsenton, novos obras, padre Gongalofalou em embelezamento de toss cidade progress, mo mereca #honra, frome, aman hone, se modesto nome ‘A mmukidlo. na beira do lago, indagando, se admirindo — nao er redondo ‘como um poco, trviesado nas pons, esquiso mesmo, mas fos de pedis no cent para as taanugas. © guards or al, Ealangando a cabega — parou pero dels i teu guard = Quetem ginhar um dihelinhce como, seu guard? =o Prefeito de ordens pars comprarborbolets sors qu 0s peites de rca, no eto vendo? 0s peines sto de rig, Jesse ode ig? T'Fles wo muiko finos, 56 comen borboleta branca eda mda, Voctssabern, desis que os outon pees comiam, e que sobem de note do vi, “Ni diseram que eles no. comiam as borboletinase rales, Inia Jesié comegou a combinar wdo, ert inverno, as borbolet brancas extavim.chegando, fcavam atordoadas em volta das Himpadss,voavam sem rum. guard, quanto por uma? — Der tosoes por um ir, Jes€ achava pouco, eles tinham batxado prego, 3-0 tabulhao, © minha mie o que no ia 37 _ 1 Asis Bra» litera cots ois conatados palo guard nv aga Go pga seu gut “meat acca od ie scancaava as Roxas banca a mie gs com acl oie “ego tem nas inven? — Fp vender, dont Cra Jesu or tea para expt 5 bx} =|; Pes ego de ing as nips dos 30h, ahbrecand ach Pol com ui eta eto un det ®t ps medir anc de um monte de feo elo. foram enchendo,encendo, nocd 45 Fevbolainhas brani ove ana pent, bom desis, Io — tesa Be mio queria, as borboltas for mania de ganar dni “err mare, porcosengorddos com cui de amor ava mas aco =~ dari uel amavem suo pereqigao va ta ml, an la luna F quando cscs enor mm aio de ‘erdade pars ben on oo ve afm? Mera pat so fazer de importante sempre foi assim um bor mento. até rectama por qe no the Uva enum oso pa bot a mado 90 soca “ua mae 6 10 comego da assim, de plo-duro, 38 oe ira lo Bei Vid (© guarda pegou o litro, viv se estava so salpicou na gua tudo de uma vez, nem teve grag os peixes apareceram feios, barbudos, colorides, mas. de cor deshotada, cinzentos — preferia os do rio, 05, ddourados ¢ azul ‘comida. Jessé pegou 0 dinheiro do litro de borboleta disse, convencido: — Nao di resultado, dos do rio, que no tinham luxo com © aroz pilado se enfileirwa na frente do armazém, poucas sacas vendidas nao seguiam por falta de transporte — 08 trens cobravam um horror, nic compensava, as guas continuavam baixas dificultande a navegacio — a viagem de muitos dias, ariscada, que dono de embarcacio tinha conigem de enirentar os barrancos do meio do tio? — ula, vé se vem chuva, — Pst bonito pra li — Pra onde? — Bem pra li —Nas eabeceiras do rio? £ = Qual. Esiou perdida com essa diggrama de arror encalhado ai, A noite a mie contou a outro tipo de farda: veja 86 uma coisa, ganhei nido isso aqui com (© meu santo suor, mas de que adiantou? As barcas mo podem passar pra Tuto (8 navios eobram ums fortuna e muitos encalham também — esse rio seco, ese tio miservel. Fiz sacificio, economize’, queria ser ‘uma industrial, como es dizem li na cidade: 3 vy - 1 Assis Bras A gungilhada da mde, a su ieonia — “ma que adiantou tamanho sacriicio se eu sei, sempre soube, que um dia ia perder tudo? Mas foi divertido = no comeco foi ainda mais divenido, eu ganhava dinheiro, era uma mulher de negécio, chegue até mesmo ‘a esquecer quem era, quem um dia voltara a ser Ele nao foi o primeiro a se oferecer para tomar conta do negécio —agora cla consentia, agora ela sabia que tudo teria um fim, e deu para ELE a fabric, ‘apenas para ver 0 resultado, — Isso aqui, Cremilda, precisa do brago forte de lum homem, do respeito de um homem. — Por acaso mio me dou ao respeito? Tudo se resolvera, ele tinha um amigo na Estrada de Ferro, “voce vai ver $6, Cremilda, num instante ‘gente limpa esse armazém do arror.encalhado” — Deus te ous. Efoiofimda "dona Cremilda, a mulher de negscio, dda beira do rio, aquela que inventou tanta histéria até herdar © armazém do velho Santana’ (© arroz comegou a ir pela Estrada de Ferro, mas o dinheiro nao entrava, ela punha as maos na. cabega: — Aquele miseriveljé esti me enganando, Lutza Ele nao nega as tradigées, & homem, ‘A barca Esperanga apontou na curva do rio cheia de algodio, Correu para além do pedago de cais em Constructo, onde ficava 0 armazém dos Morais — Jessé cesiava de volta, quanto tempo aquele malandro nao ddava noticia Desceu da barca cheio de coisas nas mos — the ‘deu uma corda de peixes e um sorriso: — Pesquei na rede do Meirinha, estao frescos. eins Rio Beira Vid Jessé tinha outros dentes estragidos:na_ boca mole, Reparou o vestide cuto da companheint — as pemas finas do lado de fora, Luiza estava crescendo, como nao reparava? Pela primeira ver ela via Jessé na altura de sew ‘ombro: espantou- se, lembrou-se das correrias. pela maegem do tio. — Quer apostar quem cresce mais? — Ora, Luiza, voce esti na diantera CO passado estava sempre do nosso lado, Mundoca, ‘como uma sombra — A Esperanga veio abarrotada de algodio, — Pra que tanto algodio? 0s Morais encomendaram para a fabrica de rede, — Barca velha e forte, hein, Jesse? —E, mas quase pega fogo na estrada do canal “Tem até uns fardos chamuscados, — Essas barcas $6 se acabam assim; afundar mesmo, nunca afundam, nao é, Jesse? — Qual. Voc® no se lembra da barca do Zé Manco? is aquela foi corada por um navio grande, $6 assim afundou, E sua mae como vai, Liza? — La, agarrada ao armazém, ‘oube que cla nao tem feito bom negocio, ‘com essa falta de chuva. Diga a ela que os navios esto cempancados acima do Igaragu — Voce mio vai Mi — Depois. — Ela sempre pergunta: (sempre nao, de vez em ‘quando, quando di na veneta) por onde andari aquele ouco do Jessé, hein, Luiza? a 1 Asis Beas Jesse também nasceu na beira do Paraiba, Mundoca. Nao se lembra dele, vocé ainda estava aqui no bucho. Mas Jessé me viu de barriga. Seri que foi idime aquilo que cle sentiu? Queria remediar tudo, coitado, Ah, vocé no conheceu o armazém dela, onde me ried com Jessé. E aquele que hoje & de seu Custédior — voce sabe da historia, quantas vezes no contei Ela ficou devendo até a alma, se queixava de um, “esse hhomem esti explorando sua mae, Liza ‘0 que era tudo para mim naquela épocx? i Jessé, 0 eais, 08 passarinhos no fundo do aarmazém, ah, voc’ nao conheceu nada disso, s6 esse ‘eachimbo fedorento, Nao conheceu nad mesmo. Mundoca, vai queimar 0 vestido, cochilando esse jeto, Se cair da janela, eu jt avis — Va pro inferno, {Jessé foi o primeiro a Ihe dar presentes — cordas de peixes, uns bem miudinhos, que serviram mais pa brinear do que para comer, espelhos de reclame, os ‘eacos de video os mais bonitos. Marreca nao. dava, oreo nao dava, custavam dinheito Era bom ganhar presentes, a gente se enche de orgulho. © que foi que voeé criou, Mundoca? Nada, Nunca se apegou a coisa alguma. Nunca tive um cachortinho porque minha mie no queria, sujava a casa, o armazém limpo dela, a gente vivia pisando fem arroz, cuim, tudo cobento de pé. Nao criet um cachorro, mas criet um bacorim até ela resolver dar ‘um banquet. 2 Beiea Rio Boia Vly Vocé no criow nada mesmo, nem uma filha, {que era mais ficil, como eu, como minha mae, como, minha av6, como sabe li quem. Nada, hein, Mundoca? Nem por Ceci se interessou, e olhe que nunca neguel retalho de pano, tenho ainda uma caixa completa, tudo dobrado e arrumado. Ali voce pode até ver a histéria das mulheres da familia, a Ceci, uma testemunha, Fu tinha uma coberta, cheia de bolotinha vermelha, um dia rasguei um pedaco para um novo vestido de Ceci — foi quando Jess€ chegou. Do primeiro vestido dela, de seda de S40 Paulo, tem ai um retalho —ocheito é da tua av6, 0 perfume que-atraia os homens, A maniilha de tua bisav6 foi feita de azul, a heranca mais cobigada quando a velha morrew = tua avé desilou com a mantlha até a nova herdeira ser Ceci. Outros pedacos, le outros vestidos, eu acabei Iustrando 0s sapatos deles, as fivelas do cinto e do talabarte Minha mac dizia: onde esti aquele pedaco de ppano que he dei de manha? Vi buscar, pra limpar 0 sapato de seu pai Do meu pai, Mundoca. Qualquer um ela dizia {que era meu pai. Eu desconfiava, ou apenas gostava de vez em quando de um barbado ou sem barba, (© resto passava, Outras barbas voltaram, talvez fossem ‘os mais simpaticos — cla sempre soube quem era ‘meu pai, eficava com aquela hist6ria de fla de retro ra parede, “adivinha, Luiza, adivinha quem & ele?” Gargalhava © levantava um brinde, ji com um bom ccopo de cachaga na mao: “aos despracados", dizia ela “Aas desgragados’, e as caras barbadas e sem barbas na parede espiavam seus movimentos, B SN 1 Asis Bras Hoje me arrepio quando penso nisso: naquele tempo era apenas uma brincideira. Voce, Mundoc ainda alcangou os retratos ai na parede; $6 08 que tinham barba, 0s outros joguei fora, det sumigo. Depois {oj tudo ficar amarelo no bat. Vo voc’ eles continuavam af em fileira na parede, que nunca teve curiosidade, hein, Mundoca? Por debochassem a vontade, que gritassem na minha cart Luiza, nto tem vergonha desse passa? Como poderia ter vergonha, Mundoca? Nunca conheet outra vida, tudo foi se ajeitando rnormalmente, acontecendo, acontecendlo, Tudo parecia natural pra mim, nio era de pensar muito ‘Talvez me envergonhasse se tivesse deixado 0 cas, 0 rio, os gaiolas, deixando minha mie, Jessé, & fosse hoje uma senhora de respeito e endinheirada, —talvez me envergonhasse mais com isso, Que ta A mulher de seu Jacinto queria salvar voc@, “vou salvar Salvar de qué, Mundocat Ah, mio compreendo esse povo. $6 se fosse salvar do Cabega de Cuia. Mas voc® nun bcleza pra interessar 0 cabeci. Jes nus sei que ele me protegia, Seri que € verdade essa historia do Cabega de Cui? Muita moga donzela tem desaparecido no rio, eu nao sei, no, Jessé dizia; eu no tenho medo porque sou um homer, — Vou trazer peixe pra voee, Luiza. Jessé cochichava perto de sua rede, “eu jé vou, se cla perguntar por mim, voce nao sabe" Sala na canoa de madrugada, sem medo algum, jf um homem, vara comprida nas’ mios espetando a me metia medo, “ 1a, © ela it para 0 cais fizer um nove enxowal para i— sempre espetara alguém ou alguma eoisa ali na calgada suja, os pés medindo a fiagem do io, As vezes no sabia a0 certo 0 que esperava, por que esperava, quando Jessé jf se fora, a mle, 0 taifeiro que usava farda como um oficial de alta patente, © seu elegante oficial caladao como Jessé, [Nuno nao era a recordacao mais viva — era uma, cas recordagdes naquela beirt de rio, naquela beira de vida. Nuno, Jessé, a mie, a av6, a infincia, os passarinhos ameagados de moste pelo menino perata, 6 navios, 0 navio-gaiola de Nuno, a barea de Jes ‘morte de Jessé, a mae bébada, 0 dinheiro dos homens, tudo giriva pelos mesmos’ pontos, pelas-mesmas ceurvas, O cts, 0 cas ‘Mesmo depois de nascer Mundoca, pequenina no colo, choramingando, molhando as roupinhas, esperava sentada no cais, com a pacigneia © a certeza de tantos anos. Certeza de que 96 0 cais existia realmente. E as coi sas Ihe aconteciam a pani dalle 6 tinh signficaga0 se ‘comegassem no cais. A pedra grande, aquela pedra qh ‘drada meno, tha & marca de seu destino — era ali, um pouco proximo 8 esquina, um pouco distante do primeino poste de luz, que 0 mapa de sua vida se faa. Ainda hoje via a marca do navio-gaiola dourado de Nuno, a marea do sangue de Jessé, a marca de seu sangue ao ter Mundoca. As thas pelos botequins tinham inicio no retingulo duro fe terminavam e reiniciavam, o caminho para a cachaca alentadora, para os homens que fabricavam dinero. Es tranho que ao olhar para qualquer homem, vise logo 0 ‘pesto de meter a mio no bolso e tira algumas eélulas — eles exisiam pari ela em funcio do dinheiro, sim. Desde Nuno, desde aqueles vinte mil is, 6 1 Assis Bras ~ — Vamo indo, mac Ah, Mundocs, nto enxergo mais a costura —Também com essa escuridao, — Nao sei mais andar, minha filha — Vamo indo, esti bonito de chuva. — Nao tem farda completa, Nuno? — Nio gosta de mim de Cala e camist, Luiza? Que vaidade € essa? — 05 outros usam farda de botio dourado. No dia seguinte ele —o primeiro, que no tar- 1. — se apresentou numa continencia, aprumado, todo de azul, todo cheio de bore dourado, com aquele sorriso de olhos semifechados, 0 ar cinico & bom. — Pronto, ia, aqui esté 0 seu oficial devida- mente encadernado, — Furtou a farda, Nuno? Fle ficava melhor de calea e camisa escura,justa no peito lango, 0 quepe de lado da cabega, Andava ingando, alegre para tudo, mas caladao, ia, Sabia que por algum tempo aguardara unicamente sua volta, que se fazia a espagos incertos. Quantas vezes voltara? Quantas vezes ficara sem um pensamentordis- Depois simplesmente esperara, esperara por qualquer coisa — que 0 cenirio mudasse, por exemplo, que o cais no mais se enchesse daqueles homens fardados com os mesmos passos estalando, na calgada, A boneca Ceci fora trocada, por algum tempo, por Mundoca pequenina e feia — era empurrada, 46 + Beiet Kio Beira Vida amaldigoava, 0s cabelos bbrancos, as maos descarnadas, tomavam cachaga até rolar no chao, — Por que anda com tua filha na rua, Lufea? Ela se preocupava que os homens. vissem, “muitos mio querem mulher que ji teve filho, voce deve € watar dessa barriga". Se preocupava, sim, {que 0 dinheiro diminuisse em casa, centa de que jf nao cra a mesma, 0 mesmo chamariz de brincos ‘compridos, conhecido em todo 0 Parnaiba, A arrogiineia desapareceu, 0 leque perfumado, perdeu o perfume, a rosa dos cabelos murchou. — Luiza, jf pra rede, A voz no tinha © mesmo imperative. A voz também mudara com ela. A casa era outra, nao mais ros fundos do armazém vendido em leilio — Um s6 quarto para as duas, depois para as trés, separado por uma cortina ‘Sem querer se viglavam — a conversa com os rmarinheitos, as historias, feias e bonitas, mais felas do que bonitas, aprendiam nomes, aprendiam novas posigdes no oficio, discutiam, se admiravam tanto da esperteza de cada uma — concorrentes. no mesmo jogo, lutavam rivais e com fara — Tua av6 bem sabia, Mundoca, que acabaria perdendo, acabaria vencida. Por isso 0 ar de importincia, de sabedoria, até © fim, quando a cachaga era © companheiro a ee 1 Asis Bl = or que Jessé ndo ficou logo daquela vez? A mania do rio, a mania de ganhar dinheiro. Teria tudo sido diferente? Qual. Naquela fase das primeiras emogdes & couriosidades, nao vacitaria em trocar Jessé por Nuno, se tivesse que escolher. Mesmo mo pensou no assunto ‘em relagao a Jessé — até al ele fora um simples irmao, lum companheiro do rio, das descobertas. Ele, 0 seu homem? O seu marido? Por que nunca pensei que Jessé gostasse de mim ‘como gostava? Hein, Mundoca? &, la a brasa do cachimbo, criatura, Essa parece ‘que nunea viveu mesmo, Por que voc® nunca reparou ro que a gente faia de noite? Eu viglava minha mae, no vou dizer que nio — mas nunca peguei voce olhando aquelas coisas. Caia na rede como um pedaco, de chumbo, nunca ouviu os gritos desavergonhados dela, como eu ainda hoje escuto. De uma coisa eu procure’ livrar voce, Mundoca: do meu barulho com os homens, para que nao tivesse vergonha diante de sua mae. A minha nunca ligou pra isso, até que se exibia: “Voe® viu, Luiza, aquele mulato alto? Quase me matou, 0 desgracado" Era assim mesmo que la falava, Mundoca. Nunca comentei nada com voc’, vor’ sabe. As vezes ‘queria — sempre quis — que voce tivesse uma filha — uma filha no, um filho — mas era $6. Nunca pretendi ensinar nada, Fla, se foi pro inferno por sso, if deve ter virado brass — Mie, o rio esta baixando, 8 r Beira Rio Beira Vid = Quem que mio sabe disso? Ora. Eu mio quer falar nela, era em Jessé que estava pensindo, Naquela, primeira vez que voltou, que jd estava mais baixo do que eu, Nunca pensel que ele pudesse ser mais alguma coisa do que um simples irmao pra mim. S6 da iltima vex que voktou — da pentikima, a tltima nao conta — se interessando por mim, querendo matar Nuno, pensei nele como um alivio, como se pensa numa coisa boa. Minha mie adveniu, embora nao acreditasse que desse certo: “Fle gosta de ti, Luiza, isso acontece, <é amor de infainia’ Se Jesse nao tivesse ido para as viagens —aquela mania pelo rio, Mas que emprego ele poderia aranjar no cais? Continuar no armazém até ver tudo. desmoronar? Até ser ratado de resto por outro patrio? Ser carregadlor, pegando peso nas costas? Se empregar num café, ser garcom? ‘Ab, Mundoca, voce nto conheceu Jessé, Ficou nanico, mas era um homem que queria crescer, As vezes 'me perguntava: "Luiza, onde & que a gente estuda? Quando respondia que era Hina cidade e custava inheito, ele cogava a cabega ¢ dizia: "A tua mie vai mangar de mim — olhem ai, querendo ser doutor, ‘querendo passar por gente rica — e talver nem queita centregar meu dinheiro’ Mas um dia Jess€ criou coragem e gritou pra ela, pero de um pilador barulhento: — Dona Cremilda, eu queria estudar. — Pra qué, mening? — ma, eu queria Fla saiu de perto do pilador barulhento, pegou JJessé pela mio, foi hem pro meio do armazém, e gritox pra todo mundo ouvir 9 1 Assis Brasil» = Olhem ai, querendo ser doutor, «1 passur por gente rica, Ele bem sabia da resposta dela Pela primeira vez Jessé chorou que alguém visse. Largou a_mao dela, enquanto alguns trabalhadores, ‘gargalhavam comendo © p6 de arroz, disse “diabo" baixinho e foi para o fundo do quintal, Naquele momento ele soube, Mundoca, que 86 poderia ser um embarcadigo ou um canoeiro, quando muito um marinheito de algum navio-gaiola, fou coisa nenhuma se continuasse naquele armazém de puta, como ele falava, Sei que queria estudar ‘mio para_abandonar 0 rio — sua grande paixto —e as embarcagdes, mas pra conhecer melhor de tudo lum pouco. Nunca abandonaria 0 rio e, quem sabe? Estudando poderia ser até comandante de um gaiola Deve ter pensado nisso, mas ¢ficil desistr quando ninguém ajuda, E ela, tua avé — voce conheceu bem, a velha — nunca ajudou uma s6 alma. Por isso Jessé parece ter se vingado quando soube que 0 armazém, tinha ido a leilio pra pagar as dividas — a vinganca Iaior dele, bem sei, seria se pudesse ter arrematado as, miquinas dela, a cas tudo, Mas ficou de peito lavado,, quando conte’ que ela chorou, se desesperou, na frente dos homens que vieram executar 4 lei. Chorou também durante todo 0 leili, depois de ter mostrado ‘miquina por maquina. Quis dar um escdndalo, “sou ‘uma desgragada, sou uma desgracada’, puxou os cabelos, gritou, sapateou, arranjaram uma cadeira por fim ficou calada a/um canto, solucando baixinho, solugando mais alto a cada pega atrematada. Depois, sémuitodepois, foiqueselembroudemim, {que mao sai de pesto, com um né na garganta.“E minha filha, minha filhinha, o que vorés vao fazer com ela?” 50 4 ae Bet Rio Beiea Vida = _— me puxou pro colo — °O que seri dela?” Um dos homens disse: "Sua filha no esti em leilie, dona’, fe ela tomou a grtar © a puxar os cabelos, pra. ficar solugando no canto, Ao terminar 0 leilao um homem disse: “Pode levar sua trouxa e sua filha", Foi no quarto dela onde: pouca vez eu tinha entrado, me puxou pelo braco, "me jude aqui’, tirou de debaixo da saia um embrulho, “hota centro da tua calgae sai pelos fundos, me espera na ponte”. =A senhora vai na cidade? — perguntei — Vou comprar uma casa pra nés. Vai, Lu do deixa ninguém te ver. Saf e esperet na’ ponte, © sol esquentava na minha cabeca,tinha sede, nunca me sentit20 ruim, Mundoca. Esava com medo que ela no viesse, que fosse presi, sei li, O sol esquentava ‘na minha cabega, tinka sede, s6 me lembro disso —o sol quente, tudo pegando fogo, tudo avermelhado, Esperei, esperei, até que ela apontou longe, de mio abanando, sem touxa nenhuma, Mie, cade suas coisas? = Mostrei a eles que no faco empenho de nada, “olhem aqui — eu gritei — vou me embora com roupa do corpo, fica tudo ai pra voces taparem 0 rombo da mae". Vamos na cidade, Luiza, Onde esti 0 dinheiro? Vai ficar todo mundo de olho comprido no ‘meu dinheiro, vocé vai ver. Na praca da Graga tinha um bando de chofer que ficou olhando, “erro © caminho de casa, Ceemilch?” Fla-me puxava pela mao, “nao olhe pra tris’, ia apressada foi direto numa casa de escada branca, toda cheia de quadto. — Onde esta 0 embrulho que the dei? 5 a Levantou minha saa, trou o embrutho, “sso aqui ‘minha fortuna, Luiza’. Entrou numa sala, eu fuel na escada — 0 calor do sol estava ainda ‘ia minha ccabesa, sentia qualquer coisa na minha bartiga Fla demorou tanto, eu olhava o sol ki no caleamento, ouvia as buzinas dos catros, Nunca me senti t20 nim, Mundoca, A demora dela, as coisas eesquisitas que estavam acontecendo, 0 sol, 0 barulho da praca, aquele cho frio onde ew estava sentada — depois jé ndo ouvia nada, a praga deserta, ert como tum sonho doido. De repente ela saiu da sala —=Vamo, Luiza Anda nto se dirigia pro cais, caminhamos por outeas fuas, Ela estava de cara Fechada, pensativ, ‘caminhava mais ligeiro, quase me arrastando, Els disseram que meu dinheiro nao da — Pra quae — Pra comprar uma easa aqui na cidade, Sei que € ‘mentira, eles nao querem é me vender, Um ainda dss: Mesmo a senhora nlio pode se mudar pra cidade", Foi ‘© que um deles disse, Luiza, € 0s outros acharam grag ‘Tua av6, naqueles instantes, estava mais pensativa € mais. velha, Mundoca. Mas’ insist, foi noutros eseritorios, em todos os escrtérios onde poderia ‘comprar uma casa, € no conseguitt nada. Eu s6 via a cara dela, s6 sentia 0 sol na minha cabeca, 0 calon, fi ‘com as pemnas bambas, estou com sede, = Vamo $6 mais ali, E assim corremos oda a cidade — bem entendido — toda a cidade onde ji tem calgamento, porque o resto nao € cidade pra ningués, 52 = eid Rio Heit Vida Quando ela es Vou botar um antincio no Norte". Ai 10 podia mais, -vamo sentar naquela sombra’ Ficamos num pé de muro, no aguentava mais a sede, as pernas tremend, “acho que estou com sezio, ava prt desistr, eve uma ideia aman Besteira, La vem seu Romualdo, ele te sede dgua bi até encher a bariga, seu Romualdo deixou cu beber mesmo na torneira da carga. Mas depois fi pior, Mundoca, quel com vontade de vom — amae, quero if emboa, Me lembro bem que fava assim: "Mamae, quero ir embora, mamie, quero ir embora” —Embors prs onde, mening? Agora ninguém tem tmais casa, nunca mais vamnos ter uma casa daquela ‘Alguma coisa escorria nas minhas peas, = Quero ie pro cais, mae — Li é melhor mesmo, li é melhor mesmo, De novo passimos pela praca da Graga, ela me arrastava, eu me sentia toda molhada — 920 queria dizer ela que estava mijada, pois do jeito que andava, seria capaz dle me sapecar um tabefe na cara. Quando ‘chegamos novamente na ponte, cri coragem: — Mie, vou no mato, into disse nad, sai comendo, Li de detnis de uma touceira de capim vi tua avé enxugar os olhos, ‘cabeca baixa, Ficou parada na ponte, olhava a igua cheia de lixo, 0 embnulho de dinheito ainda apenado na mao. 6 depois que me levantei, descobri que minha ‘alga estava suja de sangue. Procurei ver se tinha me ‘comtdo, se algum bicho tinha me mordido — Ab, no sei bem o que pensei,fiquei assustada, corr na direc del 38 r Hira Rio Beira Vid _ + Asis Br» — Mina calga esté su de sangue Ficou calada, deu a metade de um sortso, = No ais compro com facilidade qualquer bar- Facio, Que eles metam no rombo da mae essas casas amaldigoada — Mae, a minha calga.. Me interrompeu, jt brats: — F assim mesmo, toda mulher tem isso, voc ‘agora jé € uma mulher, Que que eu poderia pensar, Mundocs? Canseideverospanodela,avidaqueelalevavaaquel ceshomens — juntava tudo que via com 0 tipo de vida {que ela tinha, Ede repente me via suja como ela Juro, Mundoea, que pensei que sO mulher da iguala de minha mae tinha aquilo, que era como uma, sina ou um castigo, uma espécie de marca. E eu fora atingida, minha vida seria igual & dela, quer quisesse ‘ou mio, Fiquel mais convencida disso quando tua av6, me vendo triste, marchando a seu lado, disse: — Sossega, Luiza, & assim mesmo, voce agora jf pode ter homem, Foi o que ela disse, Mundoca: ‘Voc® agont ji pode ter homem, voce agora jé pode ter homem’. ‘Acho que fiquei encabulada € um pouguinho feliz, vaidosa. Era uma novidade, sentia que ela falava ccomigo de igual para igual ‘Ainda repetiu. Quando passamos no aterro, olhou pra mim — Agora voce pode ter homem, esta, E até que pode ajudar sua velha mae, Foi o que ela disse, Mundoca Um navio-gaiola, que nunca tocara em Parnatba, veio vindo & tarde, © rebocador na frente, © convés cheio de gente, um fumaceiro escuro enrolava 6 céu. Nuno desceu de calga ¢ camisa, o quepe azul de lado na cabeca. Alto, os dentes bem alvos, perguntou pelo armazém dos Reis e foi gingando pelo cas = Trouxe uma parida de rapadura — Aqui j tem rapadura — Mas nao como a de Teresina Deusthe a mio, mostrou © ciminho, Nuno se fespantou de sua intimidade — ele atraia, era uma cespécie de amparo desde © primeiro instante de presenea. Nuno ficou = Nunca — Pra que? Pensou na mie que teria amado um homem igual Aquele — os tempos mudados, os mistérios mais claros, chegara a sua vez de conhecer todos os segredos. — Eu me chamo Luiza e nasci aqui no cais, la sorviu timid, — Eu me chamo Nuno e mo nase aqui no cas, le sort largo. Descia com Nuno todas as noites para a baixada onde construiam canoas ¢ balsas. Alguns srisbrilhavam ‘na areia com a luz da lua, procurando comida — Eni2o voce nasceu no cais? ‘com aqueles othos grandes: qui, Moga = Nao sabia que por aqui tina moga bonita — F aqui vou ser enterrada 3 = + Assis Bris = - Sentavam-se nos woncos de madeira arrumdos « trabalho, De mos dadas — ali o rio penetrava, fo lavia bral —assineas bem lenge — imide chen de pedcinos de madera uma uta vor dame de aigum esvador ov-0 som de uma ‘snfona erm aiguna bare, Mio oct no nase no a, Nuno! Tio nasi nem me ee! No sabia que tn mogo onto fos dag aqui no vou ser entero Foio tno que fez camara, assim como um amigo, lem de fazer amor, Por so se entegou 8 ee "era sdo mesino por iso? Nano ft 0 primero, cuton poderam ter sito 6 primeir, Tern Je haver um primo, Talvez Nuno tenha sido um ino caper, ue poucts mulheres fxperimentaram, para que "uma bot recordagio so mv amare, Nuno? Se chara Arara —E novor —Novinho em folha, saiu do estaleiro de Tutoia agora. E 0 gaiola mais bonito do rio, Como € Tutoia? —F porto martimo, tem o mar, — Nunca vi o mar, $60 tio. 0 mar é azul — Deve ser bonito, — E nao fica longe de Parnatba, Luiza. Voce nunca foi na praia de Amarrago? — Ainda vou um dia, De repente quis viajar, conhecer outros lugares, 6 cconhecer, pant em seguida voltar ao cais. Nuno visitaria 56 Ber Rio Beis Vida mmpre Parnaiba, “cidade bonita como esta nunca vi Luiza’, melhor que as outras terras por onde andar. Un «dia embarcariam como passageiros num gaiola da linha, — Quem sabe se nio seri o Arara, hein Nuno? Ele conhecia dezenas de cidades, mas passaria a vyelhice num lugar calmo como Parnafba, —Juro, Luiza, — Jura nada Acreditara em todas as promessis? Exaltou-se por coisas que nao conhecia, por sonhos nai criados ainda. Os marinheiros iam embora,, desapareciam, mas outros vollavam com 0 mesmo quepe azul, a mesma farda de botbes dourados — uma curiosidade pelo que a mae passara, a av6, 1 bisavé — os velhos retratos amarelos dos pelintras na parede, todos engalanados e distantes, todos retratando Nuno. — Latza, jf pra casa, A mie estava no fim, a voz mal atravessava as pedras sujas por onde andara imperiosa, dona do mundo, Insisia para que eka nao fosse vista com a barra, Por acoli, maldicto que a preocupara quando também, cestava para ter a filha. Sua mesma idade, a mesma excitagio pelas novidades, pela repeticao dos gaiolas no rio — 0s gritos dos canocitos, as sinetas vespertinas, ‘o barrento vermelho das aguas. Quantas vezes teria de esperar pela sua volta? Nuno the foi a chave de todo aquele mundo que ovoava a cabeca de sua mile. Abriu 0 caminho, bem sabia, para mais uma mulher do eais ‘— um filho na barriga, a saudade prendendo os passes, ESS ST'=CO Assis Brasil ———— © navi Arata vokou algumas vezes, outos navios {que sempre voltam, mas os muarinheiros Sio apenas a recorducio de bracos e pakivras. O navio Arara voltou, ‘outros voltram — © quepe azul, 0s botdes dourados, fs casos, as historias, as juras de amor. Nuno voltou, foutros marinheiros volaram — os de barb, os sem barba, os que Gnham bela dentadura, os sem dentes =a recortagao mais viva nos postas serenos. A id ‘volta — como estas palavras tinham sentido, repercuti ra alma — “até a volta, Luiza” — “até a volta, Lata — Laz, nao vai botar meu nome nessa menina, 6 existe aqui no rio uma Cremild. "— Deus me livre, um nome amaldigoado desse — Cachorra Foi no camarote de Nuno. Limpo, pequeno, arumado, Retrato pelas paredes. Ancoras bordadas medalhas, ima Nossa Senhora feta de loue Nunca tinha entrado num navio-siola, ainda mais num gaiola de luxo, s6 nas barcas que cheiravam a famo e 4 arroz mofado, O Arara tinha um cheiro bom, diferente — 0 cheito de qualquer coisa que nao cconhecia, — Que cheiro € esse, Nuno? =F cheiro de navio mesmo. A escada do cais para baixo, cheia de degraus mitidos, ert como se conduzisse a um castelo misterioso, Na barca de Jessé no havia escada — uma prancha para o fundo chato repanido em compartimentos de tébuas velhas, 0 fogareiro sempre aceso no centro, o feifio borbulhando, redes 38 suas penduradas dos punhos, Tudo abafado, aqucles homens maltrapilhos. Nuno tinha uma cama de coleha branca, macka Ao morder a magi, identifiou 0 cheiro do navio — 0 desejo de comer a fruta vermelha marcou seu tormento durante a gravidez de Mundoca, O cheito e a Jembranca de Nuno. (Os navios, as barcas, as canoas, iam chegando, de Jonga viagem ou apenas do outro lado do rio, corria, indagava: — Trouxe mag? Trouxe magi? Recebia olhares, duros, rsadas. “Maca € comida de tico, dona — Por que nao plintam aqui? — Quem sabe? — Seri que nao di =F bem capaz. =F tao bom, tao bom. — Acho que s6 nasce no Sul e na Argentina, Essas vieram de Sio Paulo. Esteve Ii? — Nao, mas estive na guerra, Luiza; muito mais longe, dias ¢ dias de viagem. 10, veja 86, quando entrei no mar, enjoei pra cachoro. — Fo ferido? — Nio, mas matei muita gente, me deram essa medalla de ouro. —E de ouro, Nuno? Ach que sim — Por que & que deram’ — Talvez porque tenha cumprido com o mew ever, Fui € nao corri, como outros. sostummado com 0 — Por que matou?

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