eeO** thet tiiag
intermindvel que terminara um di —
Talvet por isso, desenhava, $6 rogine ct stead de
pupils. Raul ouvia musica asyeres
principalmente velhosbolerosem esrantor ee
Passaram no mesmocon
Prazer, Raul, prazer, Son)
o seu nome? sorrindo divertidos da coment
icidéncia. Mas discretos,
ram novos na firma ea gente, afinal,
sentirem tanto frio, tanta sede, ow simplesmente
sem querer justified-los —ou, ao contréro, justificando-s plenae pro
fandamente,enfim: que mais restavaaqueles doissenfo, poucoa pouco,
se aproximarem, se conhecerem, se misturarem? Pois foi o que aconte.
ceu, Mas to lentamente que eles mesmos mal perceberam,
Por serem humanos,
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Eram dois mogos sozinhos. Raul viera do Norte, Saul do Sul.
Naquela cidade todos vinham do Norte, do Sul, do Centro, do Leste—
€ com isso quero dizer que esse detalhe nao os tornaria especialmente
diferentes. Mas no deserto em volta, todos os outros tinham referenciais
—uma mulher, um tio, uma me, um amante. Eles nao tinham nin-
guém naquela cidade — de certa forma, também em nenhuma outra—
nao ser asi préprios. Poderia dizer também que nao tinham nada, mas
ndo seria inteiramente verdadeiro. =
133MoRANGOS MOFADOS
Além do violgo, Raul tinha um telefonealugado, um toca-discoscom
Seta pl chamado Carlos Gardel. Saul, uma televisag
ees Fe cate Steed
quimeum livro com reprodusées de Van Gogh. Naparededo quarto,
ro também de Van Gogh aquele quarto com a cadena de
a sepcodsta) ing cacao lias fee eae
‘me ‘Deitado, Saul tina &s vezesaimpressSo de que’ quadro ema unc
reesei quaseforograficamente o proprio quarto, ausente apenas
ie Quase sempre, era nessas ocasides que desenhaya. *
an nosos bonitos, todos achavam. As mulheres da reparOC NM ae wig *
de paras, mas nunca tentei, ou jé tentei
n
tempo, aquilo. E teria durado muito maig nnn” 380" desis. Durou
dos, quase remnotos, era tun jo Porque serem assim fecha-
Sul, de dentro talvez, ‘am de longe. Do Norte, do
que-que-houve contou que baal Tasado ¢respondendo a um vago
filmena televisao. Poreducagao, porta te eee
que 0 outro nao se sentisse mal chegando quase sonnet
por fazer, Raul deteve os dei sobre o telado nance
que filme? Inftmia'. Saul contou baixo, Audrey Hest en
MacLaine, um filme muito antigo, ninguém sting a aa
devagar, e mais atento, como ningué cme
a 0, \guém conhece? eu conheso € gosto
muito, nfo éaquelahistéria das duas professoras que. Abalado oo,
jou
Saul para um café, eno que restava daquela mank muito fia de junho,-
o prédio feio mais do quenunca parecendo wma prisioouclinicapsiqud,
trica, falaram sem parar sobre o filme,
Outros filmes viriam nos dias seguintes, ¢ tao naturalmente como
sealguma forma fosse inevitdvel, também vieram historia pessoais, pas-
sados, alguns sonhos, pequenas esperangas ¢ sobretudo queixas.
Dagquela firma, daquela vida, daquele né, confessaram uma tarde cinza
de sexta, apertado no fundo do peito. Durante aquele fim de semana
obscuramente desejaram, pela primeira vez, um em sua quitinete, outro
no quarto de pensio, que o sdbado eo domingo caminhassem depressa
para dobrar a curva da meia-noite e novamente desaguar na manhi de
segunda-feira, quando outra vez se encontrariam para: um café. Assim
foi, e contaram um que tinha bebido além da conta, outro que dormira
quase o tempo todo. De muitas coisas falaram aqueles dois nessa manha,
menos da falta um do outro que sequer sabiam claramente ter sentido.
Atentas, as mogas em volta providenciavam esticadas aos bares
depois do expediente, gafieiras, discotecas, festinhas na casa de uma,
“ The childrens hour, de William Wyle. Adaptagao da pega de Lilian Hellmann.
135MoRANGOS MOFADOS
"na casa de outra. A principio esquivos, acabaram cedendo, mas quase
__ sempre enfiavam-se pelos cantos e sacadas para trocar suas histérias
-_ intermindveis. Uma noite, Raul pegou o violao ¢ cantou
tumbraste”. Nessa mesma festa, Saul bebeu demais e vomitou no.
O85 Mmm a Gos
Na segunda-feira nfo trocaram uma palavrasaby
falaram mais que nunca, e muitas vezes foram ap
cespiavam, 3s vezes cochichavam sem,
pela primeira vez almocaram juntos
«quarto para mostrar os desenhos,
cinco paraas duas €o reldgio depo:
como pretexto deassistira Vagas,
entrouescondido na pensio,
café. As mogas em volta
ue eles percebessem. Nessa semana,
na pensio de Saul, que quis subir a0
visitas proibidas a noite, mas faltavam
nto eraimplacével. Pouco tempo depois,
estrelas da Ursa na televisio de ae
uma garrafa deconhaque no olso interno do
paleté. Sentados no chao, costas apoiadas na cama estreita, /quase nao pres-
taram atengo no filme. Néo paravam de falar. Cantarolando “lo che non
vivo” Raul viu os desenhos, olhando longamente a reproducao de Van
Gogh, depois perguntou como Saul conseguia viver naquele quartinho tio
pequeno. Parecia sinceramente preocupado, Nao é triste? perguntou. Voce
fo se sente sé? Saul sorriu forte: a gente acostuma,
Aosdomingos, agora, Saul sempretelefonava. Evinha. Almogavam
ou jantavam, bebiam, fumavam, jogavam carta, falavam o tempo todo.
Enquanto Raul cantava— vezenquando “Elda que me quieras”, vezen-
quando “Noche de ronda” —, Saul fazia carinhosentosnacabecinha de
Carlos Garde! pousado no seu dedo indicador. As vezes olhavam-se. E
sempre sortiam. Uma noite, porque chovia, Saul acabou dormindo no
sofi. Dia seguinte, chegaram juntos & reparticio, cabelos molhados do
chuveiro, Nesse dia as mogas nao falaram com eles. Os funcionsrios bar-
rigudos e desalentados trocaram alguns olhares que os dois nao saberiam
compreender, se percebessem. Mas nada perceberam, nem os olhares
nem duas ou trés piadas enigmaticas. Quando faltavam dez para as seis
sairam juntos, altos ealtivos, para assistir ao tiltimo filme de Jane Fonda.
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ii i io. Porque
Quando comegava a primavera, Saul fez aniversério, rq
achava seu amigo muito solitério ou por outra razao assim, al
ele a gaiola com Carlos Gardel. No comego do verao, foi a vez
137MoRANGOS MOFADOS
fazer aniversério. E porque estava sem dinheiro, porque seu amigo nap
tinha nada nas paredes da quitinete, Saul deu a ele a reproduc de Vee,
Gogh. Mas entre esses dois aniversdrios, aconteceu alguma coisa,
No Norte, quando comegava dezembro, a mée de Raul morrey¢
ele precisou passar uma semana fora. Desorientado, Saul vagava pelog
corredores da firma esperando um telefonema que néo vinha, tentands
em vio concentrar-se nos despachos, processos, protocolos. noite, en,
seu quarto, ligavaa televisio gastando tempo em novelas vadias ou dese.
nhando olhos cada vez mais enormes, enquanto acariciava Carlos Gar.
del. Bebeu bastante nessa semana. E teve um sonho: caminhava entreas
pessoas da reparticao, todas de preto, acusadoras. A excecio de Raul,
todo de branco, abrindo os bracos para ele. Abracados fortemente, etic
préximos que um podia sentir 0 cheiro do outro. Acordou pensando
estranho, ele é que devia estar de luto.
Raul voltou sem luto. Numa sexta-feira de tardezinha, telefonou
paraa reparticio pedindo a Saul que fossevé-lo. Avozde baixo profundo
parecia ainda mais baixa e mais profunda. Saul foi. Raul tinha deixaloa
barba crescer. Estranhamente, em vez de parecer mais velho ou mais
sério, tinha um rosto quase de menino. Beberam muito nessa noite.
Raul falou longamente da mae — cu podia tet sido mais legal com ela,
coitada, disse, ¢ nao cantou. Quando Saul estava indo embora, come-
cou achorar. Sem saber ao certo 0 que fazia, Saul estendeu a mio,
quando percebeu seus dedos tinham tocado a barba crescida de Raul.
Sem tempo pata compreenderem, abragaram-se fortemente, E téopré-
ximos ficaram que um podia sentir 0 cheiro do outro: o de Raul, flor
murcha, gaveta fechada; 0 de Saul, colnia de barba, talco. Durou muito
tempo. A mio de Saul tocavaa barba de Raul, que passava os dedospelos
caracéis mitidos do cabelo do outro. Nao diziam nada. No siléncio era
possfvel ouvir uma torneira pingando longe. Tanto tempo durou aquilo
que, quando Saul levou a mio ao cinzeiro, o cigarro era apenas uma
Jonga cinza que ele esmagou sem compreender.
‘Afastaram-se, entdo. Raul disse qualquer coisa como eu naotenho
mais ninguém no mundo, e Saul outra coisa como voce tem ¢ mim
138Pedawsods toes oes
perto do meio-dia. Fazia muito calor. Suarento, 0 chefe foi direto ao
assunto: tinha recebido algumas cartas anénimas. Recusou-sea mostr.
as Palidos, os dois ouviram express6es como “relagdo anormal osten-
sia’, “desavergonhada aberragio”, “comportamento doentio”,"psico.
logit deformada’, sempre asinadas por Um Arento Guardifoda Mora,
Sul baixou os olhos desmaiados, mas Raul levantou de um salto, Pare-
cia muito alto quando, com uma dasmaos apoiadas no ombro do amigg
ca outra erguendo-se atrevida no ar, conseguiu ainda dizer a palavra
nunca, antes que o chefe, depois de coisas como a-reputacao-de-nossa-
“firma ou tenho-que-zelar-pela-moral-dos-meus-funcionétios, decla-
rasse fio: os senhores esto despedidos.
Esvariaram lentamente cada um a sua gaveta, a sala vazia na hora
do almoco, sem se olharem nos olhos. O sol de verso escaldava o tampo
de metal das mesas. Raul guardou no grande envelope pardo um par de
enormes olhos sem {tis nem pupilas, presente de Saul, que guardou no
seu grande envelope pardo a letra de““Tu me acostumbraste”,escrita por
Raul numa tarde qualquer de agosto ¢ com algumas manchas de café.
Desceram juntos pelo elevador, em siléncio.
‘Mas quando safram pela porta daquele prédio grande ¢ antigo,
parecido com uma clinica psiquidtrica ou uma penitencidria, vistos de
cima pelos colegas todos nas janelas, a camisa branca de um ea azul do
outro, estavam ainda mais altos ¢ mais altivos. Demoraram alguns
minutos na frente do edificio. Depois apanharam 0 mesmo téxi, Raul
abrindo a porta para que Saul entrasse. Ai-ai! alguém gritou da jancla.
‘Mas eles no ouviram. O taxi jé tinha dobrado a esquina.
elas tardes poeirentas daquele resto de janeiro, quando o sol pare-
cia gemade um enorme ovo frito no azul sem nuvens do céu, ninguém
‘mais conseguiu trabalhar em paz na reparticao. Quase todos ali dentro
tinham a nftida sensagio de que seriam infelizes para sempre. E foram.
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