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O Espaco Biografico Dilemas da Subjetividade Contemporanea Leonor Arfuch a UERJ 7 & eat s UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Reitor Ricardo Vieiralves de Castro Vice-reitora Maria Christina Paixdo Maioli ed B uer] EDITORA DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Conselho Editorial Antonio Augusto Passos Videira Flora Sussekind Italo Moriconi (presidente) Ivo Barbieri Luiz Antonio de Castro Santos Pedro Colmar Gongalves da Silva Vellasco Leonor Arfuch O espago biografico: dilemas da subjetividade contemporanea Tradugao Paloma Vidal ed BD uer] Rio de Janeiro 2010 Titulo original: E/ espacio biogréfico ~ dilemas de la subjetividad contempordnea © Fondo de Cultura Econémica de Argentina S.A. / Buenos Aires, 2002. Direitos adquiridos para a lingua portuguesa pela Editora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. ¥ EdUERJ Editora da UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Rua So Francisco Xavier, $24 - Maracandi CEP 20550-013 - Rio de Janeiro - RJ Tel./Fax.: (21) 2334-0720 / 2334-0721 / 2334-0782 / 2334-0783 www.eduerj.uerj.br eduerj@uerj.br Editor Executivo Italo Moriconi Geréncia/Supervisdo Editorial Carmen da Matta Coordenador de Publicagdes ‘Renato Casimiro Coordenadora de Produgao Rosania Rolins Coordenador de Reviséio Fabio Flora Revisdo Andréa Ribeiro Capa Carlota Rios Projeto e Diagramagao Emilio Biseardi Assistente de Edigao Renato Alexandre de Sousa CATALOGACAO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/NPROTEC A685. Arfuch, Leonor. O espago biogrifico: dilemas da subjetividade contempora- nea / Leonor Arfuch; tradugao, Paloma Vidal. — Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010. 370 p. ISBN 978-85-7511-167-3 1, Andlise do discurso narrativo. 2, Narrativa (Retérica). 3. Autobiografia. 4. Sujeito (Filosofia). 5. Entrevistas. 1. Titulo, CDU 82.085 Sumario Agradecimentos.. Prefacio . Apresentagao ... Breve histéria de um comego. 2 A definigéo do tema ..20 O caminho da pesquisa a, 1.33 Os capitulos 1. O espaco biogréfico: mapa do territério . Genealogias. Em torno da autobiografia O espaco biogréfico contemporaneo 2. Entre o ptiblico e o privado: contornos da interioridade... “Trés paradigmas: Arendt/Habermas/Elias . O piiblico e o privado no horizonte contemporaneo lll 3. A vida como narragao.. Narrativa ¢ temporalidade 1S) Identidade narrativa, histéria e experiéncia.. 116 ‘A vor narrativa. i .126 O mito do cu: pluralidade e disjungao. 131 DistingGes no espaco biografico.. 4. Devires biograficos: a entrevista midiatica. 151 A vida a varias vozes . . 156 Avatares da conversa. - 170 ‘A pragmatica da narracao . .176 Biografemas. 196 5. Vidas de escritores ... +209 Vidas e obras 211 A cena da escrita... 219 Acena da leitura.. 224 Dos mistérios da criacao. 229 6. O espago biogréfico nas ciéncias sociais ... 239 A entrevista na pesquisa: hipétese sobre uma origem comum.... 241 (O que fazer com) A voz do outro. 253 Acscuta plural: uma proposta de andlise ... 266 7. Travessias da identidade: uma leitura de relatos de vida.. 277 Sobre a leitura... 277 ‘A pesquisa. 279 Os espacos simbélicos: Argentina/Itdlia... 1.291 Epilogo .. 335 Sobre o final. + 339 Referéncias... +351 Agradecimentos Entre as marcas (possiveis) de uma biografia, estao os rituais da pesquisa: as buscas, as vacilag6es, o didlogo com os livros e com os outros: encontros, discussdes, conversas, sugestGes, criticas. A esses interlocutores, que influiram decisivamente na concretizagao deste projeto, 4 sua generosidade de tempo e de palavra, quero responder aqui com meu agradecimento. A Elvira Arnoux, sob cuja orientagao este livro foi, em sua pri- meira versio, tese de doutoramento, pelo estimulo, pela orientagao lucida e valorativa. A Beatriz Sarlo, cujo julgamento preciso e sugestivo, numa longa “histéria conversacional”, mostrou-se iluminador em mais de um sentido. A Ernesto Laclau, que precoce e generosamente abriu pers- pectivas insuspeitadas para meu trabalho, cultivadas junto com a amizade. A meus colegas ¢ amigos: Teresa Carbé, a quem devo a de- cisto de retomar “sendas perdidas” para chegar ao porto; Noemi Goldman, que me alentou com sabedoria e afeto; Paola di Cori, que endireitou rumos com seus comentarios; Alicia de Alba, que mesmo A distancia soube me acompanhar com confianga e aconchego; e Emilio de Ipola, por seu olhar hicido, seu reconhecimento e o dom de seu humor. A minhas colegas e amigas do grupo de pesquisa: Leticia Sabsay, Verénica Devalle, Carolina Mera e Debra Ferrari, pelo cons- tante impulso, pela contribuigao de ideias, o afeto e a generosidade de scu tempo. 8 Cespaco biogitico A Mabel Goldemberg, por uma escuta sem a qual certamente este livro nao teria existido. A Federico Schuster, entao diretor do Instituto Gino Germa- ni, pelo apoio incondicional ao “tempo de acréscimo” que esta longa escrita exigiu. A Simon Tagtachian, por seu inestimavel apoio na area de informdtica, e a Tecla Candia, pela amabilidade no cotidiano. Prefacio Relato, identidade, razo dialdgica. Esses trés temas, intima- mente entrelagados, constituem as coordenadas que definem a tra- ma deste excelente livro. Tentemos precisar as estratégias discursivas que articulam esses tépicos na argumentagao de Arfuch. O que, em primeiro lugar, determina a centralidade do relato, da narrativa? Algo requer ser narrado na medida em que sua especi- ficidade escapa a uma determinagao tedrica direta, a um complexo institucional autorreferencial. Arfuch descreve com clareza o contex- to de proliferacao de narrativas em que seu livro se centra. Por um lado, uma experiéncia argentina: a pluralizagao de vozes e de relatos que acompanharam 0 retorno 4 democracia no inicio dos anos 1980. A corrosio dos pontos de referéncia cotidianos — piblicos e privados —, resultantes da experiéncia tragica da ditadura, implicou que a co- eréncia da moldura institucional dada tivesse de ser substitufda pela temporalidade de um relato em que o cardter constitutivo pertencia A narragao enquanto tal, uma narragao que deixara de estar funda- da em certezas ontoldgicas prévias. Aconteceu algo similar ao que [rich Auerbach descreve com relagao 4 dissolugao da ordem imperial romana: o latim deixa de ser uma linguagem fortemente hipotatica, que classifica a realidade em termos de categorias universalmente accitas, e tenta, pelo contrério, transmitir a impressao sensivel do real, aquilo que escapa aos sistemas vigentes de organizacao e sé se dcixa intuir por meio da estruturag4o temporal de um relato. No entanto, como Arfuch assinala, essa centralidade do nar- rativo depende de um contexto muito mais amplo do que o pura- mente argentino: esté inscrita na hibridizagao geral de categorias e 10 Ocspaco biogrifico distingdes que dominaram o que se chamou “modernidade” e que acompanharam a transi¢ao a uma era “pés-moderna”. Tal transi¢ao deve ser entendida, todavia, nado como dissolugao generalizada (que s6 seria concebivel como preambulo da emergéncia da categoria ti- picamente moderna do “novo”), mas, precisamente, como hibridi- za¢io — isto é, como conformagio de novas areas de indecidibilidade no conjunto social/institucional e como base para o desdobramento de jogos de linguagem mais radicais, que colocam em questao os pontos de referéncia da certeza. Esse processo é estudado por Arfuch com relagao a uma drea institucional especifica: os géneros literdrios que plasmaram — a partir de pontos de referéncia cldssicos como as confissdes de Santo Agostinho e de Rousseau — 0 campo do biogra- fico e do autobiogréfico. Arfuch analisa detidamente as diferentes formas tradicionais de relatar a prépria vida (memérias, correspon- déncias, didtios intimos etc.) € mostra a irrupcao de novas formas autobiogréficas no mundo contemporaneo, a mais importante das quais — que tem centralidade indubitavel no livro — é a entrevista. O resultado é uma andlise fascinante da qual surgem diante de nossos olhos tanto tipos ¢ estilos narrativos ligados aos meios de comunica- gao de massa quanto a renegociagao e abertura de formas incoadas de relatos que ja se insinuavam nos géneros literdrios clssicos. Ha um segundo aspecto que também € central na andlise da autora. O tema de seu estudo — 0 espago miiltiplo do autobiografico — se presta admiravelmente a exploragao da teorizagao contempora- nea do sujeito. O questionamento do sujeito auténomo, autocentra- do e transparente da metafisica moderna e a correlativa nogao de um sujeito descentrado (pés-estruturalismo) ou constitufdo em torno de um vazio (Lacan) tinham necessariamente de colocar em questo as formas canénicas do relato autobiografico. Esse é um aspecto que Arfuch explora com sua penetracio ¢ rigor caracteristicos. A subver- so dos géneros tradicionais do relato e a emergéncia de uma nova pandplia de categorias analfticas dao seu sentido & argumentacio desta obra. Assim, a nogao de espago biogrdfico tenta dar conta de um Preficio 11 terreno em que as formas discursivo-genéricas cldssicas comegam a se entrecruzar e hibridizar; a categoria de valor biogrdfico adquire um novo carter de protagonista no tracado narrativo que dé coeréncia a prépria vida; e a apelacdo a uma referencialidade est4vel como ponto de ancoragem é deslocada em relagao as diversas estratégias de au- torrepresentacao. Isso implica necessariamente colocar em questao nogdes como o “pacto autobiogréfico entre leitor e autor” (Lejeune) ¢ redefinir a significado de conceitos como “vivéncia” (Erlebnis), cuja genealogia tracada por Gadamer é retomada por Arfuch. Pode- se dizer, como observacio geral, que 0 vazio do sujeito auténomo cldssico € ocupado neste livro — em consondncia com varias correntes do pensamento atual — pelo que poderfamos denominar “estratégias discursivas”, isto é, por deslocamentos metonimicos que dao coerén- cia aos relatos — coeréncia que no repousa em nenhum centro, mas que faz dessa nao coincidéncia do sujeito consigo mesmo a fonte de toda representagio e totalizagao. Isso nos conduz a uma terceira dimensio da teorizacao de Ar- fuch, que é essencial sublinhar. O descentramento do sujeito assume em sua obra uma formulagao especial que se vincula a “razdo dialé- pica”, de raiz bakhtiniana: 0 sujeito deve ser pensado a partir de sua “outridade”, do contexto de didlogo que dé sentido a seu discurso. Ha, entdo, uma heterogeneidade constitutiva que define toda situa- gio de enunciacao. O social deve ser pensado a partir da “alienagao” radical de toda identidade. Essa alienacdo opera em varias diregdes. Devemos insistir em que nao nos estamos referindo simplesmente a uma pluralidade de papéis dentro de um contexto social definido, mas a algo muito mais fundamental: para Bakhtin, nao hd coincidéncia entre autor e perso- nagem, nem sequer na autobiografia. Isso é 0 que permite a Arfuch fazer oscilar decisivamente sua andlise de um sujeito que se expressa- ria através do discurso a outro que se constitui através dele. E ao falar de discurso estamos nos referindo, pura e simplesmente, ao social cnquanto tal. O social est4 fundado, portanto, numa falta que nao se pode crradicar, Isso poderia ser formulado por meio da distingao que Benveniste — seguido por Lacan — estabelecera entre 0 sujcito da enunciagao € o sujeito do enunciado: o primeiro se funda numa déixis (0 sujeito anterior 4 subjetivacao, em termos lacanianos) que nao é inteiramente absorvivel nem normatizdvel através dos enunciados de um discurso. A razdo dialdgica, nesse sentido, nao opera um fecha- mento, mas uma abertura. Essa série de démarches tedricas — descentramento do sujeito, inscri¢do do mesmo num espaco dialdgico (e, portanto, social), falta constitutiva inerente a esse tiltimo — nado pode senao subverter as distingSes classicas entre 0 ptiblico e o privado. Arfuch rastreia a genealogia dessa subversao através dos escritos de Arendt, Habermas ¢ Elias. O que é importante advertir a esse respeito é que esse entre- cruzamento entre as varias esferas nao é 0 resultado de uma operagio meramente analitica, mas ocorre diariamente nos espacos cm que o autobiogrdfico se constitui e se redefine. A entrevista midistica — ea oral, em geral — seria inconcebfvel sem essa complexa urdidura atra- vés da qual as dimensées publica e privada se sobredeterminam. E aqui Arfuch nao é necessariamente pessimista: nao vé nesse processo de entrecruzamento a invasao de uma esfera pela outra, mas um pro- cesso que é porencialmente enriquecedor — quer dizer, a emergéncia de uma intertextualidade que impede confinar temas ¢ reivindica- g6es a um isolamento esterilizante. Ha um ultimo aspecto que gostaria de destacar. Kant dizia que se ganha muito se uma pluralidade de temas ¢ questocs consegue ser sintetizada por uma problemdtica unificada. Para conscgui-lo, no entanto, é preciso certo arrojo, recusando-se a accitar fronteira estabelecidas. E ninguém pode negar que Arfuch o tem. A nogio de “entrevista” passa a ser em sua andlise uma categoria tedrica, ja que ela subsumiu, sob esse rétulo, dois tipos de pratica intelectual que, anteriormente, nao haviam sido considerados conjumtamente: a entrevista jornalistica com figuras destacadas ¢ a entrevista que as ciéncias sociais ¢ a histéria oral levam a cabo com pessoas da vida Preficio 13 comum, que passaram por experiéncias sociais tipicas de certos gru- pos. Desse ponto de vista, o segundo corpus de entrevistas anali- sado por Arfuch ~ realizadas no 4mbito de uma pesquisa sob sua orientagao — é de alto interesse. Os entrevistados sao familiares, de ascendéncia italiana, de pessoas que emigraram para a Itdlia no final dos anos 1980 como resultado da crise argentina. Todos os temas que assinalamos antes, relativos 4 hibridizagao e ao descentramento do sujeito, aparecem em status nascens, por assim dizer, nas respostas dos entrevistados: a impossibilidade de estabelecer uma identificagao inequivoca, seja com a Italia ou com a Argentina; a tensao entre dois mundos cujos contetidos sao dificilmente traduzidos entre si; todas as questoes afetivas inerentes a uma subjetividade desgarrada; 0 no- madismo da condigio contemporinea. O que as formas mais ela- boradas, “literdrias”, da entrevista conseguem ocultar ou ao menos matizar aparece com maior nudez nessas conversas mais humildes e marginais, mas nem por isso isentas de tragos romanescos. Des- se modo, elas lancam certa luz sobre dimensées que sao inerentes ao género “entrevista” enquanto tal. Isso aponta, de modo quase paradigmatico, para os problemas especificos que uma teoria con- tempornea dos géneros literdrios deve afrontar. Nao é mais a uni- dade do livro, ou do jornal, que serve como suporte material de um género. A proliferagao dos meios de comunicacgio de massa, com sua produgio excessiva de imagens e de espagos dialégicos novos, obriga a uma teorizagao dos géneros que depende menos de apoios materiais evidentes do que de formas relacionais de cardter virtual. Ela deve se fundar em principios inteiramente formais que vao além de distingdes como entre o falado e o escrito ou entre o formulado linguisticamente e o representado virtualmente. Como avangar a partir desse ponto? O livro de Arfuch abre diversas vias de reflexao, ligadas a movimentos caracteristicos da ex- ploragao teérica contemporanea. Gostaria de assinalar apenas trés, que convergem apontando na diregao de uma nova ontologia. A primeira é a psicandlise, cujo discurso est na base de toda reteo- 14 Cespaco biogrifico rizagéo contemporanea do sujeito. Fica claro que categorias como “projegao”, “introprojecao” e “narcisismo” pressupdem uma relacio entre objetos (uma ontologia) que é impensavel nao apenas em ter- mos de paradigmas biologistas ou fisicalistas, mas também em ter- mos daqueles que informaram e constituiram o discurso dominante das ciéncias sociais. A segunda é a desconstrugio, cuja contribuigzo basica se funda no desvelamento de novas areas indecidiveis na es- truturagao da objetividade e nas estratégias possfveis a partir dessa indecidibilidade origindria (suplementariedade, iteragao, différance etc.). A terceira é a retérica. Se o descentramento do sujeito nos conduz 4 impossibilidade de toda nominagio direta, toda referéncia a um objeto — ¢ as relagdes entre objetos — requerer4 movimentos figurais ou tropolégicos estritamente irredutiveis a qualquer literali- dade. A retérica, por conseguinte, longe de ser um mero enfeite da linguagem como o supunha a ontologia classica, passa a ser 0 campo primdrio de constitui¢ao da objetividade. Nesse sentido, o paradig- ma que poderd conduzir a uma reconstitui¢ao tedrica do pensamen- to social terd de ser um paradigma retérico. Minha leitura do livro de Arfuch me sugere que seu impulso teérico fundamental se move nessa dire¢ao. Muitas coisas dependem do sucesso dessa tarefa, entre outras, 0 modo como teremos de constituir, nas préximas décadas, nossa identidade teérica e politica. “Et tout le reste est littérature”. Ernesto Laclau Apresentagao A simples mengao do “biogrdfico” remete, em primeira ins- tincia, a um universo de géneros discursivos consagrados que ten- tam apreender a qualidade evanescente da vida opondo, a repeticao cansativa dos dias, aos desfalecimentos da memédria, o registro mi- nucioso do acontecer, o relato das vicissitudes ou a nota fulgurante da vivéncia, capaz de iluminar o instante e a totalidade. Biografias, autobiografias, confissées, memérias, didrios intimos, correspon- déncias dao conta, hd pouco mais de dois séculos, dessa obsessao por deixar impress6es, rastros, inscrigdes, dessa énfase na singularidade, «que é a0 mesmo tempo busca de transcendéncia. Mas, na trama da cultura contemporanea, outras formas apa- tecem disputando o mesmo espaco: entrevistas, conversas, perfis, retratos, anedotarios, testemunhos, histérias de vida, relatos de au- toajuda, variantes do show — talk show, reality show... No horizonte mididtico, a légica informativa do “isso aconteceu”, aplicdvel a todo repistro, fez da vida —e, consequentemente, da “prépria” experiéncia um nticleo essencial de tematizac4o. Por sua vez, as ciéncias sociais se inclinam cada vez com maior assiduidade para a voz € 0 testemunho dos sujeitos, dotando assim de corpo a figura do “ator social”. Os métodos biograficos, os rela- tos de vida, as entrevistas em profundidade delineiam um territério bem reconhecivel, uma cartografia da trajetéria individual sempre cm busca de seus acentos coletivos. Essa multiplicidade de ocorréncias, que envolve tanto as in- dtistrias culturais como a pesquisa académica, fala simultaneamente de uma recepgio multifacetéria, de uma pluralidade de publicos, 16 Oespaco biogrifico leitores, espectadores, de um interesse sustentado e renovado nos infinitos matizes da narrativa vivencial. Embora nio seja dificil expor as raz6es dessa adesdo — a ne- cessdria identificagéo com outros, os modelos sociais de realizacao pessoal, a curiosidade nao isenta de voyeurismo, a aprendizagem do viver —, a notavel expansao do biogrdfico ¢ seu deslizamento cres- cente para os Ambitos da intimidade fazem pensar num fenédme- no que excede a simples proliferagao de formas dissimilares, os usos funcionais ou a busca de estratégias de mercado, para expressar uma tonalidade particular da subjetividade contemporanea. E essa tonalidade que eu quis indagar no espaco deste livro. Esse algo a mais que est4 em jogo nao tanto na diferenga entre os géneros discursivos envolvidos, mas em sua coexisténcia. Aquilo co- mum que une as formas canonizadas e hierarquizadas a produtos estereot{picos da cultura de massas. O que transcende o “gosto” definido por parametros socioldgicos ou estéticos e produz uma res- posta compartilhada. O que leva repetidamente a recomegar o rela- to de uma vida (minucioso, fragmentdrio, caético, pouco importa seu modo) diante do préprio desdobramento especular: o relato de todos. O que constitui a ordem do relato — da vida — e sua criagao narrativa, esse “passar a limpo” a prépria histéria, que nunca se termina de contar. Privilegiei para isso a trama da intertextualidade em vez dos exemplos ilustres ou emblemdticos de bidgrafos ou autobidgrafos; a recorréncia antes da singularidade; a heterogeneidade e a hibridi- zagio em vez da “pureza” genérica; 0 deslocamento e a migrancia em vez das fronteiras estritas; em ultima instancia, a consideragao de um espaco biogrdfico como horizonte de inteligibilidade e nao como mera somatéria de géneros j4 conformados em outro lugar. E a partir desse espago, que se constituird ao longo do caminho, que proporei entao uma leitura transversal, simbélica, cultural e politica das narrativas do eu e de seus intimeros desdobramentos na cena contemporanea. ‘Apresentasio 17 Breve histéria de um comego Em meados dos anos 1980, no ambito promissor da abertura democratica, comegaram a aflorar em nosso cenério cultural os debates em torno do “fim” da modernidade, que agitavam a refle- xdo em contextos europeus € norte-americanos. Apresentavam-se ali as (mais tarde) célebres argumentag6es sobre o fracasso (total ou parcial) dos ideais da Ilustragao, das utopias do universalismo, da razdo, do saber e da igualdade, dessa espiral ininterrupta e as- cendente do progresso humano. Uma nova inscri¢ao discursiva, ¢ aparentemente superadora, a “pdés-modernidade”, vinha sintetizar o estado de coisas: a crise dos grandes relatos legitimadores, a perda de certezas e fundamentos (da ciéncia, da filosofia, da arte, da po- \{tica), 0 decisivo descentramento do sujeito e, coextensivamente, a valorizagao dos “microrrelatos”, 0 deslocamento do ponto de mira onisciente e ordenador em beneficio da pluralidade de vozes, da hibridizagdo, da mistura irreverente de cdnones, retéricas, paradig- mas ¢ estilos.' ' Remetemos aqui a alguns textos cldssicos do debate modernidade/ pés-moder- nnidade dos anos 1980: J. E. Lyotard, A condigéo pés-moderna e La posmodernidad (explicada a los nifios); M. Berman, Tudo que é sélido desmancha no ar: a aven- twra da modernidade; J. Habermas, “La modernidad, un proyecto incompleto”; P. Anderson, “Modernidad y revolucién’; G. Vattimo, O fim da modernidade, N. Casullo (org.), El debate modernidad/ posmodernidad, Com énfase no plano estético, podem ser assinalados a antologia de H. Foster, La posmodernidad; O. Calabrese, A Idade Neobarroca; F. Jameson, Ensayos sobre el posmodernismo; G. Lipovetseky, La edad del vacio; sem esquecer 0 papel pioneiro da arquitetura, 41 partir dos que foram verdadeiros marcos: R. Venturi, S. Izenur ¢ D. Scott Brown, Aprendiendo de Las Vegas; Ch. Jenks, Ellenguaje de la arguitectura posmo- derna. No Ambito da América Latina, N. Garcfa Canclini apresentou 0 debate sobre © multiculturalismo em Culturas hibridas. Em nosso meio, Beatriz Sarlo dliscutiu os paradigmas em jogo a partir de um olhar critico sobre a vida e a cultura urbanas em Cenas da vida pés-moderna e Instantdneas. Medios, ciudad y costumbres en el fin de siglo. 18 — Cespaco biogritico A nova perspectiva, que comprometia a concepgao mesma do espacgo ptiblico segundo a classica ordem burguesa, incursionava, além disso, e nao tangencialmente, no campo da subjetividade. Os “pequenos relatos” narravam nao sé identidades ¢ histérias locais, re- gionalismos, linguas verndculas, mas também 0 mundo da vida, da privacidade e da afeigao. O retorno do “sujeito” — e nao precisamente o da raz4o — aparecia exaltado, positiva e negativamente, como cor- relato da morte anunciada dos grandes sujeitos coletivos — 0 povo, a classe, o partido, a revolugéo. Enquanto isso, no espaco miditico, um salto na flexibilizagdo dos costumes, que comprometia os usos do corpo, o amor, a sexualidade, as relagGes entre as pessoas, parecia se insinuar, empurrando os limites de visibilidade do dizivel e do mostravel. Na aceleragao de um tempo jd marcado pelas novas tec- nologias da comunicagao, pela apropriagdo quase imediata do léxi- co especializado na fala comum, as manifestagdes dessas tendéncias apareciam como indiscerniveis de sua teorizacdo: um fenédmeno (um ritmo, uma “condigao pés-moderna”) era verdadeiramente descri- to — 4 maneira daquela “experiéncia vital” que significara, segundo Marshall Bermann ([1982] 1988), a modernidade — ou inventado, propondo novos decdlogos de (ir)reveréncia? Seja qual fosse a respos- ta—e o alinhamento a respeito —, 0 certo é que esse clima de época, de fortes questionamentos 4 doxa, estava marcado prioritariamen- te pelas profundas transformacoes politicas, econémicas e culturais que se tinham produzido no mapa mundial, esses “novos tempos” (Stuart Hall, 1990) do capitalismo péds-industrial e do “modelo ta- tcherista”, cujo devir sem pausa pode se adivinhar hoje, apesar de seus novos atavios, sob a metdfora da “globalizagao”. Se no plano da expectativa politica nosso contexto diferia do desencanto de outras latitudes — havia prementes valores coletivos e fundamentos a restituir, em termos de justiga e democracia —, nao parecia haver, no entanto, grande divergéncia quanto a gestao ptt blica da intimidade. Uma paulatina expansio de subjetividades ia se tornando perceptivel em diversas narrativas, das revistas de auto- Apresentasio 19 conhecimento as intimeras formas de autoajuda, da ressurreigao de velhos géneros autobiogréficos a uma audaz experimentagao visual. Certos tons da comunicagao midiatica eram particularmente elo- quentes a respeito: nao sé eram definidas ali as incumbéncias reno- vadas do “estado terapéutico”, as normativas da “vida boa” em voga, mas também amplas zonas da vida privada de funciondrios e notd- vis se transformavam cada vez mais em objeto preferido de tema- tizagdo, tornando por momentos impreciso 0 horizonte do puiblico na velha acepgao do interesse comum e da visibilidade democrati- ca. Fendmeno nao reduttvel s6 a qualidade da “polftica-espetaéculo”, «uc alcangou logo em nosso meio limites dificeis de superar, mas que vinha acompanhado de um “recolhimento” na cotidianidade, ho trabalho por conta prépria, na exaltagio dos valores e interesses privados e no credo da “salvagao” pessoal, ligado tanto 4 experiéncia traumatica da hiperinflagdo do final da década como 8 incipiente ada”, e posterior desmoronamento (privatizador), do Estado de hem-cstar, nos primeiros anos da década de 1990. No horizonte da cultura — em sua concepgao antropolégico- scmidtica —, essas tendéncias de subjetivagao e autorreferéncia, essas “tecnologias do eu” e do “si mesmo”, como diria Foucault ([1988] 1990), impregnavam tanto os hdbitos, costumes e consumos quanto 4 produgio midiatica, artfstica e literéria. Consequentemente, com a consolidagao da democracia brotava o democratismo das narrativas, essa pluralidade de vozes, identidades, sujeitos e subjetividades que pareciam confirmar as inquietudes de algumas teorias: a dissolugao do coletivo, da ideia mesma de comunidade, na mirfade narcisista do individual. sa contraposicao enviesada, frequentemente com tons Voie apocal{pticos, essa “perda” do espago puiblico classico em sua idea- lizada transparéncia diante da “invasao” da privacidade e, ao mes- io tempo, a incgavel atragdo que as novas formas despertavam em puiblicos © espectadores, que me levou a me interessar (interesse que nao deixava de ser também uma inquietude) pelo tema, a me 20 Ocespaco biogrifico colocar do lado “negativo” — e menos abordado — da antinomia, a tentar investigar nesse vértice aberto pela associacao usual, talvez nao inteiramente lfcita, entre “privado” e “privatizacdo”. E ao me propor tal empresa, que supunha me confrontar com o multifa- cetdrio, com estranhas ligas entre tradigo e inovagao, o fazia sem renunciar a transitar por caminhos jé sinalizados pelos géneros ca- nénicos — a biografia, a autobiografia, o relatério etnografico etc. -, nao de modo prioritario nem excludente, mas dando passagem ao didlogo com essas maneiras owtras de narrar. Seria possivel manter a classica linha diviséria entre puiblico ¢ privado? A expressao da subjetividade do privado (a exposicao da intimidade, as narrativas, os interesses, o “mundo privado”) era ne- cessariamente, em seu advir mididtico, outra face (indesejada) do fracasso das utopias sociais? E ainda, nesse caso, que tipo de valores entrava em jogo para concitar essa atengao? Tratava-se simplesmente de uma exaltagao voyeuristica, de uma banalizagao das histérias de vida, de um novo elo na cadeia da manipulagao ou habilitava algum outro registro convocante da experiéncia humana? Podiam ser pos- tulados, a partir de um pensamento da pluralidade e da diferenca, talvez o legado mais persistente dos enfoques “pés”, outras alterna- tivas, outros prismas para a leitura e a interpretacao? Essas interro- gagoes definiram, num primeiro momento, o territério aproximado da minha pesquisa. A definigéo do tema Apenas iniciada, a indagacao em torno das formas que o cres- cente processo de subjetivagao adotava se confrontou com uma hete- rogeneidade que evocava aquela qualidade inabarcavel da “fala” que levara Saussure a decreté-la “inanalisavel”. Onde “ler”, efetivamen- te, esse “retorno” do sujeito, essa famosa instauragao da privacidade como interesse prioritdrio da vida? Como distinguir, entre formas dissimilares, aquelas que est4o concernidas pelo: mesmo objetivo? Apresentagio 21 (Que parametros privilegiar numa ordenagao? Como compatibilizar registros e estilos? Diante de toda a presungao de um corpus, impu- nha-se a delimitacao de um universo. De tanto observar, confrontar variaveis, foram se perfilan- do alguns eixos e tendéncias prioritdrias: a subjetividade que os relatos punham em jogo vinha em geral “atestada” pela admissao do “eu”, pela insisténcia nas “vidas reais”, pela autenticidade das histérias na voz de seus protagonistas, seja na transmissao ao vivo das cameras ou na inscri¢ao da palavra gréfica, pela veraci- dade que o testemunho impunha ao terreno escorregadio da fic- yao. Aquela compulsao de realidade assinalada pelo célebre con- ccito de “simulacro” de Baudrillard ([1978] 1984) — resguardo clémero da devoragao midiatica — parecia se plasmar aqui sem descanso no nome préprio, no rosto, no corpo, na vivéncia, na ancdota oferecida & pergunta, as retéricas da intimidade. Perso- nalizagao da polftica, como havia sido observado pela sociologia, «ue substitu{a teses pragmaticas por vinhetas de cotidianidade, vel s € novas estratégias de autorrepresentacao de ilustres e fa- mosos, mas também vidas comuns oferecidas como espetdculo, no detalhe de sua infelicidade. Era a simultaneidade dessas formas, escritas ou audiovisuais, a tilidade de seus procedimentos, no ambito de géneros mais ou menos candnicos, e mesmo “fora de género” (Robin, 1996), que as ver: tornava particularmente significantes. Narrativas do eu ao mesmo tempo divergentes e complementares, cuja enumeragio tateante es- hocei no inicio desta apresentagao. Assim, evidenciou-se a pertinéncia de considerar essas for- mas nao sé em sincronia, mas em intertextualidade: mais do que tum mero repertério de ocorréncias, impunha-se uma articulagao que outorgava sentidos, um modo de olhar. Deixando de lado o terreno da ficgao, objeto, neste caso, inabordavel, e evitando co- megar por uma forma classica — a autobiografia? — como principio ordenador, a ideia de um espago autobiogrdfico se revelou altamente 22 Ocespaco biografico produtiva, enquanto horizonte analftico para dar conta da multi- plicidade, lugar de confluéncia e circulagao, de semelhangas de fa- milia, proximidades ¢ diferencas. A expressao, tomada emprestada de Philippe Lejeune (1980), vinha assim introduzir uma delimita- gio do universo. A que remetia a denominagao “espaco biografico” de Lejeu- ne? Precisamente, a “um passo além” de sua tentativa infrutifera de aprisionar a “especificidade” da autobiografia como centro de um sistema de géneros literdrios afins. Nessa reflexao a posteriori, o autor se pergunta se o estudo de um género, ao menos em termos taxoné- micos, estruturais, nao se limitaria a dar conta de alguns espécimes ilustres ou exemplares, enquanto sua produtividade excede sempre as grandes obras. E assim que, em prol da pluralidade, e tentando inclusive apreender um excedente da literatura, ele chega formula- cao de um “espaco biogréfico”, para dar lugar as diversas formas que assumiu, com o correr dos séculos, a narrago inveterada das vidas, notaveis ou “obscuras”, dentre as quais a autobiografia moderna é apenas um “caso”. Apesar de seu cardter sugestivo, nao era esse espaco, concebido como um reservatério onde cada espécime fornece um “exemplo”, que convinha aos meus objetivos. O empréstimo — na verdade, qua- se metaférico — se abria, no meu projeto, a outro desenvolvimento conceitual: uma espacializagdo, como assinalei acima, onde conflu- fam num dado momento formas dissimilares, suscetiveis de serem consideradas numa interdiscursividade sintomatica, por si sé signi- ficantes, mas sem renunciar a uma temporalizacio, a uma busca de herangas genealogias, a postular relagdes de presenga e auséncia. Ao me propor ento esse estudo em seu desdobramento contem- poraneo, com aten¢ao na inovac¢ao mididtica, mas sem renunciar as inscrig6es cldssicas, ao propor uma articulagao néo determinada por dotes “intrinsecos” nem hierarquias entre narrativas que poderiam Por sua vez integrar outros agrupamentos, esse espaco biogrdfico se transformou para mim num ponto de partida e nao de chegada, Apresentagio 23. numa dimensao de leitura de um fendmeno de época, cujo tragado, cm virtude de minhas préprias hipéteses ¢ objetivos, devia ser defi- nido no curso de minha pesquisa. Do espago biogrdfico aos géneros discursivos Se o interesse em dar conta, em termos discursivos e nar- rativos, das formas de subjetivagao que contribufam para a afir- magiio de uma nova privacidade me conduziu ao espaco biogréfi- co, minha indagagio nao se esgotaria em sua configuracao geral. Antes, na interatividade dessas formas, nos diferentes suportes € estilos que me eram dados confrontar, desenhavam-se algumas li- nhas recorrentes que valiam a pena analisar em particular. Assim, loi panhando importancia, entre os diversos registros da expressao vivencial, a entrevista, um género sem dtivida predominante na comunicagao mididtica, que condensa admiravelmente os “tons” da época: a compulsao de realidade, a autenticidade, 0 “ao vivo”, a presenga. Na busca empreendida em torno dos novos acentos do eu, desse “retorno do sujeito” que pretendia fazer ouvir sua “prépria” palavra, © que seria mais préximo da voz (do corpo, da pessoa) do que ela, instaurada pela mais antiga e emblemdtica maneira de dialogar, raciocinar, trazer 4 tona, encontrar uma verdade? Se a entrevista revelara, no transcurso de pouco mais de um século, sua qualidade de veridicidade insubstituivel, transformando o velho ‘© num género altamente ritualizado da informagao, modus socra sua correlativa encenagao da subjetividade, sua intrusdo na inte- tioridade emocional e na mintcia cotidiana das vidas (notdveis e “obscuras”), nao cra de modo algum uma aposta menor. Além do mais, cla aparecia, na dimensao sincrénica de nosso espago bio- piifice, como a forma de maior ubiquidade, capaz de apresentar sob os olhos o leque completo das posigdes de sujeito da sociedade “encarnado” cm sujeitos reais —, capaz de recorrer, em seu vai- vem dialog: as modulagoes do vivencial, da autobiografia EO, LO 24 Ocespago biogritico as memérias, do diario intimo a confissao. Tal densidade signifi- cante, escassamente abordada por estudos especificos, definiu meu interesse nessa direc4o. Mas se a entrevista midiatica oferecia um desfile inesgotavel de vidas ptiblicas, sem preconceito de se interessar também, oca- sionalmente, pelas vidas comuns, outra de suas formas se ocupava, com a mesma insisténcia, das vidas privadas, em sua dupla acep- G40, objeto improvavel de autobiografia. Delineava-se assim outra vertente positiva para 0 meu tema, dessa vez no terreno da interro- gacao cientffica: a dos relatos de vida, que inquietaram as ciéncias sociais desde os primeiros anos do século XX, na tentativa de apre- ender histérias ¢ memérias, de dar conta da espessura do social, e que continuam concitando de maneira crescente sua atenga0. De fato, os chamados “métodos biogréficos”, cujo recurso a entrevista € quase obrigatério, ocupam hoje uma posigao predominante na investigagao qualitativa, em sintonia com o interesse na voz e na experiéncia dos sujeitos e com a énfase testemunhal, essa verdadei- ra obsessio da meméria que os marcos simbdlicos do novo século e milénio nao cessaram de estimular. A curiosidade literdria, a midiatica e a cientffica e, ainda, es- ses dois polos arquetfpicos da experiéncia — as vidas “célebres”, que so por isso emblematicas ¢ se tornam objeto de identificagao, e as “comuns”, que oferecem uma imediata possibilidade de autorreco- nhecimento — conflufam dessa forma em nosso espaco, habilitando um olhar excéntrico sobre as novas maneiras como o biogrdfico se integra naturalmente no horizonte da atualidade. Assim, a insistén- cia na exposi¢ao ptiblica da privacidade, de todos os tons possfveis das historias de vida e da intimidade, nessa hibridizacao que desafia a fronteira entre os géneros consagrados e as reelaborages periddi- cas, irreverentes ou banais, longe de aparecer simplesmente como um desdobramento casual na estratégia de captacdo de espectadores, investia-se de novos sentidos e valoragées, tragando figuras contras- tantes da subjetividade contemporanea. Apresentagio 25 Nao se tratava, evidentemente, nessa trama muiltipla que nos- so espaco ia revelando e, menos ainda, no estudo da entrevista como um género nfo espectfico, embora obstinadamente biogréfico, de voltar 4 busca de singularidade, ao caso “representativo”, a “essén- cia” do género entendido como uma normativa que “desaloja” o de- sajuste, 0 excesso ou a contravengio. A prépria concepgao de género discursivo como heterogeneidade constitutiva, tomada de Bakhtin (Estética da criagdo verbal, [1979] 1982), desautorizaria semelhante pretensao. Era antes a produtividade do uso dos géneros num conjun- to amplo de ocorréncias, o didlogo intertextual suscitado por eles, sua especificidade somente relativa, seus deslocamentos metonimi- cos, 0 que me interessava analisar. Que modelos de vida se desdobram nesse leque de figuras, célebres e comuns? Que orientagées valorativas acarretam as respec- tivas narrativas? Que diferenga a entrevista introduz a respeito de outras formas biogrdficas? Que posiges (dialdgicas) de enunciacao constréi? Como se narra a vida “a varias vozes”? Como se tece 0 trabalho da identidade? Que distingdes podem ser postuladas entre “umbrais” da interioridade — {ntimo/privado/biogréfico? Como se articula o fntimo com o publico, 0 coletivo com o singular? Essas perguntas tragam em linhas gerais o caminho de minha pesquisa, caminho realmente pouco explorado, com certa semelhan- a e maior divergéncia, em relacdo 4 narraco tradicional das vidas ilustres, que privilegia os procedimentos retéricos, a exaltagao poéti- ca do eu, a hierarquizagao da escrita, a verificacao cientifica ou his- toriogrdfica dos “ditos” e apela, consequentemente, para sua leitura, a horizontes de expectativa, também canonizados. O corpus da andlise Se a nogao de espaco biografico me levara a delimitar um uni- verso, 0 que agora ia me conduzir & conformagao de um corpus era a focalizagao em narrativas mididticas e cientificas. Atenta ao “devir 26 Cespaso biogritico biogréfico” da entrevista na mfdia, e embora as ocorréncias desse tipo costumem acontecer em qualquer intercambio, considerei re- levante organizar um corpus com certa homogeneidade — tematica, pragmdtica, do tipo de suporte em questao —, tomando varias das principais antologias em livro — quer dizer, dotadas de uma “se- gunda vida” editorial — de entrevistas publicadas nos tltimos anos (com excegdes) disponiveis em nosso cendrio atual. Dessa selegao, recortei um conjunto de entrevistas com escritores, que considero duplamente emblematicas pelo mito da “vida e obra” e por se tra- tar de quem cria por sua vez relatos diversamente autobiogréficos, a que dediquei um capitulo em particular. Um corpus acessério, que avaliza algumas afirmag6es que dizem respeito ao campo cultural, est formado pelos suplementos culturais de trés grandes jornais (La Nacién, Clarin, Pdgina/12), numa periodizagao ampla, com intermi- téncias, que abarca o ultimo lustro. Finalmente, para a indagacao sobre relatos de vida, constru{ outro corpus de andlise; dessa vez, de entrevistas biogrdficas recolhi- das no curso de uma pesquisa sob minha orientacAo,? que adquiriam também desse modo uma “segunda vida”, para além dos resultados especificos que haviam langado naquele momento. Essa pesquisa abordara a questao de uma “meméria biogrdfica”, cuja marca pare- ceu operar como base da onda emigratéria que, nos tiltimos anos da década de 1980, com a hiperinflacdo, marcara 0 “retorno” de descen- dentes de italianos & terra de seus ancestrais. No presente trabalho, e sem desvio daqueles objetivos iniciais, os relatos selecionados vém responder, em alguma medida, as interrogages aqui apresentadas, vém dar conta de certos modelos coletivos, vam dar testemunho da deriva identitdria, dos mecanismos curiosos de “outorgar sentido” a uma vida por meio da narraco sob solicitagao académica. Mas nossa 2 A pesquisa Meméria biogrdfica e identidade foi desenvolvida no Instituto Gino Germano, da Faculdade de Ciéncias Sociais da Universidade de Buenos Aires (UBA), com 0 apoio da UBACYT, durante 0 periodo de 1991 a 1993. Apresentagio 27 releitura aponta, além disso, para outro dos objetivos de nosso traba- tho: a postulagao de uma perspectiva de andlise discursiva e narrativa original, que sugere a possibilidade — e mesmo a necessidade — de ir, numa materia sensfvel como a biogréfica, para além dos limites dos diversos enfoques conteudisticos. O caminho da pesquisa Qual a relevancia desse tema? Em que campos de questdes vem intervir e a partir de que rastros? Que objetivos, que contribui- Ges apresenta? Em primeiro lugar, sua formulagao mesma constitui uma contribuicgéo, na medida em que envolve uma combinatéria inabitual de aspectos e saberes. Efetivamente, minha perspectiva, que se apresenta como uma indagacao sobre a dimensao significante num horizonte cultural de- terminado, incorpora varidveis histéricas do campo da sociologia e da filosofia polftica, da teoria e da critica literrias, da linguistica, da semidtica, da pragmatica e da narrativa. E essa incorporagdo, em virtude de interesses e objetivos definidos, nao supe simplesmente uma “somatéria”, mas uma articulagdo, ou seja, uma busca reflexi- va de compatibilidades conceituais, em varios casos inovadora, que nao sutura evidentemente as diferengas. Essa perspectiva de andlise cultural se especializa, por assim dizer, no ultimo trecho do trabalho, como metodologia de andlise discursiva, apta a dar conta dos relatos de vida nas ciéncias sociais. Pontos de partida Na medida em que as formas que podem ser inclufdas no espa- ¢o biogréfico oferecem, segundo minha hipétese, uma possibilidade articuladora sincrénica e diacrénica, impée-se uma busca geneald- gica que — sem pretensao de “esséncia” ou de verdade — torna inte- ligivel seu devir atual. Essa busca conduz, de modo inequivoco, ao 28 Ocspaso biogrifico horizonte da modernidade. Efetivamente, é no século XVIII, com a consolidagao do capitalismo e da ordem burguesa, que comega a se afirmar a subjetividade moderna, por meio de uma constelagao de formas de escrita autégrafa, que sao as que estabelecem precisamen- te o canone (confiss6es, autobiografias, didrios {ntimos, memérias, correspondéncias), e do surgimento do romance “realista”, definido justamente como ficgao. O retorno a essas “fontes” do eu, a essas ret6ricas e valores talvez reconheciveis, nao s6 envolveu uma pers- pectiva histérica e sociolégica (Aris e Duby, [1985] 1987; Elias, [1977-1979] 1987), que recolhia também ecos de ancestrais mais re- motos (Santo Agostinho, [397] [1970] 1991; Bakhtin, [1975] 1978; Foucault, [1988] 1990), mas também abriu uma vertente dupla de andlise critica para meu trabalho: 1) as conceitualizagées filosdfico- politicas cldssicas em torno das esferas do puiblico e do privado e 2) as da critica literdria sobre as valéncias particulares desses géneros, sua distingao possfvel dos considerados “ficcionais” e a sobrevivéncia nas formas contempordneas. No primeiro caso, tratava-se de ir além da cldssica antinomia entre ptiblico e privado, em que um dos termos implica certa nega- tividade (Arendt, [1958] 1974; Habermas, [1962] 1990) para pos- tular, pelo contrdrio, um enfoque no dissociativo entre ambos os es- pagos, que permitisse considerar a crescente visibilidade do {ntimo/ privado — complexamente articulada, além disso, com a invisibilida- de dos interesses privados — nao como um excesso, uma causa desesta- bilizadora de um equilibrio “dado”, mas como consubstancial a uma dinamica dialdgica e historicamente determinada, em que ambas as esferas se interpenetram e modificam, sem cessar. Nessa dinamica, segundo minha hipstese, 0 biogréfico se define justamente como um espaco intermedidrio, 4s vezes como mediagio entre publico e privado; outras, como indecidibilidade. No segundo caso, tratava-se também de superar os limites de alguns estudos classicos sobre a especificidade da autobiografia (Sta- robinski, [1970] 1974; Lejeune, 1975), como eixo de um “sistema” Apresentagio 29 de géneros afins, pela confrontagao com outros paradigmas da teoria e da critica literérias, que nos permitissem chegar a uma definicao mais satisfatéria para nossos objetivos. J4 aludimos na secao anterior a diferenga qualitativa que supde nossa concepgio do espago autobio- grafico a respeito da de Lejeune. Completaremos agora esse tragado tedrico, no que constitui a segunda operagAo conceitual deste estudo. Articulagées conceituais No horizonte histérico do espago biogrdfico, marcado pelo gesto fundador de As confissdes de Rousseau, desenham-se tanto a si- Ihueta do grande homem, cuja vida aparece inextricavelmente ligada ao mundo e sua época (0 exemplo de Goethe, segundo Weintraub), quanto a voz autocentrada que dialoga com seus contemporaneos (leitores, pares) e/ou com a posteridade, nas autobiografias que apa- recem como “modelo” do género, mas também a errancia, 0 desdo- bramento, o desvio, a mascara, as perturbagées da identidade. E essa diversidade narrativa — e nado uma suposta homogeneidade genérica que opera como base de nosso espago — que, na medida em que pro- pomos incursionar em terrenos pouco explorados, requererd por sua vez novas “tecnologias”. Assim, nosso enfoque incorpora de maneira decisiva a teoria bakhtiniana dos géneros discursivos como agrupamentos marcados constitutivamente pela heterogeneidade e submetidos a constante hibridagao no processo da interdiscursividade social, e também a consideracao do outro como figura determinante de toda interlocu- gio. O dialogismo, como dinamica natural da linguagem, da cultura e da sociedade, que inclusive autoriza a ver dessa maneira o trabalho mesmo da raz4o, permite justamente apreender a combinatéria pe- culiar que cada uma das formas realiza. Por outro lado, a concep- ao bakhtiniana do sujeito habitado pela alteridade da linguagem, compativel com a psicandlise, habilita a ler, na dinamica funcional do biografico, em sua insisténcia e até em sua saturacéo, a marca da 30 Oespaco biogritico falta, esse vazio constitutivo do sujeito que convoca a necessidade de identificagao ¢ que encontra, segundo minha hipétese, no va- lor biogrdfico — outro dos conceitos bakhtinianos — enquanto ordem narrativa e atribuigdo de sentido a (prépria) vida, uma ancoragem sempre renovada. Essa interpretagao do paradigma bakhtiniano em virtude de meu objeto de estudo postula, além disso, a confluéncia de duas linhas do pensamento do teédrico russo que habitualmente nao sao consideradas simultaneamente: a do dialogismo e a das formas lite- rarias biogrficas,’ de corte mais filoséfico-existencial. Essa sintonia, plenamente justificada ao longo de meu trabalho, permitiu alcangar conclusées mais matizadas. Também a contribuigao de Paul de Man (1984), a respeito da ideia de um “momento” autobiografico, mais do que um “género” — como figura especular da leitura, suscetivel de aparecer em qual- quer texto —, foi objeto de reelaboracao, sobretudo para a apreensio dessa deriva de motivos e momentos, esses deslocamentos retéricos, metonimicos, que tendem ao biogrdfico sem “constitui-lo”, dinamica nitidamente perceptivel no horizonte mididtico, e que a entrevista transformou em procedimento habitual. Meu dominio de interesse integrou do mesmo modo outra vertente de grande produtividade, a da narrativa. No caminho mf- tico tragado por Barthes ([1966] 1974) € seus ecos estruturalistas e “pos”, efetuei uma leitura de Ricoeur (1983, 1984, 1985, 1991) centrada em sua analftica da temporalidade, sobretudo em sua visio do tempo narrativo e da funcdo configurativa da trama no relato (de uma vida), para confrontar seus postulados no funcionamento do espaco biogréfico, propondo da minha parte uma confluéncia com © paradigma bakhtiniano no njfvel da ética. Na mesma diregao, tra- 3 Nora Catelli (1991), por exemplo, deixa de lado explicitamente o dialogismo, utilizando em sua indagacao sobre a autobiografia apenas 0 segundo aspecto mencionado. Apresentagio 31 balhei seu conceito de identidade narrativa com relacao as diversas formas de apropriagao do eu e as posigées identitdrias construidas em meu corpus de andlise, o que supés um interessante campo de “prova” ¢ experimentagao. Foi precisamente a aposta ética da narra- tiva, levada a um grau maximo no registro biogréfico, que permitiu encontrar um nexo inteligivel para dar conta da “positividade” que assume, na reflexao contemporanea, a pluralidade das narrativas, en- quanto possibilidade de afirmagao de vozes outras, que abrem espa- Gos novos para o social, para a busca de valores compartilhados e de novos sentidos de comunidade e democracia. Definido 0 espago, interessou-me abordar o funcionamento cm particular de algum de seus registros. A escolha como objeto de estudo da entrevista mididtica enquanto devir biogrdfico, apesar de no ser considerada sob tal “especialidade”, foi inspirada por um trabalho anterior, onde analisara sua configurago enquanto género discursivo. Naquela etapa, perfilara-se a qualidade (inter)subjetiva do género, sua virtualidade biogrdfica, isto é, seu dom peculiar de induzir, mesmo direcionada para outros objetivos, a exposigao da in- terioridade, da afetividade, da experiéncia. Retomando esas linhas, aprofundei-me agora nos temas especificos apresentados aqui, cons- tituindo um novo corpus, que inclui um agrupamento particular de entrevistas a escritores. Essa ancoragem numa forma midiatica de tal relevancia quan- to ao prestigio institucional, aos puiblicos e as audiéncias me per- mitiu ao mesmo tempo deslocar certos acentos predominantes em algumas andlises sociolégicas ou mididticas sobre a expansao do pri- vado no puiblico, em termos de manipulacio ou sedugo, em direcio a. uma interpretagao mais matizada, que remete antes a um comple- xo — e contraditério — processo de reconfiguragao da subjetividade contemporanea. Assim, 0 espago biogréfico, tal como 0 concebemos, nao somente alimentard “o mito do eu” como exaltagao narcisista ou voyeurismo — tonalidades presentes em muitas de suas formas —, mas operard, prioritariamente, como ordem narrativa e orientagao ética 32 Ocespaco biogrifico nessa modelizacao de hdbitos, costumes, sentimentos e praticas, que € constitutiva da ordem social. Finalmente, o quarto momento de minha indagacao remete aos relatos de vida nas ciéncias sociais, que contam com uma longa tradi- Gao de estudos tedricos e trabalhos de campo, num leque disciplinar multifacetado, que vai da antropologia 4 sociologia, passando pela histéria oral e os estudos culturais. Nao se tratava, entao, de construir um “novo” objeto, mas antes de abordar criticamente alguns proble- mas com frequéncia insuficientemente considerados — sobretudo no que diz respeito 4 voz do outro —, em consonancia com nosso préprio percurso conceitual. Assim, partimos da hipétese da complementari- dade desses relatos, no plano do discurso social, em relagdo aos que se tecem na midia e, por que nao, na literatura. Complementarida- de igualmente quanto aos usos da entrevista, que habitualmente sao vistos como estranhos uns aos outros (os mididticos, os cientificos), mas que, olhados de outra ética, revelam certa indole comum, sus- cetivel inclusive de ser aproveitada, em seus mtiltiplos recursos, na investigac4o académica. Consideramos relevante, por outro lado, nes- sa sintonia inusual, incorporar na perspectiva teérica dos chamados “enfoques biogréficos” tanto a concep¢ao bakhtiniana do dialogismo e da alteridade quanto uma teoria do sujeito que considere seu carater nao essencial, seu posicionamento contingente e mével nas diversas tramas em que sua voz se torna significante. O enfoque narrativo que construimos se revela igualmente apto a esse empenho. No tiltimo trecho de meu trabalho, realizo a andlise de um cor- pus de entrevistas biogréficas, construfdo no ambito de uma pesquisa sob minha orientacdo. Para além do que foram na época seus “resul- tados”, em termos de seus objetivos espectficos (Arfuch, 1992c), esse corpus foi retomado aqui em sintonia com nosso percurso tematico, tedrico e metodolégico, Tratando-se de um corpus homogéneo, no que diz respeito 4 problemitica, aos personagens e ao questiondrio semidirecionador que sustentava a entrevista, permitiu-me avangar mais um passo em diregao & andlise do discurso, numa reelaboracao Apresentagio 33 pessoal a partir da orientacéo marcada pela chamada “escola france- sa”, Integrava-se aqui naturalmente, como na anilise das entrevistas mididticas, além dos paradigmas j4 explicitados, a tradicao antirre- presentacionalista, de Wittgenstein a Austin, sem esquecer Benve- niste, que enfatiza o cardter criador, transformador da linguagem, as implicag6es da a¢ao linguistica. Assim, nesse entrecruzamento de perspectivas, a narragao de uma vida, longe de vir a “representar” algo ja existente, impde sua forma (e seu sentido) a vida mesma. Minha leitura interpretativa de ambos os corpi (entrevistas mi- diaticas e relatos de vida nas ciéncias sociais) propde entao um salto qualitativo, “um passo além” dos enfoques conteudisticos tradicionais. Mas, longe de servir simplesmente de exemplos para a teoria, ou de “casos” para uma descri¢do, transformam-se, na minha ética, em espa- ¢os emblemdticos, tramas culturais de alta densidade significante, capa- zes de iluminar, mesmo em pequena escala, uma “paisagem de época”. Os capitulos Podemos sintetizar agora as etapas de nosso itinerdrio. O pri- meiro capitulo se inicia com um tracado genealégico, relevando os antecedentes histéricos das formas autégrafas que se tornaram “ca- nénicas”, para continuar em seguida com a apresentagao critica dos paradigmas da critica literéria em torno da autobiografia. Desen- volvo depois minha prépria delimitagao do espago biogrdfico con- temporaneo, explicitando a concepgio de sujeito que guiar4 minha indagacao. No segundo capitulo, detenho-me no exame critico de dois paradigmas cl4ssicos em torno do publico e do privado, o de Arendt ¢ o de Habermas, em virtude do peso que ambos outorgam a essa tiltima esfera, que é a que me interessa particularmente. Apresento em seguida uma visao nao dissociativa de ambos os espagos, em ar- ticulagdo com a “civilizagao tecnolégica”, para indagar sobre o papel peculiar das formas biogrdficas na constituicao dos espagos. 34 Ocspacobiogrifico O terceiro capitulo propde um percurso conceitual em torno da narrativa e da voz narrativa, para culminar com algumas dis- ting6es entre formas genéricas do espaco biografico. O quarto est4 dedicado ao estudo da construgao biogrdfica efetuada pela entrevista midiatica, por meio da andlise do corpus construido. Trabalho so- bre a nocao bakhtiniana de cronotopo, como investimento temporal, espacial afetivo que dé sentido 4 narragao, organizando assim os diferentes motivos nos quais se plasma o relato do eu e da experién- cia pessoal na entrevista. Dou conta igualmente de certas légicas de modelizagao que operam de maneira especifica. No quinto capitulo, dedico-me em particular a um (sub)cor- pus de entrevistas realizadas com escritores, como caso paradigmé- tico em relag4o & voz dos que criam, por sua vez, vidas e obras no trabalho — sempre misterioso — da imaginagao. Assinalo, assim, al- guns mecanismos especificos que constituem a prépria configuragao do campo da leitura enquanto horizonte de expectativa que envolve autores ¢ leitores. A trama das vozes escolhidas tecerd, ndo por acaso, um texto tedrico sobre a autobiografia. No sexto capitulo, abordo um percurso critico em torno dos en- foques biogréficos nas ciéncias sociais, enfatizando a necessidade de considerar o trabalho com a voz do outro autorreflexivamente, sem des- cuidar do que é posto em jogo da linguagem e da trama narrativa, mas ao mesmo tempo sem ingenuidade a respeito de sua “transparéncia”. Finalmente, no sétimo capitulo, analiso o j4 mencionado cor- pus de entrevistas biogrdficas em torno da emigracao. O estudo de caso pde em questéo uma metodologia de andlise que envolve os postulados teéricos explicitados e que considero uma contribuigao original. No entanto, esse caminho da leitura também vai além de si mesmo, para dar conta, nitidamente, do deslocamento identitario que se produz na narragao vivencial, ligado aqui a relatos da emigra- ao, mas que fala, paradigmaticamente, do cardter migrante de toda identidade. 1. O espaco biografico: mapa do territério O primeiro explorador claro, e em certo grau inclusive tedrico, da intimidade foi Jean-Jacques Rousseau [...]. Ele chegou & sua desco- berta através de uma rebeliao, nao contra a opresséo do Estado, mas contra a insuportével perversdo do coracéo humano por parte da sociedade, sua intrusdo nas zonas mais intimas do homem que até entio nao haviam precisado de protegao. [...] O individuo moderno € seus intermindveis conflitos, sua habilidade para se encontrar na sociedade como em sua prépria casa ou para viver por completo & margem dos outros, seu cardter sempre cambiante e 0 radical sub- jetivismo de sua vida emotiva nasceram dessa rebelido do coracio. Hannah Arendt, A condigao humana A narrag’o da prépria vida como expresso da interioridade e afirmacio de “si mesmo” parece remeter tanto a esse cardter “univer sal” do relato postulado por Roland Barthes ([1966] 1974) como a “jlusdo de eternidade” que, segundo Philippe Lejeune (1975), acom- panha toda objetivacao da experiéncia. No entanto, a aparigao de um “eu” como garantia de uma biografia é um fato que remonta a pouco mais de dois séculos somente, indissocidvel da consolida- gio do capitalismo e do mundo burgués. Efetivamente, é no sé- culo XVIII — e, segundo certo consenso, a partir das Confissdes de Rousseau — que comega a se delinear nitidamente a especificidade 36 — Ocspaco biogrifico dos géneros literdrios autobiogrdficos, na tensdo entre a indagacao do mundo privado, a luz da incipiente consciéncia histérica moder- na, vivida como inquietude da temporalidade, e sua relagéo com © novo espago social.' Assim, confiss6es, autobiografias, memérias, didrios {ntimos, correspondéncias tragariam, para além de seu va- lor literdrio intrinseco, um espago de autorreflexao decisivo para a consolidacao do individualismo como um dos tragos tipicos do Oci- dente.* Esbogava-se, desse modo, a sensibilidade prépria do mundo burgués, a vivéncia de um “eu” submetido a cisdo dualista (ptibli- co/privado, sentimento/razao, corpo/espirito, homem/mulher), que precisava definir os novos tons da afetividade, o decoro, os limites do permitido e do proibido e as incumbéncias dos sexos, que, no século XIX, se consolidariam sob o signo da desigualdade, com a simbolizagao do feminino como consubstancial ao reino doméstico. Essa construgao narrativa do privado como esfera da intimi- dade — outra face de um espaco puiblico que se afirmava na dimensao dupla do social ¢ do politico — foi muito além de sua configuragao primigénia. Se a nascente primeira pessoa autobiogrdfica vinha dar testemunho da consciéncia feliz com uma “vida real”, sua expan- sao para outros registros e seu desdobramento em vozes miltiplas imagens de valor “testifical” (Geertz, [1987] 1989, p. 83)? nun- ca cessaram: aqueles géneros literdrios, instituidos j4 como praticas obrigatérias de distingao e autocriacdo (vidas filoséficas, literdrias, Ver Philippe Aris e Georges Duby ({1985] 1987), especialmente seu artigo “Précticas de lo escrito” e os de Orest Ranum, “Los refugios de la intimidad”; Madeleine Foisil, “La escritura del ambito privado”; Jean Marie Goulemot, “Las pricticas literarias 0 la publicidad de lo privado”. Ver a respeito Lautobiographie et V'individualisme en Occident, Décade du Collo- que de Cérissy, 10-20 de julho de 1979. ‘Tomamos a acep¢i0 no jogo fonético que faz Clifford Geertz sobre uma ex- pressio de Malinowski (I witnessing! eye-witnessing) que reforga a ideia do “tes- temunho ocular”, o que resultard sumamente pertinente, como veremos, para a consideragao do espaco biogréfico em nossa cultura visual/ televisiva. O espaco biogrifico: mapa do territério 37 politicas, intelectuais, cientfficas, artfsticas...) e, consequentemente, como testemunhos inestimaveis de época, cujo espectro se amplia- ria em seguida em virtude da curiosidade cientffica pelas vidas co- muns, desdobram-se hoje numa quantidade de variantes literdrias e mididticas; coexistem como formas autoficcionais com os j cldssicos relatos de vida das ciéncias sociais, com uma espécie de obsessio generalizada na escrita, nas artes plasticas, no cinema, no teatro € no audiovisual pela expressao mais imediata do vivido, do auténtico, do testemunhal. O avanoo irrefreavel da midiatizag4o ofereceu um cendrio pri- vilegiado para a afirmacao dessa tendéncia, contribuindo para uma complexa trama de intersubjetividades, em que a superposi¢ao do privado sobre o ptiblico, do gossip — e mais recentemente do reality show — a politica, excede todo limite de visibilidade. Esse fenémeno poderia ser considerado uma reconfiguragao da subjetividade contemporanea, em sintonia com 0 momento de inflexao que marcara o surgimento dos géneros autobiograficos? E plausfvel postular um espacgo comum de intelec¢ao dessas narrativas diversas — 0 espaco biogrdfico — que, sem perda de especificidade, seja capaz de dar conta de deslocamentos, semelhangas, mutagées de formas e de significados? Essas interrogagGes sao as que guiam © presente capitulo, em que, a partir de uma breve genealogia da escrita autobiogrdfica da modernidade, apresentarei criticamente alguns enfoques cldssicos em torno da autobiografia como eixo hi- potético de um “sistema de géneros”, para propor, por ultimo, uma nova perspectiva tedrica que permita integrar compreensivamente, no horizonte mais amplo da cultura, a disseminagao atual de géne- ros discursivos que focalizam, com maior ou menor intensidade, a narrativa vivencial. Mas como definir essa narrativa? Embora o termo “vivén- cia” e suas formas derivadas estejam incorporados com toda a naturalidade ao uso corrente, parece-nos pertinente remeter aqui a uma andlise realizada por Hans-Georg Gadamer, numa linha 38. Ocspaso biogrifico hermenéutico-fenomenoldgica, na medida em que suas distingdes conceituais contribuem em boa medida para nosso tema. O autor assinala que o uso frequente do termo “vivéncia” (Erlebnis) no 4m- bito alemfo se dd apenas nos anos 1870, precisamente como um eco de seu uso na literatura biografica. Seu termo de base (Evleben) ja era utilizado no tempo de Goethe com um duplo matiz: o de “compreensao imediata de algo real, em oposicao aquilo do qual se cré saber algo, mas ao que falta a garantia de uma vivencia propria”; eo de “designar o contetido permanente do que foi vivido”. E jus- tamente essa dupla vertente que teria motivado em primeiro lugar a utilizagao de Erlebnis na literatura biogrdfica. Dilthey retoma a palavra num artigo sobre Goethe, que reconhecera que toda a sua obra poética tinha o cardter de uma confissao, e no uso filoséfico que faz dela; nesse caso, nao apenas aparecem nela ambas as ver- tentes — a vivéncia e seu resultado —, e ela adquire estatuto episte- molégico, na medida em que passa a designar também a unidade minima de significado que se torna evidente a consciéncia, em subs- tituigdo a nogao kantiana de “sensacgao”. A vivéncia, pensada entio como unidade de uma totalidade de sentido em que intervém uma dimensio intencional, é algo que se destaca do fluxo do que desapa- rece na corrente da vida: O vivido é sempre vivido por nés mesmos, e faz parte de seu signi- ficado que pertenga & unidade desse ‘nés mesmos’. [...] A reflexo autobiogréfica ou biogréfica na qual se determina seu contetido significativo fica fundida no conjunto do movimento total que ela acompanha sem interrupgéo. Analisando esse duplo movimento, Gadamer distingue “algo a mais que pede ser reconhecido [...]: sua referéncia interna a vida”. Mas essa referéncia nao é uma relacdo entre o geral e o particular; a unidade de sentido que é a vivéncia “se encontra numa relagdo ime- diata com 0 todo, com a totalidade da vida”. Gadamer remete aqui a © espace biogrifico: mapa do territério 39 Simmel, cujo uso frequente de Erlebnis o faz em boa medida “res- ponsdvel por sua transformagao em palavra da moda”, para enfatizar esse “estar a vida voltada para algo além de si mesma”. Concepga0 transcendente que Gadamer sintetiza com palavras de Schleierma- cher: “Cada vivéncia é ‘um momento da vida infinita””. Se a vivéncia est “pingada” da continuidade da vida e ao mesmo tempo se refere ao todo dela, a vivéncia estética, por seu impacto peculiar nessa tota- lidade, “representa a forma essencial da vivéncia em geral’ (Gadamer, [1975] 1977, pp. 96-107; 0s itdlicos séo meus). Esse além de si mes- ma de cada vida em particular é talvez o que ressoa, como inquietu- de existencial, nas narrativas autobiograficas. Genealogias Se situarmos a conformagao do espago da interioridade numa dimensio histérica, talvez devamos recuar, com Norbert Elias ({1977-1979] 1987), até esse momento fundacional do “processo de civilizacao” no qual o Estado absolutista comega a se afirmar na tentativa de pacificagao do espago social, relegando as expressGes violentas e pulsionais a outro Ambito, pela imposicao de cédigos de comportamento coercitivos que, a partir da corte, seriam assu- midos pelas demais camadas sociais. E essa imposigao que funda a esfera do privado como “uma maneira nova de estar em socieda- de, caracterizada pelo controle mais severo das pulsées, 0 domi- nio mais firme das emogGes e a extensao da fronteira do pudor” (Chartier [1985] 1987, p. 22). Nessa nova “economia psfquica”, as mutagoes do Estado transformariam radicalmente as estruturas da personalidade. Dessa ética, é relevante a andlise de prdticas e escritas tanto da “literatura de civilidade”, pega fundamental no magno estudo de Elias (tratados, cédigos, manuais de etiqueta, conselhos e maximas, provérbios, sentengas, fébulas, mas também representagoes do ros- to, do corpo e da gestualidade), quanto da literatura autégrafa, em 40 Ocspaco biogrifico que se articulava, com propésitos diversos, a relagio incipiente entre leitura, escrita e conhecimento de si.‘ Praticas que, alentadas pela alfabetizagao e as novas formas de religiosidade, desenhavam nao s6 0 espago interior do pensamento e da afetividade, mas também 0 ambito fisico da moradia apta para abriga-las: a alcova, o esttidio, a biblioteca. Sao essas praticas de escrita autégrafa, ancestrais distantes de nossos géneros contemporaneos, que nos interessam em particular. Surgidas com a descoberta de um estado até entéo inabitual, a soli- dao’ — sob o amparo do segredo -, a leitura silenciosa, a meditacao, 4s vezes somente como um arremedo da oralidade, as anotagées que subsistem para o olhar de etndlogos, historiadores ou criticos liter4- rios testemunham uma espécie de infancia da subjetividade. Num leque heterogéneo, sem umbrais muito nitidos, coexistem as mem6- rias classicas de personagens ptiblicos centradas em seu cardter de Protagonistas em acontecimentos de importancia com memérias nas quais come¢a a despontar a propria personalidade, com os “livros de tazio” (livres de raison), obstinados cadernos de contas ou registros de tarefas, que de repente se tornam uma narra¢io sobre a vida co- tidiana, com os didrios {ntimos confessionais, que nao s6 registram acontecimentos da fé ou da comunidade, mas comegam a dar conta Michel Foucault, em Tecnologias de si ({1988] 1990), analisa as praticas de escrita na Antiguidade que tendem ao “cuidado de si”, considerando a obra autobiogréfica de Marco Aurélio, as cartas de Séneca e as Confissées de Santo Agostinho etapas nesse caminho de reconhecimento interior que adquiriria outra tonalidade com a confissao cristé o arrependimento, levando paulati- namente, na modernidade, ao primado do “conhecimento de si”. Sobre a “invengio” da privacidade, escreve Ariés: “Até o final do século XVII ninguém ficava a sés. A densidade social impedia o isolamento e se falava com encémio daqueles que haviam conseguido se trancar num quarto quente ou numa sala de trabalho durante bastante tempo” ([1985] 1987, p. 527), citado em Taylor ({1989] 1996, p. 309). O espaso biogrifico: mapa do errtério 41 do mundo afetivo de seus autores.° Transitos lentos, emaranhados, “mescla de praticas”, segundo a expresséo de Chartier, que, de um extremo ao outro do arco vivencial, do sagrado ao profano, teriam uma relevancia insuspeitada na construcdo do imagindrio da moder- nidade,’ Do lado do sagrado, a persisténcia do modelo das Confissbes de Santo Agostinho (c. 397) dava por certo sua precedéncia em relagao ao achado de um eu, embora sua preocupagao fosse menos a singu- laridade da vida terrena do que a virtude piedosa da comunidade. Apesar da énfase outorgada ao trajeto da conversao, apesar da estra- nheza que reveste em seu préprio tempo histérico a ideia mesma de “subjetividade”, ainda hoje esse modelo continua constituindo, para alguns autores, o paradigma de toda historia autobiogréfica.* J. Stur- © Charles Taylor assinala a importancia da autoexplicagao como parte da discipli- na confessional tanto catdlica como protestante, que deu origem & pritica do di- 4rio intimo. © autor inclui a esse respeito uma citagéo de L. Stone: “Desde 0 século XVII em diante, explodem sobre o papel torrentes de palavras acerca dos pensamentos ¢ sentimentos intimos, escritas por um ingente ntimero de ingleses extremamente comuns, homens ¢ mulheres, a maioria deles de uma aumentada orientagao laica’ [...] a cultura protestante de introspecgao se seculariza na forma de autobiografia confessional” ({1989] 1996, p. 200; a citagao de Stone ¢ de Family, sex, and marriage in England, 1500-1800. Londres: Weidenfeld, 1977, p. 228). 7 M. Foisil ([1985] 1987, p. 322) remete ao Diciondrio Furetitre, de 1690, para a definigio desses géneros em sua época: as memérias aludem aos livros de histo- riadores escritos “por aqueles que participaram nos assuntos ou foram seus tes- temunhos oculares ou contém sua vida ¢ suas principais ages”; o Livre de raison €0 livro do “bom admirador ou comerciante”, em que ele anota “para justificar para si mesmo todos os seus negécios”. A autora enfatiza a diferenca entre essas memérias ~ que remetem a empreendimentos politicos, diplométicos, militares ¢, consequentemente, a vida ptiblica — ¢ a autobiografia ou as memérias auto- biogréficas, que se desenvolverdo posteriormente. ® Nas Confissoes (c. 397, [1970] 1991), tipico relato de conversio, a narragdo da vida se orienta pelo argumento e pela demonstragio da verdade divina diante da duivida, da ambiguidade ¢ das cambiantes impresses da vida humana. Nesse sentido, sua “hibride2”, se & que se pode usar essa expresso, deriva da énfase em 42 Ocespaco biogrifico rock (1993, p. 20) assinala a respeito que as Confissdes “nao apenas registram, com uma extraordindria coeréncia a conversio, [...] mas, ao fazé-lo, também efetuam uma” (0 itdlico é meu), exemplifican- do assim a virada obrigatoria que toda narrativa, enquanto processo temporal essencialmente transformador, impée a sua matéria: contar a histéria de uma vida é dar vida a essa historia. E interessante a ob- servacao dessa qualidade pragmética da escrita, uma vez que é sobre essa pista que se afirmard o didrio {ntimo como ato privado de con- fisséo ¢ autoexame — e também, poderiamos acrescentar, algumas modulagées da experiéncia mistica tendentes & “salvacao”.? Através descobrir aquilo comum a todos, de se constituir antes numa espécie de “au- tobiografia de todo cristéo” (De Mijolla, 1994). No entanto, tanto essa autora como J. Sturrock consideram que, apesar da distancia histérica e historiogréfica que separa as Confissoes das formas modernas, elas sio um antecedente inegével do género; consequentemente, em suas obras respectivas — que apresentam es- tudos sobre autobiografia —, dedicam a Santo Agostinho um primeiro capitulo obrigatério. (Sua persisténcia retérica é inegdvel, por exemplo, no modelo rous- seauniano). Um século antes das famosas Confissaes de Rousseau, uma experiéncia misti- ca, também célebre, expressaria, a partir do modelo agostiniano, a paulatina transicfo rumo a uma percepgao diferente do {ntimo, precisamente no relato dessa dupla vivéncia do corpo e do espirito que é a possessdo. A narragio de Sor Juana de los Angeles, superior do Convento das Ursulinas de Loudun, datada de 1644, constitui um exemplo singular, na medida em que a escrita lhe teria sido recomendada justamente como “cura”, exercicio de autocontrole, captu- ra no discurso desse ew extraviado em “forcas obscuras”. Ver Hermana Jean- ne des Anges, Autobiographie (1644, 1886), que inclui o artigo de Michel de Certeau ({1966] 1990), “Jeanne des Anges”. O texto, reescrito em parte no sécu- lo XVIII, foi estabelecido pela primeira vez por dois discipulos de J. M. Charcot, que, no prélogo a edigao publicada na colecao Bibliotheque Diabolique (1886), © assinalam como uma inestimavel contribuigao para o estudo da histeria. Em seu artigo, De Certeau, que o lé na chave mistico-psicanalitica, destaca dele justamente uma espécie de desdobramento que poderfamos chamar tipicamente “moderno”: “[...] 0 lugar exorbitado do ‘eu’ (ou do ‘eu me’) que faz simultane- amente do ‘eu’ (moi) 0 sujeito € 0 objeto da agao” (p. 333) (a tradugao é mi- nha, assim como as sucessivas que remetem a textos citados em outros idiomas). O espace biogrifico: mapa doterritério 43 dessas praticas, a espiritualidade do que hoje aludimos como “vida interior” iria se afirmando. Do lado do profano, o didrio de Samuel Pepys (1660-1690) constitui em seu género igualmente um exemplo singular. Conside- ravelmente avangado para sua época, esse personagem de uns trinta anos, empregado middle class do Almirantado de Londres, produz um diario intimo e autobiogréfico em que esto contemplados pra- ticamente todos os registros do cotidiano: gostos, usos, costumes, viagens, inclinagdes amorosas, intimidade conjugal e relato de infi- delidades.'” Para além do deslumbramento etnolégico, essas cenas de amor e citimes das quais mais de trés séculos nos separam, escritas nao para serem lidas em publico, mas entesouradas nesse espaco da privacy considerado quase uma invengio inglesa,'' nao deixam de ‘Também Ch. Taylor alude ao fendmeno da “loucura europeia da bruxaria”, que vai do século XV ao XVII, como um lugar em que se apresenta o choque entre duas identidades, a do mundo magico, regido por um “logos dntico”, e a de um sujeito autodefinido, com um novo sentido do eu ¢ da liberdade ({1989] 1996, p- 208). © “Quando cheguei em casa [...] minha mulher estava estendida em sua cama com um novo ataque de pavorosa ira. Chamou-me dos nomes mais ultrajantes € comegou a me injuriar de maneira horrivel. Por tiltimo, nao conseguiu se conter, batendo em mim ¢ puxando meu cabelo [...] Aproximou-se da cama, abriu minha cortina ¢, armada de pingas vermelho incandescente, parecia que queria me agarrar, levantei-me com espanto ¢ ela as deixou sem discutir” (Diary manuscript de Samuel Pepys, Magdalene College, Cambridge, citado por M. Foisil, [1985] 1987, pp. 354-5). "© didtio privado, como relato dos acontecimentos da vida cotidiana, estava muito propagado desde o final do século XVI na Inglaterra ¢, diferentemente do francés, muito menos frequente (de certo modo, seu lugar foi ocupado pelos livres de raison), & menos pudoroso quanto & expressio dos afetos. Também os didrios femininos s40 numerosos, 0 que permite um conhecimento maior das atividades das mulheres inglesas. Um caso singular desse tipo de escrita no meio francés ¢ 0 Didrio de Gilles Gouberville (1553-1563), detalhada descrigio da vida doméstica e comunal de um meio rural, dos transitos e das peregrinagées, dos habitos de hospitalidade etc. (cf. M. Foisil, [1985] 1987, pp. 344-50). 44 Cespaso biogrifico inspirar certa afei¢ao. O tempo transcorrido parece dar aqui teste- munho dessa espiral ininterrupta e ascendente da “economia ps{- quica”, que leva hoje a intimidade do leito 4 arena do talk show ou alimenta escandalos mididticos diante de olhos tao treinados como complacentes. O século XVII também foi prédigo na narrago de vidas ilus- tres da ética préxima, ¢ as vezes obsessiva, de um testemunho pri- vilegiado. O Didrio de Héroard (1602-1629), médico de Luis XIII, que acompanhou durante 27 anos, dia por dia, a vida do principe, € outro raro exemplo conservado desse tipo de nartagao. A descri- ao da vida de um outro que é ao mesmo tempo a razio da pré- pria vida ganha aqui uma dimensio particular, inaugurando talvez essa devogao que alentou, desde entao, tantas geracoes de bidgrafos. Mas hd outro olhar sobre vidas alheias que parece deixar aqui uma marca primigénia, as “historias secretas”, que pretendem explicar os grandes acontecimentos (guerras, revolugées, aliangas) por um ros- to oculto e, consequentemente, mais verdadeiro: paixées, citimes, desejos irrefredveis, decisdes de alcova, motivagdes que escapam as causalidades ptiblicas ou publicamente invocadas. A Histéria secreta de Maria de Borgonha (1694), Enrique IV de Castitha (1695) e O senhor d’Aubigny (1698) poderiam talvez ser considerados antece- dentes na trama genealdgica de tantas biografias “nao autorizadas” que revelam intimidades contemporaneas j4 nem tao secretas nem tao transcendentes. Se a diversidade de fontes ¢ arquivos e o cardter privado de muitos desses documentos tornam extremamente dificil seu estudo e até o estabelecimento de repertérios, os rastros que emergem aqui e ali permitem reconstruir uma trama de intelecgao para a andlise da produgio literdria do século XVIII, que iria consolidando seu “efeito de verdade” tanto com a apari¢ao de um sujeito “real” como garantia do “eu” que se enuncia quanto com a apropriacao da primeira pes- soa naquelas formas identificadas como fiction, que daria origem ao romance moderno: espace biogrifico: mapa do territério 45 A realidade como ilusao criada pelo novo género [~ escreve Haber- mas em seu estudo sobre a opinido burguesa ({1962] 1990, p. 87) —] tem em inglés 0 nome de fiction: com isso ela é despojada de sua qualidade meramente fingida. Pela primeira vez, o romance burgués consegue criar aquele estilo de realismo que autoriza todo mundo a penetrar na a¢io literdria como substitutivo da propria ado. Habermas outorga suma importancia ao desdobramento da subjetividade que se expressava nas diversas formas literarias (livros, periédicos, semandrios morais, cartas, dissertagGes etc.), em que os leitores encontravam um novo e apaixonante tema de ilustracao: nao mais a fabulacdo em torno de personagens mfticos ou imagi- ndrios, mas a representacio de si mesmos nos costumes cotidianos ¢ o desenho de uma moralidade menos ligada ao teologal. A esfera do intimo privado comega assim a se delinear com certa autonomia a respeito da familia e da atividade econémica ligada a ela, dando lugar a outro tipo de relagGes entre as pessoas. Essa virada é tao sig- nificativa que o século XVIII pode ser definido, segundo o autor, como “um século de intercambio epistolar”: “[...] escrevendo cartas —acarta como desabafo do coragao, estampa fiel ou ‘visita da alma’ —o individuo se robustece em sua subjetividade”. Cartas entre ami- gos, para serem publicadas nos periddicos, cartas de leitores, cartas literdrias; o cardter dialogal adquire um peso determinante, na me- dida em que toda auto-observagéo parece requerer uma conexdo “em parte curiosa, em parte empdtica, com as comogées animicas do outro Eu. O didrio se torna uma carta destinada ao remetente; a narragZo em primeira pessoa, um mondlogo destinado ao receptor alheio...” ({1962] 1990, p. 86). No romance, desdobra-se do mesmo modo uma série de pro- cedimentos retéricos de autenticagao que vao dos “manuscritos en- contrados” (o Robinson Crusoé, de Defoe) as “cartas verdadeiras” (A nova Heloisa, de Rousseau; A camponesa pervertida, de Rétif de la Bretonne; As relagdes perigosas, de Choderlos de Laclos). No caso da 46 Oespaco biografico forma epistolar, talvez seja o cardter intimo da correspondéncia e sua suposta “veracidade” — 0 nao terem sido escritas para um romance -, apregoada pelos respectivos autores, que conseguem despertar em seu momento maior interesse. O antecedente mais remoto foi o Pamela, de Richardson (1740), um verdadeiro best-seller que, em busca de um modelo de cartas, acabaria dando impulso a um género novo.” Essa obra, que antecipava o cléssico romance psicoldégico na forma autobiografica, e cujo sucesso fez dela, segundo Habermas, um marco na constituigao da subjetividade burguesa, florescia no “htimus” que marcara fortemente os intercambios das esferas puibli- ca e privada. O que se estava produzindo nesse tipo de escrita, que capitalizava tanto a pratica do didrio intimo como a forma episto- lar, era uma mudanga substancial nas relagdes entre autor, obra e publico,'? que adquiriam assim um carter de “inter-relagdes inti- Paul Ricoeur (1984, v. 2, p. 24) alude aos procedimentos de verossimilhanga, que tiveram no romance inglés do século XVIII um interessante espaco de ex- perimentagao, assinalando que, enquanto 0 Robinson Crusoé recorria & pseudo- autobiografia por imitagao das inumerdveis formas do relato autorreferencial da época, com influéncia da disciplina calvinista do exame didtio de consciéncia, Richardson aperfeigoava, no trajeto de Pamela a Clarissa, a multiplicagao das vozes para desenhar mais fielmente a experiéncia privada: nesta tiltima se en- trecruzam dois intercimbios de cartas, as da herofna e sua confidente ¢ as do herdi eo seu. Alternam-se, assim, a visio feminina e a masculina no ambito da suposta veracidade epistolar. Robert Darnton analisa esse fendmeno por meio de um arquivo de cartas de um leitor de Rousseau, encontrado na Biblioteca de Neuchatel: “Algo aconteceu na maneira como 05 leitores reagiram diante dos textos no final do século XVIII [...] pode se afirmar que a qualidade da leitura mudou num piiblico amplo, mas incomensuravel, no final do Antigo Regime. Embora muitos escritores tenham preparado 0 caminho para essa mudanca, eu o atribuiria basicamente ao surgi- mento do espitito rousseauniano. Rousseau ensinou seus leitores a ‘digerit’ os livros tao totalmente que a literatura chegou a se solver na vida. Os leitores rous- seaunianos se apaixonavam, se casavam e criavam seus filhos impregnando-se nas letras impressas. Sem diivida nao foram os primeitos a reagir dramaticamen- te diante dos livros. A prépria maneira de ler de Rousseau mostrou a influéncia O espaco biogrifico: mapadoterritério 47 mas” entre pessoas interessadas no conhecimento do “humano” e, consequentemente, no autoconhecimento. Comegava, assim, a se definir 0 cfrculo cujo paradoxo nao dei- xou de ser inquietante: 0 esbogo mesmo da esfera do privado reque- ria, para se constituir, sua publicidade, ou seja, a inclusao do outro no relato nao mais como simples espectador, mas como coparticipe, envolvido em aventuras semelhantes da subjetividade e do segredo. Os relatos epistolares em particular, com sua impressao de imedia- ticidade, de transcrigéo quase simultanea dos sentimentos experi- mentados, com o frescor do cotidiano e do detalhe significante do cardter, propunham um leitor levado a olhar pelo buraco da fecha- dura com a impunidade de uma leitura solitaria. Ficg4o de abolicao da intermediacao, da possibilidade de uma linguagem desprovida de ornamentos, assentada no prestigio do impresso, mas como se suprisse a auséncia da voz viva, determinante ainda na época, que na realidade supunha uma maior astticia formal do relato. A literatura se apresentava, assim, como uma violaco do privado, e 0 privado servia de garantia precisamente porque se tornava ptiblico: O leitor nao é vitima de um engano, no maximo, é ciimplice. A vio- lagao do espago privado faz. com que o leitor saiba sempre mais do que cada um dos protagonistas que se confidenciam em suas cartas. Esse € 0 paradoxo que faz com que o segredo do espaco privado sé se mostre eficaz quando deixa de ser segredo (Goulemot, [1985] 1987, p. 396).!4 da intensa religiosidade pessoal de sua heranga calvinista” ([1984] 1987, pp. 253-4). © autor confronta a dupla atestacao de As relades perigosas, de Laclos, para dar conta desse paradoxo: o “preficio do redator”, que afirma a autenticidade das cartas, ¢ a “adverténcia do editor”, que sublinha seu cardter romanesco: “Nao garantimos a autenticidade desta compilagio [...] temos poderosas raz6es para pensar que é sé um romance” (Goulemot, [1985] 1987, p. 396). 48 Oeespaco biogrifico Essa visibilidade do privado, como requisito obrigatério de educagao sentimental, que inaugurava ao mesmo tempo o olho voyeuristico ¢ a modelizagao — 0 aprender a viver através dos re- latos mais do que pela “propria” experiéncia —, aparece como um dos registros prioritérios na cena contemporanea, embora quase ja no seja necessdrio espiar pelo buraco da fechadura: a tela global ampliou de tal maneira nosso ponto de observagao que é possivel nos encontrarmos, na primeira fila ¢ em “tempo real”, diante do desnudamento de qualquer segredo. Mas, além disso, a retérica da autenticagao, do apagamento das marcas ficcionais, parece ter se desdobrado de maneira incansdvel através dos sécu- los, prometendo uma distancia sempre menor do acontecimen- to: jd nao se tratard apenas de vidas “ao vivo”, mas também de mortes. A origem hipotética: As confissdes de Rousseau Foi precisamente uma narraga0 exacerbada da intimidade — essa “rebelido do corag4o”, no dizer de Hannah Arendt — que atravessou definitivamente o limiar entre o ptiblico e o privado a partir do lugar explicito de uma autoexploracio: As confissdes de Rousseau, em que o relato da prépria vida e a revelacao do se- gredo pessoal operam como reacio contra o avanco inquietante do publico/social, em termos de uma normatividade opressiva das condutas. O surgimento dessa voz autorreferencial (“Eu, s6”), sua “primeiridade” (“Acometo um empreendimento que jamais teve exemplo”), a promessa de uma fidelidade absoluta (“Quero mos- trar a meus semelhantes um homem em toda a verdade da natu- teza, e esse homem serei eu”) e a percep¢ao aguda de um outro como destinatdrio, cuja adesao é incerta (“Quem quer que sejais... Conjuro-vos... a nfo escamotear a honra de minha meméria, 0 Unico monumento seguro de meu cardter que nao foi desfigurado © espace biogrifico: mapa do terrtério 49 por meus inimigos”), tragavam com veeméncia a topografia do es- paco autobiografico moderno.”” Rousseau colocava em cena, de modo emblematico, aquele enfrentamento do “eu contra os outros” que para Elias constitui uma fase peculiar do processo civilizatério: Lu] € a consciéncia de si de seres cuja sociedade forgou a um grau muito alto de reserva, de controle das reagoes afetivas, de inibig6es [...] e que estao habituados a relegar uma multidao de manifestac6es instintivas ¢ de desejos aos enclaves da intimi- dade, a0 abrigo dos olhares do ‘mundo exterior’ ({1977-1979] 1987, p. 65). Esse processo se afirma com uma “trilogia funcional” de con- trole (da natureza, da sociedade, do individuo), em que, pela via da imposigao dos costumes, se acentua a cisao dualista entre individuo e sociedade. Mas esse processo ¢ em si mesmo contraditério: 0 ev —a consciéncia de si — que se enuncia a partir de uma absoluta particu- laridade busca ja, ao fazé-lo, a réplica e a identificagao com os outros, aqueles com os quais compartilha o habitus social '° (etnia, cla, pa- rentesco, nacionalidade). °5 No preficio a As confissdes (1766, v. 1, [1959] 1973, pp. 32-3), J. B. Pontalis as- sinala a forga performatica do texto como ato (confissao) em rela¢ao ao que seria simplesmente uma compilagéo de memérias, assim como sua diferenga a res- peito do romance de aprendizagem: nao se expressa nele um trajeto cumprido, um relato ordenado das peripécias que conduzem a um estado ideal, mas uma busca de identidade que nao se esgota no texto mesmo, uma pugna irresoluta com a sociedade de sua época que a escrita manifesta como rebeldia endo como apaziguamento. ' S40 bem conhecidos os desenvolvimentos posteriores que Pierre Bourdieu rea- lizou em torno da nogio de habitus formulada por Elias, como um “sistema de disposigées para a pratica”, Ver, sobretudo, El sentido practico ({1980] 1991) e Cosas dichas (1988). 50 Oespago biogrifico Para além de suas declamagées retéricas, da invocacao a Deus sob 0 modelo agostiniano, da énfase em relagao a sinceri- dade ¢ & exatidao da narragao de sua vida, esse eu profundo do filésofo que se expressava no relato da infancia, em seu prazer pela famosa fessée de Mme. de Warens e em outros detalhes de sua ex- periéncia amorosa — que deram lugar em nosso século a uma pro- liferagao de interpretagdes psicanalitica: » produziria, entre seus contemporaneos, uma impressao diferente da esperada, que nao é irrelevante para nosso tema. Ao passo que Rousseau pretendia despertar a cumplicidade admirativa de seus leitores ou ouvintes pelo dom de sua sinceridade expressada numa nova retérica do {n- timo, eles reagiram, em geral, como diante de uma obra literdria, cujos procedimentos nao eram muito diferentes do j4 conhecido.!” Nessa tensao entre segredo ¢ revelacao — revelagdo que torna ainda mais obscuro 0 segredo —, entre o desapego virulento da sociedade — os “inimigos”, as condutas — e 0 desejo de seu reconhecimento, afirmava-se a “dupla restrigao” da qual o sujeito moderno nunca péde escapar. Mas essa atitude pioneira, com toda a sua importancia, era na verdade quase uma derivacao Idgica de sua contestagao radical dos postulados classicos da filosofia. Afirma Goulemot que, em vez de propor que a verdade se encontra na raz4o, ou mesmo que € inspirada por Deus, Rousseau tenta definir moralmente o lugar da enunciagao [...] A relagdo com a verdade pertence & cate- goria da visdo e da revelagao [...] provém do intimo, que garante que 0 sujeito se reconheca ([1985] 1987, p. 398; 0s itélicos sio meus). Sturrock (1993) assinala a respeito que, quando Rousseau levou 0 manuscrito a Condillac, assim como em algumas leituras publicas que realizou de sua obra, mesmo antes de conclui-la, os comentérios rondaram mais em torno da matéria da linguagem literdria do que de seu cardter vivencial. O fildsofo talvez se ante- cipasse demais ao “horizonte de expectativa” de sua época Oespaco biogrifico: mapa do territério 5 Na mesma diregao, Taylor considera que o gesto de Rousseau, de uma radical autonomia, alargava imensamente 0 alcance da voz interior, propondo um contato mais profundo com a natureza e afir- mando a possibilidade ditosa de “viver em conformidade com essa voz”, embora em dissonancia com o poder da opiniao. A necessidade da autobiografia adquire assim relevancia fi- loséfica: nao apenas explora os limites da afetividade, abrindo pas- sagem para um novo género entre as tendéncias literdrias de sua época; nao sé expressa o sentimento de assédio e de defesa diante da intrusio no {ntimo pelo social, na interpretagao de Arendt, mas introduz a convicgao intima e a intuigao do eu como critérios de validez da razao. Talvez por isso As confissdes aparegam como uma espécie de carrefour, ponto de encontro — e de fascinagao — tanto para a reflexao filoséfico-politica como para a histéria e a critica literaria. A respeito dessa ultima, e entrando jd na especificidade de nosso tema, interes- sa-me retomar aqui alguns desenvolvimentos de P. Lejeune e de J. Starobinski em suas respectivas andlises da obra,'* que constituem uma referéncia obrigatéria em relacdo ao estudo da autobiografia — e, de modo geral, das formas autobiogrdficas —, para apresentar os limites tedricos de ambas as posi¢6es e propor entao uma perspectiva de abordagem diferente. Em torno da autobiografia O que constitui a especificidade da autobiografia — e, poderia- mos acrescentar, sua félicidade, o fato de suscitar, através dos séculos, uma paix4o ininterrupta? Depois de um longo rodeio tedrico, Lejeu- ne conclui que a diferenca qualitativa que emana da leitura das Con- (fissbes nao € tanto o devir de uma vida em sua temporalidade, apoia- Ver Lejeune (1975), Le pacte autobiographique, capitulos 1, 2 ¢ 3, ¢ J. Staro- binski ([1970] 1974), A relacao critica, especialmente o capitulo 1. 52 Ocspaso biogritico da na garantia do nome préprio, embora isso tenha, como veremos, sua importancia, ou o desenfado na revelacao da prépria intimidade, mas 0 lugar outorgado ao outro, esse leitor que se presume inclemente € que se tenta exorcizar a partir da interpelagao inicial, por meio da explicagao de um pacto singular que o inclui, 0 pacto autobiografi- co. Essa caracterizagao da obra por seu funcionamento pragmitico, intersubjetivo, pelo que solicita e oferece a seu destinatério, mais do que por uma espccificidade tematica, é um dos conceitos que me interessa reter. Mas, mesmo que a obra rousseauniana, com sua carga sim- bélica de “original”, tenha inspirado em boa medida sua indagagio, por que comecar pela autobiografia entre os multiplos géneros de uma constelacao literdria consagrada? Na medida em que para o au- tor o desdobramento da escrita autobiografica no século XVIII cons- titui um “fendmeno de civilizacao”, a escolha dessa forma tem a ver justamente com uma hipétese sobre sua centralidade, sua tipicidade, sua possibilidade de ser definida em termos préprios, para operar em seguida, por contraste, na taxonomia de um sistema de géneros com “semelhangas de familia”. Num primeiro momento, a tentativa de definigio de Lejeune serd mais referencial do que pragmatica: a autobiografia consistird no “relato retrospectivo em prosa que uma pessoa real faz de sua propria existéncia, acentuando sua vida individual, particularmente a histéria de sua personalidade” (1975, p. 14). Parte-se, entao, do reconhecimento imediato (pelo leitor) de um “eu de autor” que pro- poe a coincidéncia “na vida” entre os dois sujeitos, o do enunciado € o da enunciagao, encurtando assim a distancia da verdade do “si mesmo”. Mas como saber que “eu” é quem diz “eu”? O problema nao é simples e, se consideramos que toda obra é a expansdo de uma frase, poderia se afirmar que a de Lejeune transcorre, afanosamente, em torno dessa interrogacao. O estatuto precario de toda identidade, assim como de toda referéncia, 0 leva a propor diversas alternativas até ancorar no nome, lugar de articulagdo de “pessoa e discurso”: O espago biogrifico: mapa doterritorio 53. nome, assinatura,'” autor.*? Mas também aqui nao se chegou a porto seguro: existem os pseudénimos, os desdobramentos, os entrecruza- mentos pronominais — passagem a segunda, a terceira pessoa... E diante da manifesta impossibilidade de ancoragem factual, “verificavel”, do enunciador, que Lejeune, consciente de enfrentar um dilema filoséfico que atravessa a histéria do autobiogréfico, pro- poe a ideia do pacto autobiogrdfico entre autor e leitor, desligando assim crenga e verdade: “Pacto (contrato) de identidade selado pelo nome préprio”. Tornado, assim, 0 leitor depositario da responsabilidade da crenga, atestada a pouco confidvel inscrigao do “eu” por esse “nome préprio”, podemos nos fazer ainda outras perguntas: quao “real” serd a pessoa do autobidgrafo em seu texto? Até que ponto pode se falar de “identidade” entre autor, narrador e personagem? Qual é a “refe- rencialidade” compartilhada, supostamente, tanto pela autobiogra- fia quanto pela biografia? Para Lejeune, nessa ultima no se trataria mais de identidade, mas de semelhanga. Mas falar de identidade e se- melhanga apresenta, por sua vez, para além de sua conotagio filosé- fica, outro deslocamento, o da temporalidade: como delimitar, num relato “retrospectivo”, centrado na “prépria” histéria, essa disjungao constitutiva que uma vida sup6e? Qual seria o momento de captura da “identidade”? Starobinski ([1970] 1974, p. 66), que afirma nao estarmos diante de um género literdrio, percebe com clareza esse estatuto problematico: “O valor autorreferencial do estilo remete, pois, ao ® Sobre o problema da assinatura (inscrigao performativa do sujeito e promessa de uma “manutengio de si”) e da temporalidade, do jogo da presenga e da auséncia (questo capital na relacdo com o espago biogréfico), remetemos ao artigo de Jacques Derrida, “Firma, acontecimento, contexto” ({1987] 1989, pp. 337-72). “Um autor nao é uma pessoa. E uma pessoa que escreve € que publica. Em cima do muro entre o fora do texto € 0 texto, é a linha de contato entre os dois” (Le- jeune, 1975, p. 23). BA Ocspaco biogritice momento da escrita, ao ‘eu’ atual. Essa autorreferéncia atual pode se mostrar um obstdculo para a captacio fiel ¢ a reprodugdo exata dos acontecimentos passados” (os itdlicos sao meus). Esse tributo a uma hipotética “fidelidade” implica, por sua vez, uma interroga¢4o classica: qual € 0 limiar que separa autobiografia de ficcio? “Sob a forma de autobiografia ou confissao [dird Starobinski], e apesar do desejo de sinceridade, 0 ‘contetido’ da narragao pode escapar, se perder na fic¢ao, sem que nada seja capaz de deter essa transi¢gao de um plano para outro” (p. 67). Assim, mesmo quando o cardter atual da autobiografia, ancorada na instancia da enunciagao, permitir a conjungao de histéria e discurso, para tomar as célebres categorias de Benveniste (1966, p. 242), fazendo dela uma entidade “mista”, nZo poderd escapar de um paradoxo: nao somente o relato “retrospecti- vo” ser indecidivel em termos de sua verdade referencial, mas, além disso, resultaré de uma dupla divergéncia, “wma divergéncia temporal e uma divergéncia de identidade” (Starobinski, [1970] 1974, p. 72; os itdlicos so meus).”! Efetivamente, para além do nome préprio, da coincidéncia “empirica’, o narrador é outro, diferente daquele que protagonizou o que vai narra: ‘omo se reconhecer nessa histéria, assumir as faltas, se responsabilizar por essa outridade? E, ao mesmo tempo, como sustentar a permanéncia, 0 arco vivencial que vai do comego, sempre idealizado, ao presente “testemunhado”, assumindo-se sob 0 mes- mo “eu”? Se nossas interrogagdes apresentam uma distancia critica a respeito da nogao de identidade utilizada por ambos os autores, que aprofundaremos mais adiante, podemos postular, por enquanto, uma vantagem suplementar da autobiografia: para além da captura do leitor em sua rede peculiar de veridicidade, ela permite ao enun- Ao notar essa divergéncia constitutiva, Starobinski se adianta de alguma manei- a.20 préprio Lejeune, cujo livro posterior sobre o tema seré justamente inspira- do pelo addgio de Rimbaud: Je est un autre (1980). © espago biogrifico: mapa do territério BB ciador a confrontacao rememorativa entre 0 que era e 0 que chegou a ser, isto é, a construcao imaginaria de “si mesmo como outro”.* E a posigio de Mikhail Bakhtin, alheia ao que parece a ambos 0s autores, que permite superar esse limite da teoria por meio de uma virada radical da argumentagao: nao ha identidade posstvel entre autor € personagem, nem mesmo na autobiografia, porque nao existe coinci- déncia entre a experiéncia vivencial e a “totalidade artistica”. Essa postura assinala, em primeiro lugar, o estranhamento do enunciador a respeito de sua “prépria” histéria; em segundo lugar, coloca o problema da tempo- ralidade como um desacordo entre enunciacao e histéria, que trabalha inclusive nos procedimentos de autorrepresentagao. Nao se tratard entao de adequagao, da “reprodugao” de um passado, da captagao “fiel” de acontecimentos ou vivéncias, nem das transformagées “na vida” sofridas pelo personagem em questo, mesmo quando ambos — autor e persona- gem — compartilharem o mesmo contexto. Tratar-se-, simplesmente, de literatura: essa volta de si, esse estranhamento do autobidgrafo, nao difere em grande medida da posigao do narrador diante de qualquer matéria artistica e, sobretudo, nao difere radicalmente dessa outra figura, com- plementar, a do bidgrafo — um outro ou “um outro eu”, nao ha diferenca substancial —, que, para contar a vida de seu herdi, realiza um processo de identificagao e, consequentemente, de valoragao. Segundo Bakhtin, “um valor biogréfico nao sé pode organizar uma narrag’o sobre a vida do ou- tro, mas também ordena a vivéncia da vida mesma e a narragdo da nossa propria vida, esse valor pode ser a forma de compreensio, visio e expressiio da propria vida” ([1979] 1982, p. 134; 0s itdlicos sao meus). Em minha » Utilizamos aqui a expresséo de P. Ricoeur, que aparece como titulo de seu livro (Soi-méme comme un autre, 1991) e alude em particular ao conceito de ipseidade (contraposto ao de mesmidade), como abertura ao outro, ao divergente, ambos articulados ao de identidade narrativa. Desenvolveremos essa problematica no proximo capitulo. 8 Essa definicéo, que retomaremos adiante, apresenta com clareza a ideia da nar- rativa como forma de outorgar sentido a experiéncia, desenvolvida na reflexao contemporanea a esse respeito, de Ricoeur a Hayden White. 56 Ocspaso biogritico hipstese, ¢ precisamente esse valor biogrdfico — heroico ou cotidiano, fun- dado no desejo de transcendéncia ou no amor aos préximos — que impée uma ordem & prépria vida —a do narrador, a do leitor —, a vivéncia por si s6 fragmentiria e cadtica da identidade, 0 que constitui uma das maiores apostas do género e, consequentemente, do espago biogréfico. Sem a contribuigao dessa formulagao bakhtiniana, a tentativa de Lejeune de definir a especificidade da autobiografia se revela no final das contas infrutifera. A falha do “modelo” aparece uma vez mais como inerente a perspectiva estrutural: ou sua indefinigao & tao grande que a regularidade se apaga ou, se se trata de especifi- cidade, é preciso sempre lhe acrescentar a excegao. Na impossibi- lidade de chegar a uma férmula “clara e total”, de distinguir com propriedade, para além do “pacto” explicitado, entre formas “auto” e “heterodiegéticas”,” entre, por exemplo, autobiografia, romance e romance autobiogréfico, o centro de atengao se deslocard entio para um espaco autobiogrdfico, onde, um tanto mais livremente, o leitor poderd integrar as diversas focalizacoes provenientes de um ou outro registro, o “veridico” e o ficcional, num sistema compattvel de cren- gas. Nesse espago, podemos acrescentar, com o treinamento de mais de dois séculos, esse leitor estard igualmente em condigées de jogar os jogos do equivoco, das armadilhas, das méscaras, de decifrar os desdobramentos, essas perturbagoes da identidade que constituem topoi ja classicos da literatura.?* Nesse novo espago, onde sé perdura, embora em termos quase juridicos, a ideia contratual que engendra um tipo de leitura va- * O relato autodiegético (primeira pessoa) deveria ser contrastado com outras formas autobiogrificas heterodiegéticas que néo cumpriam esse requisito (autobiografias em segunda ou terceira pessoa), assim como com outras formas do “sistema”, resis- tentes inclusive a um quadro de entrada miileipla (Lejeune, 1975, pp. 18-28). % Sobre as perturbagoes da identidade como tema classico da literatura (Jekyll ¢ Hyde, Frankenstein, Rocambole etc.) e de outras formas artisticas, no Ambito de uma reflexao tedrica contemporanea sobre a identidade ea “impossivel narragao de si mesmo”, ver Régine Robin, 1996. Oespago biogrifico: mapa do territério, 57 ridvel segundo as épocas, 0 critico destaca certo efeito paradoxal, que € por sua vez relevante para nosso tema: ainda que, ao longo de sua histéria, o ntimero de “autobiografias” publicadas cada ano ndo tenha cessado de aumentar, 0 reconhecimento de certa indole comum nfo implica que se possa falar da repetigao de um ou varios modelos. Starobinski j percebera esse obstéculo para uma possivel sistematizacao: “E preciso evitar falar de um estilo ou mesmo de uma forma vinculados 4 autobiografia [...] mais do que em qual- quer outro caso, o estilo serd obra do individuo” (1970) 1974, p. 665 0s itdlicos s4o meus). No limite, e numa perspectiva dissociativa,”* € possivel pensar inclusive que cada uma delas propée seu proprio tipo, uma combinatéria peculiar de certos problemas comuns, em que se ganha a diversidade interna em detrimento de uma unidade global do campo. Sem aderir inteiramente a essa ideia, produz-se no percurso de Lejeune um verdadeiro turning point, que o titulo de sua obra se- guinte, ao qual j4 aludimos (Je est un autre, 1980), permite apreciar, acompanhado de uma expansao de seu campo de estudo para além dos limites estabelecidos da literatura, para incluir algumas formas mididticas ou testemunhais (a entrevista radiofénica, o filme biogré- fico), assim como as histérias de vida de gente comum. O pardgrafo a seguir testemunha essa abertura ao mesmo tempo em que assinala o limiar de minha prdpria indagacao: Escritas ou audiovisuais, essas formas de vida sao intercambidveis e nos in-formam. Nao é necessdrio dizer ‘eu penso’, ‘mas sou pen- sado’, propunha Rimbaud. Sou vivido. Maneiras de pensar em si mesmo, modelos vindos de outros. Circulacao da gléria, exemplos propostos, destinos refigurados ao gosto do dia. Acumulagao (e * Lejeune retoma, numa espécie de acordo critico, uma proposta de Francis Hart em “Notes for an anatomy of modern autobiography”, New Literary History, 1970, n. 1, pp. 485-511 (citado na p. 325). 58 Ocspaso biogritico elaboragao seletiva) de diferentes ‘memérias coletivas’, Consumo inverso, mas ligado, da notoriedade e das vidas obscuras. F a forma de circulagao das vidas tanto como a forma das vidas mesmas 0 que quis apreender, para contribuir um pouco para a histéria do espaco biografico, do qual o desenvolvimento da autobiografia moderna é s6 um aspecto (1980, p. 9; 08 itélicos s40 meus). O espaco biografico contemporaneo A sumiria definigao de Lejeune de um espago biogrdfico como reservatério das formas diversas em que as vidas se narram e circulam, embora sugestiva, nao é suficiente para delinear um campo concei- tual. A abertura 4 multiplicidade, mesmo abandonada a intengio ta- xonémica, nao escapa 4 vontade acumulativa em que cada “tipo” de relato viria constituir um “exemplo”. Assim, scus estudos de casos par- ticulares, certamente de interesse (a biografia/testemunho de Victor Hugo, a autobiografia “falada” de Sartre, diversos relatos de vida etc.), nao configuram um horizonte interpretativo capaz de dar conta da énfase biogréfica que caracteriza 0 momento atual. Esse & justamen- te o propdsito de meu trabalho, o de ir além da busca de exemplos, mesmo ilustres ou emblematicos, para propor relagdes, em presenca e auséncia, entre formas com grau diverso de proximidade, relagdes nem necessdrias nem hier4rquicas, mas que adquirem seu sentido precisa- mente num espa¢o/temporizagdo, numa simultaneidade de ocorréncias que por isso mesmo podem se transformar em sintomaticas e serem suscetiveis de articulagao, ou seja, de uma leitura compreensiva no 4m- bito mais amplo de um clima de época. O espago biogrdfico assim entendido — confluéncia de muilti- plas formas, géneros e horizontes de expectativa”” — supde um inte- ” A nogio hermenéutica de horizonte de expectativa, utilizada por Hans Jauss outros membros da chamada Escola de Constanca, alude, de maneita priori- téria, mas nao exclusiva, & experiéncia dos primeitos leitores de uma obra, tal O espago biografico: mapa do territério 59 ressante campo de indagacao. Permite a consideracao das especifi- cidades respectivas sem perder de vista sua dimensio relacional, sua interatividade tematica e pragmatica, seus usos nas diferentes esferas da comunicacio e da agao. Se a adogao da formula de Lejeune tem para nés um sentido um tanto metaférico, j4 que nado nos atemos a sua “letra”, resgatamos, no entanto, 0 critério de um funcionamento pragmdtico da leitura, talvez menos “contratual”, no sentido for- te, do que dialdgico, ligado a certos procedimentos retéricos, como constituinte essencial do atributo “autobiogrdfico”. Em nossa 6tica, € possivel entéo estudar a circulacdo narrativa das vidas — puiblicas e privadas —, particularizando os diferentes géneros, na dupla di- mensio de uma intertextualidade e de uma interdiscursividade, para retomar a distingéo de Marc Angenot (1989),”* isto é, na deriva ir- restrita dos “ideologemas” no nivel da doxa (modelos de vida, de su- cesso, de afetividade etc.) e na interatividade formal e deontoldgica como podem percebé-la “objetivamente” na base da tradigio estética, moral, social na qual aparece, comum ao autor ¢ ao receptor. Jauss sustenta a fortiori esse principio para as obras que transgridem ou decepcionam abertamente a expectativa que corresponde a certo género literdrio ou a certo momento da his- t6tia sociocultural. Essa visio dindmica permite a consideragao tanto do rastro de reconhecimento ¢ identificagéo produzido pela aparigao de uma obra numa tradigéo quanto sua infragdo, sua critica, as mutagdes € novos efeitos poéticos dos géneros. A apropriagao da obra é entao ativa, seu sentido e valor se modifi- cam no curso das geracées até 0 momento em que nos confrontamos com elas, a partir de nosso préprio horizonte, como leitores, criticos ou historiadores. Horizonte brumoso, impreciso, que se desloca segundo a posigao do espectador ea diregéo do olhar, onde confluem, sem necessidade de encontros simbidticos, © “mundo do texto” ¢ 0 “mundo do leitor”. Ver Hans Jauss, “Historia de la literatura como provocacién a la ciencia literaria” ¢ “Experiencia estética y her- menutica literaria’, em D. Rall (org.), 1987, pp. 55-8 ¢ 73-88. % Retomando a nogio bakhtiniana de uma interagao generalizada dos discursos, Angenot distingue nela uma dupla dimensao: “|... Vintertextualité (comme cir- culation et transformation didéologemes, cest-a-dire, des petites unités signifiantes dotées d’acceptabilité diffuse dans une doxa donée) et dinterdiscusivité (comme interaction et influence des axiomatiques de discours)” (1989, p. 17). 60 —Cespago biogrifico dos discursos envolvidos (procedimentos narrativos, pontos de vista, esquemas enunciativos, viradas retéricas, modalizagdes do ser e do dever-ser etc.). Essa busca nao apontard, é claro, para a validacao de regras universais, nem para a identificagao de um estado dado do discurso social, mas antes para a definigao de tendéncias e regu- laridades cuja primazia as torna suscetfveis de caracterizarem certo cendrio cultural. Como se articulam os géneros autobiogréficos “canénicos” que aparecem em nossa breve genealogia, em suas variadas meta- morfoses, com a proliferagdéo contemporanea de formulas de auten- ticidade, com a voracidade pelas vidas alheias, com a obsessio do “vivido”, certificado, exato, com 0 mito do “personagem real” que deve testemunhar em todos os lugares a existéncia e a profundidade do “eu”? Como se compée hoje o espago biografico? Um primeiro levantamento nao exaustivo de formas no apo- geu — can6nicas, inovadoras, novas — poderia incluir: biografias, au- torizadas ou nao, autobiografias, memérias, testemunhos, histérias de vida, didrios {ntimos — e, melhor ainda, secretos —, correspon- déncias, cadernos de notas, de viagens, rascunhos, lembrangas de infancia, autoficgdes, romances, filmes, video e teatro autobiogra- ficos, a chamada reality painting,” os intimeros registros biografi- cos da entrevista mididtica, conversas, retratos, perfis, anedotarios, indiscrigées, confissdes proprias e alheias, velhas e novas variantes do show (talk show, reality show), a videopolitica, os relatos de vida das ciéncias sociais e as novas énfases da pesquisa e da escrita aca- démicas. Efetivamente, cada vez interessa mais a (tipica) biografia de notaveis e famosos ou sua “vivéncia” captada no instante; ha um indubitdvel retorno do autor, que inclui nao somente uma Ansia de detalhes de sua vida, mas os “bastidores” de sua criagio; multipli- cam-se as entrevistas “qualitativas” que vao atrds da palavra do ator » Nas artes visuais, hé uma tendéncia muito reconhecivel de incorporar nas obras objetos, fotografias, roupas, cartas, diversas marcas da vida pessoal do artista. © espace biogrifico: mapa do territério 61 social; persegue-se a confisséo antropoldgica ou o testemunho do “informante-chave”. Mas nao apenas isso: assistimos a exercicios de “ego-histéria”, a um auge de autobiografias intelectuais, 4 narragéo autorreferente da experiéncia tedrica e 4 autobiografia como matéria da prépria pesquisa, sem contar a paixao pelos didrios {ntimos de fildsofos, poetas, cientistas, intelectuais. E, é preciso dizé-lo, as vezes nao ha muitas diferengas de tom entre esses exercicios de intimidade ea intrusao nas vidas célebres ou comuns com as quais nos depara diariamente a televisao. Que paixao desmesurada e dialdégica impulsiona a tal extremo o desvelamento, a exposigao € 0 consumo quase viciante da vida dos outros? Que registro do pulsional e do cultural est4 em jogo nessa dinamica sem fim? Como definir hoje, diante dessa diversidade, 0 valor biogrdfico? Como pensar, nessa incessante multiplicagao de formas, a qualidade paradoxal da publicidade do intimo/privado? Hi usos — e géneros — biogrdficos “melhores” que outros? Hi verda- deiramente — e sao necessérios — limites do dizivel e do mostravel? Algumas precaugées se impéem antes de apresentar nossas hipéteses e iniciar o caminho em dire¢ao a algumas respostas. Em primeiro lugar, caberia precisar 0 trajeto que vai da consideragao das formas autobiogrdficas, tal como as situamos na genealogia da 2” Para citar apenas alguns exemplos, ver a autoindagacao histérica de Ronald Fra- ser, En busca de un pasado (1987); Luisa Passerini, Autoritratto di grupo (1988); Pierre Nora (org,), com a participacéo de Pierre Chaunu, Georges Duby, Jac- ques Le Goff, Michelle Perrot ¢ outros, Essais d’ego-histoire (1987). A histéria das mulheres, assim como outras vertentes da teoria critica feminista e de estu- dos de género, usou de modo privilegiado a inscrigao autobiogréfica, a ponto de essa modalidade enunciativa jé se apresentar como um tema de discussao tedrica € epistemolégica. Por sua vez, as reflexdes sobre a relagao entre historia e me- miria, de particular interesse no final do século, recuperam como ancoragens privilegiadas os relatos de voz testemunhal. Outro dominio em que se manifesta nitidamente essa tendéncia, seja em trabalhos de campo ou em diversas formas de escrita académica, é 0 dos estudos culturais. 62 Ccespaso biogrifico modernidade, enquanto géneros discursivos com certas semelhan- gas, mas também com diferengas, & sua integragdo nesse espago maior, que nao sup6e, entretanto, a neutralizacdo dessas diferencas. ‘Trajeto que é ao mesmo tempo histérico — em relagao A sua pré- ptia evolugo formal e de piiblicos — e dialégico — em termos de suas multiplas intertextualidades — e que envolve a propria distingao entre 0 ptiblico e o privado, os limiares ¢ sua notdvel transforma- cio contemporinea pelo avango da midiatizagao. Esse aspecto, que constitui o contexto mais amplo de nossa pesquisa, ser4 abordado no préximo capitulo. Em segundo lugar, ao falar de espago biogrdfico, embora mui- tas de suas formas sejam consensualmente autobiogréficas ou, pelo menos, autorreferentes, o fazemos nao simplesmente por vontade de incluso, mas por uma decisao epistemoldgica que, como ante- cipamos, parte da nao coincidéncia essencial entre autor e narrador, resistente inclusive ao efeito de “mesmidade” que o nome préprio pode produzir.*' Por outro lado, os jogos identitdrios de mascara- mentos multiplos que se sucederam ao longo do século XX, assim como as mutagées sofridas pelo género, fazem com que, diante de uma autobiografia, j4 seja necessdrio delimitar se ela é “cldssica”, “canénica” ou suscetivel de algum predicado ficcional — Gertrude Stein, entre outros, jd introduzira uma nota irénica com sua Auto- biografia de Alice Toklas. Além disso, a autobiografia “canénica” — se € que se pode usar com propriedade essa expresséo — nao somente stporia a coincidéncia “empirica” entre autor e narrador — com o estatuto textual que se outorgue & mesma —, mas também uma busca »' Bakhtin é explicito a esse respeito: “O autor é um momento da totalidade artis- tica e, como tal, nao pode coincidir, dentro dessa totalidade, com o herdi que £ seu outro momento, a coincidéncia pessoal ‘na vida’ entre o individuo de que xe fala e 0 individuo que fala nao elimina a diferenga entre esses momentos na totalidade artistica” (1982, p. 134). © espaco biogrifico: mapa do territério 63 de sentido ou justificagéo da prépria vida, condigao que também no se cumpre em todos os casos. Mas € 0 espaco enunciativo mididtico, sempre plurivocal, que proporciona a maior evidéncia a esse respeito: trata-se ali verdadei- ramente da construgao dialdgica, triddica ou polifénica das “auto- biografias de todo o mundo”. Por tiltimo, e no que diz respeito as ciéncias sociais, tampouco em seu dominio os relatos sao verdadei- ramente autégrafos, na medida em que a presenga direta ou media- da do pesquisador ¢ sempre uma condigao interlocutiva essencial para sua produgao. No entanto, nossa opgao de nominagio, que tem sobretudo um valor heuristico, nao supde que a distingao entre atribuig6es auto ou biogrdficas, no interior ou fora desse espago, seja irrelevante. Voltando 4s interrogagées em torno da composicao de nos- so espaco biogréfico, a enumeracao heterédclita que realizamos, que nao visa de modo algum & equivaléncia de géneros e formas dissimi- lares, assinala, no entanto, um crescendo da narrativa vivencial que abarca praticamente todos os registros — numa trama de interag6es, hibridizac6es, empréstimos, contaminag6es — de légicas mididticas, literdrias, académicas (em ultima instancia, culturais), que nao pare- cem se contradizer demais.* Espaco cuja significancia nao est4 dada " Que diferenga de critério haveria, por exemplo, entre as formas correntes de intimidade mididtica e a publicagio dos Didrios secretos, de Ludwig Wittgens- tein, & qual cle mesmo se opds ¢ depois também seus testamenteiros? A batalha legal, levada a cabo pelo editor Wilhelm Baum contra E. Anscombe e G. H. von Wright ¢ cujo sucesso se plasma na publicagio do livro, é um exemplo emblemético desse “ar dos tempos”. Na contracapa, afirma-se: “[os testamentei- ros} impediram a publicagio desses textos, numa tentativa falsamente piedosa de ocultar de nés o personagem real, com seus medos, angtistias, seu elitismo ou sua homossexualidade. W. B. resgatou para todos nds esses cadernos vivos patéticos nos quais Wittgenstein escrevia em addigo nas paginas pares suas vivén- cias intimas, enquanto nas {mpares anotava em escrita normal seus pensamentos piiblicos” (Wittgenstein, 1991; 0s itdlicos sio meus). 64 Oespaco biogrifico somente pelos miltiplos relatos, em maior ou menor medida auto- biogréficos, que intervém em sua configuragio, mas também pela apresentagao “biogréfica” de todo tipo de relatos (romances, ensaios, investigagGes etc.).*° E essa simultaneidade, essa insisténcia sincrénica, poderfamos conjecturar, invocando ao mesmo tempo 0 rastro semioldgico saus- sureano € o sintoma, aquilo que insiste aqui e ali, no lugar mais 6bvio do discurso ¢ no menos esperado, 0 que nos interessa destacar nesse momento de nossa indagagao. Depois poderd vir a distingdo entre tipos de relatos, canones, valores (biograficos, estéticos, éticos, literdrios) e usos: a distancia que vai do testemunho, das buscas iden- titdrias, do conhecimento — e do cuidado — de si, das histérias pes- soais e das memérias coletivas as formas e tons do sensacionalismo e do escandalo. Distingao nem sempre evidente nem posstvel a priori — nao hd, sabemos, nenhum “resultado” inerente a uma forma, um registro, um género. E é precisamente essa simultaneidade irreveren- te do espaco, perceptivel a partir de certo posicionamento teérico, que alimenta nossa hipdtese em relacdo & relevancia do biogrdfico- vivencial nos géneros discursivos contemporaneos. Espaco biogrdfico e géneros discursivos Apesar da tentativa de superar os limites restritivos de cada género numa visdo mais integradora, a concepgao de Lejeune nao consegue se articular com uma definicéo de género discursivo em * Esse fendmeno se tornou nao sé perceptivel, mas “quantificavel” num dos corpi estudados, construido com suplementos culturais dos grandes jornais (La Na- cién, Clarin, Pégina/12) num periodo entre 1994 e 1998, com intermiténcias. Ali, 0 reenvio entre manchetes, matérias, entrevistas e resenhas tece uma trama em que as tendéncias que viemos assinalando se evidenciam nao somente no que diz respeito as formas mais ou menos canédnicas de nosso espaco biogréfico, mas também em outros registros, como a ficgao, 0 ensaio e a histéria, que pare- cem cada ver mais necessitados de se autenticar na vida do autor. O espago biogrifico: mapa do territério 65, consonancia, apta para dar conta dos deslocamentos funcionais e retéricos do campo a estudar, na dupla dimensao sincrénica e dia- crdnica. O “esquecimento” de Bakhtin é aqui significativo, jé que dificilmente poderia se pensar uma teoria mais adequada para esse efeito. E essa auséncia que queremos de uma vez saldar, para postu- lar entao um espaco — e uma maneira de abordar o fendmeno biogra- fico — em termos qualitativamente diferentes. O conceito de género discursivo, que guia em boa medida nosso itinerdrio, nos remete a um paradigma que significou um verdadeiro salto epistemoldgico: das velhas concepgdes normativas e classifica- térias dos géneros, preferencialmente literdrios, & possibilidade de pensd-los como configuracées de enunciados nas quais so tecidos o discurso — todos os discursos — na sociedade e, consequentemente, a agao humana. Afirma Bakhtin num artigo nodal:** O uso da lingua é levado a cabo na forma de enunciados (orais escritos) concretos e singulares que pertencem aos participantes de uma ou outra esfera da praxis humana. Esses enunciados refletem as condigées especificas e 0 objeto de cada uma das esferas n&o s6é por seu contetido (temédtico) ¢ por seu estilo verbal, ou seja, pela selegio dos recursos lexicais, fraseolégicos e gramaticais da lingua, mas antes de mais nada pela composicao ou estruturagao. Os trés momen- tos mencionados — 0 contetido tematico, o estilo ¢ a composicao — estéo vinculados indissoluvelmente na totalidade do enunciado [...] Cada enunciado separado é, evidentemente, individual, mas cada esfera do uso da lingua elabora seus tipos relativamente estéveis de enunciados aos quais denominamos géneros discursivos (1982, p. 248; os itdlicos s4o meus). Apenas esbogada, a definigao enfatiza a multiplicidade de seus registros: “ “EI problema de los géneros discursivos” (1982, pp. 248-93). 66 Cespago biogrifico E preciso colocar em relevo a extrema heterogeneidade {...] devemos incluir tanto as breves réplicas de um didlogo cotidiano [...] como uma ordem militar [...] todo um universo de declaragdes ptiblicas em sentido amplo: as soci . as polttic s, mas, além disso [...] as miiltiplas manifestagdes cientificas, assim como todos os géneros literérios (1982, p. 249). Essa extensio do campo se divide, por sua vez, em dois gran- des grupos: os géneros simples, primdrios, da comunicacao oral, ime- diata (0 didlogo, a conversa cotidiana, os intercambios familiares), e os secunddrios ou complexos, escritos, que remetem A trama cultural da comunicacao em sociedade (jornalisticos, literdrios, cientificos, juridicos, polfticos etc.). : Varios apontamentos poderiam ser feitos a respeito da per- tinéncia dessa conceitua¢ao para pensar 0 espaco biogrdfico. Em primeiro lugar, a heterogeneidade constitutiva dos géneros, sua estabilidade apenas relativa, 0 fato de nao existirem formas “pu- ras”, mas constantes misturas e hibridizagoes, em que a tradicao se equipara 4 abertura & mudanga e a novidade. Os primérios, familiares, suscetiveis de se recontextualizarem nos secundarios, como o didlogo ou a carta no romance, por exemplo, séo para Bakhtin um motor de transformagao, na medida em que ofere- cem uma conexao direta com a cotidianidade e contribuem para a flexibilizagao de convengées discursivas, proibicdes, tabus. Os usos dos géneros influenciam desse modo hébitos e costumes, na variagao dos estilos e até no “tom” de uma época.® Por esse pris- ma, torna-se relevante 0 papel flexibilizador das formas que nos ® Um exemplo dessa influéncia é, para Bakhtin, 0 papel decisivo dos géneros estilos familiares durante 0 Renascimento, caracterizados pela “sinceridade da praca priblica”, na tarefa de destruicéo do modelo oficial do mundo medieval (1982, p. 287). O magno trabalho de andlise a respeito deu origem a sua célebre monografia La cultura popular en la Edad Media y el Renacimiento. El contexto de Francois Rabelais (1987). O espaso biogrifico: mapa do territério 67 ocupam através da incorporagao natural dos géneros primdrios a sua propria dinamica (a conversa, a piada, a anedota, a cena in- tima, tanto na autobiografia ou na entrevista quanto na crénica ou no testemunho), cujo desdobramento no horizonte midiatico imprime um selo particular. Em segundo lugar, ha 0 funcionamento pragmitico dos géne- ros, a atencao dispensada aos usos, 4 dimensio interativa entre par- ticipantes, que se complementa com a caracterizagao do enunciado como essencialmente destinado, marcado por uma prefiguragao do destinatdrio — “tal como 0 imagino” — e por uma atitude a respeito dele, que é, por sua vez, uma tensio @ resposta. Essa consideragao do outro como fazendo parte de meu enunciado, prévia a toda consu- magio possivel da comunicag4o, encontra seu correlato na ideia de uma linguagem outra, habitada por vozes que deixaram scu rastro com 0 uso de séculos, uma palavra alheia que expressa sentidos, tra- digdes, verdades, crengas, visées do mundo, € que 0 sujeito assume de forma natural,** mas da qual deverd se apropriar pelo uso combi- natério peculiar que dela faca, pelos géneros discursivos que escolher e, sobretudo, pelas tonalidades de sua afetividade. Expressa-se assim uma ideia dialégica da comunicagao que nao reconhece primazia ao enunciador, na medida em que este ja est4 determinado por um outro, mas antes uma simultaneidade na atividade de intelecco e compreensao entre os participantes; trata-se de uma interagdo em presenca, mididtica ou de escrita. Nessa mol- dura, podemos situar agora a peculiar intersubjetividade gerada pelas formas biogréficas também como um acordo, uma sintonia, ¢ nao % “© objeto do discurso, por assim dizer, jé se encontra falado, discutido, vislum- brado e valorizado das maneiras mais diversas: nele se cruzam, convergem € se bifurcam varios pontos de vista, vises do mundo, tendéncias. O falante nao é um Adio biblico que tinha que se haver com objetos virgens, ainda nao nome- ados” (Bakhtin, 1982, p. 284). Essa concepgao da precedéncia da linguagem e seus sentidos como configuradora do sujeito guarda relagdo com a sustentada por Jacques Lacan, para quem o sujeito advém da linguagem e se constitui nela. G8 Cespaco biogrifico somente como um “pacto” assinado e “selado” pelo autor, que obriga seu leitor, como na primeira versao de Lejeune. Mas esse dialogismo é, por sua vez, multiple: 0 enunciador e 0 destinatario sio ao mesmo tempo suportes dessas vozes outras que alentam na linguagem, fendmeno que concerne igualmente a pos- sibilidade relacional dos discursos, essa deriva das significagées que conhecemos como intertextualidade.>” Nesse funcionamento discursivo, 0 reconhecimento do regis- tro da afetividade como constituinte de uma posigao de sujeito é igual- mente importante para nosso tema pela peculiar “autocriacao” que as narrativas biogrdficas supdem. “O fato de prefigurar o destinatd- rio € sua rea¢do de resposta frequentemente apresenta muitas facetas que aportam um dramatismo interno muito especial ao enunciado (alguns tipos de didlogo cotidiano, cartas, géneros autobiograficos ¢ confessionais)” (Bakhtin, 1982, p. 286). Adquire uma énfase especial, na reflexao bakhtiniana, o vin- culo nao mimético entre a linguagem e a vida,** sobretudo em re- lacao as formas de expressdo da prépria experiéncia através da obra artistica. Mas hd ainda um terceiro aspecto a destacar: a considera- ¢40 dos géneros discursivos como sistemas imersos numa historici- dade, que implicam uma valoragdo do mundo. A dimensio estética, ” Embora a expresso tenha sido cunhada a posteriori, a partir da leitura estrutu- ralista de Bakhtin, e introduzida no meio francés por Julia Kristeva no final dos anos 1960, esté claramente delineada em sua obra: “Uma obra é clo na cadeia da comunicagio discursiva; como a réplica de um diélogo, a obra se relaciona com outras obras-enunciados: com aquelas as quais responde e com aquelas que respondem a elas ao mesmo tempo, assim como a réplica de um didlogo, uma obra esté separada de outras pelas fronteiras absolutas da mudanga dos sujeitos discursivos” (Bakhtin, 1982, p. 265). ‘A linguagem participa da vida através dos enunciados concretos que a realizam, assim como a vida participa da linguagem através dos enunciados” (Bakhtin, 1982, p. 251). O espaco biogrifico: mapa doterrtério 69 que se delineia na totalidade tematica, compositiva ¢ estilfstica dos enunciados, serd entao indissociavel de uma ética. J& nos referimos na parte anterior a seu conceito de valor bio- grafico, que constitui talvez uma das melhores explicagoes para se entender — para além de se descrever — a proliferagio de narrati- vas vivenciais e seu impacto na (re)configuragao da subjetividade contemporanea. Postulado no ambito de sua andlise de géneros li- terd4rios canénicos (autobiografia, biografia, confissao, hagiografia etc.),° em que alcangaria sua maior realizagao, o valor biogrdfico € extensivo ao conjunto de formas significantes em que a vida, como cronotopo,” tem importancia — 0 romance, em primeiro lugar, mas também os periddicos, as revistas, os tratados morais etc. O conceito tem, na minha opiniao, uma dupla valéncia: a de envolver uma or- dem narrativa que é, a0 mesmo tempo, uma orientagao ética. Efetiva- mente, havers diferentes tipos de valor biogréfico: um valor heroico, transcendente, que alimenta desejos de gléria, de posteridade; outro cotidiano, baseado no amor, na compreens4o, na imediaticidade; e ainda é perceptivel um terceiro, como “aceitagao positiva do fabu- lismo da vida”, ou seja, do cardter aberto, inacabado, cambiante, do » No Ambito de um trabalho medular, “Autor y personaje en la actividad estética’, Bakhtin realiza um estudo dessas formas literdrias afins que resultou iluminador para nosso trabalho (1982, pp. 13-190). “© autor assinala a extrapolagéo metaférica que faz do termo, originalmente ligado As matemiticas ¢ & teoria da relatividade de Einstein, para marcar “a correlagao essencial das relagdes espaciotemporais, tal como foi assimilada pela literatura”, correlag4o que supée, além disso, um investimento afetivo. Assim, © cronotopo do caminho, a estrada, a viagem estao simbolicamente associados com o “caminho/viagem da vida’, como 0 da praca publica & festividade po- pular (0 carnaval), 0 do salao (tfpico de Balzac) a “mobilidade ascendente” da burguesia etc. (Bakhtin, [1975] 1978, p. 235). O desenvolvimento dessa nogio, que ele introduz como vetor para pensar a histéria literdria e, em particular, uma teoria do romance, estaré ligado do mesmo modo & andlise de géneros biogrdficos ¢ autobiogréficos e ao problema da temporalidade como categoria existencial. 10 Ocxpase biogrifco processo vivencial, que resiste a ser fixado, determinado, por um argumento (Bakhtin, 1982, p. 140). Entendido nessa dupla dimensio (narrativa e ética), 0 valor biogréfico se transforma num interessante vetor analitico para nos- so tema, um modo de leitura transversal suscetivel de articular nao apenas géneros discursivos diferentes, mas também os diversos “mo- delos” que emigram de uns a outros, nos quais se plasmam as vidas ideais, do eco aristotélico da “vida boa” as varias peripécias heroicas cujos tragos sobrevivem em nosso tempo, incluidas evidentemente as mais recentes do “anti-herdi”. Porque nao hé modo de narrar uma biografia, em termos meramente descritivos, expondo simplesmente uma Idgica do devir ou uma trama de causalidade, por fora da ade- sao a — ou da subversao de — algum desses modelos, em suas variadas e talvez utépicas combinatérias. Esse cixo de leitura nos leva a uma consideragdo dinamica do campo que estudaremos. Formas que (re)aparecem aqui ¢ ali, em diferentes estilos e suportes (graficos, filmicos, visuais), atu- alizando a flutuagao classica entre o heroico e o cotidiano, mas, sobretudo, essa “terceira via” que Bakhtin, com seu inegdvel dom antecipatério, definiu como fabulismo da vida e que traduz talvez com a maior preciséo o imagindrio hegeménico contemporaneo: a vibracao, a vitalidade, a confianga nos (préprios) acertos, 0 va- lor da aventura," a outridade de si mesmo, a abertura ao conhe- “' A aventura é vista, na tradigéo das “filosofias da vida” que Bakhtin conhecia muito bem (Dilthey, Simmel etc.), como um dos modos de escapar da racio- nalizagao, do decurso habitual das coisas, dos condicionamentos ¢ habitos co- tidianos; nao simplesmente como uma interrup¢éo produzida por algo isolado € acidental, mas entroncada com necessidades profundas, que comprometem a vida sensivel em seu conjunto: “A aventura [...] [é] uma vivencia de tonali- dade incompardvel que s6 cabe interpretar como um envolvimento peculiar do acidental-exterior pelo necessério-interior”. Com um comeso ¢ um final nitidamente marcados, “pingada” da experiéncia corrente, a aventura, unida a “subjetividade da juventude”, engloba tanto 0 horizonte do incerto, implicado O espaco biogréfico: mapadoterritorio 71 cimento (do ser) como disrupgao. A figura do oximoro é aqui eloquente: “[...] alegria e sofrimento, verdade e mentira, bem e mal estao fundidos indissoluvelmente na unidade da corrente do ingénuo fabulismo da vida” (Bakhtin, 1982, p. 139). Expresso que nos autoriza um emprego ainda mais radical: é a fabula da (prépria) vida, narrada uma e outra vez, 0 que constitui em verda- de 0 objeto de toda biografia. Se o valor biogrdfico adquire sua maior intensidade nos géneros classificéveis como tais, é possfvel inferir seu efeito de sentido quanto ao ordenamento das vidas no plano da recepgao. Sao lagos identificatérios, catarses, cumplicidades, modelos de herdi, “vidas exemplares”, a dindmica mesma da interioridade e sua necessdria expresso publica que esto em jogo nesse espago peculiar onde o texto autobiogréfico estabelece com seus desti- natdrios/leitores uma relacao de diferenga: a vida como uma or- dem, como um devir da experiéncia, apoiado na garantia de uma existéncia “real”. Segundo minha hipdtese, é essa garantia, mais do que um “contrato” de leitura* rigido — garantia que nado supGe necessaria- mente a “identidade” entre autor e personagem, como na defini¢ao na qualificagio comum de “aventureiro”, como a relagao erética ¢ a obra de arte (Simmel, 1989, p. 15). Referéncias a Dilthey e Simmel em torno do con- ceito de “psicologia objetiva” podem ser encontradas em Voloshinov e Bakhtin ({1929} 1992, pp. 51-70), pelo que ¢ licito postular, no uso bakhtiniano da “aventura, essa filiagao. * No ambito da semidtica greimasiana, a nogio de “contrato de leitura” foi expli- citada para aludir, em geral, a “uma relagao intersubjetiva que tem como efeito modificar o estatuto (0 ser ou 0 parecer) de cada um dos sujeitos em presenga”. Préximo do conceito de échange claborado por Marcel Mauss, 0 contrato estabe- lece um diferimento, uma distancia que separa sua conclusao de sua execugao. E também um contrato fiducidrio, apresentado frequentemente como um fazer- persuasivo. A nogio foi desenvolvida em articulagio com diferentes registros, que oferecem uma acentuacéo particular: “contrato enunciativo”, “contrato de veridicao” etc. (cf, Greimas e Courtés, 1979, pp. 69-71). 72 Ocespaco biogrifico de Lejeune, ou a equiparagao direta entre vida e relato —, ¢ esse pa- pel, marcado por uma peculiar inscri¢io lingufstica — 0 eu, 0 nome proprio, a atestagéo —, que introduzem uma diferenga substancial a respeito, por exemplo, do romance, modelo canénico de prepara- 40 para a vida e de educagao sentimental. Assim, a imediaticidade do “vivido” se traduz numa voz que testemunha algo que sé ela co- nhece.*? E essa voz que conta ao outorgar sentido a histéria pesso- al, mesmo com acentos modulados por um outro eu, como assinala Bakhtin, no caso da biografia; nao importa tanto se se trata de uma justificagao, de uma confissao-prestagao de contas, da busca de amor ou de posteridade ou da autobiografia como um “obitudrio por si préprio”, como diria Michel de Certeau (1975), que tenta colonizar — € canonizar — 0 espago mesmo adiantando-se a vozes futuras. O prestigio dessa posigao enunciativa — que, bakhtiniana- mente, fende a uma resposta — enquanto ancoragem numa realidade mesmo incerta € 0 que continua vigente hoje, e talvez mais do que nunca, apesar da caducidade do “modelo Rousseau” — sua retérica inflamada, seu excesso de subjetivismo — e da evidéncia, j4 em nosso século, da impossibilidade constitutiva de toda réplica “fiel” de um cursus vitae. Efetivamente, nem o descentramento do sujeito opera- do pela psicandlise, nem as distingdes introduzidas pela teoria lite- rdria — a nao identificagao entre autor e narrador; os procedimentos de ficcionalizagao compartilhados, por exemplo, com 0 romance; 0 triunfo da verossimilhanga sobre a veracidade etc. -, nem a perda de ingenuidade do leitor/receptor “modelo”, treinado j4 na complexi- dade midiatica e no simulacro (Baudrillard, [1978] 1984), levaram, no entanto, a uma equivaléncia entre os géneros autobiogréficos e os ® A voz, 0 “ato da fala” da autobiografia, pode ser identificada com essa “invete- rada tendéncia” na epistemologia ocidental de privilegiar 0 dizer como o que funda o conhecimento da realidade e de equiparar a palavra dita & experiéncia do “ser”, que Derrida critica como “metafisica da presenga”. © espago biogrifico: mapa doterritério 73 considerados de “ficcao”.“ A persisténcia aguda da crenga, esse algo @ mais, esse suplemento de sentido que se espera de toda inscrigio narrativa de uma “vida real”, remete a outro regime de verdade, a outro horizonte de expectativa. Seria possivel afirmar, entao, que efetivamente, e para além de todos os jogos de simulagao possiveis, esses géneros, cujas narrati- vas sao atribuidas a personagens realmente existentes, ndo sao iguais; que, inclusive, mesmo quando estiver em jogo uma certa “referen- cialidade”, enquanto adequagao aos acontecimentos de uma vida, nito é isso 0 que mais importa. Avangando uma hipstese, nao é tanto o “contetido” do relato por si mesmo ~ a colegao de acontecimentos, momentos, atitudes —, mas precisamente as estratégias — ficcionais — de autorrepresentagdo 0 que importa. Nao tanto a “verdade” do ocorrido, mas sua construgao narrativa, os modos de (se) nomear no relato, o vaivém da vivéncia ou da lembranga, o ponto do olhar, © que se deixa na sombra; em ultima instancia, que histéria (qual delas) alguém conta de si mesmo ou de outro eu. E é essa qualidade autorreflexiva, esse caminho da narracao, que serd, afinal de contas, significante. No caso das formas testemunhais, tratar-se-4, além dis- so, da verdade, da capacidade narrativa do “fazer crer”, das provas que o discurso consiga oferecer, nunca fora de suas estratégias de veridicio, de suas marcas enunciativas e retéricas.” “ No limiar incerto apresentado & critica pela distingao entre “ficcao” e “nao fic- ¢40” — muito mais clara nas politicas do mercado editorial -, a diferenga traga- da por certas formas biogréficas e autobiogréficas reveste um carter um tanto paradoxal: embora o relato de vida (em qualquer de seus usos) tenha uma forte persisténcia dos géneros primédrios, seu efeito de credibilidade entra em jogo através dos mesmos procedimentos retéricos que caracterizam os géneros de ficgao, sobretudo 0 romance. © Um ponto limite desse funcionamento narrativo, que evoca 0 carater indecidivel do tragico, é 0 relato dos sobreviventes do Holocausto. Em E isto um homem?, Primo Levi lembra uma cena terrivel, na qual, mal liberado de Auschwitz, se en- contra pela primeira vez na situacao de contar, diante de alguém bondosamente 74 Ocspago iogritico Sujeitos e subjetividades O conceito de valor biografico é 0 que permite pensar, dialo- gicamente, os processos de subjetivagao envolvidos nas formas nar- rativas dissimilares que enumeramos e estabelecer, agora sim, uma cadeia de equivaléncias entre elas. Porque, efetivamente, e para além de suas diversas énfases, em todas elas aparece, mesmo de modo con- tingente e esporddico, esse cronotopo da vida — talvez o mais remoto € universal — que, em sua tonalidade contemporanea, se investiu de “autenticidade”. Essa ubiquidade, essa insisténcia aqui e ali, faz com que nao possamos considerar nosso espago biogrdfico uma espécie de macrogénero, que albergaria simplesmente uma colecio de formas mais ou menos reguladas ¢ estabelecidas, mas antes um cendrio mé- vel de manifestacao — e de irrup¢ao — de motivos, talvez inesperados. Dito de outro modo, nao sé a autobiografia, a histéria de vida ou a entrevista biogrdfica, performadas tematica e compositivamente en- quanto tais, entrariam em nossa érbita de interesse, mas também os diversos momentos biogrdficos que surgem, mesmo inopinadamen- te, nas diversas narrativas, particularmente nas mididticas. Ali, nesse registro grafico ou audiovisual que tenta dar conta obstinadamente — cada vez mais “pela boca de seus protagonistas” — do “isso acon- teceu”, talvez seja onde se manifesta, com maior nitidez, a busca da plenitude da presenga — corpo, rosto, voz — como prote¢ao inequivo- ca da existéncia, da mitica singularidade do eu. E essa busca, essa protecio em tempos de incertezas, um dos fatores que impulsionam, segundo minha hipétese, o desdobramen- predisposto, ¢ descobre que seu relato, saido de algum lugar desconhecido de si mesmo, desprovido de toda entonagéo “humanista” — das acentuagGes afetivas que acompanham toda construgao de um discurso, em adequagao aos topoi do relato -, tropeca com um limite no outro, tanto de resisténcia quanto de credibi- lidade, A mesma vivencia é descoberta por Tzvetan Todorov em relatos de outros sobreviventes, na indagacéo que realizou em seu livto Face 4 extreme (1991). CO espago biogrifico: mapa do terrtério 75 to sem pausa do biografico. A sua dimensao classica como modo de acesso ao conhecimento de si ¢ dos outros — a vida como totalidade que iluminaria uma escrita, uma descoberta, uma atuac4o, uma per- sonalidade —, a esse apaixonante “para além” da mesa de trabalho do escritor, do gabinete do funciondrio, do camarim da estrela, que explicaria — ¢ faria compartilhar — uma rota sempre Unica, somam- se hoje outras “tecnologias da presenga”, que a globalizacao estende ao infinito. Efetivamente, a proeminéncia do vivencial se articula com a obsessao de certificagao, de testemunho, com a vertigem do “ao vivo”, do “tempo real”, da imagem transcorrendo sob (e para) a cAmera, o efeito “vida real”, 0 “verdadeiramente” ocorrido, expe- rimentado, padecido, suscetivel de ser atestado por protagonistas, testemunhas, informantes, cameras ou microfones, gravag6es, entre- vistas, paparazzi, desnudamentos, confissoes... Em seu ensaio sobre a autobiografia,“* Paul de Man adver- tia sobre a qualidade paradoxal desse “nao género” que se apresen- ta — ou é visto como — 0 mais ajustado a uma referencialidade, ao transcurso de uma vida segundo aconteceu, quando na realidade se trata de um resultado de escrita, de colocar em funcionamento um mecanismo retérico que engendra 0 modelo mais do que o replica — a vida como produto da narracao. Impossfvel de ajustar a valoragoes estéticas e histéricas, presa entre a autoindulgéncia e a trivialidade do cotidiano, a autobiografia est4 longe, para o autor, da dignidade dos grandes géneros. Mas essa rejeigao da insisténcia classificatéria ~— cujo exemplo emblematico é 0 empenho de Lejeune — se dé tam- bém em relacao a inutil contraposicao entre autobiografia e ficgao. Em desacordo igualmente com a ideia jurfdica de “pacto” que esse ultimo sustenta, que obrigaria o leitor a reconhecer uma autoridade transcendente do autor, De Man propée considerd-la antes uma fi- gura do entendimento ou da leitura, que pode ocorrer, até certo pon- % Referimo-nos a “Autobiography as de-facement” (1984, pp. 67-81), uma andli- se sobre Essays upon epitaphs, de Wordsworth. 76 — Oespaco biogrifico to, em todos os textos. O “momento autobiogréfico” resultar entio de “um alinhamento entre dois sujeitos envolvidos no proceso da lei- tura, no qual ambos se determinam mutuamente por uma substitui- Gao reflexiva” (1984, p. 68; os itdlicos sio meus). Estrutura especular que se torna explicita, se internaliza, quando o autor declara ser seu préprio objeto de conhecimento. Essa posi¢ao, cujo ponto limitrofe é evidentemente que toda escrita é autobiogrdfica, encontraria certo equivalente na possib lidade, que percebemos uma e outra vez em nossa indagagio, de plasmacao do “momento” autobiogréfico, apesar de 0 objeto do discurso ser outro — na entrevista midiatica, por exemplo, embora possa se tratar ali tanto de uma sintonia fortuita entre interlocu- tores como de uma virada retérica induzida pelo entrevistador -, afirmando a pertinéncia de priorizar, para nosso tema, 0 desloca- mento metonimico (formal, retérico) sobre a classificagdo taxoné- mica ou a suposta homogeneidade genérica. Assim, nossa atencio se dirigira para os procedimentos, para essa tropologia, reconhe- civel aqui ¢ ali, que insiste nas diversas formas de ficcionalizagio autobiogréfica. A andlise que De Man faz do poema de Wordsworth no ar- tigo citado traz consigo, além disso, uma conclusio perturbadora: se a autobiografia pretende restituir a vida, 0 ponto extremo de seu paradoxo é precisamente a privagdo, a des-figuragiio; a voz e 0 nome que ela tenta restaurar — a prosopopeia, como figura tipica da au- tobiografia — sé implicarao, em tiltima instancia, a restauragao da mortalidade.” Nora Catelli, em seu estudo sobre artigo de De Man, analisa 0 duplo deslo- camento da prosopopeia, que nao somente vai restituir um rosto, uma voz (na autobiografia), mas “dotar de um ex, mediante o relato, aquilo que previamente carece de um eu. O eu nao é assim um ponto de partida, mas 0 que resulta do relato da propria vida’; e, mais adiante, “no instante em que a narrasio comega (0 ‘momento autobiogrifico autorreflexivo’), aparecem dois sujeitos: um ocupa © lugar do informe, outro o lugar da mascara que os desfigura” (1991, p. 17). O espaco biogrifico: mapa doterritério 77 Se a morte “preside na casa da autobiografia”, escamoteando mais uma vez a completude da presenga, podemos sugerir que tam- bém a falta ronda na multiplicagao exacerbada do vivencial. Novo paradoxo, que nos remete 4 concep¢ao lacaniana do sujeito como “puro” antagonismo, auto-obstdculo, autobloqucio, limite interno que impede realizar sua identidade plena e em que 0 processo de sub- jetivacio, do qual as narrativas do eu sao parte essencial, seré apenas a tentativa, sempre renovada e fracassada, de “esquecer” esse trauma, esse vazio que o constitui. Se 0 sujeito s6 pode encontrar uma instan- cia “superadora” desse vazio em atos de identificagao, a identificagao imagindria com o outro e com a vida do outro é 0 ato mais “natural”, na medida em que replica as identificag6es primarias, parentais. E aqui, embora as vidas suscetiveis de identificagao se distribuam num universo indecidivel entre ficgao e nao ficcao, hé um suplemento de sentido nas vidas “reais”, esse que a literatura, 0 cinema, a televisao, a internet — o horizonte completo da midiatizag4o contemporanea — se empenham, incansavelmente, em apregoar. Pois bem, para onde se orienta essa busca? Quais sao as vidas objetos de desejo que se refletem na tela compensatéria da fantasia? Ha modelos (sociais) identificatérios que 0 espago biogrdfico tende- tia a desdobrar, fazendo disso talvez uma especialidade? Certamente, mas seria erréneo pensar que esses modelos, bem reconhectveis, talvez pouco plurais,** delineados com trago forte no horizonte mididtico, “No universo contemporaneo dos/das “modelos” sob 0 assédio da publicidade, em que os valores de juventude, beleza, magreza, glamour e sofisticagao se im- pdem, a pluralidade das imagens (de mulher, de homem, de familia, de juven- tude, de infincia, de lar, de posigéo no trabalho etc.) mal é analisada, reverte em singularidade ou escassez: hd quase uma “dupla” de mulher (mae/mulher fatal) com diferentes atavios, “um” tipo de familia nuclear e de casal, “um” imagindrio de relagéo amorosa “feliz” etc. Pelo contrétio, no campo cultural, tomado em seu conjunto, h4 uma proliferagio de modelos cujas diferengas so considerd- veis em grande medida como produto da crescente afirmagao identitéria das minorias (sexuais, étnicas, de género, religiosas etc.), consolidadas na teoria,

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