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ara Castoriadis, o homem é criação propici-
ada por uma formação exagerada da facul-
dade da imaginação: “o que faz a essência
do homem, precisamente, é a imaginação criado-
Revista SymposiuM
ra.”1 Ora, para que a espécie humana pudesse so-
breviver, a psique precisou ser socializada e dar
ASPECTOS DA sentido a um mundo sem-sentido natural-biológi-
co. Ao criar as significações, institui-se a socieda-
CRIAÇÃO NO de que, portanto, é a origem de si mesma. Não se
O social-histórico, portanto, é criação de uma quem decidiria acerca das decisões ontológicas5?
vez por todas, uma vez que é irredutível ao natu- Um começo absoluto, houve. Não se poder
ral-biológico. Contudo, não é para sempre o mes- conhecê-lo é uma decisão ontológica que cairia na
mo, e sim a cada vez e para cada sociedade - cria- crítica de Castoriadis à própria religião: uma deci-
ção contínua. A idéia de criação para Castoriadis são ontológica particular que se pretende univer-
implica a emergência de um nível ontológico que sal.
se pressupõe a si mesmo e traz consigo as condi- Aliás, parece ser esse o grande problema da
ções próprias de existir. A criação, portanto, é cir- autonomia. Castoriadis afirma que ela é uma sig-
cular. Segundo o autor, a instituição pressupõe a nificação imaginária ocidental - por mais que a ci-
instituição: “este círculo primitivo é o círculo da vilização ocidental anseie a universalidade, ela é
criação.”3 particular -, nascida e desenvolvida no Ocidente.
De modo análogo, o vivente pressupõe o vi- Daí poder-se-ia questionar qual a validade univer-
vente (só há o vivo se existirem vivos) e a institui- sal desse projeto de autonomia, sendo ele em sua
ção pressupõe a instituição (os indivíduos produ- origem uma significação e uma instituição social-
zidos por ela a fazem existir). A origem, propria- histórica-greco-ocidental. Por que abraçaríamos a
mente dita, aparece como impossível de se descre- causa da autonomia, senão porque se trata de uma
ver em si mesma, pois a criação é circular e só é, se possibilidade e uma realidade para nós ocidentais
torna e se deixa conhecer a partir de si mesma. Ora, e afins? E como torná-la uma criação possível para
o social-histórico é autocriação, origem de si mes- os outros povos que, ao entrarem em contato com
mo, logo, afirma-se o círculo da criação. o Ocidente, têm selecionado as influências, privi-
Assim, a questão da origem, das determina- legiando a racionalidade técnica e o capitalismo
ções últimas da significação não tem nenhum sen- em lugar da razão filosófica que promoveria o
tido. Segundo Fabio Ciaramelli, Castoriadis teria questionamento e retomaria, enquanto interroga-
chegado a uma aporia no que se refere à criação ex ção ilimitada e radical, o projeto de autonomia?
nihilo e ao círculo da criação. Assim, ele considera Castoriadis não nos apresenta respostas para
que “aparece a aporia última do círculo da criação, essas questões. No entanto ele propõe a re-insti-
a impensabilidade de um começo absoluto. No que tuição social-histórica da autonomia enquanto pos-
diz respeito ao social-histórico, dizer que ele é sibilidade. Para isso, ele discute a noção de cria-
autocriação a partir de nada significa antes de tudo ção.
sustentar que a sociedade está na origem dela mes- Como vimos, criação é noção chave na filo-
ma e simultaneamente que esta origem lhe esca- sofia de Castoriadis. Trata-se da criação ontológica
pa.”4 de novas formas, de novos eidé. O autor usa o ter-
Apesar disso, não nos escapa que a socieda- mo platônico (eidos), mas, para ele, a criação do
de teve um começo, embora não se possa Timeu é uma pseudocriação ou mera produção
determiná-lo. Mesmo a criação de Castoriadis nos ou construção. É que Criação, segundo ele, só é
mostra haver a possibilidade do novo, de um novo autêntica se for ex nihilo.6
ser, que se iniciaria a partir dela. A questão criticada O Demiurgo do Timeu é um artesão que
por Castoriadis é a da possibilidade ou não de se contempla um modelo, um paradigma eterno, e
conhecer o começo absoluto. Isso, segundo ele, ca- produz, “cria” um mundo conforme o que vira. O
receria de sentido. Na verdade, isso se mostraria modelo que ele utiliza não é de sua criação, posto
“vazio de conteúdo”, pois o autor afirma o círculo que é eterno. As formas inteligíveis existem inde-
da criação. pendentes da existência do Demiurgo. A “criação”
O saber sobre o começo absoluto é, desse (demiúrgica) de Platão é uma arte (techné) mimética,
modo, impensável, o que, entretanto, a nosso ver, e não propriamente poiésis. A atividade mimética
não invalidaria a busca por conhecê-lo. Afinal, (pode ser aqui traduzida por imitação) tem como
produto uma entidade cujo estatuto ontológico é contrário, ele é impensável, inefável,
menor do que o de seu modelo. O demiurgo, as- impronunciável e inexprimível?”9 O domínio do
sim, não cria novas formas, novos eidé, mas cópias racional na filosofia platônica o impede de consi-
desses eidé, dessas formas. A “criação”, pois, se derar o Caos, o Abismo, o Sem-Fundo do modo de
mostra pré-determinada.7 Castoriadis, como Ser, ou seja, o não-ser é um ser
Desse modo, o estatuto ontológico da arte menos, e isso porque o que pesa na ontologia tra-
para Platão é ainda mais inferior, porque se trata dicional é o que Castoriadis chama de
da cópia da cópia. Platão preferiria um artesão que hipercategoria da determinidade.10
produz uma mesa a um pintor que a “copia”. Há passagens em que o não-ser é tratado
O artesão, contudo, só é um criador ao dar embora com bem menos freqüência do que o ser.
forma à madeira informe. Enquanto o ser (eidos) Como todos os grandes pensadores a que
da madeira é sua forma (é ser madeira), criar uma Castoriadis se refere, Platão intuiu a força do não-
mesa é criar sua forma (seu eidos) a partir do nada - ser e da poiésis: “Sabes que a ‘poesia’ é algo de
provavelmente a primeira mesa. Na arte, ficaria múltiplo; pois toda causa de qualquer coisa passar
mais fácil de visualizar, por exemplo, ao se criar do não-ser ao ser é ‘poesia’, de modo que as confec-
uma escultura. Se se trata de um eidos já dado, imi- ções de todas as artes são ‘poesias’, e todos os seus
tamos, produzimos, copiamos, mas não criamos. artesãos poetas.”11 Pode-se perceber, nesse trecho
A criação está em “produzir” um novo eidos.8 Daí do Banquete, a presença do Abismo, que, na mai-
que mesmo a produção pressupõe a criação, ou o or parte da filosofia de Platão, teria sido ocultada
artesão cria um eidos, ou ele imita um eidos criado pelo predomínio da racionalidade (o mundo inteli-
por outro artesão. Portanto, para Castoriadis, a cri- gível). Contudo, mesmo a arte criadora, a poiésis,
ação implica a possibilidade de fazer ser o que não foi definida por Platão e posteriormente por
estava dado e que não poderia ser como conseqü- Aristóteles a partir da mímesis. Aristóteles herda a
ência do que já estava dado. noção de mímesis de Platão, porém dá ao termo uma
Criar é um processo contínuo alimentado de utilização diferente, recria a significação do termo
si mesmo. O que cria (instituinte) e o que é criado - usa-o da forma como o concebe - recriação.
(instituído) opõem-se, mas buscam uma união, ain- Retomando a idéia de poiésis, esse termo, em
da que tensa. O instituído participa sempre do sentido etimológico e abrangente, quer dizer “fa-
instituinte até o último vir a substituir o primeiro, zer, confeccionar, produzir”. Em sentido estrito,
criando uma nova forma, outra vez, agora, institu- “a arte do poeta”, não há produção de coisas reais,
ída, que estará ameaçada por outra forma e sim representações (imitações) de coisas ou ações
instituinte. Isso porque só se pode entender o so- reais. Não se trata simplesmente de cópia, mas de
cial-histórico como auto-alteração, resultando daí uma representação. Se, para Platão, a imitação está
um processo que está sempre recriando o impulso cada vez mais afastada da verdade, em Aristóteles
que o criou. ela adquire um caráter mais especial, pois, para ele,
Castoriadis afirma que toda criação tradici- “o imitar é congênito no homem (e nisso difere
onal não é verdadeiramente criação, nem a das “te- dos outros viventes, pois, de todos, é ele o mais
ologias racionais”, nem tampouco a platônica. Ora, imitador, e, por imitação, aprende as primeiras no-
a criação do Timeu tinha de ser mesmo a partir de ções)”.12
modelos pré-existentes, pois a filosofia de Platão Para Aristóteles, contudo, a mímesis, em sua
não admitiria o não-ser por ele não ser Poética, não é mera imitação, é antes recriação,
racionalizável, como, nessa passagem do Sofista, pois o artista (da tragédia) não deve imitar os ho-
diz-nos Platão: “Compreendes então que não se mens tal como eles são e, sim, como deveriam ser,
poderia, legitimamente, nem pronunciar, nem di- “imitando”, assim, um “modelo” inexistente. O
zer, nem pensar o não-ser em si mesmo; que, ao poeta é, pois, autor de coisas verossímeis e possí-
também aquilo que nosso autor vai chamar de ima- pre, então “sempre há fantasia, nós imaginamos sem-
ginação primeira. Segundo Castoriadis, esta não se pre”23, conclui Castoriadis. A fantasia possibilita o
desenvolve nem na filosofia de Aristóteles, nem pensamento, porque o que está na alma não é a
na história da filosofia subseqüente. A imaginação pedra, mas sua forma (forma no sentido mais am-
segunda tem o papel na história da filosofia de en- plo, excetuando a matéria, pode ser eidos, essência,
cobrir a imaginação primeira. Somente com Kant, a aparência...). A forma é, pois, pensada na fantasia,
questão da imaginação seria recolocada, ainda que de modo que a imaginação é abstração do e no
seu estatuto ontológico se ativesse à arte. Por con- sensível possibilitando o inteligível. Desse modo,
seguinte, esse redescobrimento não é suficiente, e Castoriadis afirma: “A phantasia, assim, é condição
ela será novamente encoberta, ora privilegiando a do pensamento, posto que apenas ela pode apre-
memória, ora colocando-a entre a sensação e a sentar ao pensamento o objeto, como sensível sem
intelecção, ressaltando seu caráter reprodutivo e matéria.”24
considerando sua atividade enganosa ou ilusória.17 A matéria, para Aristóteles, é, em si mesma,
Essa concepção, que diminui as possibilidades da incognoscível. Daí o papel da imaginação, que apa-
imaginação criadora, tem como base a imaginação rece como sensível sem matéria e sempre presente
segunda de que Aristóteles trata no terceiro capítu- quando há pensamento. A alma pensa pela e na
lo do tratado De Anima. Ele dá a entender que o imaginação. O pensamento, afirma Castoriadis, é
assunto se encerra: “Quanto à imaginação, o que “contemplação (théorein) de uma fantasia”.25 Não
ela é e para que existe, o que já foi dito deve bas- se poderia, pois, a partir daí, conhecer os primei-
tar.”18 Mas, ele encerra apenas sua fala sobre a ima- ros noemas uma vez que a fantasia está sempre
ginação segunda, que é mera apreensão de imagens presente no pensamento, e o pensamento é con-
do sensível, totalmente dependente da sensação. templação da fantasia. Os noemas (conceitos) não
Aristóteles retoma inesperadamente o assunto da são simplesmente fantasia, mas não poderiam existir
imaginação. Castoriadis nota, então, um acento sem ela. Aristóteles coloca isso em forma de per-
diferente dedicado à imaginação nos capítulos 7 e gunta: “Mas, nesse caso, o que diferenciará os pri-
8 do De Anima (“O Entendimento Especulativo meiros noemas das fantasias [fazendo com que eles
e o Prático” e “Comparação do entendimento com não sejam elas]? Ou então [será preciso dizer que]
os sentidos e a imaginação”). Quando Aristóteles eles não são fantasias, embora não subsistam sem
trabalha a questão do sensível e do inteligível e fantasias.”26
lhes dá estatuto ontológico, Castoriadis constata A questão da origem aparece novamente,
uma aporia. Ora, para Aristóteles, a fantasia não é porém, para Castoriadis, como vimos, ela teria
sensível: “as imagens são representações sensíveis, pouca importância. O que importa, para ele, é a
mas sem matéria”19; nem inteligível: “a imagina- emergência da imaginação radical no indefinível,
ção se distingue da afirmação e da negação: pois a uma vez que, sendo os noemas decomponíveis por
verdade é uma composição de idéias intelectuais outros noemas até não se poder mais decompô-
[noemas]”20. Aristóteles não concede à imaginação los, isto é, até chegar-se ao noema elementar, os
um estatuto ontológico, “porque os seres se divi- noemas primitivos ou elementares são
dem em sensíveis e inteligíveis”21. A aporia está inanalisáveis.
em que a imaginação participa dos dois domínios A imaginação concebida por Aristóteles tem
(o sensível e o inteligível), mas não é nem Um nem um papel e uma função bastante amplos à medida
Outro, é um Terceiro, não considerado que possibilita à alma conhecer. Mas, Kant, ao
ontologicamente. “descobrir” a imaginação, fê-lo de forma mais pre-
A irrupção da imaginação primeira surge no pen- cisa. Contudo nenhum dos dois teria reconhecido
samento de Aristóteles quando ele afirma: “a alma a imaginação como fonte de criação. E isso por-
jamais pensa sem fantasia”22. Se nós pensamos sem- que a imaginação teria sido colocada, unicamente,
em relação ao sujeito, seja num horizonte psico-lógi- levado em consideração. O Outro é também um
co, seja num horizonte ego-lógico. Para Castoriadis, sujeito que reflete (não difere apenas numericamen-
“um reconhecimento pleno da imaginação radical te, mas substantivamente, observa Castoriadis) e
só é possível quando é acompanhado da descober- pode-se entender com Outros sobre questões de
ta da outra dimensão do imaginário radical, o ima- Beleza.29
ginário social-histórico, a sociedade instituinte en- O Belo é objeto de satisfação sem nenhum
quanto fonte de criação ontológica que se desdo- interesse, portanto presume-se que o objeto seja
bra como história.”27 Belo para todos. Kant afirma: “Belo é aquilo que,
A segunda irrupção da imaginação primeira sem conceito, apraz universalmente.”30 O Belo não
se dá, pois, com Kant. E, embora ele não ligue a exprime conceito, mas precisa do assentimento ge-
imaginação à criação, ela emerge de maneira forte, ral. Assim, aquele que julga fala da Beleza como
segundo nosso autor. Assim, Castoriadis conside- se fora propriedade das coisas e, como diz Kant,
ra que Kant, ao conceder um caráter ontológico, “não conta com a concordância de outros em seu
ainda que vago, à arte, ultrapassa a tradição e a juízo da satisfação, porque eventualmente os hou-
ontologia clássicas, pois entende a grande obra de vesse encontrado muitas vezes em concordância
arte como aquela que instaura novas regras à arte - com o seu, mas a exige deles. Censura-os, se julgam
ou novas determinações, como diria Castoriadis. de outro modo, e nega-lhes o gosto, do qual, no
Para ele, a terceira Crítica “descreve, sem o saber, entanto, exige que eles o tenham; e nessa medida
o círculo primitivo da criação social-histórica.”28 não se pode dizer: cada qual tem seu gosto parti-
Na Introdução à Crítica do Juízo, Kant con- cular.”31
sidera o Juízo e suas faculdades de refletir e deter- As regras do gosto são gerais, e não univer-
minar. No primeiro caso, trata-se do juízo sais. O gosto-de-sentidos (sabor, por exemplo) não
reflexionante; no segundo, do determinante. No vale universalmente e se aceita mais facilmente a
juízo determinante, o universal (a regra) já está diferença entre os gostos. Já os juízos de reflexão
dado. No juízo reflexionante - também chamado se pretendem comumente válidos; trata-se, pois,
de faculdade-de-julgamento - deve-se encontrar o de uma validade subjetiva. Ora, afirma Kant: “o
universal partindo do particular, por meio da refle- juízo universalmente válido objetivamente é também
xão. O último pode ser teleológico quando é um sempre subjetivo, isto é, se o juízo vale para tudo
juízo de conhecimento sobre a finalidade objetiva o que está contido sob um conceito dado, vale tam-
da natureza; não é, contudo, um conceito, porque bém para todo aquele que se representa um objeto
nada atribui, mas permite conhecer o objeto (a na- por esse conceito. Mas de uma validade universal sub-
tureza) ao refletir. O fim não está no objeto (a fi- jetiva, isto é, da estética, que não repousa sobre ne-
nalidade “da” natureza), porém exclusivamente no nhum conceito, não se pode inferir a lógica; por-
sujeito, em sua capacidade de refletir. que aquela espécie de juízos absolutamente não
O juízo reflexionante estético não traz co- visa ao objeto. Mas, justamente por isso, também
nhecimento acerca do objeto e requer uma valida- a universalidade estética que é atribuída a um juízo
de universal subjetiva, baseada no prazer ou tem de ser de espécie particular, porque o predicado
desprazer. Assim, em vez de dizer “acho isso belo”, da beleza não se liga com o conceito do objeto, em
diz-se “isso é belo”, reivindicando o conteúdo uni- sua esfera lógica inteira, e no entanto ele mesmo
versal de um julgamento particular. O juízo estéti- se estende sobre a esfera inteira daqueles que jul-
co se dá pela reação pessoal do sujeito diante do gam.”32
objeto, e não por causa das propriedades deste. O juízo-de-gosto não exige que todos con-
Ademais, nele reside a idéia de que subjetivamen- cordem, entretanto atribui a todos essa concordân-
te seu julgamento é universal, ou seja, não existe cia. Sobre essa comunicabilidade universal subje-
“gosto puro” e o gosto do Outro também pode ser tiva, que não se pode pressupor em um conceito,
Kant afirma que “não pode ser outra coisa que o Contudo Castoriadis vê a criação na terceira
estado-da-mente no livre jogo da imaginação e do Crítica, em particular, na obra do gênio.40 Ela não
entendimento.”33 é mais uma obra entre tantas, não difere apenas
A possibilidade de generalização do gosto numericamente; ela é essencialmente Outra, por-
ocorre no que Kant chama de “educação do gos- que estabelece regras, é, por conseguinte, um novo
to”, à qual Castoriadis levanta alguns problemas. eidos, marcando a irrupção do novo. A obra-prima,
Primeiro: a educação do gosto só é possível se a segundo Castoriadis, é apresentação do Abismo,
beleza já existir. Se existe a beleza, quem educaria do Caos, do Sem Fundo, dessa maneira, “a
os educadores? A beleza, então, estaria determi- inesgotabilidade da arte se enraíza no caráter
nada? A partir de quê? Segundo problema: se a ontológico do Abismo, bem como no fato de que
educação do gosto fosse eficaz, chegar-se-ia “à cada cultura (e cada gênio individual) cria sua pró-
imposição de um ‘gosto’ surgido em uma cultura pria rota para o Abismo”.41 Para Kant, entretanto,
particular.”34 a criação é excepcionalista: “só o gênio cria”, além
Ora, a beleza é histórica (é também uma cri- disso, a criação se restringe ao domínio da arte.
ação, uma significação) e, sabendo-se que há uma Segundo Castoriadis, enquanto o problema da ima-
multiplicidade de histórias, há também uma ginação for posto apenas em relação ao sujeito (ho-
multiplicidade de gostos. Nesse contexto, afirma rizonte psico-lógico ou ego-lógico), “a ‘imagina-
Castoriadis: “fomos educados - e continuamos a ção criadora’ permanecerá, filosoficamente, como
educar nossa progenitura - nas criações de nossa uma simples palavra, e o papel a ela atribuído es-
própria história, e através delas.”35 tará limitado aos domínios que parecem ser
Assim, percebe-se, novamente, segundo ontologicamente gratuitos (a arte).”42
Castoriadis, “o círculo primitivo, originário, da cri- Para Castoriadis, importa resgatar, na tercei-
ação: a criação pressupõe a criação”36: se primeiro criou- ra Crítica, as intuições referentes à criação e à co-
se e depois educou-se na criação, ou se é que hou- munidade humana, em particular, à
ve uma educação anterior que possibilitou a cria- comunicabilidade possível entre juízos subjetivos.
ção. Essa questão é indecidível, porque ambos os Ele reconhece, nessas intuições, limites comuns
momentos dizem algo a respeito do social-históri- aos do pensamento herdado. E, para reconhecer a
co instituído e não existem instrumentos que per- imaginação radical, é preciso dar lugar à outra di-
mitam conhecer efetivamente a origem da institui- mensão do imaginário radical, o imaginário social-
ção. Portanto a criação pressuporia a criação. Só histórico cuja criação ontológica se dá na história.
existe uma educação na e pela criação e, por seu A bem dizer, a imaginação na história do pensa-
turno, a criação só é possível mediante uma histó- mento herdado não tem podido aparecer como cri-
ria (possivelmente pela educação).37 Não veio uma, adora, mesmo em Kant cuja imaginação produtiva
depois a outra. Elas seriam simultâneas e se pres- ainda obedece às regras da imaginação
suporiam. A educação, através do tempo, torna-se transcendental. Assim, constata Mirtes Amorim,
a tradição de uma determinada sociedade. “para Castoriadis, a imaginação tanto em
Kant não usa propriamente o termo criação; Aristóteles como em Kant, por caminhos diferen-
prefere dizer que a imaginação é produtiva.38 As- tes, é colocada como produzindo o estável e o mes-
sim ele afirma sobre a imaginação, ao falar do juízo mo.”43
de gosto, que “ela não é admitida, em primeiro lu- Para Castoriadis, o problema da ontologia
gar, como reprodutiva, tal como é quando subme- clássica estaria na tentativa de uma compreensão
tida às leis de associação, mas como produtiva e total, configurando qualquer elucidação do social-
autônoma (como criadora de formas arbitrárias de histórico em um sistema. Ora, como vimos, há mais
intuições possíveis)”.39 do que aquilo que se pode determinar no corpo do
social-histórico. O ser do social-histórico não é
ação de uma sociedade autônoma dependem de ____________. Radical Imagination and the So-
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1992.
8
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primeiro falasse de imaginação criadora. Foi Filóstrato mínios do homem, p.401.
(séc. III aD) respondendo a uma pergunta sarcástica
se Fídias ou Praxíteles “haviam subido ao céu e tira- PLATÃO. Banquete. In: Diálogos. 205b-c, p.43.
11
to sábia e muito mais sutil do que a imitação, fabri- Eudoro de Souza. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
cou essas obras; pois a imitação só pode criar como (Col. Os Pensadores, vol.IV), p.445.
trabalho seu o que viu, ao passo que a imaginação
chega até ao que não viu; tomando-o como padrão FRANÇA, F. Criação e Dialética, p. 230.
13
Ibidem, p.235.
21
Ibidem, p.281.
36
Ibidem, p.342.
25 38
Assim Castoriadis considera em nota: “Ele fala
ARISTÓTELES apud CASTORIADIS, C. As
26
apenas uma vez em schöpferische Einbildungskraft, ou
Encruzilhadas do Labirinto 2: os domínios do imaginação criadora (§49). Sendo esta última ex-
homem, p. 341. pressão corrente no século dezoito, a insistência
de Kant em sempre qualificar a imaginação como
CASTORIADIS, C. As Encruzilhadas do La-
27
produtiva não poderia ser fortuita. O termo Schöpfung
birinto 2: os domínios do homem, p.371. (criação) é, evidentemente, muito utilizado a pro-
pósito da ‘criação do mundo’ por ‘Deus’ nos pará- manece oculto: tudo está desnudado, os próprios
grafos finais da terceira Crítica, por exemplo § 84, espectadores estão nus, sem pudor e sem vergo-
87 etc.” (Ibidem, p.284) nha. E é porque realizam essa apresentação do
Abismo que as obras de outrora e de alhures po-
KANT, I. Fragmentos da Crítica do Juízo. Ob-
39 dem falar a nós e nos despertar. Não é a ‘forma’
servação Geral à Primeira Parte da Analítica, p.332. enquanto tal que confere à obra de arte sua
‘intemporalidade’, mas a forma enquanto passa-
40
Castoriadis cita Kant: “… o gênio… consiste em gem e abertura para o Abismo.” (Diante da Guer-
produzir o de que não se poderia dar nenhuma re- ra, p.234)
gra determinada… a originalidade deve ser a sua
primeira propriedade… os seus produtos devem CASTORIADIS, C. As Encruzilhadas do La-
42
ser ao mesmo tempo modelos, isto é, exemplares… birinto 2: os domínios do homem, p.371.
devem servir de medida ou regra de julgamento
para os outros… não pode descrever a si mesmo AMORIM, M. Labirintos da Autonomia, p.187.
43