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Educação Especial - Opinião de Carlos Afonso

A Educação Especial, em Portugal, atravessa, actualmente, um


processo de mudança sobretudo a partir da publicação do Decreto-Lei 3/2008. Este
facto, em si, não é novo, na medida em que tem acontecido com frequência. Deve até
ressalvar-se que, em muitas situações, as alterações neste domínio têm assumido um
carácter de pioneirismo que depois alastra a outras áreas. Portanto, à partida, nada a
estranhar. No entanto, a dúvida instala-se em saber se, desta vez, a mudança vem no
sentido do aprofundamento e consolidação das boas práticas existentes ou representa,
pelo contrário, um retrocesso face a esse mesmo percurso. Da revisão do Decreto-Lei
319/91 parece evidente que, do ponto de vista legislativo, o Decreto-lei 319/91
precisava de ser revisto. Não somente pela sua “idade” mas, sobretudo porque a
realidade, no terreno de actuação nas escolas, colocava novas questões que nele não
encontravam solução. Convém recordar, porém, antes da sua passagem ao “reino do
esquecimento” que, na altura da sua publicação, ele se mostrou de grande utilidade e
com um espírito muito inovador. Com efeito, apesar das equipas de apoio à integração,
no âmbito do Ministério da Educação, já desenvolverem trabalho específico, desde
1975/76, ainda se mantinha, em 1991, uma lacuna legislativa sobre o seu campo de
acção. Nesse sentido, a regulamentação do apoio aos alunos com Necessidades
Educativas Especiais (NEE), então feita, representou um grande avanço no campo da
Educação Especial, legitimando práticas existentes e possibilitando a emergência de
novas formas de atendimento. O reconhecimento da sua importância no contexto da
época, não impede, contudo, que se lhe apontem várias omissões, contradições e
ambiguidades. Por exemplo, permitiu consolidar a permanência dos alunos com NEE na
escola regular, mas ao não explicitar a integração como um direito indiscutível das
crianças manteve a sua aceitação no âmbito do livre arbítrio de cada escola. Este facto
talvez se compreenda pela existência de algum excessivo “optimismo pedagógico”,
dominante no discurso da Educação Especial, nos finais da década de 80, que acreditava
na transformação da escola regular, enquanto sistema, a partir do aumento do número de
alunos com NEE integrados, o que se veio a verificar ser irrealista. De salientar, ainda, a
introdução legislativa do conceito de NEE. Contudo, a sua pouca clarificação
possibilitou que, na prática, tivesse um cariz demasiado abrangente, envolvendo uma
população muito diversificada. De repente, a Educação Especial passou a ser vista como
a única alternativa para todas as situações de diversidade dentro da escola, pelo que
qualquer criança que fugisse à “norma” para lá era encaminhada. Este alargamento do
campo de actuação e o acréscimo significativo de alunos apoiados levou, por vezes, à
criação de respostas educativas menos adequadas. Este conjunto de factores tornava, por
conseguinte, imprescindível, uma nova legislação que aliás viria a ser objecto de várias
propostas por diferentes governos. As mudanças Finalmente, foi publicado, em Janeiro,
o Decreto-Lei 3/2008 e, com ele, abriu-se um novo quadro conceptual com reflexos na
intervenção nas escolas. Apesar dos seus vários aspectos positivos não pode deixar de se
considerar que, neste diploma, existem múltiplas perspectivas de retrocesso do percurso
da educação especial.Uma delas tem a ver com a “redefinição” do conceito de NEE, na
sequência do que já fora disposto no Decreto-Lei 6/2001. Assim, pode ler-se no artigo
1º, que os apoios especializados visam responder às “necessidades educativas especiais
dos alunos com limitações significativas ao nível da actividade e da participação num
ou vários domínios de vida, decorrentes de alterações funcionais e estruturais, de
carácter permanente, resultando em dificuldades continuadas ao nível da comunicação,
da aprendizagem, da mobilidade, da autonomia, do relacionamento interpessoal e da
participação social”. Esta definição levou ao entendimento geral da sua restrição a
alunos com deficiência diagnosticada. Ora, devemos relembrar que o conceito de NEE,
tal como surgiu no Warnock Report, apontava para a ultrapassagem de modelos médicos
como determinantes do funcionamento dos sujeitos e para a consciência do papel
determinante do envolvimento escolar, social e comunitário nas necessidades do sujeito.
Por outras palavras, a necessidade não era intrínseca, mas sim construída
socialmente.Parece, agora, retornar-se à ideia de uma educação especial centrada no
défice em que existe uma maior preocupação com a intervenção especializada de
remediação ou compensação dos alunos, em detrimento das mudanças do contexto. Ao
fazer-se isto, está-se a incorrer, em nossa opinião, em dois erros crassos. Um deles, é
não ter em conta que as respostas na educação especial têm de estar profundamente
imbricadas nas transformações da escola regular, em especial com aquilo que tem de ser
feito nos contextos de sala de aula, no sentido de se criarem processos de diferenciação
curricular que permitam atender, de forma positiva, toda a diversidade existente. O
outro erro deriva da “exclusão” de um conjunto assinalável de alunos que tendo,
embora, NEE não são considerados para efeitos de intervenção da educação especial.
Tal facto poderia até não merecer total reparo, se fossem criadas outras formas de
atendimento. Ora, a observação da realidade permite-nos entender que os denominados
“apoios educativos” nas escolas não conseguem, face à sua organização cumprir tais
funções. Fica-se, assim, com um “baldio pedagógico” que ninguém quer assumir. Um
outro aspecto extremamente controverso desta legislação é a utilização na elaboração do
relatório técnico-pedagógico dos “resultados decorrentes da avaliação, obtidos por
referência à Classificação Internacional da Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF),
da Organização Mundial de Saúde”. Esta situação mereceu forte contestação de vários
especialistas da área, que realçam, entre outros, o facto da aplicação deste instrumento
como critério de avaliação das NEE ser “um equívoco”. De facto, a utilização, no
terreno da educação, de um instrumento elaborado para o âmbito da saúde, está apenas a
servir como forma de legitimar a separação entre alunos com e sem deficiência, o que
vem contrariar toda a tendência registada anteriormente na educação especial. Esta
aplicação tem permitido, também, de uma forma administrativa, reduzir o número de
alunos elegíveis aproximando-os do valor de referência de 2% por agrupamento.Claro
que não se discute, aqui, a qualidade e/ou validade da CIF bem como a necessidade de
avaliações adequadas que ultrapassem uma mera despistagem por “olhómetro”. O que
se questiona é a sua aplicação neste contexto. A centração neste instrumento, numa
busca excessiva de catalogação, apenas agrava os efeitos negativos da rotulação com
diminutos ganhos para a intervenção. Por outro lado, parece-nos fortemente discutível o
comprometimento legislativo, para o futuro, com um instrumento que, na sua versão
para crianças e jovens, não foi, ainda, totalmente completado, adequado e testado.Este
novo diploma aponta, ainda, para a criação de escolas de referência para alunos cegos,
surdos, com multideficiência e com perturbações do espectro do autismo. Não se ignora
o carácter positivo que pode advir da concentração de recursos especializados e, até, a
impossibilidade da sua dispersão por múltiplos contextos. No entanto, não se pode
deixar de fazer algumas observações. A concentração de alunos vai conduzir, em muitas
situações, ao seu desenraizamento familiar e comunitário que, não convém esquecer,
sempre foi um dos pontos apontados como negativos às escolas especiais. A isto
devemos acrescer a não existência de redes de apoio logístico (habitacional e de
transportes) que minimize alguns desses transtornos. Por outro lado, há que ter em conta
o funcionamento das escolas que passam a integrar a rede de referência, devendo
avaliar-se, convenientemente, os efeitos que daí decorrem de modo a não se
transformarem em sistemas paralelos sem ligação e envolvência. Em jeito de
(in)conclusãoO pouco tempo decorrido desde a publicação do Decreto-Lei 3/2008, de 7
de Janeiro, não permite, ainda, retirar conclusões definitivas sobre os seus efeitos.
Contudo, a sua formulação e as práticas de alguns sectores, fazem antever a
probabilidade de que ele, mais do que instrumento para práticas inovadoras, configure e
legitime um retrocesso na Educação Especial.

Artigo retirado do nº 2 (Novembro de 2008) da Revista OPS! - Revista de Opinião


Socialista.

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