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= a Biblioteca Anarquista PROUDHON textos escolhidos A Propriedade é um Roubo * O Advento da Liberdade © O Sistema de Contradigoes Econémicas * A Revolugao de 1848 © Do Principio de Autoridade * Do Poder Absoluto @ Anarquia * O Governo e 0 Povo * Proudhon e as Candi- daturas Operarias © Contra o ‘‘Comunismo"’. Danie! Guérin Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865) Proudhon era filho de camponeses da regio de Franche-Comté. Seu pai era um tanoeito € ptoprietario de uma taberna. Proudhon iniciou a vida como tipégrafo ¢ mais tarde trabalhou como fepresentante de uma firma uansportadora com sede em Lyon. Foi ai que manteve seus primeiros contatos com os socialistas, comecou a desenvolver teorias proprias sobre um sistema sem governo, baseado numa organizagao econdmica cooperati vista € na liberagio do crédito de agiotagemn que 0 controlava. Em 1840 publicou Qu'est-ce-que la bropnété?, onde se declarou pela primeira vez anarquista. © livro foi elogiado por Marx que se transformaria mais tarde no grande critico das idéias de Proudhon. Durante a revolugao de 1848. Proudhon tornou-se deputado independent da Assembléia Nacional ¢ fundou um Banco do Povo para demonstrar na pritica as suas teorias so- bre crédito livre ¢ editou uma série de didrios alta- mente criticos, comegando com Le Representant du Peuple. que the valeu uma longa temporada na prisio sob o reinado de Napoleao IIL. Posterior- mente outto livo, De Ja Justice, levou a que fosse julgado € exilado na Bélgica. De volta a Paris, suas ctiticas corajosas fizeram dele um lider respeitado entre os operdrios, € um grupo de discipulos seus os Mutualistas, teve participacio ativa na criagao da Primeira Internacional Seu livro péstumo, De la Capacité Politique des Classes Ouvniires, fomeceu a base teérica para 0 anarco-sindicalismo. Bakunin chamava-o de ‘'Mestre de todos nés!”” Daniel Guérin PROUDHON Traducdo de Suely Bastos Extraido do original francés Ni Diew ni Maitre (Anthologie de l'anarchisme), de Daniel Guérin. traducdo: Suely Bastos capa: L&PM Editores revisdo: Marcia Camargo © Daniel Guérin, 1980 Todos 0s direitos desta edicdo em lingua portuguesa estdo reservados 4 L&PM Editores Lida. — Av. Nova lorque, 306 90.000 — Porto Alegre Rio Grande do Sul Impresso no Brasil Inverno de 1983 PJ. Proudhon (1809-1865). Proudhon jovem: auto-retrato. . Proudhon tipégrafo Estréias péblicas. A ptopriedade é um roubo Advento da liberdade. . O sistema de contradigdes econdmicas. . Proudhon na Revolugio de 1848. Proudhon se langa ao combate... .. Proudhon eandidato desempossado (abril de 184 Proudhon candidato eleito (4 de junho de 1848) Apés a insurreigao operaria de junho de 1848. Manifesto cleitoral do povo. Do principio de autoridade. O preconceito governamental Do poder absoluto @ anarquia. . Das leis O sistema representative Do sufrigio universal Governo € povo Nada de autoridade Indice 69 Proudhon e as candidaturas operarias (1863-1864). Paris numa tarde de eleigdes (1° de junho de 1863). . Manifesto dos sessenta operirios do Sena (17 de feverciro) de 1864). Nada de candidatos! Carta de Proudhon aos opcrarios Contra 0 “comunismo™ A soberania coletiva.......06 0060 ee © “comunismo’’; um estatismo agravado. Da associago..... 2... A pretensa ditadura das massas Da espontaneidade. . A revolugéo nao é obra de ninguém. oe 85 7 +a ell 11 113, U3 14 HS 116 P-J, Proudhon (1809-1865) A 16 de janeiro de 1865, Pierre-Joseph Proudhon morria em Paris, aos cingiienta e seis anos de idade. prematuramente des- gastado por um intenso labor cerebral. Como evocar em algumas palavras a personalidade deste velho operiro, filbo de campone- ses, filho de suas obras, autodidata? Colocados todos os seus outros méritos @ parte, foi um dos maiores escritores de nossa lingua, ao qual o critico literario Sainte-Beuve consagrou um livro intetro, O génio de Proudbon era multiforme, suas obras completas (as quats se acrescentam os catorze volumes da Correspondéncia, os cinco volumes dos Cadernos, em curso de publicagao, e ma- nuscritos inéditos revelados pela tese de doutorado de Pierre Haubitmann) superabundantes. Foi, ao mesmo tempo, 0 pai do “‘socialismo cientifico’’. da economia politica socialista e da socto- Jogia modema, 0 pai do anarquismo, do mutualismo, do sindica- lismo revolucionario. do federalismo e desta forma particular do coletivismo que hoje a 'autogestio"’ atualiza. Suas consideragoes sobre a Histéria e, notadamente, sobre a Revolugao Francesa, so- bre Napoledo, sto de uma perspicdcia que o aparentam a Miche tet. Enfim e sobretudo, foi o primetro a entrever, e a denunciar brofeticamente, os perigos de um socialismo autoritarto, estatal e dogmiatico A Revolugéo de 1848 lhe forneceu a ocasiao de descer, com conagem, @ arena revoluciondria e, sob 0 segundo Bonaparte, a audacia subversiva de seus escritos lhe valeram perseguicoes, a pri- sao € 0 exilio. Sua distincao de espirito original e paradoxal, exagerada por uma poderosa inspiragao plebéia, levou-o muito freqitentemente 4 deixar fundir em seu cérebro, em ebuligéo, idétas excessivas: so- bre a guerra, sobre o progresso, sobre o feudalismo, sobre o racisc- mo, sobre a arte, sobre a sexualidade, etc. Pregava uma moral fa- naticamente puritana. Nunca se libertou inteiramente da forma- a0 crista de seus primetros anos e, em sua obra mais monumen- tal, um dos requisit6rios mais virulentos e mais esmagadores fa mais pronunciados pelo anticlericalismo, a Justiga aparece no fim das contas como um sinénimo, pouco diferenciado, de Deus’. ele nao conseguiu nunca reseitar o forte cunho idealista que devia a leitura, por pessoas intermediirias, de Hegel, e seu espirito fun- damentalmente juridico permaneceu fechado & concepgao mate- rialista da Hist6ria. Ao mesmo tempo revolucionario e conservador, apaixonado bela kiberdade ¢ pela ordem, Proudbon foi rewvinaicado pelas ideologias as mais opostas. Em vida, ainda que bastante lido e ob- seto de uma publicidade barulhenta, foi singularmente 56. O marxismo, que the deve mutto e que nem sempre o ata- cou de boa-fé, eclipsou-o durante muito tempo. Ainda que divi- adido sobre 0 plano da agao entre o blanquismo, o reformismo parlamentar, 0 anarquismo e o estatismo e, no plano teorico, en- tre a filosofia hegeliana e a economia politica inglesa, ele é, pelo menos aparentemente, mats coerente do que foram as visdes por veres cadticas de Proudhon. O formidavel poder temporal, a di- tadura intelectual exercida hoje sob 0 nome. usurpado, de Marx, De fa Justice dans la Révolution et dans CEglise, 1858 a favor ao mesmo tempo da Revolugao de Outubro e de sua trai- ao pelos epigonos vermelhos, fizeram injustica &@ memoria de Proudhon. Ele foi até ontem quase um desconhecido, caluniado, esquecido, Acreditava-se ter dito tudo ao the jogar 0 epiteto in- sultante de “'‘pequeno-burgués"’. Mas até no campo ‘'marxista’’ comega-se a relé-lo e a injiria a baixar de tom. PROUDHON JOVEM: AUTO-RETRATO* Nao tenho nada a dizer de minha vida privada; ela nao con- cetne aos outfos. Sempre tive pouco gosto pelas autobiografias ¢ nfo me intetesso pelos negécios de quem quer que seja. A pro- pria Hist6ria e o romance s6 me atraem na medida em que ai en- contro, como em nossa imortal Revolucdo, as aventuras da idéia. (...) Nasci em Besancon, em 15 de janeiro de 1809, filho de Claude-Frangois Proudhon, tanoeito, cervejeiro, natural de Chas- nans, perto de Pontalier, Departamento de Doubs; e de Catheri- ne Simonin, de Cordiron, paréquia de Burgille-les-Marnay, mes- mo Departamento. Meus avs por parte de pai e mae foram todos agricultores li- vres, isentos de corvéias e de mios-mortas desde um tempo ime- morial. (...) Até doze anos minha vida, foi quase toda passada nos campos, ocupada ota em pequenos trabalhos rdsticos, ora em pastorear as vacas. Fui vaqueiro durante cinco anos. Nao conheco existéncia ao mesmo tempo mais contemplativa e mais realista, mais oposta a este absurdo espiritualismo que é a base da educa- sao e da vida cristas, do que a do homem do campo. (...) Que prazer antigamente de me rolar nos altos capins, que eu quisera roer como minhas vacas; em corter de pés descal- G0s sobre os caminhos Gmidos ao longo das sebes; mergulhar mi- nhas pernas, (...) plantando as verdes ¢urguias** na terra profun- * Excertos de De la Justice... Il: Lettres 2 l'Académie de Bétangon, 1837; Confes stons d'un Révolutionnatre pour Servir & l'Histoire de la Révolution de Ferner, 1819. Turquia, nome dado pelos camponeses ao milho (confundido com o ttigo dito da Turquia mas de fato originério do Novo Mundo) 9 da e fresca! Mais de uma vez nas quentes manhas de junho aconteceu-me de tirar minhas roupas e tomar banho de orvalho no relvado. (...) Mal entao distinguia o eu do nao-eu. Eu era tudo o que podia tocar com a mio, alcangar com o olhar ¢ que me cra bom por algum motivo; nao:-— eu era tudo o que podia me fazer mal ou resistir a mim. Todo dia eu me enchia de amoras, de rap6n- cios, de salsifes dos prados, de ervilhas verdes, de graos de papou- las, de espigas de milho assadas, de bagas de todas as espécies, amcixas, lodao, cerejas, rosas silvestres, videiras, frutos selvagens; cu me empanturrava com montes de frutas ¢ legumes crus de fa- zet estourat um pequeno-burgués bem-educado e que nao pro- duziam outro efeito em meu estémago sendo o de me dar a tarde um apetite formidavel. A boa natureza nao faz mal aqueles que lhe pertencem. (...) De quantas chuvas me enxuguei! Quantas vezes, mo- Thado até os ossos, sequei minhas roupas no corpo, a0 vento ou ao sol! Quantos banhos tomados a todo momento, no verao, no tio, no inverno, nas fontes! Trepava nas 4rvores; metia-me nas caver- nas; apanhaya ras na cotrida, caranguejos em suas tocas, artiscando-me a encontrar uma horrivel salamandra; depois, no mesmo lugar, eu assava minha caca. Ha, do homem ao animal, em tudo 0 que existe, simpatias ¢ 6dios secretos de que a civiliza- Gao rouba o sentimento. Eu amava minhas vacas, mas com uma afeigao desigual; tinha preferéncia por uma galinha, por uma 4r- vore, pot um rochedo; Disseram-se que o lagarto € amigo do ho- men € eu 0 acteditava sinceramente. Mas sempre fiz rude guerra as cobras, aos sapos ¢ as lagartas. O que eles me fizeram ? Nenbu- ma ofensa. Nao sei; mas a experiéncia dos homens me fez detesta-los sempre mais. PROUDHON TIPOGRAFO (...) Saido do colégio, a oficina me recebeu. Eu tinha deze- nove anos. Tornado produtor por conta propria e cambista, meu trabalho cotidiano, minha instrucgao adquirida, minha razao mais 10 vigorosa me petmitiam aprofundar bem mais o problema, como nao teria sabido fazer outrora. Esforcos iniiteis: as trevas se aden- savam cada vez mais Mas qué! Dizia-me todos os dias no “‘soltar’’ minhas linhas, se por algum meio os produtores podiam se combinar para ven- der seus produtos € servicos quase a preco de custo e, por conse- guinte, pelo que eles valem, existiriam menos novos-ricos, sem di- vida, mas também existiria muito menos indigéncia. (...) Nenhu- ma experiéncia positiva demonstra que as vontades € os interesses nao possam ser equilibrados de tal modo que a paz, uma paz im- perturbavel, seja fruto disso, e que a riqueza torne-se a condicio geal. (...) Toda a questao é encontrar um principio de harmonia, de ponderagio, de equilibrio. Apés algumas semanas de trabalho em Lyon, depois em Mar- selha, o Jabeur* sempre faltando, dirigi-me a Toulon, onde che- guei com trés francos ¢ 50 centavos, meu dltimo recurso. Eu ja- mais estive mais alegre, mais confiante do que neste momento cti- tico. Ainda no havia aprendido a calcular o dever ¢ o haver de mi- nha vida; eta jovem. Em Toulon, nada de trabalho: chegava muito tarde, eftata o ‘‘fuso"’ por vinte ¢ quatro horas. Veio-me uma idéia, verdadeira inspiracao da época: enquanto em Paris os opera- tlos sem emprego atacavam o governo eu resolvi, de minha parte, dirigir uma intimacSo a autoridade Fui 4 Camara Municipal e pedi para falar com o presidente. Introduzido no gabinete do magistrado estendi-lhe meu passapor- te: — Eis, Senhor, eu lhe disse, um documento que me custou dois francos e que, aps informagées sobre minha pessoa fornecidas pelo comissario de policia de meu bairto, assistido por duas teste- munhas conhecidas, me promete, junto as autoridades civis ¢ mili- tares, dar assisténcia e protecdo em caso de necessidade. Ora, sabei, Senhor Presidente, que sou tipdgrafo ¢ que desde Paris procuro trabalho sem encontrar ¢ que estou no fim das minhas economias O roubo é punido, a mendicancia proibida; a renda nao é para to- Trabalho tipografico de longa duracdo; ainda em nosss dias distinguem-se as tipo Brafias de “grande tirager”” das tipografias ‘de impresa a0 do mundo. Resta o trabalho, cuja garantia me parece completar 0 objetivo de meu passaporte. Em conseqiiéncia, Senhor Presidente, venho colocar-me a vossa disposicao. Eu era da estirpe daqueles que, um pouco mais tarde, toma- ram por divisa: Viver trabalbando ou morrer combatendo! que, em 1848, provocavam trés meses de miséria 4 Republica; que, em junho, escreviam sobre sua bandeira: Pao ou chumbo! Eu ptocedia mal, hoje 0 confesso: que meu exemplo instrua meus semelhantes. Aquele a quem me dirigia era um homem pequeno, rechom- chudo, gorducho, satisfeito, usando dculos com armagao de ouro € que, certamente, ndo estava preparado para esta intimacéo. Eu anotei seu nome, gosto de conhecer aqueles que quero. Era um tal de Senhor Guieu, dito Tripette ou Tripatte, antigo procurador, homem novo, descoberto pela dinastia de Junho e que, embora ri- co, ndo recusava uma bolsa de estudos para seus filhos. Ele deve ter me tomado por um fugitivo da insurreigio que acabava de agitar Paris no enterro do general! * — Senhor, disse-me dando pulinhos em sua poltrona, vossa teivindicacdo € ins6lita e vés interpretais mal vosso passaporte. Quer dizer que, se vos agtidem, se vos roubam, a autoridade vos defendera: eis tudo. — Perdiio, Senhor Presidente, a lei, na Franca, protege todo o mundo, mesmo os culpados que ela reprime. A policia nao tem 0 direito de ferir 0 assassino que ela prende, exceto no caso de legi- tima defesa. Se um homem é aprisionado, o diretor nao pode se apropriar de seus bens, O passaporte, assim como a carteira de tra- balho, porque estou munido de um ¢ de outro, implica para 0 operario algo mais ou nao significa nada. — Senhor, vou vos fazer entregar 15 centavos por légua para retornar para sua regio. E tudo o que vos posso fazer. Minhas atri- buigdes nao vao mais longe — Senhor Presidente, isto é esmola € no quero. Depois, quando estiver em minha terra, onde acabo de saber que nao ha o que fazer, irei procurar o presidente da Camara como hoje acabo As exéquias do general Maximilien Lamarque (1770-1832) ocorreram na ocasiio de uma grandiosa manifestacdo popular que degenerou em tumulto 12 de procura-lo; de sorte que minha volta tera custado 18 francos ao Estado, sem utilidade para ninguém: — Senhor, isto nao esta em minhas atribuigoes... Ele nao saia disso. Repelido com insucesso no terreno da lega- lidade, eu quis tentar por outros meios. Talvez, disse-me, 0 ho- mem valha mais que o funciondrio: ar placido, figura crista, menos a mortificagao; mas os mais bem-alimentados so ainda os melhores: — Senhor, retomei, visto que vossas atribuigdes nao vos per- mitem cuidar de minha petigao, dai-me um conselho. Posso, em caso de necessidade, tornar-me til fora de uma tipografia e nada me repugna. Vos conheceis 0 local: que ha para fazer? Que vés me aconselhais? — Senhor, retire-se. Eu o media dos pés a cabeca. (...) — Pois bem, Senhor Presidente, disse-lhe eu entredentes: prometo-lhe nao me esquecer desta audiéncia. E ao deixar a Camara Municipal, sai de Toulon para a Itdlia. (...) Ha dois anos corro o mundo, estudando, interrogando o povi- nho de que me encontro mais proximo por minha condicao social; nao tendo tempo de ler e menos ainda de escrever! (...) Tal foi até este dia, tal € ainda minha vida: habitando as oficinas, testemunha dos vicios ¢ das virtudes populares, comendo meu pio ganho a cada dia com o suor de meu tosto, obrigado, com meus médicos ordenados, a ajudar minha familia e a contribuir na educagio de meus irmaos; no meio de tudo isto, meditando, filo- sofando, reunindo as menores coisas de observacdes imprevistas. Fatigado pela condicao precdria e miseravel de operario, quis fi- nalmente tentar, conjuntamente com um de meus colegas, organi- zar um pequeno estabelecimento de tipografia. As escasssas econo- mias dos dois amigos foram postas em comum e todos os recursos de suas familias lancadas nesta loteria. O pérfido jogo dos negécios atraicoou nossa esperanga: ordem, trabalho, economia, nada ser- viu; dos dois sécios, um foi para o lado de uma mata morter de prostracao ¢ de desespero, 0 outro s6 tem que se arrepender de ter asto o ultimo pedago de pao de seu pai 13 ESTREIAS PUBLICAS (...) Minha vida paiblica comega, em 1837, em plena corrup- Gao filipista*. A academia de Besancon devia conceder a pensio trienal, legada pelo Senhor Suard, secretario da Academia francesa, aos jovens sem fortuna do Franco-Condado que se destinam & cat- reira das letras ou das ciéncias. Entrei na concorténcia. No relat6rio que dirigi 4 Academia e que existe em seus arquivos, eu lhes digo: “Nascido e criado no seio da classe operaria, pertencendo-lhe ainda pelo coracao e pelas afeicdes, sobretudo pela comunidade de sofrimentos e de desejos minha maior alegria, se eu obtiver os su- fragios da Academia, seria trabalhar sem descanso, pela filosifia e pela ciéncia, com toda a energia de minha vontade ¢ todos os po- deres de meu espirito para a melhoria fisica, moral e intelectual da- queles que cu me aprazo em nomear meus irmaos ¢ meus compa- nheiros; de poder espalhar entre eles os germes de uma doutrina que eu vejo como a lei do mundo moral, e, contando com 0 suces- so de meus esforcos, de me encontrar j4, senhores, como seu repre- sentante frente a vos." Minha revolta, como se vé, data de longe. Era ainda jovem € pleno de fé quando pronunciei meus votos. Meus concidadaos di- rao se hes fui fiel. Meu socialismo recebeu o batismo de uma sabia companhia; tive por madrinha uma academia; e se minha vocacao, ha muito tempo decidida, pudesse se enfraquecer, 0 encorajamen- to que recebi entdo de meus honoraveis compatriotas o teria confir- mado de forma irreversivel. Logo pus-me a obra. Nao fui de modo algum buscar a luz nas escolas socialistas que subsistiam nesta €poca e que j4 comegavam a passar de moda. Deixei igualmente os homens de partido ¢ 0 jor- nalismo, muito ocupados com suas lutas cotidianas para imaginar as conseqiiéncias de suas préprias idéias. Nao conheci nem procurei as sociedades sectetas; todo este mundo me parecia se distanciar tanto do objetivo que eu perseguia quanto os ecléticos € os jesuitas. Eu comecei meu trabalho de conspiracao solitaria pelo estudo das antiguidades socialistas, necessario, a meu ver, pata determinar Isto €. sob o reinado do tei Luis Felipe (1830-1848). 14 a lei te6rica e pratica do movimento. Estas antiguidades, eu as en- conti primeiro na Biblia. Falando aos cristos, a Biblia devia ser para mim a primeira das autoridades. Um relat6rio sobre a institui- cao sabitica, considerada do ponto de vista da moral, da higiene, das relagdes de familia e da cidade, me valeu uma medalha de bronze de minha academia. Da fé em que havia sido ctiado precipitei-me entao, cabeca baixa, na razdo pura e logo, coisa sin- gular ¢ para mim de bom augtirio, por ter feito Moisés fildsofo € socialista, recebi aplausos. Se agora estou errado, a falta nao € so- mente minha: houve alguma vez seducdo semelhante? Mas eu estudava sobretudo para realizar. Preocupavam-me pouco as palmas académicas; nao tinha tempo para tornaf-me cientista, ainda menos literato ou arquedlogo. Aproximei-se ime- diatamente de economia politica. Havia tomado por regra de meus julgamentos que todo prin- cipio que, levado a suas tiltimas conseqtiéncias, desembocasse nu- ma conttadigao, devia ser tido por falso ¢ negado; € que, se este principio tivesse dado lugar a uma instituicéo, a propria instituigao devia set considerada como artificial, como uma utopia. Munido deste critério, eu escolhi para objeto de experiéncia 0 que encontrata na sociedade de mais antigo, de mais respeitavel. de mais universal, de menos controverso, a propriedade. Sabe-se 0 que me aconteceu. Apés uma longa, minuciosa ¢ sobretudo im- parcial andlise, cheguei, como um algebrista conduzido por suas equac6es, a esta concluso surpreendente: a propriedade, de qual- quer angulo que se a considere, a qualquer principio que se a tela- cione, € uma idéia contraditéria. E como a negacao da propriedade levava 4 negacdo da autoridade, eu deduzia imediatamente de mi- nha definicao este corolario nao menos paradoxal: a verdadeira for- ma de governo € a anarquia. (...) Considerei meu trabalho bastante inquietante por si mesmo para merecer a aten¢ao do pablico € para despertar a soli- citude dos sabios. Dirigi meu relatério 4 Academia das Ciéncias Morais ¢ Politicas: a acolhida favoravel que ele recebeu, os elogios que o relator, Senhor Blanqui*, considerou dever fazer ao escti- * Adolphe Blanqui (1798-1854). economista burgués, irmao do grande revoluciona- tio Auguste Blangui 15 tor, me motivaram a pensar que a Academia, sem assumit a res- ponsabilidade de minha teoria, estava satisfeita com meu traba- lho € cu continuei minhas pesquisas A dialética me embriagava: um evidente fanatismo, patticu- lar aos légicos, me exaltara e fizera de meu relatério um panfleto. O Ministério Pablico de Bésangon, considerando dever set seveto contra esta brochura, faz-me comparecer diante do tribunal cri- minal do Departamento de Doubs, sob a quadrupla acusagdo de ataque 4 propriedade, de incitamento contra 0 governo, de ultra- je a religido e aos costumes. Fiz 0 que pude para explicar ao jari como, no estado atual da citculacdo mercantil, o valor-de-uso € 0 valor-de-troca sendo duas quantidades incomensuraveis ¢ em pet- pétua oposi¢ao, a propriedade é completamente ilégica e instavel, € que tal € a razao pela qual os trabalhadores so cada vez mais pobres ¢ os proprictarios cada vez menos ricos. O juiri pareceu nao compreender grande coisa de minha demonstracao: disse que isto fa matéria cientifica e, por conseguinte, fora de suas competén- cia, € proferiu um veredito de absolvicao em meu favor. 16 A Propriedade E um Roubo* Se eu tivesse de responder a seguinte questao: 0 que € a escravidao?, € a respondesse numa tinica palavra: € um assassinato, meu pensamento seria logo compreendido. Eu nao. teria necessidade de um longo discurso para mostrar que o poder de tirar ao homem o pensamento, a vontade, a personalidade, é um poder de vida e de morte, e que fazer um homem escravo € assassina-lo. Por que entio a esta outra pergunta: o que € a propriedade?, nao posso eu responder da mesma maneira: € um roubo, sem ter a certeza de nao ser entendido, embora esta segunda proposi¢ao nao seja senao a primeira transformada? Eu tento discutir a propria origem de nosso governo e de nossas instituigSes, a propriedade; estou no meu direito: posso me enganar na conclusdo que resultara de minhas pesquisas; agrada-me colocar 0 dltimo pensamento de meu livto no inicio; estou sempre no meu direito. Tal autor explica que a propriedade € um direito civil, nascido Extraido de Qu'ert-ce que la Propriété?, 1810. da ocupacao ¢ sancionado pela lei; tal outro sustenta que ela é um direito natural, tendo sua fonte no trabalho: ¢ estas doutrinas, por mais opostas que elas parecam, sao estimuladas, aplaudidas. Eu afirmo que nem o trabalho, nem a ocupacio, nem a lei podem criar a propriedade; que ela € um efeito sem causa: sou fepreensivel? Quantas queixas se levantam! — A propriedade é um roubo! Eis o rebate de 93! Eis a desordem das revolucées! — Leitor, uanquilizai-vos: nao sou de modo algum um agente de discérdia, um bota-fogo de sedi¢ao. Antecipo-me alguns dias na Hist6ria; exponho uma verdade que nés tentamos em vao barrar a passagem; escrevo o preambulo de nossa futura constituigao. Esta defini¢go que vos parece blasfematéria, a proptiedade € um roubo, seria o punhal exorcizador do édio se Nossas preocupagdes nos permitissem entendé-la; mas quantos unteresses, quantos preconceitos se lhe opdem! A filosofia nao mudara de maneira alguma, bé/as!; 0 curso dos acontecimentos: os destinos se efetuarao independentemente da profecia; alias, nao é necessatio que a justiga se faca € que nossa educacao se complete? — A propriedade € um roubo! Que inversio das idéias, humanas! Proprietario ¢ ladrao foram em todos os tempos express6es contraditérias tanto como os seres que elas designam sio antipaticos; todas as linguas consagraram esta antilogia. Sobre que autoridade poderias entéo atacar o consenso universal e dar o desmentido ao género humano? Quem és para negar a razo dos povos e dos tempos? — Que vos importa, leitor, minha mediocre individualidade? Eu sou, como vis, de um século em que a raz%o 86 se submete a0 fato € a prova; minha reputacio, assim como a vossa, € de investiga- dor da _verdade* ; minha missio esta escrita nestas palavras da lei: Fale sem dio € sem medo; diga 0 que tu sabes. A obra de nossa es- pécie € construir o templo da ciéncia e esta ciéncia abrange o homem Em grego skepticos, indagador, filésofo que faz profissao de procurar 0 verdadeito (nota de Proudhon). 18 © a natureza. Ora, a verdade se revela a todos, hoje a Newton € a Pascal, amanha ao pastor no vale, ao operatio na oficina, Cada um coloca sua pedra no edificio e, sua tarefa feita, desaparece. A erernidade nos precede, a eternidade nos segue: entre dois infinitos, que é 0 lugar de um mortal para que 0 século nele se informe? ; Deixai, portanto, leitor, meu valor ¢ meu cardter, ¢ ocupal- vos s6 com minhas razdes. E conforme o consenso universal que cu pretendo corrigir 0 erro universal; € a fé do género humano que chamo de opiniao do géneto humano. Tende a coragem de me seguir ¢€, se vossa vontade € sincera, s¢ vossa consciéncia € livre, se yosso espirito sabe unir duas proposigées para dai extrair uma ter- ceira, minhas idéias tornar-se-4o infalivelmente as vossas. Come- cando por vos lancar minha Gltima palavra quis eu vos prevenir ¢ nao vos desafiar: porque, tenho certeza, se me leres, cu forcarei vossa concordancia. As coisas de que tenho a vos falar so tao sim- ples, ta0 palpaveis, que vos espantaras de nao as ter percebido, e vos vos direis: ‘Eu nao tinha refletido nada disso'’. Outros vos ofereceréo 0 espetéculo do génio violentando os segredos da natu- teza ¢ divulgando oraculos sublimes; vés nao encontrareis aqui se- nao uma série de experiéncias sobre o justo ¢ sobre o dircito, uma espécie de verificagéo de pesos ¢ medidas de vossa consciéncia. As operacées se farao sob vossos olhos; € vs mesmos apreciareis 0 Te- sultado. ‘Além disso, nao disponho de sistema: eu desejo o fim do privilégio, a aboligao da escravatura, a igualdade de direitos, o reino da lei. Justia, nada senao Justica; tal € 0 resumo de meu discurso; deixo a outros o encargo de disciplinar o mundo. ‘ Eu me disse um dia: por que, na sociedade, ha tanta dor ¢ mi- sétia? O homem deve ser eternamente infeliz? E, sem me limitar as explicagdes gerais dos empreendedores de reformas ao denun- ciar a miséria geral. estes a covardia ¢ a impericia do poder, aque- les os conspiradores € os motins, outros a ignorancia € a corrupca0 geral: fatigado com os intermindveis combates da tribuna e da imprensa, quis eu proprio aprofundar a coisa. Consultei os mes- 19

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