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Pareceres Jurídicos

Direito dos Povos e Comunidades


Tradicionais
Deborah Duprat, org.

Pareceres Jurídicos – Direito dos Povos


e das Comunidades Tradicionais

coleção d o cume nto s de bolso, n.º 2


ppgsca-ufam / Fundação Ford
Copyright © Deborah Duprat (org.), 2007

coordenação editorial e direção da coleção


Alfredo Wagner Berno de Almeida

capa e projeto gráfico


Rômulo Nascimento

revisão
Luciane Silva da Costa

Duprat, Deborah

Pareceres Jurídicos – Direito dos Povos e das


Comunidades Tradicionais. Deborah Duprat, org.
Manaus: uea, 2007.

183 p. (Documentos de bolso; n.º 2)

i. Identidade etnica 2. Direitos – povos e comunidades


tradicionais I. Título.

projeto nova carto grafia so cial da amazônia


(ppgsca-ufam / Fundação Ford / ppgda-uea)

Rua José Paranaguá, 200


Centro. Manaus – AM
CEP 69005-130

pncsa.ufam@yahoo.com.br
Sumário

9 o direito sob o marco da plurietnicidade/


multiculturalidade

21 A inconstitucionalidade do Decreto 3912,


de 10 de setembro de 2001
Marcelo Beckhausen

31 Breves considerações sobre o Decreto 3912/2001


Deborah Duprat

41 Parecer n.º agu/mc – 1/2006


Manoel Lauro Volkmer de Castilho

77 A garantia do direito à posse dos remanescentes


de quilombos antes da desapropriação
Daniel Sarmento

105 Quilombos na Perspectiva da Igualdade Étnico-Racial:


raízes, conceitos, perspectivas
Aurélio Virgílio Rios

143 Parecer contrario ao projeto de decreto legislativo


n.º 44, de 2007, de autoria do Deputado Federal
Valdir Colatto
Walter Claudius Rothenburg

157 anexo i - Parecer n.º agu/mc – 1/2006 [fac-simile]


Manoel Lauro Volkmer de Castilho

183 anexo ii - Despacho do Advogado-Geral da União


Álvaro Augusto Ribeiro da Costa
lista de siglas e abreviaturas

Art – Artigo
cf – Constituição Federal
cdb – Conveção sobre Diversidade Biológica
oit – Organização Internacional do Trabalho
onu – Organização das Nações Unidas
pnpct – Política Nacional de Desenvolvimento dos Povos
e Comunidades Tradicionais
snuc – Sistema Nacional de Unidades de Conservação
da Natureza
§ – Parágrafo
Unesco – Organização das Nações Unidas para Educação,
a Ciência e a Cultura
coleção
DOCUMENTOS DE BOLSO

Uma das atividades que tem exigido considerável esforço in-


telectual nos trabalhos de pesquisa concernentes ao Projeto
Nova Cartografia Social da Amazônia e aos dois outros pro-
jetos 1 que lhe são coextensivos, diz respeito às iniciativas
pedagógicas que visam discutir dispositivos jurídicos rela-
tivos aos direitos de povos e comunidades tradicionais. Elas
abrangem diferentes cursos, ministrados em até doze horas-
aula, para integrantes de associações, movimentos, sindica-
tos e demais entidades de representação referidas a uma ação
coletiva, mais ou menos formalizada e institucionalizada,
empreendida por agentes sociais que visam alcançar um
objetivo compartilhado em torno do uso comum de recursos
naturais imprescindíveis à sua reprodução física e social e em
torno de uma identidade coletiva construída consoante uma
pauta de reivindicações face ao Estado. Destaca-se nesta
pauta o reconhecimento de seus direitos territoriais.
O pncsa, a partir da discussão destas práticas de preten-
são didática, inicia a coleção denominada Documentos de
Bolso, que consiste numa atividade auxiliar aos mencionados
cursos de formação, visando suprir lacunas bibliográficas e
propiciar a um público amplo e difuso um acesso mais dire-
to a documentos jurídicos que reforçam os direitos de povos

1 Projeto Nova Cartografia Social dos Povos e Comunidades Tradicionais


do Brasil (ufam/f. ford/mma) e Projeto Processos de Territorialização,
Conflitos e Movimentos Sociais na Amazônia (fapeam-cnpq).

7
indígenas, quilombolas, ribeirinhos, quebradeiras de coco
babaçu, seringueiros, faxinalenses, comunidades de fundos
de pasto, pomeranos, ciganos, geraizeiros, vazanteiros, pia-
çabeiros, pescadores artesanais, pantaneiros, afro-religio-
sos e demais sujeitos sociais emergentes, cujas identidades
coletivas se fundamentam em direitos territoriais e numa
autoconsciência cultural.
O trabalho de direção da coleção ficou a cargo do Coorde-
nador do pncsa, o antropólogo Alfredo Wagner Berno de
Almeida. Em discussão com advogado, procuradora e an-
tropóloga, organizadores de cada volume, foram fixados os
critérios de seleção e agrupamento dos documentos. A res-
ponsabilidade principal da seleção, entrementes, ficou sob
a responsabilidade daqueles especialistas mencionados
diretamente referidos aos temas em questão, concernentes
respectivamente a direitos étnicos, culturais e territoriais.
Os gêneros dos documentos em jogo foram criteriosamente
considerados. No primeiro e no terceiro volume foram clas-
sificadas: convenções internacionais (oit, unesco, onu) e
protocolos adicionais, declarações aprovadas em assem-
bléia geral (onu, unesco) e respectivas portarias e decre-
tos ratificadores ou que orientam a sua implementação. No
segundo volume foram agrupados sobretudo pareceres
jurídicos de circulação restrita (mpf, agu, incra).

Apresentamos a seguir os dados básicos referentes aos três


primeiros volumes:

1. Direito dos Povos e das Comunidades Tradicionais


no Brasil – Joaquim Shiraishi Neto (org.)
2. Pareceres Jurídicos – Deborah Duprat (org.)
3. Direito dos trabalhadores migrantes
– Marcia Anita Sprandel (org.)

8
O Direito sob o marco
da plurietnicidade /
multiculturalidade

Já agora, passados quase vinte anos da promulgação da


Constituição de 1988, não se coloca mais em dúvida que
o Estado nacional é pluriétnico e multicultural, e que
todo o direito, em sua elaboração e aplicação, tem esse
marco como referência inafastável.
A princípio resultado de exercício hermenêutico, tal
compreensão, na atualidade, está reforçada por vários
documentos internacionais dos quais o Brasil é signatá-
rio, merecendo destaque a Convenção 169, da oit, a
Convenção sobre a Proteção e a Promoção da Diversida-
de das Expressões Culturais, ambas já integrantes do
ordenamento jurídico interno, e, mais recentemente, a
Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos
Povos Indígenas.
A noção central, comum a esse conjunto de atos nor-
mativos, é a de que, no seio da comunidade nacional, há
grupos portadores de identidades específicas e que cabe
ao direito assegurar-lhes o controle de suas próprias ins-
tituições e formas de vida e seu desenvolvimento econômi-
co, e manter e fortalecer suas entidades, línguas e religiões,
9
dentro do âmbito dos Estados onde moram 1. Assim, a defe-
sa da diversidade cultural passa a ser, para os Estados
nacionais, um imperativo ético, inseparável do respeito à
dignidade da pessoa humana 2.
Para que se possa dimensionar corretamente a mudan-
ça de perspectiva no campo jurídico, que será analisada
mais adiante, é preciso antes compreender que ela não é
mero resultado do ativismo de legisladores altruístas. A
antecedê-la, uma relação circular entre movimentos rein-
vindicatórios, elaboração teórica e alterações legislati-
vas, de início tímidos, que se vão reforçando mutuamen-
te, até se chegar ao ponto em que estamos.
Mas a que mudança estamos, de fato, nos referindo?
Qual era o modelo anterior e os pressupostos epistemo-
lógicos que o informavam? Para essa análise, é preciso
retornar à idéia de circularidade entre o político/filosó-
fico/jurídico. E os marcos a serem considerados serão o
Iluminismo e a Revolução Francesa.
Com Kant, inaugura-se a filosofia do sujeito, o sujeito
transcendental, que constitui esse mundo como o con-
junto dos objetos da experiência possível. A sua razão
opera através do conceito, subsumindo o real às suas pró-
prias categorias, que lhe são dadas aprioristicamente.
Assim, é inerente à dinâmica dessa razão a identidade,
que possibilita a unidade, as grandes sínteses homoge-
neizadoras.
Resulta do idealismo a indistinção entre alter e ego,
posto que, como bem observa Gadamer (1998), o outro é
experimentado como o outro de mim mesmo, abrangido
por minha pura autoconsciência. O saber absoluto, em

1 Convenção 169, da oit.


2 Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, artigo 4.

10
que a consciência constitui o objeto segundo suas cate-
gorias apriorísticas, importa, em ultima análise, em que
o outro apenas existe a partir do ego, ou seja, o outro é
antecipado e apreendido reflexivamente através de mim.
O racionalismo construtor kantiano inspira, ainda, o
Estado-nação. O conceito de nação é celebrado e reconfi-
gurado pela Revolução Francesa, cujos elementos funda-
mentais encontram-se na obra O que é o Terceiro Estado?,
de Sieyès, consubstanciados em uma identidade cultural
e integradora, fundada numa continuidade biológica de
relações de sangue, numa abrangência espacial de territó-
rio, e em comunidade lingüística (Hardt e Negri, 2001:113).
A solidificação do poder da soberania requereu e
engendrou, em larga medida, a naturalidade do concei-
to, ou seja, a identidade da nação e, mais ainda, a identi-
dade do povo, teria de parecer natural e originária (Hardt
e Negri, 2001:120), possibilitada por meio de um simbo-
lismo cultural de povo com caráter próprio, comuns pro-
cedência, história e linguagem (Habermas, 2000:88).
O Direito, nesse contexto, é entendido como uma qua-
lidade moral que compete à pessoa (qualitas moralis perso-
nae competens, segundo a conhecida definição de Grocio),
onde, portanto, o indivíduo ocupa o lugar primeiro e cen-
tral. Esse sujeito de direito, no cadinho de homogeneida-
de e de unidade que lhe é correlato, é um ser abstrato,
intercambiável, sem qualidades (Bourdieu, 2001:163).
E o tema da justiça passa a ser decidido com a doutri-
na das “esferas de liberdade” de cada indivíduo. Frases
como “minha liberdade termina onde começa a liberda-
de do outro” desenhavam apropriações territoriais sob o
signo da ubiqüidade. O termo ubiqüidade, na física, é
sinônimo de exclusão: dois corpos físicos não podem
ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo. Levado para o
11
campo do direito, estava a significar que todo homem
desloca aos demais homens de seu campo de ação (Car-
pintero, 1993:40). A propriedade privada é o arquétipo
dessa geografia de figuras geométricas, fronteiriças e
excludentes entre si.
Mas aquilo que um dia foi sólido acabou se desman-
chando no ar.
O conhecimento caracterizado pelo logocentrismo,
pela semelhança, pela adequação, pela unidade, bem
como os constructos teóricos por ele engendrados, são
colocados em questão inicialmente por Nietszche, que o
vê como desconhecimento, na medida em que, ao esque-
matizar, ao assimilar as coisas entre si, ignora as diferen-
ças, cumprindo seu papel sem nenhum fundamento na
verdade. Seguem-se Foucault, Heidegger, Adorno, Der-
rida, denunciando a colonização da diferença pelo sem-
pre-igual e pelo homogêneo e anunciando o reino do
fragmento contra a totalização, do descontínuo e do múl-
tiplo contra as grandes narrativas e as grandes sínteses.
Também vem à luz a falácia da idéia de nação como
entidade social originária. Observa Hobsbawm que,

a nação pertence exclusivamente a um período particu-


lar e historicamente recente. Ela é uma entidade social
apenas quando relacionada a uma certa forma de Esta-
do territorial moderno, o Estado-nação; e não faz senti-
do discutir nação e nacionalidade fora desta relação.
Além disso, com Gellner, eu enfatizaria o elemento do
artefato, da invenção e da engenharia social que entra
na formação das nações. ‘As nações, postas como modos
naturais ou divinos de classificar os homens, como des-
tino político ... inerente, são um mito; o nacionalismo,
que às vezes toma culturas preexistentes e as transfor-
12
ma em nações, algumas vezes as inventa e freqüente-
mente oblitera as culturas preexistentes: isto é uma rea-
lidade (1990:19).

E, além de, realisticamente, a nação não encerrar uma


homogeneidade, tratando-se de mera forma ideal, a iden-
tidade do povo foi construída num plano imaginário que
escondia e/ou eliminava diferenças (...) mediante a repre-
sentação de toda uma população por uma raça, uma classe
ou um grupo hegemônico (...), o que correspondeu, na prá-
tica, à subordinação racial e à purificação social (Hardt e
Negri, 2001⁄121).
Por fim, e não necessariamente nessa ordem, a insub-
missão à ordem estabelecida.
Compreendeu-se que o Direito não era cego à qualida-
de e às competências das pessoas. Ao contrário, operava
com classificações, com elementos binários, tais como:
homem/mulher; adulto/criança, idoso; branco/outras
etnias; proprietário/despossuído; são/doente. Ao pri-
meiro elemento dessas equações, imprimia um valor
positivo; ao segundo, negativo. A incapacidade relativa
da mulher e a tutela dos índios são alguns dos emblemas
desse modelo.
Assim, o sujeito de direito, aparentemente abstrato e
intercambiável, tinha, na verdade, cara: era masculino,
adulto, branco, proprietário e são.
Os vários movimentos reivindicatórios, a começar
pelo feminista, revelam a face hegemônica do Direito e
se põem em luta para alterá-lo.
O quadro atual, resultado de todo esse processo, é de
um Direito que, de um lado, abandona a visão atomista
do indivíduo e o reconhece como portador de identida-
des complexas e multifacetadas. De outro, recupera o
13
espaço comum onde são vividas as suas relações defini-
tórias mais importantes.
A Constituição de 1988, no que de perto nos interes-
sa, passa a falar não só em direitos coletivos, mas tam-
bém em espaços de pertencimento, em territórios, com
configuração em tudo distinta da propriedade privada.
Esta, de natureza individual, com o viés da apropriação
econômica. Aqueles, como locus étnico e cultural. O seu
artigo 216, ainda que não explicitamente, descreve-os
como espaços onde os diversos grupos formadores da
sociedade nacional têm modos próprios de expressão e
de criar, fazer e viver (incisos i e ii).
É interessante observar, nesse ponto, a identidade
entre a formulação constitucional e a de Wittgenstein.
Este defende que o significado de uma palavra decorre
do uso de que dela se faz e que os jogos de linguagem e as
formas de vida são extremamente variados. Daí por que
a linguagem é convencional e diferente nas distintas cul-
turas. Diz ele:

na linguagem os homens estão de acordo. Não é um acor-


do sobre as opiniões, mas sobre o modo de vida. Para
uma compreensão por meio da linguagem, é preciso não
apenas um acordo sobre as definições, mas (por estra-
nho que pareça) um acordo sobre os juízos (1989:94, §§
241⁄242).

No mesmo sentido, a Declaração Universal sobre a Diver-


sidade Cultural faz constar, em seu preâmbulo, que a cul-
tura deve ser considerada como o conjunto dos traços dis-
tintivos espirituais e materiais, intelectuais e afetivos que
caracterizam uma sociedade ou um grupo social e que
abrange, além das artes e das letras, os modos de vida, as
14
maneiras de viver juntos, os sistemas de valores, as tradi-
ções e as crenças; a cultura se encontra no centro dos deba-
tes contemporâneos sobre a identidade, a coesão social e o
desenvolvimento de uma cultura fundada no saber.
A Constituição brasileira, na linha do direito interna-
cional, rompe a presunção positivista de um mundo
preexistente e fixo, assumindo que fazer, criar e viver
dão-se de forma diferente em cada cultura, e que a com-
preensão de mundo depende da linguagem do grupo.
Nesse cenário, a Constituição reconhece expressa-
mente direitos específicos a índios e quilombolas, em
especial seus territórios. Mas não só a eles. Também são
destinatários de direitos específicos os demais grupos
que tenham formas próprias de expressão e de viver,
criar e fazer.
Inspirado nessa compreensão, vem o Decreto 6.040,
de 7 de fevereiro de 2007, a instituir a política nacional
de desenvolvimento sustentável dos povos e comunida-
des tradicionais. É emblemática a composição da Comis-
são Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos
e Comunidades Tradicionais: seringueiros, fundos de
pasto, quilombolas, faxinais, pescadores, ciganos, que-
bradeiras de babaçu, pomeranos, índios e caiçaras, den-
tre outros.
Aliás, antes mesmo dele, a Convenção 169, da oit,
apresenta um rol de direitos específicos a todos os gru-
pos cujas condições sociais, econômicas e culturais os dis-
tingu[em] de outros setores da coletividade nacional.
À vista dos novos paradigmas constitucionais, apre-
sentam-se, contudo, alguns desafios.
O primeiro deles diz com a aplicação do direito infra-
constitucional a esses grupos e seus indivíduos.

15
É fato que o direito preexistente à Constituição de
1988 não os contemplou; ao contrário, sequer se apre-
sentavam como sujeitos em face dele.
Todavia, o direito internacional e várias convenções
já incorporadas ao nosso ordenamento jurídicos assegu-
ram aos membros desses povos o gozo dos direitos que a
legislação nacional outorga aos demais membros da
população.
Aplicar esse direito, tout court, sem levar em conta as
suas especificidades, seria perpetuar o quadro de exclu-
são e lançar por terra as conquistas constitucionais.
De outro giro, colocá-los à margem do direito à espe-
ra da elaboração de leis que os contemplem especifica-
mente é um desatino.
Não é demais lembrar que direitos culturais e étnicos,
porque indissociáveis do princípio da dignidade da pes-
soa humana, têm o status de direito fundamental. São,
portanto, de aplicação imediata.
Assim, é preciso que se considere que (1) todo esse
acervo jurídico existente pode e deve ser mobilizado para
assegurar o exercício pleno e imediato de direitos étnicos
e culturais; (2) há que se eleger o instrumento de mais
ampla e rápida eficácia e adaptá-lo às especificidades des-
ses direitos; e (3) a aplicação do direito nacional, em
demandas que envolvam esses grupos e/ou seus mem-
bros, requer leitura que leve em conta as suas diferenças.
Por ora, nenhuma grande novidade. Sabe-se que, com
o advento de um novo texto constitucional, não se revo-
ga, até porque tal empreitada seria absurda, todo o direi-
to preexistente. Apenas aquelas normas claramente em
desconformidade com a nova Constituição são tidas por
revogadas. As demais seguem em vigor, com a cautela de
a ela se adequarem por ocasião de sua aplicação.
16
E é exatamente na aplicação do direito preexistente
que reside o segundo e grande desafio.
Os chamados operadores do direito aprendem, em seus
cursos universitários, que Savigny distinguiu entre a
interpretação gramatical, lógica, histórica e sistemática.
Essa classificação dos critérios interpretativos, aos quais
se agregou posteriormente o teleológico, teve tal êxito que
chegou a ser patrimônio comum de nossa cultura jurídica.
É chegada a hora, contudo, principalmente em função
do pluralismo que a Constituição preconiza, de estabele-
cer uma relação com a norma que não seja de mera inter-
pretação, no sentido da reflexividade, da onipotência do
pensamento que retorna sobre si.
A interpretação, nessa acepção, é a realização mais aca-
bada da visão escolástica: a de um espectador dotado de
determinada competência que assiste ao espetáculo que
se lhe apresenta e, a partir de seu ponto-de-vista, captu-
ra o que lhe parece essencial e o coloca sob a moldura da
norma, por ele também pré-compreendida.
O espetáculo tem a sua definição estabelecida por uma
terceira pessoa, e com isso perde a normatividade que
lhe é própria. Assume a visão que o intérprete a ele con-
fere, faz-se objeto.
No entanto, o que dizer da lição de Wittgenstein, se-
gundo a qual as normas, vistas separadamente das ativida-
des práticas dos seres humanos, são meros itens mentais
ou lingüísticos? Como, então, apreender o sentido da nor-
ma deslocada de seu contexto de uso? Como, num siste-
ma constitucional que assegura o pluralismo, transformar
os agentes e suas práticas em objeto a ser interpretado?
É preciso, portanto, em primeiro lugar, desfazer a
noção de que o intérprete, por uma dada competência,
está habilitado a decifrar, por si só, a norma em abstrato.
17
Não há esse ato de deciframento prévio. Norma e prá-
tica se interpelam o tempo todo, e aquela só tem sentido
à vista desta.
Depois, é preciso, por mandamento constitucional, re-
conhecer ao grupo e aos seus membros a sua liberdade
expressiva. Há, aqui, um deslocamento da terceira para a
primeira pessoa. São eles que apresentam o ambiente no
qual se faz uso da norma e a atenção que a ela conferem.
Só então, compreendido o contexto de uso revelado
pelos próprios agentes e, a partir daí, o sentido da nor-
ma, será possível, ao aplicador do direito, decidir ade-
quadamente.
Alguns exemplos talvez dêem maior clareza ao que
foi dito.
São muito comuns, na atualidade, ações possessórias
contra índios e quilombolas. É preciso que o julgador
tenha em mente que o centro do debate está na própria
definição de posse e que as partes contrapostas perten-
cem a comunidades lingüisticas distintas.
Para os guaranis, por exemplo, o tekoha é uma insti-
tuição divina criada por Ñande Ru. Deles desalojados
com a chegada do homem branco, procuram ali perma-
necer, inclusive trabalhando para este nos ervais e em
roças. Consideram-se, dessa forma, de posse de seu ter-
ritório tradicional.
Fala-se que alguns grupos indígenas praticam infan-
ticídio, dentre eles os yanomami. Mais uma vez, a ques-
tão nuclear é a definição de vida.
A mulher yanomami, quando sente que é chegada a
hora do parto, vai sozinho para local ermo na floresta,
fica de cócoras, e a criança cai ao chão. Nessa hora, ela
decide se a pega ao colo ou se a deixa ali. Se a coloca nos
braços, dá-se, nesse momento, o nascimento. Se a aban-
18
dona, não houve, na concepção do grupo, infanticídio,
pela singela razão de que a vida não se iniciou.
São visões que, goste-se ou não, não podem ser des-
cartadas, sob pena de, em afronta à Constituição e a
outros tantos documentos internacionais, se negar qual-
quer valor às asserções de verdade do outro.

BIBLIOGRAFIA

bourdieu , p. Meditações pascalianas, Rio de Janeiro: Bertrand


Brasil, 2001.
carpintero, f. Derecho y ontología jurídica, Madrid: Actas, 1993.
gadamer , h.g. El giro hermenéutico, Madrid: Cátedra, 1998.
habermas , j. La lógica de las ciencias sociales, Madrid : Tec-
nos, 1996.
hardt , m. & Negri. Império, Record, 2001.
hobsbawn , e. Nations and Nationalism since 1780, Cambridge:
Univ. Press, 1990.
wittgenstein , l. Investigationes filosóficas, México: unam,
1988.

Deborah Duprat
Subprocuradora-Geral da República
Coordenadora da 6.ª Câmara de Coordenação e
Revisão do Ministério Público Federal

19
A inconstitucionalidade
do Decreto 3912,
de 10 de setembro
de 2001

Dispõe o artigo 1.º do Decreto 3912:

Art. 1.º Compete à Fundação Cultural Palmares – FCP


iniciar, dar seguimento e concluir o processo adminis-
trativo de identificação dos remanescentes das comuni-
dades dos quilombos, bem como de reconhecimento, deli-
mitação, demarcação, titulação e registro imobiliário
das terras por eles ocupadas.
Parágrafo único. Para efeito do disposto no caput, somen-
te pode ser reconhecida a propriedade sobre terras que:
I – eram ocupadas por quilombos em 1888; e
II – estavam ocupadas por remanescentes das comuni-
dades dos quilombos em 5 de outubro de 1988.

Este breve trabalho se dedica a analisar o Decreto 3912,


de 10 de setembro de 2001, cujo objeto era regulamen-
tar as disposições relativas ao processo administrativo
para identificação dos remanescentes das comunidades
dos quilombos e para o reconhecimento, a delimitação,
21
a demarcação, a titulação e o registro imobiliário das ter-
ras por eles ocupadas. Tal Decreto foi revogado posterior-
mente pelo Decreto 4887, de 20 de novembro de 20033.
O artigo 1.º deve ser analisado em conjunto com o que
está disciplinado na Constituição, especialmente no arti-
go 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitó-
rias. Neste existe uma referência direta com o reconhe-
cimento da propriedade vinculado as comunidades de
quilombos “que estejam ocupando suas terras”.
Antes de mais nada devemos enfrentar a questão da
expressão “estejam ocupando” para depois adentrarmos
no exame das propostas existentes no Decreto, se estão
alinhadas ou não com o texto constitucional. Pois bem. A
expressão “estejam ocupando” demonstram uma preo-
cupação do legislador com uma apropriação contínua pela
comunidade de determinada área. Em um primeiro mo-
mento somos tentados a estabelecer a seguinte relação: só
tem o direito referido no artigo 68 dos adct quem estiver
“ocupando” a área; quem não estiver “ocupando” não terá
o aduzido direito. Só que o legislador constituinte não po-
deria ter expressado tal idéia. Em primeiro lugar porque
a idéia do estar ocupando só pode ser mensurada se ava-
liada em conjunto com outros princípios constitucionais.
O princípio constitucional que mais se destaca para efe-
tuar a análise é, sem dúvida, o princípio que fundamen-
ta toda a Constituição e todos os direitos nela elencados:
a dignidade da pessoa humana, fundamento da repúbli-
ca federativa do Brasil. Note-se que as pressões sofridas
por estas Comunidades, na construção de sua resistência
e de sua identidade, interfaces diretas da territorialidade,
acarretaram a perda de suas terras, a expulsão, a venda

3 Este texto foi escrito em setembro de 2001.

22
irregular, etc. Não se pode, na compreensão constitucio-
nal, desconsiderar tal fato. Ora, este fenômeno (expulsão,
exclusão) afeta diretamente a dignidade das pessoas a
quem se dirige a norma. Afeta a dignidade da pessoa hu-
mana, garantia constitucional, que não admite tergiversa-
ções. No momento em que estas pessoas foram atingidas
em sua dignidade, através de um processo espoliativo, de
exclusão, não poderia a norma expressa no artigo 68 dar
guarida a isto. O princípio já referido, fulmina qualquer
interpretação que queira afirmar o sentido contrário: pes-
soas expulsas de suas terras, em qualquer momento, e que
sejam consideradas comunidades remanescentes de qui-
lombos, não podem ser excluídas, novamente, da abran-
gência do dispositivo constitucional. Em outras pala-
vras, a Constituição não pode excluir o direito destas
pessoas. Nesta mesma linha encontra-se o Decreto que
afirma: o reconhecimento somente sobre as terras “que
estavam ocupadas por remanescentes das comunidades
dos quilombos em 5 de outubro de 1988”. Se à Constitui-
ção não é possibilitado excluir os grupos que foram obri-
gados a desocupar suas terras, muito menos um Decreto.
O princípio hermenêutico da efetividade dos direitos
fundamentais vem a exigir que de modo algum é lícita
qualquer discriminação contra estas pessoas.
Passamos agora a análise da outra exigência proposta
pelo Decreto Executivo, que determina o reconhecimento
das comunidades remanescentes somente sobre terras que
“eram ocupadas por quilombos em 1888”. Vige em nosso
ordenamento jurídico o princípio constitucional da pro-
porcionalidade, da proibição do excesso. Retira sua “for-
ça” de outro princípio constitucional que refere a razoa-
bilidade como diretriz a ser obedecida pela Administra-
ção, ou seja expressa que toda conduta administrativa
23
deve ser adequada, racional, de acordo com um senso
normal da sociedade. O princípio da proporcionalidade
que possui sua matriz, como já salientado, na razoabili-
dade, refere que a conduta da Administração Pública só
tem validade na medida que suas atividades sejam exer-
cidas, conforme leciona Celso Antônio Bandeira de Mel-
lo “na extensão e na intensidade proporcionais ao que seja
realmente demandado para cumprimento da finalidade de
interesse público a que estão atreladas”4.
O mesmo jurista refere que a atividade que transbor-
dar das medidas necessárias para o cumprimento de deter-
minada medida atingem o princípio da proporcionalida-
de, “sobremodo quando a Administração restringe situa-
ção jurídica dos administrados além do que caberia, por
imprimir às medidas tomadas uma intensidade ou exten-
são supérfluas, prescindendas, ressalta a ilegalidade de
sua conduta. É que ninguém deve estar obrigado a supor-
tar constrições em sua liberdade ou propriedade que não
sejam indispensáveis à satisfação do interesse público”5.
Tal lição vem enquadrar-se como uma luva ao caso em
tela. A atividade administrativa-normativa, modelada
através de um Decreto, implica em uma sobrecarga de exi-
gências para o reconhecimento determinado pelo texto
constitucional. O prazo referido pelo Decreto acarretaria a
necessidade de comprovar a ocupação por cem anos de
qualquer terreno reivindicado. Até mesmo as normas que
exigem prazos mais dilatados para a prescrição aquisitiva,
como o usucapião previsto na Lei Substantiva Civil (artigo

4 bandeira de mello, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo.


São Paulo: Ed. Malheiros, 1999. p. 67.
5 bandeira de mello, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo.
São Paulo: Ed. Malheiros, 1999. p. 68.

24
550 do Código Civil) 6, referem vinte anos. Em outras pala-
vras: se algum integrante de uma comunidade quiser ter
o reconhecimento estampado na Constituição deverá pro-
var cem anos de ocupação; se este mesmo integrante qui-
ser adquirir o mesmo terreno, via usucapião, deverá pro-
var vinte anos de ocupação. Oitenta anos menos!!! A exi-
gência, contida no Decreto, é menos benéfica para as
Comunidades do que as exigências contidas em uma nor-
ma criada no início do século passado. Em conclusão: tal
requisito não é razoável, violando, totalmente, os princí-
pios constitucionais vigentes. Além disso, a coleta de pro-
vas vai se tornar extremamente difícil, para não dizer
impossível. Produzir um conjunto probatório utilizando
material com mais de um século de existência é tarefa
hercúlea. Os experts teriam imensas dificuldades para
conseguir demonstrar uma ocupação ocorrida nesta épo-
ca. Não é, portanto, razoável estabelecer este período.
De outra banda, o estabelecimento de um ano determi-
nado, in casu, 1888 (ano da abolição), não é a técnica nor-
mativa mais correta. O reconhecimento das comunidades
vai se tornar uma atividade raríssima posto que restrita a
um tempo acentuadamente preciso. Se é necessário, tal-
vez, evitar o alargamento dos conceitos, é necessário,
também, evitar restringi-los. Fincar o ano de 1888 como
requisito para o reconhecimento é espremer demais o
conceito de comunidade proposto pela Constituição, até
porque esta Carta Política não trabalha com essa data, e
não pode a atividade infraconstitucional ir além do que

6 “Aquele que, por 20 (vinte) anos, sem interrupção, nem oposição, pos-
suir como seu um imóvel, adquirir-lhe-á o domínio, independentemente
de título e boa-fé que, em tal caso, se presume, podendo requerer ao juiz
que assim o declare por sentença, a qual lhe servirá de título para trans-
crição no Registro de Imóveis”.

25
estabeleceu o Constituinte. Os laudos antropológicos
eventualmente construídos para demonstrar a existência
de uma comunidade terão uma margem maior para ope-
rar e estabelecer suas conceituações e limites a partir,
também, da leitura do texto constitucional. Se estes lau-
dos não forem consentâneos com o texto, o próprio órgão
federal poderá não lhes dar guarida, e mesmo que esta
aprovação ocorra, tais trabalhos antropológicos poderão
passar pelo crivo do Poder Judiciário. Ou seja, se os lau-
dos extrapolarem o conceito aberto de remanescentes de
comunidades quilombolas cunhado pela Constituição
existirão mecanismos para evitar que reconhecimentos
despropositados aconteçam. Em vista disso, pode-se afir-
mar peremptoriamente que o inciso i viola, por comple-
to, o princípio constitucional da razoabilidade.
Refere Paulo Bonavides que tal atitude atinge direta-
mente o próprio Estado democrático e o ordenamento
jurídico: “A lesão ao princípio é indubitavelmente a mais
grave das inconstitucionalidades porque sem princípio
não há ordem constitucional e sem ordem constitucional
não há garantia para as liberdades cujo exercício somen-
te se faz possível fora do reino do arbítrio e dos poderes
absolutos. Quem atropela um princípio constitucional,
de grau hierárquico superior, atenta contra o fundamen-
to de toda a ordem jurídica. A construção desta, partin-
do de vontade constituinte legítima, consagra a utiliza-
ção consensual de uma competência soberana de primei-
ro grau”7. Além disso, o mesmo mestre reforça a idéia da
positivação deste princípio: “O princípio da proporcio-
nalidade é, por conseguinte, direito positivo em nosso

7 bonavides, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malhei-


ros, 1999. p. 396.

26
ordenamento constitucional. Embora não haja sido ain-
da formulado como ‘norma jurídica global’, flui do espí-
rito que anima em toda sua extensão e profundida o § 2.º
do art. 5.º, o qual abrange a parte não-escrita ou não ex-
pressa dos direitos e garantias da Constituição, a saber,
aqueles direitos e garantias cujo fundamento decorre da
natureza do regime, da essência impostergável do Esta-
do de Direito e dos princípios que este consagra e que
fazem inviolável a unidade da Constituição”8.
O alemão Robert Alexy refere que “Los principios son
mandatos de optimizacion com respecto a las posibilida-
des jurídicas y fácticas. La máxima de la proporcionali-
dad em sentido estricto, es decir, el mandato de ponde-
ración, se sigue de la relativización com respecto a las
posibilidades jurídicas. Si uma norma de derecho funda-
mental com carácter de principio entra em colisión com
um principio opuesto, entonces la posibilidad jurídica
de la realización de la norma de derecho fundamenatl de-
pende del principio opuesto. Para llegar a uma decisión,
es necesaria uma ponderación em el sentido de la ley de
colisión. Como la aplicación de principios válidos, cuan-
do son aplicables, está ordenada y como para la aplica-
ción em el caso de colisión se requiere una ponderación,
el carácter de principio de las normas iusfundamentales
implica que, cuando entran em colisión se requiere uma
ponderación, el carácter de principio de las normas ius-
fundamentales implica que, cuando entran em colisión
com principios opuestos, está ordenada uma pondera-
ción. Pero, esto significa que la máxima de la proporcio-
nalidad em sentido estricto es deducible del carácter de
principio de las normas de derecho fundamental.

8 Idem, ibidem. p. 396.

27
De la máxima de proporcionalidad em sentido estric-
to se sigue que los principios son mandatos de optimiza-
ción com relación a las posibilidades jurídicas. Em cam-
bio, las máximas de la necesidad y de la adecuación se
siguen del carácter de los principios como mandatos de
optimización con relación a las posibilidades fácticas”9.
Nesta mesma linha, o jurista português Canotilho afir-
ma que a proporcionalidade, ou proibição de excesso,
possui desdobramentos principiológicos da seguinte for-
ma: princípio da conformidade ou adequação de meios;
princípio da exigibilidade ou da necessidade; e princí-
pio da proporcionalidade em sentido restrito.
O princípio da adequação dos meios refere que a medi-
da adotada pelo Poder Público tem que ser apropriada
para o fim exigido. Ou seja, “a exigência de conformida-
de pressupõe a investigação e a prova de que o acto do
poder público é apto para e conforme os fins justificati-
vos da sua adoção. ... Trata-se, pois, de controlar a rela-
ção de adequação medida-fim”10.
No presente caso, em relação ao inciso i, nota-se que a
Administração torna mais difícil o reconhecimento referido
pela Constituição. E a finalidade desta norma só pode ser,
dando integral cumprimento a norma constitucional, pro-
porcionar o correto e justo reconhecimento dos remanescen-
tes das comunidades de quilombos. Se a finalidade é esta
então o procedimento utilizado pelo Poder Público para
levá-lo a cabo não é adequado. Por conseguinte, o meio uti-
lizado, estabelecer uma data precisa para o reconhecimento,
não se mostra adequado para o fim pretendido. Pelo contrá-
9 alexy, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro
de Estudios Constitucionales, 1997. pp. 112/113.
10 canotilho, J.J. Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Livraria
Almedida, 1996. p. 382.

28
rio, desvirtua completamente os desideratos das políticas
públicas voltadas para estes grupos, ao restringir direitos
fundamentais dos beneficiários da atividade estatal.
Canotilho refere o princípio da exigibilidade ou da ne-
cessidade como sendo aquele em que o cidadão tem “di-
reito à menor desvantagem possível”11.Ora, como compro-
vado acima, os requisitos contidos no Decreto são menos
vantajosos que os contidos, por exemplo, no usucapião.
Sopesando os princípios acima referidos, em um for-
mato strictu sensu, como propõe Canotilho, pode-se afir-
mar que meios utilizados e fins destinados, estão com-
pletamente distantes de uma adequada atuação, exigida
nos casos em tela.

BIBLIOGRAFIA

alexy , Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid:


Centro de Estudios Constitucionales, 1997.
bandeira de mello, Celso Antônio. Curso de Direito Admi-
nistrativo. São Paulo: Ed. Malheiros, 1999.
bonavides, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo:
Malheiros, 1999.
canotilho, J.J. Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Li-
vraria Almedida, 1996.

Marcelo Beckhausen
Procurador Regional da República, professor de Direito
Constitucional Unisinos/rs, Mestre em Direito Unisinos/rs
e Doutorando em Ciência Política/ufrgs

11 Idem. Ibidem. p. 383.

29
Breves considerações
sobre o Decreto
3.912/2001 12

Trata-se de se submeter à análise o Decreto n.º 3.912, de


10 de setembro de 2001, que regulamenta as disposições
relativas ao processo administrativo para identificação
dos remanescentes das comunidades de quilombos e para
o reconhecimento, a definição, a demarcação, a titulação
e o registro imobiliários das terras por eles ocupadas.
Nos termos do parágrafo único do art. 1.º do decreto
em discussão, somente pode ser reconhecida a proprieda-
de sobre terras que: I – eram ocupadas por quilombos em
1988; II – estavam ocupadas por remanescentes das comu-
nidades de quilombos em 5 de outubro de 1988.
A disposição é evidentemente inconstitucional.
Registre-se, de início, que o inciso i contém, certa-
mente, um erro material, ao referir-se ao ano de 1988
como data de ocupação de terras por quilombos, se como
tal se pretende ter em conta a definição legal que remon-
ta a 1740 13, por se tratar de situação que não mais se reve-
la, quer no plano dos fatos, quer no plano do direito.

12 Texto elaborado antes da promulgação da Convenção 169, da oit.


13 Para o Conselho Ultramarino, em resposta a consulta, quilombo ou

31
Prosseguindo na análise da inconstitucionalidade do
dispositivo invocado, decorre ela de restrição não autori-
zada constitucionalmente, já que o art. 68 expressamente
não a revela, ou tampouco permite, hermeneuticamente,
a sua inferência. Senão, vejamos.
Ao dispor que aos remanescentes das comunidades dos
quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida
a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os
títulos respectivos, o art. 68 do adct não apresenta qual-
quer marco temporal quanto à antigüidade da ocupação,
nem determina que haja uma coincidência entre a ocu-
pação originária e a atual. O fundamental, para fins de
se assegurar o direito ali previsto, é que de comunidades
remanescentes de quilombos se cuide e que, concorren-
temente, se lhe agregue a ocupação das terras enquanto
tal. Assim, os dois termos – remanescentes de comuni-
dades de quilombos e ocupação de terras – estão em rela-
ção de complementariedade e acessoriedade, de tal for-
ma que a compreensão de um decorre necessariamente
do alcance do outro. E estes, e apenas estes, são necessá-
rios à interpretação do comando constitucional. O que
não se admite, certamente, é que um mero decreto – o
que sequer à lei se autoriza – numa visão unilateral, ope-
re um reducionismo no conteúdo de sentido da norma.
Poder-se-ia objetar no sentido de que o ato normativo
estaria apenas a explicitar um limite imanente. Contudo,
entende-se por limite imanente – critério a fornecer,

cont. 13 mocambo seria toda habitação de negros fugidos que passem de


cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados nem
se achem pilões neles (1740) Normativamente, o conceito resulta também
do Alvará de 3 de março de 1741 e Provisão de 6 de março do mesmo ano,
segundo os quais era reputado quilombo desde que se achavam reunidos
cinco escravos.

32
muito mais, tópicos de investigação e argumentação inte-
pretativa – aquele que decorre do sistema dos direitos
fundamentais e dos próprios princípios fundamentais da
ordem constitucional, de modo a que o domínio de prote-
ção da norma vá até onde não conflitue com estes valores
maiores. Neste ponto, a adoção de um marco temporal, a
par de não se constituir num limite imanente, pelas razões
expostas, apenas acriticamente pode ser considerado ele-
mento definitivo – ou mesmo mediador – numa eventual
colisão entre direitos e valores constitucionais.
A rigor, o marco temporal, ao invés de harmonizar, sub-
verte, definitivamente, o sistema constitucional. Isto por-
que, em todas as ocasiões em que o legislador constituin-
te condicionou o direito à propriedade ao decurso de cer-
to lapso de tempo, fê-lo expressamente, como decorre dos
artigos 183 e 191 da cf, diante da singela razão de que toda
e qualquer restrição a direito constitucionalmente assegu-
rado só pode resultar do próprio texto constitucional.
Desconhece, ainda, o decreto a natureza da norma
cuja regulamentação postula.
O art. 68 do adct, muito embora deslocado do corpo
permanente da Constituição, há de ser interpretado a
partir deste, que sinaliza exatamente quanto à sua razão
de ser, quanto ao sentido que lhe deva ser emprestado,
quanto aos princípios que hão de ser levados em conta
no momento de sua interpretação. Pois bem, levando-se
adiante este intento, tem-se que a expressão quilombos
consta do § 5º do art. 216, que trata do tombamento dos
documentos e sítios dos antigos quilombos. Este dispo-
sitivo, por sua vez, insere-se na seção da Constituição de-
dicada à cultura, a qual tem um princípio retor: a nacio-
nalidade brasileira se forma a partir de grupos étnicos
diferenciados, grupos com histórias e tradições diversas,
33
cabendo ao Estado protegê-los e garantir espaço e per-
manência para essa diferenciação.
Parece-nos indene de dúvidas de que esta seção des-
tinada a tratar da cultura revela nova compreensão acer-
ca do tema, tomando a expressão cultura não mais em
sua acepção meramente folclórica, monumental, arquite-
tônica e/ou arqueológica – nota dos textos constitucio-
nais pretéritos – mas o conjunto de valores, representa-
ções e regulações de vida que orientam os diversos gru-
pos sociais, numa visão que não se remete mais ao pas-
sado, mas, ao contrário, se orienta e se renova no presen-
te. Isto se faz certo na medida em que a Constituição bra-
sileira impõe ao Estado garantir a todos o pleno exercício
dos direitos culturais (...), apoiando e incentivando a
valorização e a difusão das manifestações culturais (...)
populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros gru-
pos participantes do processo civilizatório nacional (art.
215, caput, e seu § 1º), manifestações culturais estas que
se traduzem em suas formas de expressão e em seus modos
de criar, fazer e viver (art. 216, i e ii).
A Constituição de 1988 representa, assim, uma cliva-
gem em relação a todo o sistema constitucional pretéri-
to, ao reconhecer o Estado brasileiro como pluriétnico e
multicultural, assegurando aos diversos grupos forma-
dores dessa nacionalidade o exercício pleno de seus
direitos de identidade própria.
E, ao conferir aos remanescentes das comunidades de
quilombos a propriedade das terras por eles ocupados,
fé-lo à vista da circunstância de que os territórios físicos
onde estão esses grupos constituem-se em espaços sim-
bólicos de identidade, de produção e reprodução cultu-
ral, não sendo, portanto, algo exterior à identidade, mas
sim a ela imanente.
34
Se assim o é, trata-se, à toda evidência, de norma que
veicula disposição típica de direito fundamental, por dis-
ponibilizar a esses grupos o direito à vida significativa-
mente compartilhada, por permitir-lhes a eleição de seu
próprio destino, por assegurar-lhes, ao fim e ao cabo, a
liberdade, que lhes permite instaurar novos processos,
escolhendo fins e elegendo os meios necessários para a
sua realização, e não mais submetê-los a uma ordem pau-
tada na homogeneidade, onde o específico de sua iden-
tidade se perdia na assimilação ao todo. É, ainda, o direi-
to de igualdade que se materializa concretamente, assim
configurada como igual direito de todos à afirmação e
tutela de sua própria identidade.
Nota característica dos direitos fundamentais é a sua
indisponibilidade. Como ensina Luigi Ferrajoli 14, esta
indisponibilidade há de ser entendida em sua dupla face:
indisponibilidade ativa, que não permite aos seus titula-
res a sua alienação, e a indisponibilidade passiva, no sen-
tido de não serem expropriados ou limitados por outros
sujeitos, começando pelo Estado. Neste sentido, nenhu-
ma maioria, sequer por unanimidade, pode legitimamen-
te decidir sobre a violação de um direito de uma mino-
ria naquilo que diz respeito à sua própria identidade.
Mais uma vez valendo-nos da lição de Ferrajoli, à vista
do princípio da igualdade que se realiza com respeito à
diferença, nenhuma maioria pode decidir em matéria de
direitos por conta dos demais, tanto mais quando a mino-
ria tem interesses ligados à sua diferença 15.
Daí a razão por que as normas que veiculam tais direi-
tos são chamadas téticas, assim concebidas como aquelas

14 Derechos y garantías – La ley del más débil. Ed. Trotta, Madrid, 2001, p. 47
15 Ferrajoli, ob. Cit., p. 90

35
que imediatamente dispõem sobre as situações por elas
expressadas 16, não se sujeitando os direitos ali previstos
a serem constituídos, modificados ou extintos por qual-
quer ato. Distinguem-se das normas ditas hipotéticas na
exata medida em que as situações nestas previstas encon-
tram-se apenas predispostas pela norma, a reclamar a
intermediação de um ato – legislativo, jurídico – para a
sua realização.
Assim, os direitos fundamentais são todos ex lege, con-
feridos diretamente pela Constituição, e imediata e ple-
namente realizáveis, não se admitindo a intermediação
de ato, de que natureza for, para o seu exercício pleno,
muito menos para impor-lhes restrições ou diminuir o
seu alcance, como pretendeu fazer o decreto ora objeto
de análise.
Resulta, ainda, inconstitucional o dispositivo ao exigir,
para o implemento do direito, a permanência na terra por
prazo determinado, posto que, a pretexto de interpretar
a norma constitucional e dar-lhe correta aplicação, repro-
duz discurso próprio de práxis escravagista e o rein-
troduz na ordem jurídica vigente, em evidente descom-
passo com o texto constitucional.
Com efeito, anotam Michael Hardt e Antonio Negri
que a escravidão tem como princípio vetor a mobilida-
de, quer sob a perspectiva do poder, por meio do apara-
to repressivo para impedir a mobilidade e o nomadismo
dos escravos, que por parte dos escravos, com o desejo
irreprimível de fuga 17.
Ao tomar os elementos sígnicos da norma constitucio-
nal e conotá-los tal qual se fazia em 1741 – posto que toda

16 Ferrajoli, ob cit, p. 49.


17 Império. Ed. Record, 2001, p. 232.

36
a interpretação se alça ao plano da mera mobilidade, e,
na contraface, a sua recusa – importa-se a cultura da épo-
ca da escravidão 18, e se desorganiza não só uma retórica
– em razão de o signo ser agora compreendido em face
de um novo contexto social – mas toda uma ideologia,
pois se subverte um regime de liberdades e igualdades
construídos sob a égide da diferença étnica.
Seguindo ainda esta linha, a norma pretensamente
regulamentadora do artigo 68 do adct conduz à conclu-
são absurda de que a Constituição, rigorosamente, esta-
ria a instituir, agora com todo o peso do direito, quilom-
bos tais como concebidos em 1741, pois o espaço de liber-
dade para a regulação ritual da vida seria obtido à custa
do confinamento.
Ademais, como antes assinalado, a nota característica
dos direitos fundamentais é a indisponibilidade. Nesta
perspectiva, não se autoriza que, hermeneuticamente, se
conclua que um direito fundamental apenas tenha con-
dições de se realizar com o sacrifício absoluto do outro,
pois, se assim o fosse, um deles perderia o traço da indis-
ponibilidade. Neste passo, o que o decreto postula, de
forma inconstitucional, certamente, é que o direito asse-
gurado no artigo 68 do adct só se torne possível me-
diante o aniquilamento do direito de liberdade, do direi-
to de ir e vir, do direito de eleger, constantemente, o local
de permanência.
Mas não só o interregno de tempo entre os marcos ini-
cial e final da ocupação, como condições ao exercício do
direito, padecem de inconstitucionalidade. Eles pró-

18 Segundo Umberto Eco, todos os fenômenos da cultura são sistemas de


signos, isto é, fenômenos de comunicação, in A Estrutura Ausente, Ed. Pers-
pectiva, 7.ª ed., p. 3

37
prios, considerados cada qual de per se, revelam idênti-
co vício.
De início, não há razão, constitucional ou mesmo his-
tórica, para que o direito previsto no art. 68 do adct re-
monte aos idos de 1888. Historicamente, a figura do qui-
lombo – tal como significado à época, reitere-se – antece-
de, em muito, o marco apontado, e tampouco encontra
nele o seu período áureo, à vista mesmo de medidas ten-
dentes à abolição da escravidão já implementadas ou em
franco curso. Resultaria ofensivo ao princípio da isonomia
que o direito fosse reconhecido aos remanescentes dos qui-
lombos estabelecidos em 1888, e não àqueles que exis-
tiram em época pretérita e não lograram prosseguir em sua
existência até a época apontada. Careceria, assim, de qual-
quer razoabilidade o marco inicial previsto no decreto.
Ademais, e já foi assinalado, o art. 68 do adct orienta-
se numa perspectiva de presente, com vistas a assegurar
a estes grupos étnicos ligados historicamente à escravidão
o pleno exercício de seus direitos de auto-determinação
em face de sua identidade própria. E porque o território é
imanente à identidade, o que a Constituição determina é
a proteção deste território que se apresenta na atualidade,
sendo de todo irrelevante o espaço imemorialmente ocu-
pado pelos ancestrais se não mais se configura como cul-
turalmente significativo para as gerações presentes.
Do mesmo modo, o marco final, além de arbitrário, re-
vela nítido viés etnocentrista, na medida em que se sina-
liza com um termo fatal além do qual se nega o direito à
identidade étnica e o correlato território que a requer e,
em certa medida, a determina. Neste ponto, há dupla
ofensa ao texto constitucional. A uma, porque alguém
estranho ao grupo étnico é quem determina o prazo final
de sua existência constitucionalmente amparada, o que,
38
evidentemente, conflita com a noção de plurietnicidade.
A duas, por impor ao grupo uma rigidez cultural e impe-
di-lo de, a partir de 5 de outubro de 1988, conceber novos
estilos de vida, de construir de novas formas de vida co-
letiva, enfim, a dinâmica de qualquer comunidade real,
que se modifica, se desloca, idealiza projetos e os realiza,
sem perder, por isso, a sua identidade.
Apenas comunidades ideais, erigidas a partir de ficções
coisificadoras, apresentam-se como totalidades pétreas
coerentes. As reais, ao contrário, são marcadas pelo signo
da mudança, do impulso, da reelaboração permanente.
Há, ainda, outros vícios.
Ao fazer a atuação estatal depender de provocação do
interessado, desconhece o decreto que o art. 68 do adct
é comando dirigido ao Poder Público, consubstanciando
obrigação de fazer, independentemente de solicitação dos
interessados. Deste modo, não pode a lei – muito menos
um decreto – fazer depender o direito de providência que
não tem estatuto constitucional, e, mais grave ainda, exi-
mir, por tal fato, o Poder Público de obrigação fundada
no texto constitucional e de natureza incondicionada.
Por último, o decreto, além de atentar contra a ordem
constitucional, revela-se completamente destituído de
utilidade ao fim proposto – regulamentação do art. 68 do
adct – e padecendo de vício de ilegalidade. A uma, por-
que não enfrenta, sequer remotamente, a questão da
incidência desses remanescentes de comunidades de
quilombos em áreas já tituladas, sob o domínio privado,
ao não disciplinar os aspectos que necessariamente a tan-
genciam, como a necessidade, forma e procedimento de
desapropriação, nulidade ou não dos títulos privados. A
duas, porque, limitando-se à disciplina das terras da
União – o que resulta do fato de passar ao largo das ter-
39
ras sob domínio privado e manter, implicitamente, a
competência dos Estados e do Distrito Federal quanto
aos seus bens - além de não exaurir a regulamentação a
que se destina, conflita com a Lei 9.636, de 15 de maio
de 1998, que dispõe especificamente sobre a regulariza-
ção, administração, aforamento e alienação de bens imó-
veis da União (v.g, art. 18). Em sendo ato normativo de
estatura inferior à lei, não há como prevalecer.

Deborah Duprat
Subprocuradora-Geral da República
Coordenadora da 6.ª Câmara de Coordenação
e Revisão do Ministério Público Federal.

40
Parecer n.º:
agu/mc - 1/2006

processo n.º: 00400.002228⁄2006-25 e apenso


00400.000419⁄2002-29
procedência: Gabinete de Segurança Institucional da
Presidência da República
assunto: Interpretação da questão quilombola na
Constituição de 1988.

Senhor Advogado-Geral da União

O Senhor Ministro de Estado Chefe do Gabinete de Segu-


rança Institucional da Presidência da República e Secre-
tário-Executivo do Conselho de Defesa Nacional cdn
pede, perante a Advocacia-Geral da União, a edição de
interpretação oficial do art. 68 do adct tendo em conta
que o cdn, na forma do art. 82 do Decreto n.º 4.887, de
2003, tem encargo de manifestar-se sobre os estudos téc-
nicos apresentados pelo Instituto Nacional de Colonização
e Reforma Agrária – incra. Tendo presente o parecer de
sua Secretaria de Acompanhamento e Estudos Institu-
cionais (Nota saei – ap n.º 286⁄2006 – rf), que em minu-
cioso exame da matéria no exercício de sua competência
e em face da relevância e das importantes conseqüências
que o assunto suscita, pondera Sua Excelência pela ne-
41
cessidade da exata identificação do alcance da expressão
constitucional “estejam ocupando suas terras”, cuja com-
preensão é essencial para a manifestação exigida. A Nota
referida, além de justificar a competência da Secretaria-
Executiva do cdn e da contextualização do tema, e do
exame de dois casos concretos (Comunidade de Remanes-
centes de Quilombos de Linharinho no Espírito Santo e
Comunidade de Remanescentes de Quilombos de Casca)
tendo em conta que no primeiro caso a ocupação real é
de 147,00 hectares ou 30 alqueires e a proposta de titu-
lação do incra soma 9.542,57 hectares, e no segundo a
ocupação é de 2.387,8596 hectares que corresponde à
proposta, sustenta a possível inadequação e a manifesta
inconveniência das conclusões do incra.
Em outros termos, porque a desproporção do reconhe-
cimento da propriedade definitiva, sobretudo no primei-
ro caso em face da efetiva ocupação ser muito menor que
a proposta de reconhecimento da propriedade definitiva,
pode surgir daí claro estímulo a ocupações injustificadas
e agravamento generalizado da questão agrária, com
importante repercussão no processo de definição das
áreas ou terras indígenas e das pretensões dos trabalhado-
res rurais sem-terra (o que, a seu juízo, interessa de perto
à segurança nacional), daí porque, como sugere a ilustre
autoridade solicitante, é urgente “fixar a interpretação do
art. 68 a ser uniformemente seguida pelos órgãos e entida-
des da administração federal, mediante parecer aprovado e
publicado juntamente com o despacho presidencial”.
Para a segura compreensão do assunto que é cercado
de dificuldades além de novidade quase sem preceden-
tes administrativos, penso que é recomendável a sua
abordagem com o máximo de abrangência como corolá-
rio da máxima efetividade constitucional.
42
I

O regime jurídico da chamada questão quilombola tem


disciplina direta no artigo 68 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias (“Art. 68. Aos remanescentes
das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas
terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o
estado emitir-lhes os títulos respectivos”.) e reflexa nos
arts. 215, § 1.º e 216 do texto principal da Constituição
(“Art. 215, § 12. O Estado protegerá as manifestações das
culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de
outros grupos participantes do processo civilizatório nacio-
nal” e “Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasilei-
ro os bens de natureza material e imaterial, tomados indi-
vidualmente ou em conjunto. portadores de referências à
identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos forma-
dores da sociedade brasileira “... “§ 1.º. O poder público,
com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá
o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários.
registros, vigilância, tombamento e desapropriação e de
outras formas de acautelamento e preservação“... “§ 5.º.
Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores
de reminiscências históricas dos antigos quilombos“), cons-
tituindo estas as regras fundamentais nesse domínio,sem
prejuízo dos demais direitos e garantias constitucionais.
Do ponto de vista infraconstitucional a legislação é
escassa e fragmentária 19 no esforço de interpretar o

19 Como se pode ver detalhadamente em “Comunidades Quilombolas:


Direito à Terra Art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitó-
rias”, Sociedade Brasileira de Direito Público – Centro de Pesquisas Apli-
cadas, Ministério da Cu1tura, Fundação Cultural Palmares, outubro de
2002, estudo coordenado por Carlos Ari Sunfeld.

43
comando do art. 68 adct, ora atribuindo ao Ministério
da Cultura, outras à Fundação Cultural Palmares o encar-
go de reconhecer,delimitar e demarcar as terras de ocu-
pação quilombola. Diferentes disposições legais ao orga-
nizarem órgãos da administração pública federal confe-
riram assim algumas atribuições correspondente são
Ministério da Cultura, outras à Fundação Cultural Pal-
mares e outras tantas ainda à Secretaria Especial de Polí-
ticas de Promoção da Igualdade Racial – seppir (o histó-
rico da disciplina é mais ou menos o seguinte: Lei n.º 7.668,
de 22.8.1988 (art. 22, III e § único) que autorizou a insti-
tuição da Fundação Cultural Palmares – FCP , então cria-
da pelo Decreto n.º 418 de 1992, e, com a redação da MP
2.216-37 de 31.8.2001, conferiu ao Ministério da Cultura
a identificação, delimitação, demarcação e titulação das
terras quilombolas e à FCP o registro dos títulos; e a Lei n.º
9.649 de 1998 (art. 14, III ‘c’, com a redação dada pela
Medida Provisória n.º 2.216-37 de 2001) atribuindo ao
Ministério da Cultura aprovar a delimitação e demarca-
ção das terras “que serão homologadas mediante decreto”,
regulamentado então pelo Decreto n.º 3.912, de 2001,
encargo mantido pela Lei n.º 10.683,28.05.2003 (art. 27,
VI, ‘c’) que deu ao Ministério da Cultura a atribuição de
delimitar as terras dos remanescentes de quilombos, deter-
minar-lhes a demarcação e submetê-las à homologação por
decreto, esta última regulamentada pelo Decreto n.º 4.887,
de 2003 – que revogou o Dec. 3.912⁄2001, e a Lei n.º 10.678,
de 23.5.2003 que criou a SEPPIR ).
Vale assinalar, também, que para disciplinar o assunto
tramitara no Congresso Nacional projeto de lei (PL do Sena-
do n.º 129, de 1995 e pl n.º 3.207 de 1997 da Câmara) des-
tinado a regulamentar o mencionado art. 68 do adct, mas
o Senhor Presidente da República na ocasião negou-lhe a
44
sanção vetando integralmente seus termos com base em
razões de inconstitucionalidade suscitadas pela Casa Civil
e pelo Ministério da Cultura (veto de 14.5.2002, por ale-
gadas inconstitucionalidades enumeradas pela Casa Civil
na Nota saj n.º 791⁄02, o qual foi mantido em 20.5.2004).
Por conta dessas dificuldades constitucionais, argüi-
das pela Subchefia de Assuntos Jurídicos da Casa Civil da
Presidência da República (Parecer saj 1490⁄2001) com
relação ao encaminhamento dos procedimentos e condu-
tas ainda antes da Lei n.º 10.683⁄2003 e ao propósito de
interpretar a legislação anterior a ela, o Senhor Presidente
da República editara o Decreto n.º 3.912, 10 de setembro
de 2001, estabelecendo, então, com base nas conclusões
do dito parecer, normas de aplicação do art. 68 do adct.
Ocorre que as disposições desse decreto aparentemen-
te não observavam o melhor entendimento constitucio-
nal, razão porque, já no novo governo, foi ele revisado
pelo Senhor Presidente da República ao editar o Decre-
to n.º 4.887, de 20 de novembro de 2003, após estudos
de um Grupo de Trabalho constituído para esse fim, pre-
valecendo daí por diante, então, a feição atual do regime
infraconstitucional do reconhecimento da ocupação qui-
lombola, isto é, o da Lei n.º 10.683 de 2003 como Decre-
to n.º 4.887 de 2003, tendo o incra (em nome do mda,
que ficou encarregado da delimitação e demarcação das
terras referidas, por força do Decreto n.º 4.883 de 2003),
como responsável pela aplicação dos seus dispositivos no
que respeita ao aspecto fundiário e a Fundação Cultural
Palmares pela declaração e certificação da condição étni-
ca, ficando o tema regulamentado através da Instrução
Normativa incra n220, de 19 de setembro de 2005.
O Decreto n.º 4.887⁄2003, contudo, foi objeto de Ação
Direta de Inconstitucionalidade requerida perante o
45
Supremo Tribunal Federal pelo Partido da Frente Libe-
ral-pfl (Adin n.º 3239), pendente de julgamento mas já
com parecer do Procurador-Geral da República pela
improcedência.
Desse modo, no quadro normativo atual, estão preva-
lecendo além do referido art. 68 do adct e do Decreto
n.º 4.887 de 2003 (este sob discussão perante o stf) o art.
27,.vi, ‘c’ da Lei n.º 10.683⁄2003 e o art. 2.º, iii e o seu §
único da Lei n.º 7.668, e as disposições da in 20⁄2005 -
editada pelo incra, como normas de conduta com rela-
ção à definição das terras de quilombos.

II

Para a adequada compreensão dessa disciplina parece


conveniente uma criteriosa aproximação sistemática
dessas disposições, procurando delas extrair o sentido
próprio em pesquisa sempre orientada pela teleologia
constitucional.
Assim, quando menciona “aos remanescentes das co-
munidades de quilombos” o texto do art. 68 adct quer
referir-se aos indivíduos, agrupados em maior ou menor
número, que pertençam ou pertenciam a comunidades,
que portanto viveram, vivam ou pretendam ter vivido
ou viver na condição de integrantes delas como reposi-
tório das suas tradições,cultura,língua e valores, histori-
camente relacionados ou culturalmente ligados ao fenô-
meno sócio-cultural quilombola. Aliás, as noções jurídi-
cas de remanescente e de remanescente de comunidade,
bem por isso, estão logicamente entrelaçadas ao concei-
to de quilombo, isto é, ao conceito jurídico constitucio-
nal de quilombo, que à sua vez depende necessariamen-
46
te do conteúdo sócio-histórico-antropológico derivado
do fato histórico-social “quilombo”.
Como se mostra evidente, a noção de quilombo não é
das que se alcança por simples interpretação jurídica já
que fortemente dependente de investigações, estudos e
pesquisas na área de antropologia, sociologia e história
sem as quais não se pode enunciar o exato sentido do pre-
ceito estudado. Mesmo sem tomar partido em qualquer
das diversas correntes de interpretação antropológica ou
sociológica,parece indisputável que quilombo é mais do
que a simples expressão de um certo território no qual
em uma certa época alguns escravos ou ex-escravos, fugi-
dos ou não, se reuniam para viver e resistir contra a reca-
ptura ou contra a escravidão.
Ao contrário, a noção de quilombo que a Constituição
parece ter adotado abrange, pelo seu próprio sentido e
pelo princípio da máxima efetividade, certamente mais
do que isto,pois, ao reconhecer aos remanescentes das
comunidades de quilombos a propriedade das terras que
ocupam, refere seguramente o universo representativo
do fenômeno que originariamente aconteceu por obra da
resistência, mas que também se desenvolveu ao longo do
tempo formando comunidades com interesses e valores
comuns, inclusa aí a necessidade de resistir e lutar con-
tra’ as discriminações decorrentes da escravidão.
Por essa razão lógica, a identificação das comunidades
fica dependente da identificação dos seus integrantes, os
quais – estabelece o decreto – têm condições de se auto-
identificarem pelas características que lhes são próprias
e porque juridicamente se hes garante a capacidade de se
auto-reconhecerem tal como garantido pela Convenção
n.º 169 da oit (Decreto n.º 5.051, de 19 de abril de 2004)
por cuja inspiração se pode ter como certo que é a cons-
47
ciência de sua identidade. O critério principal para
determinar quem sejam os integrantes remanescentes
das comunidades ou grupos aos quais se aplicam as
determinações do art. 68 do adct ou de que dele rece-
bam legitimidade para as iniciativas correspondentes 20.
É certo, no entanto, que tais remanescentes, por via
de conseqüência, são legítimos herdeiros da cultura afro-
brasileira, cujo conteúdo a mesma Constituição refere e
protege no § 1.º do art. 215 e no caput do art. 216, e em
virtude da qual a identificação dessas características - aí
registradas na disciplina da ordem social (Capítulo iii
Seção 2 da Constituição) – pode não só propiciar a reve-
lação da existência dessas comunidades e seus integran-
tes mas também a necessária expressão territorial corres-
pondente, que cabe ao poder público promover e prote-
ger por todos os meios inclusive a desapropriação por
interesse social.
Nessa linha, é insuficiente a mera dedução geográfica
e territorial da ocupação quilombola que reduz a inten-
ção constitucional a simples espaço local dado hoje (ou
pior, em 5 de outubro de 1988, ou ainda em 13 de maio
de 1888 como se referiu no Decreto n.º 3.912) quando a

20 Dessa forma, a velha e multireferida definição de quilombo assentada


na resposta da consulta ao Conselho Ultramarino em 1740 (“ toda a habi-
tação de negros fugidos, que passem de cinco, em parte despovoada , ainda
que não tenham ranchos levantados e nem se achem pilões nele”) que
influenciou dai por diante as diferentes maneiras de tratar do assunto,
tendo ficado no dizer do autor frigorificado, deve ser rejeitada - embora
ainda comum – porque não tem mais significado já que ‘quilombo’ no
sentido constitucional moderno desprendeu-se do conteúdo penal para
consolidar-se como conceito sóciocultural. (v. Quilombos e as novas etnias,
Alfredo Wagner Berno de Almeida, in Quilombos identidade étnica e ter-
ritorialidade, p. 47, Org, Eliane Cantanno O’Dwyer, aba fgv, 2002).

48
“nacionalidade” quilombola e os diversos fatores ou
necessidades de sua reprodução e sua manutenção socio-
cultural ultrapassam naturalmente até mesmo os limites
de um dado espaço de território. Não parece, pois, que
o preceito constitucional mencionado tenha ignorado
outras tantas dimensões da vida e cultura dos remanes-
centes das comunidades de quilombos igualmente mere-
cedoras da proteção do poder público. Lembra o mesmo
estudioso, aliás, que houve escravos que não fugiram
nem se organizaram em resistência, ou outros que tenta-
ram mas não lograram fugir, não se podendo deixar de
reconhecer que também estes são verdadeiros remanes-
centes das comunidades de quilombos enquanto a elas
ontologicamente ligados. Uma leitura menos atenta do
art. 68 poderia, por exemplo, assim excluir dos remanes-
centes de comunidades de quilombos (ex)escravos que
não foram fugidos ou não se exilaram nas matas em resis-
tência ao capitão do mato e aos fazendeiros escravistas,
incorrendo em discriminação inaceitável que certamen-
te não tem o apoio constitucional.
Por tudo isto, a noção de quilombo que o texto refere
tem de ser compreendida com certa largueza metodoló-
gica para abranger não só a ocupação efetiva senão tam-
bém o universo das características culturais, ideológicas e
axiológicas dessas comunidades em que os remanescentes
dos quilombos (no sentido lato) se reproduziram e se apre-
sentam modernamente como titulares das prerrogativas
que a Constituição lhes garante. É impróprio, assinala o
autor citado, lidar nesse processo como ‘sobrevivência’
ou ‘remanescente como sobra ou resíduo’ quando pelo
contrário o que o texto sugere é justamente o oposto 21.

21 Id. ibid. p. 77.

49
III

Aos remanescentes das comunidades de quilombos,


identificados do modo como vimos de compreender e
“que estejam ocupando suas terras é reconhecida a proprie-
dade definitiva”, estabelece a lei constitucional transitó-
ria. Quer-se com isso dizer que a esses remanescentes que
ocupem suas terras serão elas tituladas em definitivo.
Essa afirmação encerra diferentes questões que merecem
cuidadoso exame tendo como pressuposto, como con-
vém reafirmar, que quilombo é expressão que concerne
ao universo representativo da cultura e identidade dos
afro-brasileiros. A ocupação de que aí se cogita, por con-
seguinte, é a ocupação das terras em que de fato se alo-
jam e vivem as respectivas comunidades, mas também os
espaços para tanto necessários nos limites das caracterís-
ticas e valores por elas cultivados.
As terras ocupadas, nessa medida, são as que eles efe-
tivamente possuem e mais as que sejam suficientes e
necessárias para a manifestação de suas peculiaridades
culturais aí incluídas as que sejam necessárias para o
natural desenvolvimento e reprodução de sua cultura e
valores. A expressão “as terras que estejam ocupando”
significa logicamente mais do que a simples dimensão
geográfica, atual ou histórica, das comunidades de rema-
nescentes de quilombos,posto que – a exemplo das ter-
ras indígenas (art. 231, § 1.º Constituição), cuja proteção
constitucional obedece, tal como aqui, a idêntico princí-
pio de proteção dos formadores da nacionalidade brasi-
leira – constituem tais terras territórios de habitação per-
manente, utilizadas para as suas atividades produtivas e
imprescindíveis para a preservação dos recursos ambien-
tais necessários ao seu bem-estar e as necessárias’ à sua
50
reprodução (presente e futura) física e cultural segundo
seus usos, costumes e tradições.
A circunstância temporal/espacial indicada pela ex-
pressão “que estejam ocupando” refere-se à atualidade da
posse (mesmo a posse em outubro de 1988 numa perspec-
tiva dinâmica), mas parece fora de dúvida que se o pre-
ceito constitucional de fato levou em conta a atualidade
(então, ou depois de 1988) por certo não esqueceu a
dimensão da ocupação como fato sociológico e histórico
(do mesmo modo que com relação à ocupação tradicional dos
indígenas que a doutrina e até a jurisprudência nacional já
admitem resultar de uma trajetória étnica e não apenas um
corte cronológico em um certo momento e inteiramente des-
ligado das culturas e histórias respectivas),para por isto
mesmo constituir-se em conceito complexo. Aliás, assim
como para a sua identidade, a comunidade e seus inte-
grantes são legalmente os únicos capazes de identifica-
rem as terras que estejam ocupando porque tal definição
obedece ao mesmo rigor metodológico e porque a iden-
tidade está relacionada com a sua territorialidade.
A identificação da ocupação, já se viu, fica também
ligada à identificação dos remanescentes das comunida-
des e da identificação dos quilombos devendo ambas as
categorias constitucionais ser delimitadas e (re)construí-
das de acordo com as respectivas características. Em
outros termos, a ocupação efetiva das terras é assim o re-
sultado da definição dos remanescentes das comunidades
e da identificação dos quilombos como acima referido,
de modo que hoje tenham assegurados todos os direitos
de manterem-se e projetados os de reproduzirem-sede
acordo com as suas necessidades culturais e sociais. Pare-
ce então oportuno assinalar alguns aspectos cuja aprecia-
ção se impõe relacionados com a definição da ocupação
51
que o dispositivo constitucional estudado refere, na
perspectiva que oriente a discussão.
Com efeito, a noção de ocupação de que se serve a
Constituição,porque tem relação lógica e necessária com
as de autoreconhecimento e de manifestação cultural,
que ademais constituem’ seus elementos integrantes,
constrói-se pela compreensão do seu núcleo essencial e
da proporção, segundo quais critérios será possível com-
patibilizar a garantia constitucional do art. 68 do adct
e a de outros valores constitucionais conviventes.
Se o estabelecimento do direito à propriedade das ter-
ras ocupadas pelos remanescentes de comunidades de
quilombos precisa articular-se com outros valores de
nível constitucional equivalente, em virtude disso have-
rá certamente limitações a esse reconhecimento jurídico
ainda quando ao território não se possa deixar de reco-
nhecer ocupação de fato na extensão acima sugerida.
O reconhecimento garantido aos remanescentes das
comunidades de quilombos pode então em algum mo-
mento não ser incondicionalmente absoluto, já que even-
tualmente poderá ter de ceder ante necessidades nacio-
nais e inequivocamente mais valiosas enquanto ligadas
à segurança do Estado, da sociedade, ou limitador de va-
lores fundantes do Estado de Direito, da República e da
Federação, desde que cumpridamente demonstradas
pela autoridade competente.
Nesse sentido, a sobreposição ou coincidência de pro-
jetos ou programas de interesse ou necessidade públicos
ou de acentuada importância nacional cuja aplicação ter-
ritorial venha de algum modo a limitar ou excluir a ocu-
pação dos remanescentes de comunidades de quilombos
será objeto de composição em que se proteja sempre o
núcleo essencial da ocupação quilombola na proporção
52
das necessidades públicas. A técnica constitucional da
proporcionalidade é neste caso a medida natural no reco-
nhecimento dos valores coincidentes ou convergentes.
Nesse pressuposto,cabe reassentar o conteúdo da noção
de ocupação. Como assinalado, a ocupação referida pelo
art. 68 do adct constitui naturalmente conceito mais
abrangente que a mera expressão geográfica espacial dos
terrenos fisicamente ocupados, pois precisa envolver o
direito ao pleno exercício dos direitos culturais e a difusão
das manifestações culturais (art. 215 cf) das respectivas
comunidades como parte “dos grupos participantes do
processo civilizatório nacional. E ao Estado, de resto, cabe
proteger as manifestações culturais afro-brasileiras (§ 1.º)
exercidas pelas mesmas comunidades na condição de
“grupos formadores da sociedade brasileira”, sendo que o
seu patrimônio cultural protegido inclui “os bens de na-
tureza material e imaterial, tomados individualmente ou
em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação.
à memória” dos remanescentes dessas comunidades.
Por fim, o autoreconhecimento dessa condição étnica,
admitido pelo Decreto n.º 4.887 de 2003 como índice de
definição dos remanescentes de comunidades de quilom-
bos, por suá vez pode revelar também, agora por outra
vertente, extensão e limites dos espaços de terras ocupa-
das protegidas pelo art. 68 do adct. Com efeito, embora
não constitua critério único ou principal na apuração da
dita ocupação visto que é essencial a figuração das mani-
festações culturais e o seu exercício efetivo, a consciência
de sua etnicidade e a aceitação pelos seus dessa condição
objetiva fornece elementos preciosos para a determina-
ção dos espaços necessários e para a viabilização jurídi-
ca do reconhecimento da propriedade dos remanescen-
tes de comunidades de quilombos.
53
Ou em outras palavras, o que a disposição constitu-
cional está a contemplar é uma territorialidade específi-
ca 22 cujo propósito não é limitar-se à definição de um
dado espaço material de ocupação, mas de garantir con-
dições de preservação e proteção da identidade e carac-
terísticas dos remanescentes dessas comunidades assim
compreendidas que devem ser levadas em linha de con-
ta na apuração do espaço de reconhecimento da proprie-
dade definitiva.

IV

Aos remanescentes das comunidades dos quilombos,


como visto, “é reconhecida a propriedade definitiva” des-
sas terras que estejam ocupando como indicado. Tal reco-
nhecimento constitucional, que juridicamente tem o sig-
nificado de atribuir direito e ação ao titular contra todos,
implica recusar incondicional mente a propriedade a
quem não seja remanescente de comunidade de quilom-
bos mesmo que esteja ocupando as terras em questão e
afirmar incondicionalmente a propriedade anterior des-
ses remanescentes quilombolas (sempre observada a
extensão do conceito conforme acima estudado).
Desde que, evidenciado serem os ocupantes ou pre-
tendentes à ocupação remanescentes de comunidades de
quilombos nas condições do texto constitucional, a pro-
priedade das terras assim necessárias deverá ser obriga-
toriamente reconhecida, pouco importando a que título
as estejam ocupando, posto que basta para o reconheci-
mento constitucional a ocupação e a condição de rema-

22 Id. ibid. p. 72.

54
nescentes das comunidades com elas minimamente rela-
cionadas. Aliás, o reconhecimento constitucional expres-
sa declaração da propriedade anterior cujo título é cons-
tituído pela ocupação e pela condição de remanescente de
comunidade de quilombo.
O que a regra constitucional traduz, uma vez verifi-
cados os seus pressupostos,é preceito erga omnes, garan-
tindo a estes conjuntos de sujeitos de direito a proprie-
dade incondicional com todos os seus atributos e ações
(daí porque também parece lógica a atribuição de legitimi-
dade para agir em juízo às comunidades de remanescentes
de quilombos) e que obriga a todos, inclusive ao Estado.
Embora o texto mencione o reconhecimento da proprie-
dade definitiva como um momento posterior, não se
segue que estivesse esse direito antes submetido a algu-
ma condição. Pelo contrário, a determinação em causa
assenta que a propriedade que antes já se admitia plena
e incondicionalmente agora, após a identificação formal,
passa a se atribuir publicamente e sem qualquer outra
formalidade, e de modo coletivo porque referente aos re-
manescentes, isto é, ao conjunto dos remanescentes de
cada uma das comunidades em questão. Ou seja, a pro-
priedade só pode ser reconhecida coletivamente ao gru-
po dos remanescentes, pois só nessa condição é que cons-
tituem remanescentes uma vez que isoladamente deixam
de sê-lo no sentido constitucional.

O reconhecimento da propriedade definitiva é direito


dos remanescentes das comunidades de quilombos iden-
tificados na forma indicada e que estejam ocupando suas
55
terras no modo referido, “devendo o Estado emitir-lhes os
títulos respectivos” o que significa dizer que o Estado está
obrigado a emitir o título decorrente do reconhecimen-
to da ocupação das terras. O Estado tem, por conseguin-
te, o dever jurídico de titular os remanescentes das
comunidades de quilombos assim como o de reconhecer-
lhes e proteger-lhes a ocupação tanto que evidenciados
os pressupostos constitucionais. Essa expressão constitu-
cional tem extraordinária importância uma vez que não se
cogita aí de qualquer outra providência senão a de emitir
o título de propriedade definitiva, pouco importando se
existem sobrepostos outros títulos públicos ou particu-
lares ou afetação administrativa de qualquer ordem.
Tudo deve ceder ao reconhecimento da ocupação e con-
seqüentemente ao da propriedade definitiva dos rema-
nescentes das comunidades de quilombos, o que suscita
várias dificuldades já que mais de um valor constitucional
de idêntico relevo pode ser invocado em oposição. Como,
por exemplo, as ocupações de quilombolas que podem
situar-se em imóveis de propriedade particular mais an-
tiga, ou sobre áreas de domínio dos estados federados ou
de municípios (devolutas ou patrimoniais), ou sobre
áreas de preservação ambiental de maior ou menor res-
trição, e até mesmo sobre áreas indígenas, tudo a reco-
mendar extremo cuidado na solução.
Parece que, em tais casos, a orientação a adotar-se deve
procurar a justa proporção das determinações constitu-
cionais, resguardando os diferentes valores e critérios
constitucionais nos limites da adequação de uns e outros,
sempre preservado o núcleo essencial respectivo. Aliás, a
preservação das comunidades dos remanescentes de co-
munidades de quilombos é forma de preservação am-
biental cultural e se acomoda com a política constitucio-
56
nal de preservação ambiental do mesmo modo que outras
tantas comunidades,de ribeirinhos, de catadores, de
quebradeiras de babaçu, de apanhadores de castanha e
seringa, ou de tantas outras comunidades tradicionais
extrativistas ao longo do país cuja preservação por isso
mesmo não conflita com os propósitos de preservação
ecológica ou do meio ambiente natural, tanto que a
sobreposição dessas áreas de reconhecimento de ocupa-
ção tradicional – aí incluída a ocupação dos quilombolas
– com áreas de preservação ambiental e outros projetos
ou obras públicas, mais recentemente tem sido objeto de
estudo e compatibilização em respeito à proteção que
lhes dedica a Constituição.
Em princípio, pois, a dupla afetação não é causa de im-
pedimento para a titulação dos remanescentes de comu-
nidades de quilombos, bastando atender-lhes proporcio-
nalmente as exigências constitucionais, cabendo ao Esta-
do emitir os títulos correspondentes nos limites da afe-
tação constitucional. Estado, nesse campo, é categoria
indicativa do poder público, pois que pode ser da União
como dos estados federados a responsabilidade pela.
titulação, respeitadas, entretanto, as respectivas compe-
tências constitucionais a dizer que é à União que cabe
emitir os títulos quando a tiver sobre as terras ocupadas
e outro tanto cabendo aos estados quando no exercício
da sua respectiva competência administrativa.
A responsabilidade pela titulação, nessa linha, depen-
derá diretamente da respectiva competência administra-
tiva sobre as terras ocupadas quando públicas federais
ou estaduais, e, quando se tratar de terras registradas
como de propriedade particular, porque se cabe à União
e aos estados a desapropriação por interesse social cabe-
lhes respectivamente a iniciativa de promover a anula-
57
ção dos registros e a indenização das benfeitorias. Embo-
ra não refira o texto constitucional nenhuma disposição
quanto à invalidade dos títulos particulares incidentes
sobre áreas de ocupação por remanescentes das comuni-
dades de quilombos (como, ao contrário, explicitamente
previsto no § 6.º do art. 231 com relação à ocupação indí-
gena), convém ter presente que a determinação consti-
tucional do art. 68 do adct é produto do mesmo propó-
sito e tem o mesmo objetivo podendo, no que couber e por
simetria, ser invocada a mesma equação até porque dela
resulta sistematicamente a mesma conclusão. Quer dizer,
os títulos particulares, uma vez apurada área de ocupa-
ção de remanescentes de comunidade de quilombos, são
logicamente prejudicados e devem ceder ao reconheci-
mento da propriedade destes como decorrência da su-
premacia constitucional. que submete a propriedade pri-
vada aos interesses nacionais e constitucionais e bem por
isso sujeitam-se à “desapropriação”cujo sentido aqui é,
em razão dessa circunstância, diverso do sentido tradi-
cional comum porque não busca declarar a aquisição da
propriedade, mas a publicização daquela preexistente
pela definição constitucional de 5 de outubro de 1988.
Importa, contudo, assinalar a esse propósito que o
Decreto n.º 4.887, de 2003, estabeleceu no seu art. 13 e
parágrafos a hipótese de desapropriação das terras ocu-
padas por remanescentes de comunidades de quilombos
quando sobre elas incidentes títulos de domínio particu-
lar não invalidado, não prescrito ou não caduco ou ine-
ficaz. Essa ordem de idéias sugere a ilação de que embo-
ra o art. 68 do adct reconheça de pronto a propriedade
particular dos remanescentes daquelas comunidades –
isto é, desconsidere qualquer outro domínio ou título
público ou particular, pelos menos a partir de 5.10.1988
58
– a propriedade anterior eventualmente legítima não pode
ser desconhecida cabendo assim, com efeito, a justa de-
sapropriação e indenização ao então legítimo proprietário.
É que a despeito da regra constitucional não poder ser
desatendida quando reconhece a propriedade quilombo-
la a partir de então, nem por isto os títulos anteriores,
editados legitimamente ou em consonância com a legis-
lação da época, ficam desprotegidos. Perde sim o pro-
prietário particular a propriedade por força do art. 68 do
adct, mas não o direito à indenização pela perda da pro-
priedade legítima.
Assim, da compreensão e conformação deste art. 13 do
Decreto n.º 4.887⁄2003 ao sistema jurídico constitucional
da propriedade privada resulta logicamente que o reco-
nhecimento da ocupação quilombola (observadas a ex-
tensão acima investigada e as eventuais limitações do seu
regime constitucional) implica, nesses casos, na necessá-
ria expropriação da propriedade privada.
É verdade que esta constatação deixa entrever uma
possível questão, a saber: se o art. 68 do adct reconhe-
ce a propriedade em rigor não opera desapropriação mas
simples transferência da propriedade do particular para
os remanescentes de comunidades de quilombos,caben-
do ao mencionado processo de desapropriação apenas a
discussão dos valores indenizatórios. Nesse sentido,
parece, é que se deve compreendera regra constitucional
citada e a disciplina do art. 13 do Decreto n.º 4.887⁄2003
e a in/incra n.º 20⁄2005 que regulamentam o processo
administrativo de reconhecimento da posse e proprieda-
de quilombola.
Em outros termos, ao conferir o título de propriedade
aos quilombolas a Constituição apagou o domínio parti-
cular outrora legítimo, e, na prática, a desapropriação de
59
que cuida o art. 13 do dito decreto declara a proprieda-
de quilombola, opera a definição das indenizações cor-
respondentes à terra e às benfeitorias, e faz cancelar-se
os registros anteriores junto ao oficio respectivo pela
transcrição do título de reconhecimento da propriedade
dos remanescentes de comunidades de quilombos.
De outro lado, os títulos emitidos a esse propósito,
além de editados em nome coletivo porque necessaria-
mente em nome do grupo de “remanescentes”, são indi-
visíveis pela origem e inalienáveis pela destinação cons-
titucional como se revela evidente, de tal modo que não
se pode tresdestinar, redestinar ou devolver a terceiro as
terras assim tituladas sob pena de nulidade plena e in-
constitucionalidade material. A eventual extinção da co-
munidade dos remanescentes ou o desaparecimento dos
remanescentes, tanto como a falta de ocupação, assim
reconhecidos pela mesma autoridade e método que reco-
nheceu a propriedade definitiva dos quilombolas, ao
contrário, importará na devolução das terras ao Estado,
seja à União ou aos estados federados, ficando daí por
diante formalmente desafetadas revertendo ao domínio
respectivo 23. Pela mesma razão, as terras tituladas aos
remanescentes das comunidades de quilombos também
não podem ser desapropriadas por qualquer motivo
(mesmo pela União, aos titulados pelos estados)nem afe-
tadas a outra finalidade que já não tenham no momento
do reconhecimento formal.
23 A perda da ocupação quilombola ou o desaparecimento dos remanes-
centes de quilombos antes da Constituição de 1988, no entanto (ao con-
trário do que se discute em relação às terras indígenas – que são de domí-
nio da União – na adin n.º 255, em andamento no stf), importa na devo-
lução das terras a entidade a quem tocaria o domínio respectivo antes da
mesma Constituição.

60
O desdobramento das proposições constitucionais do
art. 68 do adct sugere ainda outras questões de difícil
solução. O crescimento vegetativo da população rema-
nescente das comunidades de quilombos, por exemplo,
pode exigir legitimamente a expansão da área de ocupa-
ção titulada, assim como os legítimos remanescentes que
não tenham ocupação por terem sido desapossados das
terras, tal qual aqueles que as deixaram voluntariamen-
te mas que a elas querem retomar, e outros podem pre-
tender aumentar as terras coletivas e não parece contes-
tável ou infundada essa pretensão uma vez que deriva
ela da mesma razão constitucional que presidiu o reco-
nhecimento da ocupação e propriedade destinadas à pro-
teção das comunidades, porque visando também a sua
reprodução natural. Ao Estado caberá, nesses casos, atra-
vés da desapropriação por interesse social com funda-
mento no art. 216, § 1.º da Constituição,pelo mesmo cri-
tério e modo, prover criando os acréscimos de espaços
territoriais necessários em ordem a promover o integral
reconhecimento mencionado na Constituição,na medida
em que esse reconhecer abrange o universo protegido da
ocupação ele mesmo contendo em si a necessidade da sua
reprodução e crescimento.

VI

À vista desse quadro normativo constitucional e tendo


sempre presentes as referências daí extraídas, cumpre ao
aplicador ou administrador, sob essa luz, reler a legisla-
ção infraconstitucional e regulamentar. As diferentes
normas legais que abordam o assunto, porém, não se
dedicam propriamente à disciplina administrativa do
61
reconhecimento da ocupação e da propriedade definiti-
vade que cuida o art. 68 do adct, circunstância já referi-
da acima, pois foram instrumentos infralegais, primeiro o
Decreto n.º 3.912, de 2001, e depois o Decreto n º 4.887,
de 2003 (que revogou aquele), que se dedicaram a deta-
lhar “os procedimentos administrativos para a identifica-
ção, o reconhecimento, a delimitação, a demarcação e a
titulação da propriedade definitiva das terras ocupadas
por remanescentes das comunidades dos quilombos...”
como está expresso no art. 1.º do Decreto n.º 4.887, atual-
mente vigente. Cumpre assim analisar as situações nele
previstas.

O exame das questões suscitadas com respeito a esse


tema deve dar-se a partir do texto do decreto em referên-
cia cuja relação com o ali. 27, vi, ‘c’ da Lei n.º 10.683, de
28.5.2003 e art. 2.º, iii e § único da Lei n.º 7.668, e 1988
é manifesta. A referência, que implica na relação lógica
de regulamentação,aliás, está subjacente visto que já ali
se deteminava ao Ministério da Cultura e à Fundação
Cultural Palmares, respectivamente,adotar as medidas
para tanto (e assim o dispusera no primeiro momento o
Decreto n.º 3.912 de 2001) embora na fundamentação do
Decreto n.º 4.887 haja sido mencionado apenas o art. 84,
iv e vi alínea ‘a’ da Constituição.
É curioso observar que a Lei n.º 10.683, de 28.5.2003,
estabelecera a necessidade de homologação – isto é, da
delimitação e demarcação da ocupação reconhecida –
por decreto a ser editado pelo Presidente da República,
mas essas incumbências foram, por obra do Decreto n.º
62
4.883 de 20.11.2003 com expresso fundamento no art.
84, vi, ‘a’ da Constituição, transferidas ao Ministério do
Desenvolvimento Agrário – mda a quem se encarregou
também de emitir o título das terras assim identificadas,
com o que ficou claramente absorvida a homologação
presidencial pela titulação ordenada pelo próprio decre-
to presidencial que normatizou o procedimento visto
que, pela menção ao art. 84, vi, ‘a’ da Constituição no
seu considerando, indica que o próprio Presidente, por
decreto, já delegou ao Ministério do Desenvolvimento
Agrário a prática dos atos que se substanciariam na
homologação presidencial. Daí porque não há usurpação
de poder nem violação da legalidade.

A primeira determinação do Decreto n.º 4.887 foi definir


(art. 22) os remanescentes das comunidades de quilom-
bos como “... grupos étnico-raciais, segundo critérios. de
auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados
de relações territoriais especificas, com presunção de an-
cestralidade negra relacionada com a resistência à opres-
são histórica sofrida”, sendo caracterizados mediante
autodefinição da própria comunidade (§ 1.º) e como terras
ocupadas “as utilizadas para a garantia de sua reprodu-
ção fisica, social, econômica e cultural” (§ 22). Estas defi-
nições oferecidas com bons propósitos poderiam repre-
sentar restrição à amplitude constitucional, à vista das
considerações acima enumeradas,embora por certo essa
possível redução, conquanto extraída do decreto, não
lhe pode ser obstáculo. Retoma-se aqui, por isto, as con-
siderações acima desenvolvidas a respeito da apuração
63
da ocupação (isto é, das terras que estejam ocupando) uma
vez que a definição dessa ocupação vai logicamente além
da mera identificação daquelas utilizadas atualmente para
alargar-se até os limites constitucionais da preservação
das garantias de sua reprodução física; social e cultural.
Em outros termos, é possível, por exemplo, que gru-
pos étnico-raciais autoatribuídos, e com trajetória histó-
rica ou sem ela e mesmo sem presunção de ‘ancestralida-
de negra’ ou de ‘resistência à opressão sofrida’, constituam
remanescentes de comunidades de quilombos, pois, ain-
da que à expressão quilombo se possa atribuir esse con-
teúdo limitativo derivado da compreensão histórica tra-
dicional, há espaço constitucional e legal para constru-
ção jurídica mais abrangente sem perder a referência a
quilombos. Essa, aliás, parece ter sido a inspiração segui-
da como se pode facilmente verificar da Exposição de
Motivos n.º 58 (fIs. 17⁄20, consoante divulgada à página
56 do Diário Oficial da União de 21 de novembro de
2003), através da qual foi encaminhado o projeto que
resultou no Decreto n.º 4.887 cuja compreensão deve-
lhes obediência.

O art. 3º do decreto atribuiu competência ao Ministério


do Desenvolvimento Agrário – mda, através do incra,
para a identificação, reconhecimento, delimitação, de-
marcação e titulação das terras ocupadas pelos remanes-
centes de comunidades de quilombos sem prejuízo da
competência concorrente dos Estados, do Distrito Fede-
ral e dos Municípios. Por essa regra a autarquia deve
regular procedimentos e pode estabelecer convênios,
64
contratos, acordos com quaisquer órgãos públicos ou
entidades privadas. O art. 4.º seguinte conferiu à seppir
competência para assistir e acompanhar o mda e o incra
“nas ações de regularização fundiária, para garantir os
direitos étnicos e territórios remanescentes das comunida-
des de quilombos...” e o art. 52 atribuiu ao Ministério da
Cultura, por meio da Fundação Cultural Palmares, com-
petência para assistir e acompanhar o mda e o incra
“nas ações de regularização fundiária, para garantir a pre-
servação da identidade cultural dos remanescentes das
comunidades de qui/ambos, bem como subsidiar os traba-
lhos técnicos quando houver impugnação ao procedimento
de identificação e reconhecimento...”.
Revela-se aqui, em toda a intensidade, a transferência
de competências administrativas operada pelo decreto
ao atribuir ao mda/incra praticamente todas as medi-
das administrativas e normativas para a identificação e
reconhecimento das ocupações de terras pelos remanes-
centes das comunidades de quilombos, o que pode even-
tualmente mostrar-se excessivo visto que cabe institu-
cionalmente à Fundação Cultural Palmares muitas das
competências ali encarregadas ao incra as quais são
pressuposto lógico para a identificação e reconhecimen-
to das ocupações indicadas. Deve, assim, a interpretação
desses dispositivos desenvolver-se com cuidado e com-
preensão para que não se aniquilem competências defe-
ridas em lei, resguardando-se portanto as atribuições
próprias dos diversos órgãos legitimamente vocaciona-
dos para a administração da igualdade racial, que certa-
mente não cabem ao incra. Nesta medida, a assistência
e acompanhamento mencionados devem exercitar-se ple-
namente pelos órgãos referidos junto aos agentes do
incra para que não se desvirtuam os propósitos legais
65
de igualdade racial, pois a assistência para “garantir os
direitos étnicos e territoriais” como para “garantir a pre-
servação da identidade cultural” constituem na verdade
os reais pressupostos do reconhecimento da ocupação e
para isso a atuação dessas instituições mostra-se funda-
mental. Tal preocupação deve ser sempre reiterada para
que regras como a in 20⁄2005 do incra, que normatiza
o processo administrativo de reconhecimento,ao atribuir
ao Comitê de Decisão Regional (órgão do incra, especia-
lizado em reforma agrária) a tarefa de julgar as contesta-
ções oferecidas (arts 13 a 15), não venham a frustrar valo-
res garantidos constitucionalmente se existir, por exem-
plo, questionamento étnico. Daí, a necessidade de exata
compreensão das atribuições institucionais respectivas
visando a adequada aplicação dos preceitos.

Assegurada a participação das respectivas comunidades


(art. 6º ao concluir os trabalhos de identificação, delimi-
tação e levantamento ocupacional (conforme termos
supra referidos) e cartorial, o incra fará publicar editais
com a indicação do imóvel, sua localização e identifica-
ção com limites e confrontações,bem assim a eventual
incidência sobre ele de títulos, registros ou matrículas,
notificando ainda os confinantes e ocupantes (art. 7.º e
§§). Concomitantemente encaminhará o relatório dessas
conclusões para opinião dos seguintes órgãos: iphan,
ibama, spu/mpog, incra, Secretaria Executiva do Con-
selho de Defesa Nacional e Fundação Cultural Palmares,
com prazo comum de 30 dias (art. 8.º).

66
A apuração preliminar oferecida pelo incra deve ser
apresentada aos diferentes órgãos públicos com atribui-
ções potencialmente incidentes sobre a área preliminar-
mente reconhecida sempre que verificada a relação com
as atribuições respectivas. Assim, a coincidência ou su-
perposição com áreas do patrimônio histórico, com áreas
de preservação ambiental de qualquer tipo ou porte, ou
do patrimônio da União, ou com ocupação indígena,
deve ser considerada previamente embora o direito dos
remanescentes de comunidades de quilombos mantenha-
se em princípio íntegro. É que todas estas instituições têm
por missão defender interesses nacionais de fundo igual-
mente constitucional, cuja proteção e preservação não
podem ser abandonados, cumprindo a todos eles a admi-
nistração concertada mediante adequação proporcional
dos interesses em jogo.
Nada obstante, parece ainda assim evidente que a
remessa do relatório técnico pelo incra a tais institui-
ções precisa ser entendida na devida conta, isto é, nos
limites da competência de cada uma destas organizações,
mostrando-se sobremodo inconveniente e desnecessá-
rio, por exemplo, encaminhar-se à funai, ou ao iphan,
ou ao ibama cópia (muitas vezes volumosa) dos relató-
rios técnicos quando manifestamente não se cuide de
sobreposição ambiental ou indígena, ou quando obvia-
mente não tenham nenhuma relação com o patrimônio
histórico. Do mesmo modo, revela-se excessiva a con-
sulta à Secretaria-Executiva do Conselho de Defesa
Nacional se as ocupações em processo de reconheci-
mento evidentemente não se relacionarem com a sobera-
nia nacional ou a defesa do Estado democrático,nem se
situarem em áreas indispensáveis à segurança nacional
(v.g. faixa de fronteiras) ou de preservação e explora-
67
ção de recursos naturais de qualquer tipo (art. 91, § 1.º,
iii da Constituição).
A disposição do art. 8.º do decreto, por tal razão,
merece leitura compreensiva evitando-se desnecessida-
des burocráticas que correm sempre em prejuízo dos
interesses dos remanescentes das ditas comunidades,
podendo o encarregado do processo administrativo, em
manifestação devidamente fundamentada, dispensar as
consultas inúteis. De qualquer sorte, a intervenção dos
diferentes órgãos tem natureza opinativa, não vinculan-
te, e serve tão só ao esclarecimento da autoridade admi-
nistrativa encarregada de deliberar ou julgar o caso ou
recurso, razão adicional para que a esta mesma autorida-
de caiba deliberar também sobre a necessidade da
audiência referida no art. 82 do decreto.

Uma vez resolvidas as dúvidas, impugnações e pendên-


cias diz o decreto “o INCRA concluirá o trabalho de titula-
ção da terra ocupada.” (art. 9.º). Se incidir a ocupação
sobre terreno de marinha farse-á em conjunto com o SPU
(art. 10); havendo sobreposição com áreas de preserva-
ção ambienta1, ou situando-se na faixa de fronteira ou
em terras indígenas, os respectivos órgãos e a fcp“toma-
rão as medidas cabíveis visando garantir a sustentabilida-
de destas comunidades, conciliando o interesse do Estado”
(art. 11). Incidindo sobre terras estaduais, distritais ou
municipais, caberá aos titulares destas instituições a titu-
lação cujo processo o incra encaminhará (art. 12). Por
fim, incidindo a ocupação sobre terra registrada como
propriedade particular cuja invalidade não tenha sido
68
apurada, a autarquia fundiária procederá à vistoria
visando à desapropriação (art. 13 e §§), garantido o reas-
sentamento dos ocupantes não remanescentes de qui-
lombos (art. 14). Cabe mencionar ainda que o incra
“durante o processo de titulação, garantirá a defesa dos
interesses dos remanescentes das comunidades de quilom-
bos nas questões surgidas em decorrência da titulação das
suas terras” (art. 15). A propriedade definitiva “será
reconhecida e registrada mediante a outorga de título cole-
tivo e pró-indiviso às comunidades referidas no art. 2.º,
caput, com obrigatória inserção de cláusula de inalienabi-
lidade, imprescritibilidade e impenhorabilidade” (art. 17).
A expedição do título e do registro cadastral serão pro-
cedidos pelo incra (art. 22 e parágrafo único).
Neste tópico o texto cuida de disciplinar as providên-
cias procedimentais formais de reconhecimento e titula-
ção das ocupações dos remanescentes de comunidades de
quilombos. E, com este intuito, as disposições fundantes
do decreto, como já referido, devem ser sempre recorda-
das e compreendidas à luz da interpretação constitucio-
nal do art. 68 do adct, ou seja, têm de ser consideradas
como pressupostos necessários para o objeto do estudo:
a) a propriedade coletiva incondicional e preexistente
revelada pela ocupação suficiente e necessária com vistas
à adequada manutenção e reprodução dos remanescentes
das comunidades de quilombos a ser apurada em estrita
atenção ao preceito constitucional com base na auto-afir-
mação dos interessados, e b) o dever indeclinável do Esta-
do de prover esse reconhecimento por título definitivo.
A partir daí, a questão é compatibilizar a proprieda-
de quilombola preexistente e as situações jurídicas even-
tualmente com ela conflitantes para o que o decreto, mes-
mo propondo soluções por vezes incompatíveis entre si,
69
ofereceu respostas que precisam ser compreendidas con-
certadamente conforme à Constituição.
Veja-se.
Se a ocupação estiver sobre terreno de marinha quando
se tratar de rios ou lagos federais, ou marinhas litorâneas
(cujo domínio é da União) – ou dos estados quando mar-
gearem rios ou lagos de seu domínio – o reconhecimento
deverá levar em conta o regime constitucional respectivo
das terras de marinha e sua vocação, de modo a convive-
rem proporcionadamente os interesses de cada um sem
prejuízo fatal de qualquer deles, isto é, preservando as
terras de marinha naquilo que é da sua essência consti-
tucional histórica (art. 20, vii cf) com resguardo da ocu-
pação dos remanescentes de quilombos e da administra-
ção pública (spu) até o limite do interesse público nacio-
nal mais relevante e que possa fazer ceder os interesses
dos remanescentes das comunidades citadas.
Assim também quando tais ocupações estiverem so-
brepostas a áreas de interesse da segurança nacional ou
situadas sobre terras devolutas ou de domínio público
na faixa de fronteiras, circunstância em que os direitos e
interesses das comunidades devem ser preservados jun-
tamente com os do interesse público da segurança nacio-
nal, uma vez definido este de modo concreto, evidente e
objetivo, mediante demonstração fundamentada e com
respeito aos títulos constitucionais de ambas as disposi-
ções axiológicamente equivalentes.
De outra parte, quando a ocupação de remanescentes
de comunidades de quilombos estiver localizada sobre
área de preservação ambiental cuja proteção também tem
notório fundamento constitucional, caberá à administra-
ção traçar regras de uso e fruição compartilhados, obser-
vadas todas as restrições do regime jurídico ambiental res-
70
pectivo de tal maneira que o reconhecimento da proprie-
dade quilombola não aniquile a proteção ambiental nem
a proteção ambiental inviabilize a propriedade dos referi-
dos remanescentes,podendo ser estes reeducados e reca-
pacitados para o uso sustentável das terras em questão.
O mesmo se dá na sobreposição de terras de ocupação
quilombola com terras de ocupação indígena. Sendo ambas
comunidades a quem a Constituição defere a posse in-
condicional das terras e não sendo possível a posse si-
multânea delas, as instituições respectivamente encarre-
gadas deverão encontrar segura delimitação entre elas
preservando as garantias constitucionais da ocupação
indígena conforme definida no art. 231 da Constituição
ao mesmo tempo em que respeitada a ocupação dos rema-
nescentes quilombolas, até porque não sendo em princí-
pio fisicamente coincidentes é possível separar-lhes os
limites se já não forem historicamente conhecidos, ca-
bendo aos profissionais da antropologia e da sociologia
a apuração técnica.
As terras de ocupação por remanescentes de comuni-
dades de quilombos que se encontrarem em área de
domínio estadual serão tituladas pelos estados, devendo-
se destacá-las do conjunto de suas terras devolutas ou de
seu patrimônio dominical, pelo reconhecimento da ocu-
pação. Uma questão possível é a discordância do estado
quanto à ocupação quilombola, se é certo que o compe-
tente para a definição e identificação de suas terras
públicas é o próprio estado federado e, de regra, é o esta-
do federado que reconhece e titula suas terras segundo
a sua lei estadual. Embora a solução do Decreto n.º 4.887
possa sugerir uma contradição lógica dita regra, no
entanto, tem de ser entendida apropriadamente. Isto é,
a titulação será realizada pelo estado quando as terras
71
ocupadas pelos quilombolas estiverem situadas no inte-
rior de terras de domínio estadual porque é este, afinal,
quem define os limites da suas terras em face da ocupa-
ção dos remanescentes de comunidades de quilombos e
concede-as visto que o domínio ou propriedade estadual
anterior desaparecem pelo reconhecimento da ocupação
quilombola.
Por derradeiro, estando as ocupações referidas sobre
terras particulares, ou melhor, sobre terras registradas
como de propriedade particular, e não sendo desde logo
detectada a invalidade dos títulos, o Decreto permite a
desapropriação. O art. 13 não menciona se se trata de
desapropriação da “propriedade” do particular, parecen-
do, no entanto, que é a esta última hipótese que se refe-
re o texto. Mostra-se indiscutível, no entanto, a ilação
lógica de que a propriedade dos quilombolas, sendo
reconhecida, é necessariamente decorrente do reconhe-
cimento, posto que a lei constitucional assim o manifes-
ta claramente,parecendo então cuidar-se,nos casos de
títulos anteriores legítimos, mesmo de desapropriação no
sentido de declaração da retirada da propriedade. Trata-
se, pois, de expressão cujo significado é peculiar, pois
essa providência na prática é apenas uma desapropriação
das terras, benfeitorias e construções de boa-fé erigidas
pela pessoa que até então se tinha como dona do imóvel.
De qualquer sorte, a administração deverá investigar os
títulos apresentados ou apurados quanto à sua legitimi-
dade e validade mesmo que a propriedade dos remanes-
centes das comunidades não seja questionável,pois nes-
se caso a ação de desapropriação tem também o efeito ju-
rídico de deslindar as terras quilombolas das de proprie-
dade particular ou pública, para a avaliação da neces-
sidade da desapropriação.
72
Dessas conclusões é possível extrair a certeza adicio-
nal de que aos remanescentes de comunidades quilom-
bolas, com ocupação sobre terras tidas por particulares -
como de resto igualmente quando sobre terras públicas
federais ou estaduais – deve ser sempre, da mesma manei-
ra e com o mesmo fundamento constitucional, reconheci-
da a posse jurídica delas para todos os efeitos legais, assim
que concluídos pelo incra os trabalhos de identificação,
delimitação e levantamento ocupacional da área sob
estudo, isto é, desde a publicação do edital correspon-
dente (art. 7.º, do Decreto n.º 4.887) o qual por isso mes-
mo deverá conter a expressa referência a essa qualidade
jurídica da ocupação enquanto não se expede o título
definitivo de reconhecimento da propriedade.

Finalmente, os arts. 16, 18, 19 e 20 do decreto discipli-


nam as providências a serem administradas pela Funda-
ção Cultural Palmares e a instituição de um comitê ges-
tor com respeito à defesa e manutenção das ocupações
reconhecidas. O art. 25 revoga o Decreto n.º 3.912 de
2001 e os arts. 21 e 23 disciplinam a transição de um regi-
me para o outro, entrando o Decreto n.º 4.887 em vigor
na data de sua publicação (art. 24).
Além do plano de etnodesenvolvimento a cargo do
comitê gestor e da assistência técnica a cargo dos órgãos
competentes,o decreto estabelece que a Fundação Cultu-
ral Palmares garantirá a assistência jurídica aos remanes-
centes das comunidades de quilombos (que o incra
deve garantir, durante o processamento administrativo
do reconhecimento, na forma do art. 15) bem como pres-
73
tará assessoramento aos órgãos da defensoria pública
quando estes representarem em juízo os interesses dos
remanescentes das comunidades. Isto, é certo, não exclui
a representatividade social deles pelas suas próprias
associações, em nome das quais, aliás, tem sido editado
o termo de reconhecimento (o modelo adotado pelo
incra, por exemplo, reconhece a posse às associações),
mas como os destinatários do reconhecimento constitu-
cional juridicamente são os remanescentes das comunida-
des de quilombos, em rigor, os legitimados para qualquer
demanda a respeito são os remanescentes, e não a associa-
ção, daí porque quem pode estar em juízo são os rema-
nescentes, os quais podem estar representados pela as-
sociação mas não o contrário. De todo modo, presume-se
estar a associação em representação dos remanescentes,
em juízo ou fora dele, sem embargo da assistência jurí-
dica que lhes pode prestar a fcp e a defesa que lhes pode
prover a defensoria pública (quando, porém, represen-
tados pela associação comunitária mostra-se discutível a
ação da defensoria).
Resta assinalar, embora o texto do decreto não refira,
o título de reconhecimento da propriedade e posse dos
remanescentes de comunidades de quilombos além do
registro cadastral no incra que o expediu, deve também
ser levado ao registro de imóveis da comarca correspon-
dente para operar o cancelamento dos registros anterio-
res, para segurança dos atos e para valerem contra tercei-
ros como declaração pública da propriedade, identifica-
ção e publicidade dos seus limites e confrontações.

74
VII

Nessa linha de compreensão, e para o esclarecimento das


diferentes instituições que participam do processo de
reconhecimento das ocupações dos remanescentes de
comunidades de quilombos, nos diferentes aspectos sus-
citados, submeto tais considerações à apreciação supe-
rior sugerindo,com base no art. 4.º, x (“fixar a interpre-
tação da Constituição a ser uniformemente seguida pelos
órgãos e entidades da Administração Federal’’) e xi (“diri-
mir as controvérsias entre os órgãos jurídicos da Adminis-
tração Federal’’), da Lei Complementar n.º 73 de 1993, o
efeito normativo ali previsto para orientá-las e prevenir
litígios e divergências entre órgãos da Administração.

Brasília, df, 24 de novembro de 2006.

Manoel Lauro Volkmer de Castilho


Consultor-Geral da União

75
A garantia do Direito à
posse dos remanescentes
de quilombos antes da
desapropriação

1. introdução: o problema

A Constituição de 88 acaba de completar 18 anos de ida-


de. No entanto, apesar de todo o tempo transcorrido, ain-
da existe grande incerteza jurídica em relação à correta
interpretação de um dos novos institutos que ela intro-
duziu: o direito à terra das comunidades de remanescen-
tes de quilombos, previsto no art. 68 do Ato das Dispo-
sições Constitucionais Transitórias, que dispõe:

Art. 68. Aos remanescentes das comunidades de qui-


lombos é reconhecida a propriedade definitiva, devendo
o Estado emitir-lhes os respectivos títulos.

Diante do laconismo do texto constitucional, surgiram


inúmeras dúvidas a propósito da exegese deste disposi-
tivo. Uma delas diz respeito ao instrumento apropriado
para a viabilização do comando normativo em questão.

77
Com efeito, alguns sustentaram que o próprio cons-
tituinte já teria operado a transferência da propriedade
aos quilombolas, afigurando-se, portanto, desnecessá-
ria a desapropriação das terras particulares a serem titu-
ladas em nome dos remanescentes de quilombos, e inde-
vido o pagamento de qualquer indenização aos antigos
proprietários privados. Outros, por sua vez, defende-
ram a necessidade da prévia desapropriação para a
transferência regular da propriedade às comunidades
quilombolas 24.
Inicialmente, o Governo Federal inclinou-se no senti-
do do descabimento da desapropriação, como se infere
da leitura do Parecer saj n.º 1.490⁄01, da Casa Civil da
Presidência da República, e do Decreto n.º 3.912, de 10
de setembro de 2001. Porém, diante de pressões legíti-
mas advindas do próprio movimento quilombola, o
Governo Federal, já na gestão do Presidente Luiz Inácio
Lula da Silva, alterou aquele entendimento, editando o
Decreto n.º 4.887, de 20 de novembro de 2003, que esta-
beleceu em seu art. 13:

Art. 13. Incidindo nos territórios ocupados por rema-


nescentes das comunidades dos quilombos título de
domínio particular não invalidado por nulidade, pres-
crição ou comisso, e nem tornado ineficaz por outros fun-
damentos, será realizada a vistoria e avaliação do imó-

24 Veja-se, neste sentido, o parecer da Sociedade Brasileira de Direito


Público, elaborado por equipe coordenada por Carlos Ari Sundfeld, e
publicado sob o título Comunidades Quilombolas: Direito à Terra. Brasí-
lia: Fundação Cultural Palmares, 2001; bem como Aurélio Virgílio Rios.
“Quilombos e Igualdade Étnico-Racial”. In: Flávia Piovesan e Douglas
Martins de Souza (Orgs.). Ordem Jurídica e Igualdade Étnico-Racial. Bra-
sília: seppir, 2006, p. 187-216.

78
vel, objetivando a adoção dos atos necessários à sua
desapropriação, quando couber.”

No presente parecer, não será objeto de discussão a cor-


reção desta orientação. Trabalhar-se-á a partir da premis-
sa normativa definida no Decreto n.º 4.887⁄2003, de que
a fórmula jurídica para a transferência aos quilombolas
da propriedade das terras titularizadas por particulares
é a desapropriação.
Não há dúvidas de que esta posição quanto à desapro-
priação encerra vantagens práticas importantes, seja por
proporcionar maior segurança jurídica em relação à vali-
dade dos títulos emitidos para as comunidades quilom-
bolas, seja por permitir a atenuação dos conflitos posses-
sórios existentes, através do pagamento de indenização
aos proprietários privados. Ocorre que ela gera, por
outro lado, um sério problema para os remanescentes de
quilombos e para a efetivação do art. 68 do adct.
É que na desapropriação, como se sabe, o proprietário
privado só perde a titularidade do bem após o pagamen-
to da indenização 25 (cf, art. 5.º, inciso xxiv, art. 182, §
3.º, e art. 184, caput), podendo, até lá, valer-se dos ins-
trumentos processuais reivindicatórios ou possessórios,
conforme o caso, visando à proteção do seu direito à pos-
se do imóvel de sua propriedade.
É verdade que a legislação prevê a possibilidade de
imissão provisória do Estado na posse do bem expropria-
do, seja na desapropriação por necessidade ou utilidade
pública (Decreto n.º 3.365⁄41, art. 15), seja naquela moti-
vada por interesse social (Lei n.º 4.132⁄62, art. 5.º), seja

25 Cf. Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso de Direito Administrativo.


19.ª ed., São Paulo: Malheiros, 2005, p. 822.;

79
ainda na desapropriação para fins de reforma agrária (Lei
Complementar n.º 76⁄93, art. 6.º, inciso i). Contudo,
estas medidas apenas são cabíveis depois do ajuizamen-
to da ação de desapropriação e do depósito do preço em
favor do proprietário, tal como determinado em lei.
Sabe-se, porém, que o Poder Público não tem sido
suficientemente ágil na propositura das ações expropria-
tórias relacionadas ao art. 68 do adct, por razões varia-
das, que vão da escassez de recursos financeiros para o
pagamento das indenizações, até a demora excessiva nos
procedimentos administrativos tendentes à identifica-
ção das comunidades de remanescentes de quilombos e
à demarcação dos respectivos territórios étnicos.
Infelizmente, os números, neste particular, são mais
que eloqüentes: embora a Fundação Cultural Palmares
estime serem mais de 1.000 as comunidades de remanes-
centes de quilombos existentes no Brasil 26, sendo gran-
de parte delas localizada, no todo ou em parte, em pro-
priedades particulares, contam-se nos dedos as desapro-
priações já promovidas visando à futura titulação de ter-
ritórios quilombolas.
Neste contexto, evidencia-se a precariedade da situa-
ção dos quilombolas, pois até a desapropriação ou a imis-
são provisória do Estado na posse da área a que fazem
jus, a sua permanência nos respectivos territórios étni-
cos permanece exposta ao risco grave e constante de
investidas dos respectivos proprietários e de terceiros. E
este risco é ainda maior, tendo em vista o fato de que

26 Informação oficial constante no sítio da Fundação Cultural Palmares,


www.palmares.gov.br, acessado em 3 de outubro de 2006. E este número
é ainda modesto, quando comparado com outros fornecidos pelo movi-
mento negro.

80
grande parte das comunidades quilombolas está situada
em áreas caracterizadas por intenso conflito fundiário.
No presente parecer buscar-se-á apontar e fundamen-
tar uma solução para esta problemática.
De modo muito resumido, pode-se adiantar que a
solução preconizada consiste no reconhecimento de
que o próprio texto constitucional operou a afetação
das terras ocupadas pelos quilombolas a uma finalida-
de pública de máxima relevância, eis que relacionada a
direitos fundamentais de uma minoria étnica vulnerá-
vel: o seu uso, pelas próprias comunidades, de acordo
com os seus costumes e tradições, de forma a garantir a
reprodução física, social, econômica e cultural dos gru-
pos em questão.
Assim, diante desta afetação constitucional, os pro-
prietários particulares não podem reivindicar a posse da
terra, ou buscar a sua proteção possessória contra os
quilombolas antes da desapropriação ou da imissão pro-
visória na posse pelo Poder Público. Diante da privação
da posse da terra, gerada pela sua ocupação pela comu-
nidade quilombola, o máximo que estes proprietários
podem fazer é postular o recebimento de indenização do
Poder Público, tal como ocorre na desapropriação indi-
reta. Já os remanescentes de quilombos, ao inverso,
podem se valer de todos os instrumentos processuais
adequados à efetivação e à proteção do seu direito à pos-
se do território étnico, mesmo antes da desapropriação,
e até independentemente dela, contra o proprietário ou
contra terceiros.
Esta, em suma, é a tese. A seguir, ela será explicitada
e fundamentada em maior detalhe.

81
2. o direito dos quilombolas aos seus territórios
étnicos como direito fundamental

O art. 68 do adct encerra um verdadeiro direito funda-


mental 27 e desta sua natureza resultam conseqüências
hermenêuticas extremamente relevantes, como será
exposto mais adiante.
Neste ponto, cumpre recordar que o catálogo dos
direitos fundamentais encartado no Título ii do texto
constitucional brasileiro é aberto, conforme se depreen-
de do disposto no art. 5.º, § 2.º, da Carta, segundo o qual
“os direitos e garantias expressos nesta Constituição não
excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por
ela adotados, e dos tratados internacionais em que a Repú-
blica Federativa do Brasil seja parte”.
Daí porque, é possível reconhecer a fundamentalida-
de de outros direitos presentes dentro ou fora do texto
constitucional. E o principal critério para o reconheci-
mento dos direitos fundamentais não inseridos no cató-
logo é a sua ligação ao princípio da dignidade da pessoa
humana, da qual aqueles direitos são irradiações 28.
Ora, o vínculo entre a dignidade da pessoa humana dos
quilombolas e a garantia do art. 68 do adct é inequívoca.
Primeiramente, porque se trata de um meio para a
garantia do direito à moradia (art. 6.º, cf) de pessoas
carentes, que, na sua absoluta maioria, se desalojadas das
terras que ocupam, não teriam onde morar. E o direito à
27 No mesmo sentido, Aurélio Virgílio Rios, op. cit., p. 189-181, e Débora
Macedo Duprat de Brito Pereira. “Breves Considerações sobre o Decreto
3.912/01”. In: Eliane Cantarino O’Dwyer. Quilombos: Identidade Étnica e
Territorialidade. Rio de Janeiro: FGV, 2002, p. 281-289.
28 Cf. Ingo Wolfgang Sarlet. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fun-
damentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 97-107.

82
moradia integra o mínimo existencial, sendo um compo-
nente importante do princípio da dignidade da pessoa
humana.
Mas não é só. Para comunidades tradicionais, a terra
possui um significado completamente diferente da que
ele apresenta para a cultura ocidental hegemônica 29. Não
se trata apenas da moradia, que pode ser trocada pelo
indivíduo sem maiores traumas, mas sim do elo que man-
tém a união do grupo, e que permite a sua continuidade
no tempo através de sucessivas gerações, possibilitando
a preservação da cultura, dos valores e do modo peculiar
de vida da comunidade étnica30.
Privado da terra, o grupo tende a se dispersar e a desa-
parecer, tragado pela sociedade envolvente. Portanto,
não é só a terra que se perde, pois a identidade coletiva
também periga sucumbir. Dessa forma, não é exagero
afirmar que quando se retira a terra de uma comunida-
de quilombola, não se está apenas violando o direito à
moradia dos seus membros. Muito mais que isso, se está
cometendo um verdadeiro etnocídio.

29 Cf. S. James Anaya. Indigenous Peoples in International Law. 2 nd. Ed.


New York: Oxford University Press, 2004, p. 90.
30 Sobre a importância do território para comunidades tradicionais, a
Corte Interamericana de Direito Humanos proferiu decisões paradigmáti-
cas. Por exemplo, no caso da Comunidade Indígena Yakye v. Paraguai, deci-
dido em 17 de junho de 2005, a Corte observou que “a garantia do direi-
to de propriedade comunitária dos povos indígenas deve levar em conta que
a terra está estreitamente relacionada com as suas tradições e expressões
orais, seus costumes e línguas, suas artes e rituais, seus conhecimentos e usos
relacionados com a natureza, suas artes culinárias, seu direito consuetudi-
nário, sua vestimenta, filosofia e valores. Em função do seu entorno, sua inte-
gração com a natureza e sua história, os membros das comunidades indíge-
nas transmitem de geração em geração este patrimônio cultural imaterial”.

83
Por isso, o direito à terra dos remanescentes de qui-
lombo pode ser identificado como um direito fundamen-
tal cultural (art. 215, cf), que se liga à própria identida-
de de cada membro da comunidade.
Neste ponto, não é preciso enfatizar que o ser huma-
no não é um ente abstrato e desenraizado, mas uma pes-
soa concreta, cuja identidade é também constituída por
laços culturais, tradições e valores socialmente compar-
tilhados 31. E nos grupos tradicionais, caracterizados por
uma maior homogeneidade cultural e por uma ligação
mais orgânica entre os seus membros, estes aspectos
comunitários da identidade pessoal tendem a assumir
uma importância ainda maior 32.
Por isso, a perda da identidade coletiva para os inte-
grantes destes grupos costuma gerar crises profundas,
intenso sofrimento e uma sensação de desamparo e de
desorientação, que dificilmente encontram paralelo
entre os integrantes da cultura capitalista de massas.
Mutatis mutandis, romper os laços de um índio ou de um
quilombola com o seu grupo étnico é muito mais do que
impor o exílio do seu país para um típico ocidental.

31 Cf. Michael Sandel. “The Procedural Republic and the Unencum-


bered Self”. In: Robert Goodin & Philip Pettit (Eds.). Contemporary
Political Philosophy. Oxford: Blackwell Publishers, 1997, p. 246-256; e
Charles Taylor. “A Política de Reconhecimento”. In: Charles Taylor et
all. Mulitculturalismo. Trad. Marta Machado. Lisboa: Instituto Piaget,
1998, p. 45-94.
32 Na sociologia, é conhecida a distinção, formulada por Ferdinand Tön-
nies, entre as sociedades em que os laços sociais são mais tênues, predo-
minando as forças centrífugas – e as comunidades, em que estes víncu-
los são mais estreitos e a relação entre os membros é mais orgânica. Nes-
te sentido, não há dúvida de que os remanescentes de quilombos cons-
tituem autênticas comunidades.

84
Assim, é possível traçar com facilidade uma ligação
entre o princípio da dignidade da pessoa humana – epi-
centro axiológico da Constituição de 88 – com o art. 68
do adct, que almeja preservar a identidade étnica e cul-
tural dos remanescentes de quilombos. Isto porque, a
garantia da terra para o quilombola é pressuposto neces-
sário para a garantia da sua própria identidade.
Não bastasse, não é apenas o direito dos membros de
cada comunidade de remanescentes de quilombo que é
violado quando se permite o desaparecimento de um gru-
po étnico. Perdem também todos os brasileiros, das pre-
sentes e futuras gerações, que ficam privados do acesso a
um “modo de criar, fazer e viver”, que compunha o pa-
trimônio cultural do país (art. 215, caput e inciso ii, cf).
Neste ponto, cabe destacar que a proteção à cultura
dispensada pela Constituição de 88 parte da premissa de
que o pluralismo étnico e cultural é um objetivo da máxi-
ma importância a ser preservado e promovido, no inte-
resse de toda a Nação. Diferentemente das Constituições
anteriores, a Carta de 88 não partiu de uma visão “monu-
mentalista” sobre o patrimônio histórico e cultural, inte-
grando-o antes em uma compreensão mais ampla, que se
funda na valorização e no respeito às diferenças, e no
reconhecimento da importância para o país da cultura de
cada um dos diversos grupos que compõem a nacionali-
dade brasileira.
Portanto, pode-se afirmar que o art. 68 do adct, além
de proteger direitos fundamentais dos quilombolas, visa
também à salvaguarda de interesses transindividuais de
toda a população brasileira.
Por tais razões, é legítimo concluir que o art. 68 do
adct contém autêntica norma consagradora de direito
fundamental. No próximo item, examinar-se-ão as con-
85
seqüências relevantíssimas desta conclusão no que tan-
ge à interpretação do referido preceito constitucional, e
da legislação que se volta à sua concretização.

3. direitos fundamentais, máxima efetividade,


eficácia irradiante e vinculação
dos particulares

Os direitos fundamentais sujeitam-se a um regime dife-


renciado em relação às demais normas da Constituição,
que visa a reforçar a sua força normativa e ampliar o seu
potencial transformador 33. Este reforço resulta do reco-
nhecimento da importância central dos direitos funda-
mentais no sistema constitucional34, e da constatação dos
riscos a que eles se sujeitam, sobretudo no contexto de
sociedades desiguais e opressivas como a brasileira.
Um dos traços característicos deste regime reforçado é
a preocupação com a eficácia social dos direitos funda-
mentais 35. É verdade que há uma saudável tendência à
busca da efetividade de todas as normas constitucio-
nais 36. Contudo, em matéria de direitos fundamentais,
esta tendência deve ser ainda mais pronunciada, e ela
encontra respaldo em um princípio enunciado no próprio
texto constitucional, no seu art. 5.º, § 1.º, que dispõe:

33 Cf. José Joaquim Gomes Canotilho. Direito Constitucional e Teoria da


Constituição. Rio de Janeiro: Almedina, 2003, p.
34 Cf. Gregório Peces-Barba Martínes. Curso de Derechos Fundamenta-
les: Teoria General. Madrid: Universidad Carlos iii, 1999, p. 577.
35 A obra clássica sobre o tema no Direito brasileiro é de Ingo Wolfgang
Sarlet. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria dos
Advogados, 1997.
36 Veja-se, a propósito, Luis Roberto Barroso. O Direito Constitucional e
a Efetividade das suas Normas. Rio de Janeiro: Renovar, 1991.

86
§ 1.º As normas definidoras dos direitos e garantias
individuais têm aplicabilidade imediata.

Este princípio significa, em primeiro lugar, que os direi-


tos fundamentais não dependem de concretização legis-
lativa para surtirem os seus efeitos. Portanto, o próprio
texto constitucional pode ser invocado diretamente
como fundamento para a proteção de direitos subjetivos
pelos indivíduos ou coletividades que os titularizem.
Por outro lado, ele envolve também o dever do intér-
prete de buscar a máxima efetivação dos direitos funda-
mentais, de modo a retirá-los do campo das promessas
constitucionais para torná-los reais na vida de pessoas de
carne e osso. Nesta linha, entre várias exegeses e cons-
truções possíveis de um determinado instituto, o intér-
prete deve sempre buscar aquela que confira maior for-
ça normativa aos direitos fundamentais.
No caso em questão, negar aos quilombolas o direito
à posse das terras que ocupam até a consumação da ação
expropriatória, ou a imissão do Poder Público na posse
do imóvel desapropriado, significa exatamente negar
este princípio. Isto porque, esta tese condiciona a frui-
ção de direitos auto-aplicáveis a iniciativas dos gover-
nantes de plantão, sobre as quais as comunidades de
remanescentes de quilombo não exercem nenhum con-
trole, e que, em geral, quando são adotadas, vêm com
grande atraso.
Portanto, não assegurar aos remanescentes de quilom-
bos, até o implemento da desapropriação, o direito à pos-
se das terras que ocupam , é negar o próprio objetivo do
art. 68 do adct, que é preservar as comunidades qui-
lombolas, protegendo a identidade étnica dos seus mem-
bros, bem como o patrimônio cultural do país.
87
Mas não é só. Outro traço característico do regime
jurídico dos direitos fundamentais é o reconhecimento
da sua dimensão objetiva37. A dimensão objetiva repre-
senta uma “mais valia” para os direitos fundamentais38.
Ela significa que, além de direitos subjetivos, os direitos
fundamentais encarnam também os valores básicos de
uma sociedade democrática39, que devem penetrar por
toda a ordem jurídica.
Um dos aspectos centrais da dimensão objetiva dos
direitos fundamentais é a atribuição de uma eficácia irra-
diante a estes direitos40. A eficácia irradiante importa na
ampliação da influência dos direitos fundamentais sobre
a legislação infraconstitucional, ao obrigar o operador
do direito a interpretar e aplicar as normas ordinárias da
forma que mais potencialize tais direitos.
Em outras palavras, trata-se de possibilitar a maior
penetração possível dos direitos fundamentais em todos
os setores do ordenamento, que deve ser filtrado e reli-
do à sua luz. Com isso, os direitos fundamentais se irra-
diam por todo o Direito, imprimindo feições mais huma-
37 Cf. Daniel Sarmento. “A Dimensão Objetiva dos Direitos Fundamen-
tais: Fragmentos de uma Teoria”. In: José Adércio Leite Sampaio (Coord.).
Jurisdição Constitucional e Direitos Fundamentais. Belo Horizonte: Del
Rey, 2003, p. 251-314; e Ingo Wolfgang Sarlet. A Eficácia dos Direitos
Fundamentais. Op. cit., p. 139-149.
38 A expressão é de José Carlos Vieira de Andrade, em Os Direitos Fun-
damentais na Constituição Portuguesa de 1976. Coimbra: Almedina,
1998, p. 165.
39 Cf. Konrad Hesse. Elementos de Direito Constitucional da República
Federal da Alemanha. Trad. Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio
Antonio Fabris, 1998, p. 239, e Gilmar Ferreira Mendes. .
40 Cf. Robert Alexy. Teoria de los Derechos Fundamentales. Trad. Ernes-
to Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constituciona-
les, 1997, p. 507-510.

88
nas e emancipatórias aos institutos e conceitos tradicio-
nais da ordem jurídica.
E isso vale inclusive em relação ao Direito Administra-
tivo. De fato, em um contexto de constitucionalização do
Direito, não pode o intérprete, em nenhuma área, quedar-
se refém dos conceitos e categorias tradicionais, ignoran-
do a penetração dos valores constitucionais no tecido nor-
mativo, especialmente os relacionados aos direitos funda-
mentais. Por isso, também no Direito Administrativo, con-
soante as palavras de Gustavo Binenbojm, ‘toda a ativida-
de interpretativo-aplicativa (do legislador, do administra-
dor e do juiz) deve ser realizada em conformidade e com vis-
tas a maior realização possível dos direitos fundamentais”41.
Estas idéias reforçam a tese defendida neste estudo,
de que o instituto do Direito Administrativo da afetação,
que é utilizado para impedir a retomada por particulares
de áreas que tenham sido empregadas pelo Estado em
finalidades públicas, pode ser aplicado para proteger a
posse dos quilombolas antes do advento da desapropria-
ção, uma vez que não há finalidade mais importante, sob
a perspectiva constitucional, do que a garantia de direi-
tos fundamentais e da dignidade humana de um grupo
vulnerável como os remanescentes de quilombos.
Finalmente, há uma outra característica dos direitos
fundamentais que também tem importância na questão
ora examinada. Trata-se da sua eficácia horizonta , que
significa a vinculação dos particulares a estes direitos 42.
41 Gustavo Binenbojm. Uma Teoria do Direito Administrativo: Direitos
Fundamentais, Democracia e Constitucionalização. Rio de Janeiro: Reno-
var, 2006, p. 76.
42 Veja-se, a propósito, Daniel Sarmento. Direitos Fundamentais e Rela-
ções Privadas. 2.ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006; Wilson Stein-
metz. A Vinculação dos Particulares aos Direitos Fundamentais. Porto

89
A concepção tradicional dos direitos fundamentais
era a de que eles só obrigavam ao Estado. Contudo, com
o passar do tempo, foi se tornando evidente que, diante
da ubiqüidade da opressão e da injustiça, os direitos fun-
damentais não poderiam se limitar ao campo das relações
entre cidadãos e Estado, sob pena de não desempenha-
rem a contento o seu papel de proteção da dignidade hu-
mana. Assim, passou-se a reconhecer que os direitos fun-
damentais se projetam nas relações privadas – ainda que
com certas nuances e especificidades –, criando deveres
também para particulares.
No Brasil, a jurisprudência, inclusive do stf, tem
reconhecido que os direitos fundamentais também vin-
culam os particulares e entidades privadas 43, em perfei-
ta consonância, neste particular, com a filosofia que
transparece na Carta, que não se ilude com a miragem
liberal-burguesa de que só o Estado representa ameaça
aos direitos humanos.
Assentada esta premissa, fica fácil sustentar que é per-
feitamente compatível com a Constituição restringir, em
nome da tutela dos direitos fundamentais dos quilombo-
las, certas faculdades inerentes ao direito de proprieda-

contituação 42 Alegre: Livraria do Advogado, 2004; e Ingo Wolfgang


Sarlet (Org.) Direitos Fundamentais e Direito Privado. Porto Alegre: Livra-
ria do Advogado, 2004.
43 Veja-se, em especial, Recurso Extraordinário n.º 158.215-4/rs, 2.ª Tur-
ma, Rel. Ministro Marco Aurélio, sobre a aplicação do princípio do devi-
do processo legal no âmbito de cooperativas; Recurso Extraordinário n.º
161.243-6/df, 2.ª Turma, Rel. Ministro Carlos Velloso, sobre a aplicação
do princípio da igualdade em relações de emprego no âmbito de empre-
sa aérea estrangeira; e Recurso Extraordinário n.º 201.819/rj, Rel. Min.
Gilmar Ferreira Mendes, sobre a incidência dos princípios da ampla defe-
sa e contraditório em sociedade civil.

90
de dos particulares, retirando-lhes a possibilidade do
uso de instrumentos possessórios e petitórios contra
remanescentes de quilombos, mesmo antes da desapro-
priação das terras destinadas a estes pelo constituinte.
É certo que tampouco seria constitucionalmente cor-
reto ignorar na solução do problema estes direitos de
propriedade – que também receberam proteção consti-
tucional. Porém, o que se propõe no caso é solução bem
diversa, que visa a conciliar, numa ponderação de inte-
resses constitucionalmente adequada, tanto os direitos
dos proprietários privados, como os direitos dos quilom-
bolas, assegurando aos primeiros a faculdade de postu-
larem uma indenização por perdas e danos contra o Esta-
do, mas também protegendo a posse dos remanescentes
de quilombos. Este tema será explorado mais detidamen-
te no próximo item deste estudo.

4. propriedade privada v. direito à terra dos


quilombolas: colisão de direitos, função
social da propriedade e princípio
da proporcionalidade

É corrente a afirmação de que os direitos fundamentais


não são absolutos, já que concorrem freqüentemente
com outros direitos fundamentais, ou bens jurídicos
também revestidos de estatura constitucional 44.
Nestes casos de colisão, os critérios tradicionais para
resolução de antinomias – cronológico, hierárquico e de
especialidade – são, no mais das vezes, de pouca valia. Por
isso, a jurisprudência e a doutrina vêm reconhecendo a

44 Cf. Norberto Bobbio. A Era dos Direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho.
Rio de Janeiro: Ed. Campus, p. 42.

91
necessidade de recorrer, nestas hipóteses, a ponderações
de interesses 45, que visem a preservar ao máximo possível
os bens jurídicos envolvidos nos conflitos normativos.
Esta situação se manifesta no caso em questão, em que
se tem, de um lado, o direito de propriedade dos particu-
lares cujos imóveis são ocupados por quilombolas, e, do
outro, o direito à terra das comunidades de remanescen-
tes de quilombos. Não seria legítimo, diante deste confli-
to, ignorar qualquer dos termos da equação. Pelo contrá-
rio, exige-se a busca de solução proporcional, que im-
ponha restrições recíprocas aos bens jurídicos em litígio,
atenta à importância relativa que eles possuem no sistema
de valores sobre o qual se assenta a ordem constitucional.
Assim, cabe, inicialmente, valorar os interesses cons-
titucionais em jogo.
De um lado, tem-se o direito das comunidades quilom-
bolas às terras que ocupam. No item 2 deste parecer, já
se demonstrou que este não é um simples direito patri-
monial, pois a sua garantia é condição necessária para a
existência da comunidade étnica. Por isso, tal direito en-
contra-se associado diretamente à própria identidade e
dignidade humana de cada membro do grupo, ligando-se
também, por outro lado, ao direito de todos os brasileiros
à preservação do patrimônio histórico-cultural do país.
Do outro lado da balança figura o direito de proprie-
dade das pessoas ou entidades privadas em cujos nomes

45 Cf. Robert Alexy. Teoria de los Derechos Fundamentales. Op. cit., p.


81-172; Gilmar Ferreira Mendes. “Os Direitos Individuais e suas Limita-
ções: Breves Reflexões”. In: Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires
Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco. Hermenêutica Constitucional e
Direitos Fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2000, p. 223-280; e
Daniel Sarmento. A Ponderação de Interesses na Constituição Federal. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 1999.

92
as terras ocupadas pelos quilombolas estiverem registra-
das. Não há dúvida de que a propriedade privada é tam-
bém um direito fundamental (art. 5.º, inciso xxii, cf),
configurando, ademais, um princípio essencial na ordem
econômica do capitalismo.
Contudo, é importante destacar que o direito de pro-
priedade não tem mais a primazia absoluta que desfru-
tava no regime constitucional do liberalismo-burguês.
Com o advento do Estado Social, o direito de proprieda-
de foi relativizado, em proveito da proteção de outros
bens jurídicos essenciais, como os direitos dos não-pro-
prietários, a tutela do meio ambiente e do patrimônio
histórico-cultural.
Neste sentido, muitas constituições, e dentre elas a bra-
sileira (art. 5.º, inciso xxiii, e art. 170, inciso iii, cf), pas-
saram a impor o cumprimento da função social da proprie-
dade. E neste novo contexto, alguns autores chegaram até
a afirmar que a propriedade que não cumpre a sua fun-
ção social deixa de ser tutelada pela ordem jurídica46.
Neste quadro, pode-se avaliar o peso do direito à pro-
priedade privada na nossa ponderação. Trata-se, no caso,
não de uma propriedade qualquer, mas de uma proprieda-
de cuja função social já foi pré-definida pela Constituição
no art. 68 adct: a de servir para ocupação das comunida-
des de remanescentes de quilombos, possibilitando a exis-
tência de um grupo étnico e a reprodução da sua cultura.
Portanto, qualquer outra finalidade que o proprietá-
rio privado queira dar à terra – ainda que relacionada a
46 Veja-se, neste sentido, Gustavo Tepedino. “Contornos Constitucio-
nais da Propriedade Privada”. In: Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro:
Renovar, 1999, p. 267-292; e Pietro Perlingeri. Perfis do Direito Civil:
Introdução ao Direito Civil-Constitucional. Trad. Maria Cristina de Cicco.
Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 220-232.

93
atividades economicamente produtivas – não significa
atendimento à função social da propriedade, mas sim
numa necessária violação a ela.
A conclusão que se obtém, portanto, é a de que, na
escala de valores da Constituição, o direito à terra dos
quilombolas tem, a priori, um peso superior ao direito de
propriedade privada dos particulares em cujos nomes as
áreas estejam registradas. Contudo, isto não significa,
como se adiantou antes, que se possa simplesmente igno-
rar este último direito na resolução da questão. Pelo con-
trário, no equacionamento da colisão, é necessário pre-
servá-lo em alguma medida, de forma compatível com o
princípio da proporcionalidade.
Este princípio, cuja vigência no ordenamento brasi-
leiro é hoje reconhecida em uníssono pela doutrina e
jurisprudência, consiste no principal instrumento para
aferição da validade das medidas restritivas de direitos
fundamentais. De acordo com a posição majoritária,
cujas origens remontam à dogmática constitucional ger-
mânica, tal princípio pode ser desdobrado em três sub-
princípios, assim sintetizados por Luís Roberto Barroso:

(a) da adequação, que exige que as medidas adotadas se


mostrem aptas para atingir os objetivos pretendidos; (b)
da necessidade ou exigibilidade, que impõe a verificação
da inexistência de meio menos gravoso para o atingi-
mento dos fins visados; e da (c) proporcionalidade em
sentido estrito fins, que é a ponderação entre o ônus im-
posto e o benefício trazido, para constatar se é justificá-
vel a interferência na esfera dos direitos do cidadão 47.

47 Luís Roberto Barroso. Interpretação e Aplicação da Constituição. São


Paulo: Saraiva, 1996, p. 209. Sobre os subprincípios em questão, veja-se

94
No caso, vejamos se a solução preconizada está em
conformidade com o princípio da proporcionalidade.
Em relação ao subprincípio da adequação, trata-se de
saber se a restrição à faculdade do proprietário de valer-
se dos instrumentos possessórios e petitórios contra as
comunidades de remanescentes de quilombos antes da
desapropriação é medida adequada para os fins a que se
destina. O fim aqui perseguido é a garantia do direito à
terra dos quilombolas, e, por conseqüência, a preservação
da própria comunidade de remanescentes de quilombo.
A resposta só pode ser positiva. Não há dúvida de que
preservar e garantir a posse do território étnico para os
quilombolas mesmo antes da desapropriação configura
medida adequada visando lhes assegurar o gozo do seu
direito à terra e à preservação da sua identidade coleti-
va, bem como o interesse social na tutela do patrimônio
histórico-cultural.
Já o teste da necessidade ou exigibilidade envolve o
exame da eventual existência de medida mais branda
que pudesse atingir os mesmos objetivos. Neste caso, não
se vislumbra qualquer medida mais suave, uma vez que
a tutela do direito à posse dos quilombolas antes da desa-
propriação afigura-se realmente indispensável para o
atingimento daqueles objetivos. Sem a garantia efetiva
desta posse, os riscos de perecimento da própria comu-
nidade, até o advento da desapropriação, são, como já
salientado, bastante elevados.
continuação 47 também Robert Alexy, op. cit., p. 111-115; José Joaquim
Gomes Canotilho. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Op. cit.,
p. 262-263; e Paulo Bonavides. Curso de Direito Constitucional. São Pau-
lo: Malheiros, 1999, p. 360-361; e Suzana de Barros Toledo. O Princípio
da Proporcionalidade e as Leis Restritivas de Direitos Fundamentais. Bra-
sília: Brasília Jurídica, 1995, p. 148-153.

95
Neste ponto, há que se ter em vista o fato de que a
solução ora preconizada está longe de ser drástica, na
medida em que reconhece o direito do proprietário de
obter junto ao Poder Público uma indenização pela pri-
vação da posse do bem antes da perda definitiva da pro-
priedade. Apenas não se condiciona a tutela da posse do
quilombola ao prévio pagamento da referida indenização,
uma vez que esta outra alternativa, embora mais branda,
seria francamente insatisfatória, já que importaria em
não-atendimento do objetivo constitucional perseguido,
que é a preservação da comunidade étnica.
Finalmente, passa-se à última fase do teste, que con-
siste no exame da proporcionalidade m sentido estrito.
Em outras palavras, cuida-se agora de sopesar os ônus e
benefícios advindos da medida para os interesses cons-
titucionais em conflito, o que deve ser realizado dentro
do marco axiológico da Carta de 88.
Primeiro o benefício: a proteção da posse dos quilom-
bolas independentemente da desapropriação possibilita
que a comunidade continue vivendo no seu próprio ter-
ritório, com segurança jurídica e de acordo com os seus
costumes e tradições, mesmo diante da eventual demora
do Estado no ajuizamento da competente ação expropria-
tória. É um benefício extremamente importante numa
Constituição que se preocupa tanto com a garantia da dig-
nidade da pessoa humana dos grupos vulneráveis, com a
proteção do patrimônio histórico-cultural e com a defesa
do pluralismo.
Em seguida, o ônus. Há uma restrição às faculdades
do proprietário relacionadas à possibilidade de exclusão
dos quilombolas do uso e gozo dos territórios étnicos.
Note-se, porém, que esta restrição atua a favor e não con-
tra a função social da propriedade, uma vez que, como
96
antes destacado, a função social dos territórios ocupados
por remanescentes de quilombos é, por definição cons-
titucional, a de servir de locus para a vida daquelas co-
munidades, e não a realização de quaisquer outros obje-
tivos visados pelo proprietário particular. Ademais, tra-
ta-se de restrição mitigada pelo reconhecimento do direi-
to subjetivo do proprietário ao recebimento de uma
indenização, a ser paga pelo Poder Público, tal como
ocorre na desapropriação indireta.
Neste quadro, não há como negar que a medida se justi-
fica plenamente, uma vez que os benefícios constitucio-
nais obtidos sobrepujam visivelmente os ônus impostos.
Portanto, trata-se de solução equilibrada, que presti-
gia, na medida do possível, os interesses constitucionais
em conflito, numa ponderação pautada pelo princípio da
proporcionalidade.
Vejamos, a seguir, como a solução sugerida está em
perfeita consonância com a dogmática do Direito Admi-
nistrativo. No próximo item, será demonstrado como as
mesmas razões que justificam a inadmissibilidade da
proteção à posse do particular no caso da desapropriação
indireta estão presentes – e em intensidade muito maior
– nas questões envolvendo o direito à terra dos remanes-
centes de quilombos.

5. afetação, desapropriação indireta e o


direito à terra das comunidades quilombolas

A doutrina e a jurisprudência são pacíficas no sentido de


que o proprietário particular não pode reivindicar ou
reintegrar-se na posse de terras em seu nome que já
tenham sido afetadas pelo Estado a alguma função de
interesse público.
97
Nestas hipóteses, entende-se que a não-propositura
pelo Estado da competente ação expropriatóra não é sufi-
ciente para conferir ao proprietário o poder de vindicar
o próprio bem. Cabe-lhe, tão-somente, o direito de pos-
tular o recebimento de uma reparação pecuniária do
Poder Público, pela desapropriação indireta da sua pro-
priedade. Confira-se, no particular, o magistério de Cel-
so Antônio Bandeira de Mello:

Desapropriação indireta é a designação dada ao abusivo


e irregular apossamento do imóvel particular pelo Poder
Público, com a sua conseqüente integração no patrimônio
público, sem obediência às formalidades e cautelas do
procedimento expropriatório. Ocorrida esta, cabe ao le-
sado recurso às vias judiciais para ser plenamente inde-
nizado, do mesmo modo que o seria caso o Estado hou-
vesse procedido regularmente 48.

Esta é também a orientação jurisprudencial incontrover-


sa, inclusive do STF e do STJ:

Recurso Extraordinário. Desapropriação Indireta. Pres-


crição. Enquanto o expropriado não perde o direito de pro-
priedade por efeito do usucapião do expropriante, vale o
princípio constitucional sobre o direito de propriedade e o
direito a indenização, cabendo a ação de desapropriação
indireta. O prazo, para esta ação, é o da reivindicatória.
Confere-se a ação de desapropriação indireta o caráter
de ação reivindicatória, que se resolve em perdas e
danos, diante da impossibilidade de o imóvel voltar a

48 Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso de Direito Administrativo.


Op. cit., p. 823.

98
posse do autor, em face do caráter irreversível da afe-
tação pública que lhe deu a Administração Públicas.
Subsistindo o título de propriedade do autor, daí resul-
ta sua pretensão a indenização, pela ocupação indevida
do imóvel, por parte do Poder Público, com vistas à rea-
lização de obra pública. (stf, Rec. Ext. 109853/sp, Rel.
Min. Néri da Silveira, julgado em 19.12.1991)

Processual. Reclamação. Processo de Desapropriação.


Imissão Provisória. Insuficiência do Depósito. Afetação
do bem ao serviço público. Reintegração do expropria-
do. Impossibilidade. Imitido, sem depósito de valor sufi-
ciente, o expropriante na posse do imóvel e afetado o bem
ao serviço público, a reintegração do expropriado torna-
se impossível. Opera-se anomalia, através do qual, o
processo transforma-se em desapropriação indireta, em
que a execução de sentença haverá de observar o art. 730
do CPC. (stj, Embargos de Declaração na Reclamação
n.º 471, 1.ª Seção, Rel. Min. Humberto Gomes de Bar-
ro, julgado em 16.12.1997)

Cumpre observar que dita construção resultou de cria-


ção pretoriana 49, que buscou conciliar o interesse públi-
co com o direito de propriedade do particular.
Ora, no caso presente, a mesma constelação de inte-
resses se apresenta, e de forma ainda mais desfavorável à
tutela específica do direito à posse do proprietário.
Com efeito, se, na desapropriação indireta, a afetação
do imóvel a uma determinada finalidade pública resulta
de uma mera escolha do administrador, realizada, ainda

49 Cf. José Carlos de Moraes Salles. A Desapropriação à Luz da Doutri-


na e da Jurisprudência. 3.ª ed. São Paulo: rt, 1995, p. 744.

99
por cima, sem observância das formalidades legais per-
tinentes, no caso das terras quilombolas a situação é bem
diferente.
Nesta outra hipótese, a afetação do bem foi promovi-
da pelo próprio poder constituinte originário, no art. 68
do adct, pois foi ele quem destinou aos quilombolas as
terras por eles ocupadas.
Ademais, nesta situação, a ocupação não constitui ato
ilícito, sendo antes protegida pela Constituição. Ilícita é
apenas a demora do Estado na propositura da ação de de-
sapropriação, que não pode ser imputada direta ou indire-
tamente às comunidades de remanescentes de quilombos.
E o interesse público presente no caso é de elevadís-
sima importância: trata-se da tutela da dignidade huma-
na de um grupo étnico vulnerável, associada à proteção
do patrimônio histórico-cultural do país. Avaliado sob a
perspectiva constitucional, o interesse público aqui pre-
sente é muito mais valioso do que, por exemplo, aquele
que subjaz à construção de uma obra pública qualquer.
Ademais, do ponto de vista lógico, seria um enorme
contra-senso permitir a retirada de remanescentes de
quilombos dos seus territórios étnicos – pondo em risco
a sobrevivência do grupo – para, em seguida à desapro-
priação, restituir a eles as mesmas terras. Mais que isso,
seria um atentado indesculpável aos direitos fundamen-
tais destas populações, com a completa frustração dos
objetivos subjacentes ao referido art. 68 do adct.
Portanto, se é verdade, como sustentado ao longo des-
te parecer, que os institutos do Direito Administrativo
devem ser interpretados ao lume da Constituição, visan-
do a maximizar a eficácia dos direitos fundamentais,
então parece inequívoco que a não-propositura pelo Esta-
do da ação de desapropriação não pode despojar os qui-
100
lombolas do direito de permanecerem nas terras que lhes
devem pertencer, por vontade do próprio constituinte.
Neste quadro, pode-se concluir que a solução para a
questão passa pelo mesmo caminho que levou a jurispru-
dência a reconhecer o instituto da administração indire-
ta. Deve-se, por um lado, rechaçar a possibilidade de os
proprietários vindicarem as terras ocupadas por rema-
nescentes de quilombos, reconhecendo-se, contudo, o
seu direito ao recebimento de indenização do Estado pela
privação do uso destas terras.
E, por outro lado, deve-se reconhecer, a partir de uma
interpretação teleológica do art. 68 do adct, o direito
dos remanescentes de quilombo de ocuparem o seu ter-
ritório étnico mesmo antes da desapropriação, valendo-
se de todos os meios processuais pertinentes para a
defesa deste direito, em face de terceiros ou do próprio
proprietário.
O mesmo raciocínio do parágrafo anterior vale para
hipóteses em que os títulos em nome de particulares
sejam inválidos. Também neste caso, o direito à posse das
comunidades quilombolas deve ser protegido antes, e in-
dependentemente, do ajuizamento das eventuais ações
desconstitutivas dos títulos registrados, ressalvando-se
apenas que nesta situação não haverá que se falar em in-
denização por desapropriação indireta50.
Finalmente, cumpre ressaltar que o incra, em algu-
mas localidades, já vem expedindo Termo de Reconheci-
mento de Posse em favor das comunidades quilombolas
situadas em áreas tituladas em nome de particulares,
independentemente da propositura de ação expropriató-
ria. Neste sentido, a orientação defendida no presente

50 Todavia, nesta hipótese pode caber a indenização por benfeitorias.

101
parecer apenas forneceria fundamentação constitucional
à referida prática administrativa.

6. sugestão de encaminhamento

A tese acima sustentada pode ser inferida diretamente da


própria Constituição, que deve ser aplicada às relações
sociais independentemente da mediação de qualquer ato
normativo. Portanto, não é necessária, a rigor, a edição
de qualquer ato para viabilizar a sua invocação em sede
jurisdicional ou administrativa.
Sem embargo, seria altamente positivo o reconheci-
mento da validade da tese pela Administração Pública,
em especial pelos órgãos que lidam diuturnamente com
a questão quilombola – como incra, Advocacia-Geral da
União, Fundação Cultural Palmares, seppir e Defensoria-
Geral da União.
Isto porque, trata-se de uma orientação concernente
à interpretação de normas constitucionais, num tema
controvertido e revestido de uma certa complexidade
teórica, com o qual a grande maioria dos juristas não está
familiarizada. Neste quadro, a sedimentação normativa
desta orientação, bem com a sua divulgação interna e ex-
terna, fortaleceriam a defesa dos direitos dos remanes-
centes de quilombos, municiando os órgão e entidades
que atuam na questão quilombola com argumentos cons-
titucionais importantes para que desempenhem de for-
ma mais eficiente o seu mister.
Ora, a Lei Complementar n.º 73, no seu art. 4.º, § 3.º,
inciso x, estabelece a competência do Advogado-Geral
da União para “fixar a interpretação da Constituição e das
leis, dos tratados e demais atos normativos, a ser unifor-
memente seguida pelos órgão e entidades da Administra-
102
ção Federal”. E o art. 40, § 1.º, da mesma lei, por sua vez,
prevê a vinculação da Administração Federal aos pare-
ceres do Advogado-Geral da União que sejam aprovados
pelo Presidente da República e devidamente publicados.
Assim, sugere-se que a tese em questão seja encami-
nhada ao Exmo Sr. Advogado-Geral da União, com a su-
gestão de que S. Exa. elabore e submeta ao Presidente
da República parecer no sentido de que, por força da
interpretação do art. 68 do adct, é protegida a posse
das áreas destinadas às comunidades de remanescentes
de quilombos, independentemente da propositura de
ação de desapropriação, restando aos proprietários pri-
vados, que tenham títulos válidos sobre a área, a possi-
bilidade de ajuizamento de ações de reparação de danos
contra o incra, à semelhança do que ocorre na desapro-
priação indireta.
Ademais, sugere-se, ainda, seja dada divulgação dos
termos do presente estudo, pelo próprio Ministério
Público Federal, às entidades da sociedade civil e aos
órgãos estatais que atuam em defesa das comunidades de
remanescentes de quilombos, em todas as esferas da
federação.

É o parecer.

Rio de Janeiro, 9 de outubro de 2006.

Daniel Sarmento
Procurador Regional da República

103
Quilombos na perspectiva
da igualdade étnico-racial:
raízes, conceitos,
perspectivas 51

1. introdução ao direito das minorias

Uma nova perspectiva concretizou-se com o processo de


multiplicação dos direitos humanos. Norberto Bobbio 52
ensina que este processo de “proliferação de direitos”
envolve não apenas o acréscimo dos bens e pessoas dig-
nas de tutela específica pelas Constituições e leis escri-
tas como também implica em ampliar a titularidade de
direitos já assegurados a algumas categorias ou aos cida-
dãos de um modo geral.
Flávia Piovesan explica, com precisão, os novos para-
digmas a serem incluídos no Direito. Segundo ela “a par-
tir da extensão da titularidade de direitos, há o alarga-
mento do próprio conceito de sujeito de direito, que pas-
51 Texto originariamente publicado em Ordem Jurídica e Igualdade Étni-
co-Racial. Coord. Flávia Piovesan e Douglas Martins de Souza, seppir,
Brasília, 2006.
52 bobbio, Norberto. A Era dos Direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho,
Ed. Campus, Rio de Janeiro, 1992.

105
sou a abranger, além do indivíduo, as entidades de clas-
se, as organizações sindicais, os grupos vulneráveis e a
própria humanidade. Este processo implicou ainda a
especificação do sujeito de direito, tendo em vista que,
ao lado do sujeito genérico e abstrato, delineia-se o sujei-
to de direito concreto, visto em sua especificidade e na
concreticidade de suas diversas relações. Isto é, do ente
abstrato, genérico, destituído de cor, sexo, idade, classe
social, dentre outros critérios, emerge o sujeito de direi-
to concreto, historicamente situado, com especificidades
e particularidades. Daí apontar-se não mais ao indivíduo
genérica e abstratamente considerado, mas ao indivíduo
“especificado”, considerando-se categorizações relati-
vas ao gênero, idade, etnia, raça, etc”53.
Aos poucos, um novo regime jurídico de proteção a
pessoas ou grupos de pessoas particularmente vulneráveis
vêm merecendo atenção especial dos sistemas normati-
vos internacional e nacional, que passam a reconhecer di-
reitos próprios destinados às crianças, aos idosos, às mu-
lheres, às pessoas vítimas de tortura, e aquelas que sofrem
discriminação racial ou que não se beneficiaram de políti-
cas públicas genericamente adotadas no Brasil, como é o
caso dos afrodescendentes, em especial os remanescentes
de quilombolas, que estão ainda a perseguir o reconheci-
mento do Estado de seus direitos culturais e territoriais .
Nesse sentido, é importante notar que a construção do
Estado Democrático de Direito (art. 1.º da Constituição
Federal) no Brasil deu validade ou positividade jurídica
às minorias étnicas no longo caminho das conquistas das
garantias e direitos fundamentais da pessoa humana.

53 piovesan, Flávia. Temas de Direitos Humanos. Ed. Max Limonad, São


Paulo, 1998.

106
Como cláusula pétrea da Constituição de 1988, o Esta-
do Democrático de Direito integra-se ao conceito do que
seja o Estado brasileiro. Além de ser indispensável às ga-
rantias individuais e sociais das pessoas, o regime demo-
crático passou a ser condição para um governo justo e le-
gítimo através da ampla participação da população em suas
instâncias representativas, e tem como característica dele
indissociável o pluralismo político; e por objetivo a cons-
trução de uma sociedade justa e solidária, sem precon-
ceito de cor, raça, religião, sexo, abolindo todas as formas
de discriminação (arts. 1.º e 3.º da Constituição Federal).
José Afonso da Silva observa que a introdução do
princípio democrático no Estado de Direito implica em
que os direitos culturais próprios dos seguimentos
sociais e étnicos que compõem a população brasileira
passem a fazer parte dos direitos fundamentais, a que o
Estado obriga-se a resguardar e proteger 54
Na mesma linha, Gomes Canotilho, repara que a prote-
ção dos direitos culturais há de ser a mais ampla possível,
estando a exigir a garantia de participação plena de todos
os segmentos da sociedade, sem a exclusão de nenhum 55.
Há, inegavelmente, uma relação simbiótica entre a
dignidade da pessoa humana, o princípio democrático e
o reconhecimento da igualdade substantiva, de modo a
legitimar a ampliação de direitos específicos pelo Estado
às pessoas que não têm usufruído das mesmas oportuni-
dades conferidas que a lei confere genericamente a todos
os cidadãos.

54 silva, José Afonso da, Curso de Direito Constitucional Positivo. 13.ª


Edição Malheiros, São Paulo, 1997.
55 canotilho, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 6.ª Edição
Almedina, Coimbra, 1993.

107
Como produto do Estado Social de Direito, Joaquim
Barbosa Gomes explica que a igualdade substancial ou
material propugna redobrada atenção por parte do legis-
lador e dos aplicadores do direito à variedade das situa-
ções individuais e de grupo, de modo a impedir que o
dogma liberal da igualdade formal impeça ou dificulte a
proteção e a defesa das pessoas socialmente fragilizadas
e desfavorecidas, de modo a se extinguir ou pelo menos
mitigar o peso das desigualdades econômicas e sociais e,
conseqüentemente, de promover a justiça social56.

2. caracterização dos direitos das comunidades


remanescentes de quilombos como direitos
constitucionais fundamentais

As garantias constitucionais que asseguram o respeito às


minorias e a igualdade de todos, sem preconceito de ori-
gem e raça estão fortemente ligadas à proteção da cultu-
ra brasileira, prevista nos artigos 215 e 216 da Constitui-
ção Federal, que devem ser interpretadas segundo os
objetivos fundamentais da República e sob a garantia do
Estado Democrático de Direito.
Carlos Frederico Marés observa, com precisão, que a
principal novidade da Constituição de 1988 foi alterar o
conceito de bens integrantes do patrimônio cultural pas-
sando a considerar que são aqueles portadores de referên-
cia à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos
formadores da sociedade brasileira. Pela primeira vez no

56 barbosa gomes, Joaquim Benedito. As Ações Afirmativas e os Proces-


sos de Promoção da Igualdade Efetiva. Artigo publicado no Caderno n.º 24,
do Centro de Estudos Judiciários – CEJ do Conselho da Justiça Federal,
Brasília, 2003

108
Brasil foi finalmente reconhecida, em texto legal a diver-
sidade cultural brasileira como patrimônio nacional ima-
terial, que, em conseqüência passou a ser protegida e enal-
tecida, passando a ter relevância jurídica os valores popu-
lares, indígenas e afrobrasileiros 57.
Desse modo, constata-se a significativa modificação
conceptual de bens culturais dada pela atual Constitui-
ção, que afastou a referência exclusiva aos monumentos
e a grandiosidade da aparência externa de coisas imóveis
já feitas ou acontecidas para privilegiar outras situações
e contextos que ainda estão acontecendo, dentro de uma
visão de cultura como processo contínuo e dinâmico,
como a representatividade e identidade étnica de cada
um dos grupos formadores da nacionalidade, em seu sen-
tido mais amplo 58.
O que se pretendeu assegurar na nova Constituição é que
os diferentes grupos formadores da sociedade gozem da
proteção quanto a seus modos de viver, isto é, o direito à
sua cultura própria, ao mesmo tempo em que se estabele-
ce a garantia de ampla participação social e política desse
seguimento (ou minoria) através dos benefícios sociais
que a igualdade segundo a lei impõe, sem descurar-se das
diferenças culturais, ínsitas a todas as minorias étnicas.
Sob o ponto de vista cultural, é que a proteção às ter-
ras ocupadas pelas comunidades remanescentes de qui-
lombos deve ser entendida, por se tratar da efetivação de

57 mares, Carlos Frederico, Introdução do Direito Sócioambiental. Arti-


go publicado na obra “O Direito Para o Brasil Socioambiental”, Ed. Sér-
gio Antônio Fabris, Porta Alegre, 2002.
58 carneiro da cunha, Manuela. “Custom Is Not a Thing, It Is a Path:
Reflections on the Brazilian Indian Case”, Article in An Na’im, Abdullah,
“Human Rights in Cross Cultural Perspectives”, Philadelphia, University
of Pennsylvania Press, 1992.

109
um direito constitucionalmente garantido em um Estado
democrático pluriétnico.
De modo particular o art. 68 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias expressa que “aos remanes-
centes das comunidades dos quilombos que estejam ocu-
pando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva,
devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.
Evidentemente, não se deve pensar isoladamente o art.
68 do adct, imaginando-se que a obrigação do Estado com
relação a essas comunidades finda-se com a mera expedi-
ção dos títulos de domínio sobre as terras que ocupam.
O que se busca assegurar é o respeito a essas comuni-
dades, a possibilidade de que possam continuar se repro-
duzindo segundo suas próprias tradições culturais e
assegurando, também, a sua efetiva participação em uma
sociedade pluralista.
Para isso é importante registrar que o Estado, após a
Constituição de 1988, passou a ter a obrigação de arrolar
e identificar essas comunidades, onde se localizam,
quantos habitantes possuem, como vivem e que proble-
mas fundiários enfrentam.

3. processo de reconhecimento e identificação


das comunidades remanescentes de quilombos.

Antes de adentramos na questão fundiária, é importan-


te tentar explicitar melhor os conceitos jurídicos de qui-
lombos e remanescentes de quilombos. Em curtas pala-
vras, para saber que direitos são próprios dessas pessoas,
que possam assim ser identificadas como um grupo étni-
co, convém indagar antes quem são eles.
O direito à igualdade pressupõe o respeito às diferen-
ças. Assim, deve-se estar atento, primeiramente, para a
110
caracterização da proteção da identidade cultural dos
remanescentes de quilombos como garantia fundamen-
tal desses grupos assegurada pela Constituição Federal.
Não é desconhecida pela história oficial a definição de
quilombo dada em 1740, pelo Rei de Portugal, verbis:

toda habitação de negros fugidos que passem de cinco,


em parte desprovida, ainda que não tenham ranchos
levantados nem se achem pilões neles (in Revista Brasi-
leira de Geografia, Outubro–Dezembro de 1962, p. 79).

José Alípio Goulart repara que:

a existência de quilombos imprimia tal receio aos bran-


cos, que qualquer ajuntamento de escravos fugidos já
era como tal considerado, não importando seu número
diminuto. Consoante Provisão de 6 de março de 1741,
“Era reputado quilombo desde que se achavam reunidos
cinco escravos.” No art. 20 do código de Posturas da
Cidade de S. Leopoldo, no Rio Grande do Sul, aprovado
pela Lei Provincial n.º 157, de 9 de agosto de 1848, lê-se
que: “Por quilombo entender-se-á a reunião no mato ou
lugar oculto, mais de três escravos.” E a Assembléia
Provincial do Maranhão, querendo ser mais realista que
o próprio Rei, votou a Lei n.º 236, de 20 de agosto de
1847, classificando “quilombo” a reunião de apenas ...
dois escravos: “Art. 12. Reputar-se-á escravo quilom-
bado, logo que esteja no interior das matas, vizinho ou
distante de qualquer estabelecimento, em reunião de
dois ou mais com casa ou rancho”59.

59 goulart, José Alípio. Os Quilombos, Revista Brasileira de Cultura,


vol. 6, 1970, pgs. 129/141.

111
Os elementos da definição do Rei de Portugal, que
orientaram as perseguições aos escravos fugidos no sécu-
lo xviii e xix, são importantes (até porque estes concei-
tos espraiaram-se no tempo) para chegarmos às caracte-
rísticas legais do que fosse um quilombo, segundo o
ordenamento jurídico colonial.
Em primeiro lugar, não se exigia que o número de fu-
gitivos fosse grande. Bastava, em geral, que superassem
cinco, mas a lei colonial estabelecia a fuga como elemen-
to essencial para definição de quilombos. Então, cinco
ou mais escravos fugidos poderiam, em tese, caracterizar
um quilombo.
Em segundo lugar, não era necessário, nos termos es-
tabelecidos pelo Rei, que houvesse ranchos levantados,
vale dizer, não se exigia que esses fugitivos fixassem mo-
rada em qualquer canto.
Em terceiro lugar, não se exigia que os fugitivos cons-
tituíssem qualquer forma de organização social, particu-
larmente a forma militar de resistência, uma vez que o
ajuntamento de escravos fugidos tinha por objetivo a
subversão da ordem escravocrata ou a guerra à coroa por-
tuguesa e a brasileira que a sucedeu.
Percebe-se pela leitura das leis municipais e do Alvá-
rá Régio de 1740 que o conflito armado entre escravos e
o poder colonial ou, mais precisamente, o medo de sua
ocorrência, orientou, posteriormente, a caracterização
de quilombos, a partir do arquétipo Palmares 60.

60 almeida, Alfredo Wagner Berno de. As Populações remanescentes de


Quilombos: Direitos do Passado ou Garantia para o Futuro. Texto apresen-
tado no Seminário Internacional “As Minorias e o Direito” realizado no
stj de 11 a 13 de setembro de 2001 e publicado no Caderno n.º 24 do cej
– Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, Brasí-
lia, 2003.

112
Assim, pode-se concluir que qualquer grupo composto
primordialmente por negros fugidos, que tenha logrado
permanecer livre durante a vigência das leis escravistas
do país, ainda que composto de outros indivíduos que não
apenas os escravos fugidos, era considerado quilombo.
Em todas elas podemos notar o vínculo histórico-so-
cial que liga a atual comunidade com um grupo formado
por escravos fugidos, perseguidos ou não, e que perma-
neceram livres, embora não alforriados.
Com a abolição da escravatura e o fim das persegui-
ções oficiais, esses grupos tiveram a oportunidade de se
aproximar dos núcleos populacionais da sociedade en-
volvente, passando o contato a ser natural e gradativo,
embora já houvesse relações de troca e até de casamento
entre os dois grupos, anteriormente à abolição, como
indicam pesquisas históricas recentes 61.
Entretanto, ainda que as relações comerciais qualifi-
cadas por interesses comuns entre as duas sociedades
possam ter sido fortemente estabelecidas com o passar do
tempo, isso não significou que essas comunidades, for-
madas originariamente por escravos fugidos, tenham
passado a se identificar com qualquer outro grupo da
sociedade que os havia excluído ou mesmo perseguido.
Dessa maneira, as populações que mantiveram o vín-
culo social e histórico com os grupos formados essencial-
mente por escravos fugidos, ainda que composto por ele-
mentos não considerados escravos, os quais eram conside-

61 almeida, Alfredo Wagner Berno de. As Populações remanescentes de


Quilombos: Direitos do Passado ou Garantia para o Futuro. Texto apresen-
tado no Seminário Internacional “As Minorias e o Direito” realizado no
stj de 11 a 13 de setembro de 2001 e publicado no Caderno n.º 24 do cej
– Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, Brasí-
lia, 2003.

113
rados quilombolas perseguidos pelas forças escravistas, e
que construíram sua própria história, a margem do domí-
nio da sociedade envolvente, passaram a ser considera-
das primordialmente como remanescentes de quilombos.
O vínculo histórico social emerge então como parâme-
tro constitucional adequado para a definição de que
sejam comunidades remanescentes de quilombos, a par-
tir da própria legislação colonial.
Por outro lado, a idéia de que teria havido um com-
pleto isolamento de comunidades rurais negras da socie-
dade envolvente e mesmo das relações de mercado não
tem sustentação histórica ou antropológica. Alfredo
Wagner lembra que a afirmação da identidade dos qui-
lombolas se fez nas transações econômicas. Isto é, na
“fronteira” entre os grupos étnicos. Segundo ele, a tran-
sação comercial é que assegurava solidez na fronteira do
quilombo, de modo que a identidade étnica teria se fir-
mado com mais intensidade no contato do que no supos-
to isolamento das comunidades negras rurais no Brasil 62.
Para além do vínculo histórico social que deve nortear
o critério de reconhecimento de um território quilom-
bola, é preciso lembrar que o Decreto n.º 4887, de 20 de
Novembro de 2003, estabeleceu o critério da auto-de-
finição como forma primordial de identificação e carac-
terização das comunidades remanescentes de quilombo-
las, como consta do seu art. 2.º:

Consideram-se remanescentes das comunidades de qui-


lombos, para os fins deste Decreto, os grupos étnico-ra-
ciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetó-
ria histórica própria, dotados de relações territoriais

62 Opus cit, pg. 247/248.

114
específicas, com presunção de ancestralidade negra rela-
cionada com a resistência à opressão histórica sofrida.
§ 1.º – Para os fins deste Decreto, a caracterização dos
remanescentes das comunidades de quilombo será ates-
tada mediante auto-definição da própria comunidade.
§ 2.º – São terras ocupadas por remanescentes das co-
munidades dos quilombos as utilizadas para a garantia
de sua reprodução física, social, econômica e cultural.
§ 3.º – Para a medição e demarcação das terras, serão
levados em consideração critérios de territorialidade
indicados pelos remanescentes das comunidades dos
quilombos, sendo facultado à comunidade interessada
apresentar as peças técnicas para a instrução procedi-
mental.

O critério antropológico da auto-identificação do grupo


étnico elegido pelo Decreto n.º 4887, hoje largamente
utilizado para a caracterização de uma comunidade tra-
dicional, foi reconhecido pela Convenção n.º 169 da
Organização Internacional do Trabalho (oit), ratificada
pelo Congresso Nacional e incorporada ao ordenamento
jurídico brasileiro como lei ordinária. No inciso ii do art.
1.º da Convenção n.º 169 está dito que “a consciência de
sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada
como critério fundamental para determinar os grupos aos
quais se aplicam as disposições da presente Convenção.”
Convém ressaltar que a simples utilização do critério
de auto-reconhecimento do Grupo, não dispensa uma
interpretação mais acurada da expressão “remanescentes
das comunidades dos quilombos”. Nesse sentido, a an-
tropóloga Eliane Cantarino O’Dwyer explica, com pro-
priedade, que a idéia de quilombo como escravo fugido,
que aparece na história dos princípios, é um ‘signo de refe-
115
rência’ e, por sua natureza, é um objeto histórico, ele não
apenas reflete o mundo existente ou pré-existente, revela-
do pelos documentos, como muito menos segue os usos pres-
critos pela conceituação.
Ao contrário, a categoria quilombo, como objeto simbó-
lico representa um interesse diferencial para os diversos
sujeitos históricos, ‘de acordo com sua posição em seus es-
quemas de vidas’. Por isso, o uso da categoria quilombo, no
contexto da afirmação dos direitos constitucionais de seg-
mentos importantes e expressivos da sociedade brasileira,
através do cumprimento do art. 68 do ADCT, da Constitui-
ção Federal de 1988, tem sido objeto de “mal-entendidos’,
devido à perspectiva do observador, ainda que, social e cul-
turalmente, esse uso possa ser considerado ‘criativo’ 63.
O critério da auto-idenficação, considerado como
essencial para a caracterização de um grupo social dife-
renciado, surge a partir de lições de Frederick Barth, que
inovou os métodos para constituição de limites de uni-
dades étnicas, procurando-se fugir aos fundamentos bio-
lógicos, lingüísticos e raciais 64.
Em conseqüência, há o abandono da “visão explicati-
va” das comunidades, a qual tenta, através de um “obser-
vador externo”, produzir um conhecimento segundo o
qual se pretende conferir a uma comunidade certa iden-
tidade, determinando-se o lugar dos indivíduos e seu
grupo no universo social. Muitas vezes, nessa visão
explicativa, atribuem-se elementos de unidade desco-
nhecidos pelo próprio segmento social em estudo, reve-
63 o’dwyer, Eliane Cantarino. Os quilombos do trombetas e do erepecu-
ru-cuminá. In: Quilombos Identidade étnica e territorialidade. Org.: Eliane
Cantarino O’Dwyer. Rio de Janeiro: fgv, 2002, p. 267.
64 barth, Frederik. Ethnic Groups and Boundaries. Bergen-Oslo: Univer-
sitets Forlaget, 1969.

116
lando-se aí a sua insuficiência e imprecisão, bem como a
necessidade de superá-la.
Por isso, a extrema importância das investigações de
Frederik Barth, que coloca como questão central para a
identificação da comunidades não as diferenças culturais
entre grupos percebidas por um observador externo,
mas sim os “sinais diacríticos”, isto é, aquelas diferenças
que os próprios atores sociais consideram significativas
e que, por sua vez, são revelados pelo próprio grupo 65.
Daí a importância do critério do auto reconhecimen-
to ter sido incorporado ao Decreto n.º 4887⁄2003. Obser-
va-se que essa condição difere radicalmente do que esta-
belecia o Decreto n.º 3912⁄2001 que, ao regulamentar o
art. 68 do adct, estabeleceu critério temporal para o re-
conhecimento dos direitos das comunidades remanes-
centes de quilombos.
Nos termos do parágrafo único do art. 1.º do mencio-
nado decreto, somente pode ser reconhecida a propriedade
sobre terras que: I – eram ocupadas por quilombos em
1888; II – estavam ocupadas por remanescentes das comu-
nidades de quilombos em 5 de outubro de 1988.
Deborah Duprat de Britto Pereira, ao examinar a legali-
dade do Decreto n.º 3912, observou que não há razão cons-
titucional ou mesmo histórica para que o direito previsto
no art. 68 do adct remonte aos idos de 1888. Historicamen-
te, a figura do quilombo – tal como significado à época, –
antecede, em muito, o marco apontado, e tampouco encon-
tra nele o seu período áureo, à vista mesmo de medidas ten-
dentes à abolição da escravidão já implementadas ou em

65 o’dwyer, Eliane Cantarino. Os quilombos do trombetas e do erepecu-


ru-cuminá. In: Quilombos Identidade étnica e territorialidade. Org.: Eliane
Cantarino O’Dwyer. Rio de Janeiro: fgv, 2002, p. 268.

117
franco curso. Resultaria ofensivo ao princípio da isono-
mia que o direito fosse reconhecido aos remanescentes dos
quilombos estabelecidos em 1888, e não àqueles que exis-
tiram em época pretérita e não lograram prosseguir em sua
existência até a época apontada. Careceria, assim, de qual-
quer razoabilidade o marco inicial previsto no decreto 66.
Ademais, prossegue a autora, o art. 68 do adct orien-
ta-se numa perspectiva de presente, com vistas a assegu-
rar a estes grupos étnicos ligados historicamente à escravi-
dão o pleno exercício de seus direitos de auto-determina-
ção em face de sua identidade própria. E porque o terri-
tório é imanente à identidade, o que a Constituição deter-
mina é a proteção deste território que se apresenta na atua-
lidade, sendo de todo irrelevante o espaço imemorialmen-
te ocupado pelos ancestrais se não mais se configura como
culturalmente significativo para as gerações presentes.
O Decreto n.º 3.912, de 2001 derivou de um equívoco
conceptual de quilombos, há muito abandonado pela
antropologia. Esse conceito, advindo do período colonial
e aqui já referido, descrevia o quilombo como “toda habi-
tação de negros fugidos, que passem de cinco, em parte
despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados e
nem se achem pilões nele”. Mas, a prevalecer esse con-
ceito jurídico-formal de quilombo, estar-se-ia, como
explica Alfredo Wagner Berno de Almeida 67, a “frigorifi-
cá-lo” mais do que já foi, estabelecendo-o como uma cate-
goria histórica acrítica e como um grupo social estático,
66 brito pereira, Deborah M. D. Breves considerações sobre o Decreto n.º
3.912/01. In Q’Dwyer, E. C. Quilombos identidade étnica e territorialidade.
Rio de Janeiro, aba/fgv. 2002. pp. 281-289.
67 almeida, Alfredo Wagner Berno de. Os quilombos e as novas etnias.
In. Quilombos. In: Quilombos Identidade étnica e territorialidade. Org.:
Eliane Cantarino O’Dwyer. Rio de Janeiro: FGV, 2002, p. 267

118
preso a ao arquétipo simbólico de Palmares, como se fora
possível achar hoje comunidades negras cercadas em for-
tificações militares em guerra com o poder imperial.
Em conclusão, o marco final revelado pelo Decreto 3912,
além de arbitrário, revelava nítido viés etnocentrista, na
medida em que se sinalizava com um limite temporal além
do qual se negava o direito à identidade étnica e o correla-
to território que a requer e, em certa medida, a determina.
Ainda que tal ato tenha sido expressamente revogado
pelo Decreto n.º 4877, de 20 de novembro de 2003, havia
nele dupla ofensa ao texto constitucional, bem apontada
por Deborah Duprat, e que merece registro. Primeiro,
porque alguém estranho ao grupo étnico é quem deter-
minaria o prazo final de sua existência constitucional-
mente amparada, o que, evidentemente, conflita com a
noção de plurietnicidade e com o direito das minorias em
um estado democrático de direito.
E segundo, por impor ao grupo uma rigidez cultural
e impedi-lo de, a partir de 5 de outubro de 1988, conce-
ber novos estilos de vida, de construir de novas formas
de vida coletiva, enfim, a dinâmica de qualquer comu-
nidade real, que se modifica, se desloca, idealiza proje-
tos e os realiza, sem perder, por isso, a sua identidade68.
Para a antropologia, apenas as comunidades ideais,
erigidas a partir de ficções jurídicas, apresentam-se
como entidades imóveis, isoladas e impermeáveis às
influências culturais externas. As reais, ao contrário, são
marcadas pelo signo da mudança social e econômica, em
um processo dinâmico que interfere e molda as relações

68 brito pereira, Deborah M. D. Breves considerações sobre o Decreto n.º


3.912/01. In Q’Dwyer, E. C. Quilombos identidade étnica e territorialidade.
Rio de Janeiro, aba/fgv. 2002. pp. 281-289.

119
interétnicas, e que demanda, por conseqüência, reelabo-
ração permanente por parte dos pesquisadores de gru-
pos e comunidades indígenas e tradicionais 69.
Por isso se torna essencial participação de antropólo-
gos e historiadores no processo de identificação dessas
comunidades. Tratam-se de profissionais que são treina-
dos e habilitados para o trabalho de recolhimento e com-
pilação dos dados necessários à elaboração de laudos fun-
dados sobre a identificação e distinção das fronteiras étni-
cas, com o objetivo de verificar a caracterização de cada
grupo concreto, dentre as comunidades remanescentes de
quilombos. E esse trabalho difere substancialmente da
avaliação agronômica e da medição fundiária de um dado
território reivindicado por comunidades quilombolas.
Portanto, o direito de auto-atribuição da condição de
quilombolas deriva do § 2.º do art. 5.º da Constituição
Federal, e este tem fundamento na Convenção 169 da
oit, ratificada pelo Congresso Nacional que, no plano
internacional, estabeleceu o critério da auto definição
como essencial para caracterização dos grupos tribais,
indígenas e comunidades tradicionais.

4. problemas na definição e delimitação


das terras dos quilombolas.

De início, observa-se que o direito dos afrodescenden-


tes, caracterizados como quilombolas, não pode ser afas-
tado da questão da territorialidade, já que estão postos
numa indissociável relação de inclusão.
69 carneiro da cunha, Manuela. Custom Is Not a Thing, It Is a Path:
Reflections on the Brazilian Indian Case, Article in An Na’im, Abdullah,
Human Rights in Cross Cultural Perspectives, Philadelphia, University of
Pennsylvania Press, 1992.

120
No que respeita à territorialidade das comunidades
remanescentes de quilombos, os casos conhecidos per-
mitem apontar para uma ocupação comunal da terra, o
que indica que os títulos expedidos pelo Estado não
deveriam ser individuais, mas coletivos como foi estabe-
lecido no Decreto 4887⁄2003.
De forma contundente, o art. 17 do referido Decreto
estabelece que a titulação ou reconhecimento do domí-
nio em favor das comunidades quilombolas será reconhe-
cida e registrada mediante outorga de outorga de título
coletivo e pró-indiviso, com obrigatoriedade de inserção
de claúsula de inalienabilidade, imprescritibilidade e
impenhorabilidade.
A opção do poder público em favor da titulação cole-
tiva das terras de quilombos favorece o sistema comunal de
utilização da terra e evita que o território possa ser frag-
mentado em pequenos títulos individuais de propriedade,
com a grande vantagem de proteger as comunidades qui-
lombolas contra a especulação imobiliária, uma vez que
estaria vedada a transferência dessas terras a terceiros.
Alfredo Wagner explica bem os benefícios da titula-
ção coletiva: “a propriedade definitiva idealmente torna-
ria todos “iguais” nas relações de mercado, com os quilom-
bolas, emancipados de qualquer tutela, expressando-se
através de uma via comunitária de acesso à terra. O fato
de a propriedade não ser necessariamente individualizada
e aparecer sempre condicionada ao controle de associações
comunitárias torna-a, entretanto, um obstáculo às tentati-
vas de transações comerciais e praticamente as imobiliza
enquanto mercadoria 70.

70 almeida, Alfredo Wagner Berno de. Reflexões sobre a Temática: Quais


são os obstáculos à titulação definitiva das comunidades remanescentes de

121
Por isso, afirma o autor, as terras das comunidades
quilombolas cumprem sua função social precípua, quan-
do o grupo étnico, manifesto pelo poder da organização
comunitária, gerencia os recursos no sentido de sua re-
produção física e cultural, recusando-se a dispô-los às
transações comerciais. A posse coletiva, representada
como forma ideológica de imobilização que favorece a
família, a comunidade ou uma etnia determinada, em de-
trimento de sua significação mercantil tal forma de pro-
priedade, impede que domínios privados venham a ser
transacionados no mercado de terras 71.
Não se pode esquecer que o elemento territorial é ape-
nas um dos parâmetros que adentram na categoria qui-
lombo, para conferir-lhe a devida significação. Sendo
assim, ainda que algumas terras não estivessem efetiva-
mente ocupadas pelos quilombos, e que fosse demons-
trado que eles não ocupavam outras terras à época da
abolição da escravatura ou ainda que não permaneces-
sem nelas, na data da promulgação da Constituição Fede-
ral de 1988, tais circunstâncias não seriam suficientes
para impedir o reconhecimento da propriedade, uma vez
constatado que essas comunidades não teriam como se
reproduzir física, social, econômica e culturalmente, sem
a incorporação ou ampliação desses territórios.

continuação 70 quilombos. In “Vida de Negro no Maranhão, uma expe-


riência de luta, organização e resistência dos territórios quilombolas”,
Secretária Municipal de Direitos Humanos, São Luís, 2003, pg. 91/92.
71 almeida, Alfredo Wagner Berno de. Reflexões sobre a Temática: Quais
são os obstáculos à titulação definitiva das comunidades remanescentes de
quilombos. In:“Vida de Negro no Maranhão, uma experiência de luta,
organização e resistência dos territórios quilombolas”, Secretária Muni-
cipal de Direitos Humanos, São Luís, 2003, pg. 92/3.

122
Inegavelmente os quilombos devem ser entendidos
como “signo de referência” que apontam em duas dire-
ções distintas: passado e futuro. Isso quer dizer que de
nada adiantaria reconhecer títulos de propriedade de
terras para essas comunidades se, dentro dessa circuns-
crição espacial, esses mesmos grupos étnicos não tiverem
condições de se desenvolverem, preservando, assim, sua
identidade e o poder público não estivesse obrigado a
proceder a regularização fundiária desse território.
Carlos Ari Sundfield lembra que existe uma intrínse-
ca relação entre a “identidade coletiva” e os parâmetros de
identificação dos quilombos, na medida em que a auto-pre-
servação da comunidade, ao longo do tempo, deu-se em
contraste com várias influências externas (por exemplo:
os madeireiros, garimpeiros, fazendeiros, agricultores etc),
que, em muitas vezes, acarretaram expulsão ilegítima das
comunidades quilombolas de suas próprias terras72.
Neste caso, a desapropriação corresponderia a um res-
gate da expropriação sofrida pelos quilombos, ainda
mais quando a constituição não reconhece a essas comu-
nidades direitos originários sobre as terras que tradicio-
nalmente ocupam, como faz em relação às comunidades
indígenas no art. 231 e seus parágrafos, e tampouco tor-
na nulos e sem efeito os títulos de domínio incidentes
sobre tais terras.
Os títulos de domínio privado, se não são nulos ou não
foram anulados pela autoridade competente, permane-
cem válidos até que sobrevenha o reconhecimento ofi-
cial dessa comunidade enquanto remanescente de qui-
lombo e se determine a delimitação da área ocupada pelo

72 sundfield, Carlos Ari. Comunidades Quilombolas: direito à terra. Fun-


dação Cultural Palmares. Brasília: minc e Abaré, 2002, pg. 79/80.

123
grupo, de modo que a União Federal possa proceder a sua
desapropriação dessas terras, expedindo, ao final, os jus-
tos títulos de domínio às comunidades remanescentes de
quilombos.
Neste sentido, Carlos Ari Sundfield também entende
ser recomendável a desapropriação dessas terras em
beneficio das comunidades quilombolas:

Nossa conclusão, portanto, é que o Poder Público, para


garantir às comunidades quilombolas a propriedade
definitiva das terras que estejam ocupando, no caso de
elas pertencerem a particulares, deve lançar mão do pro-
cesso de desapropriação, com fundamento no art. 216, §
1.º da Constituição Federal. O referido processo de desa-
propriação é de nítido interesse social, com fundamento
constitucional no art. 216, § 1.º e será feito em beneficio
de comunidades quilombolas 73.

Por outro lado, negar às comunidades quilombolas o


direito ao reconhecimento formal de suas terras median-
te o processo administrativo de desapropriação signifi-
caria deixá-las ao abandono, tornando as disposições do
art. 68 do adct mera retórica política, sem conseqüên-
cia prática para essas comunidades.
Por isso merece aplauso o Decreto 4887, de 2003, quan-
do, em seu art. 13, autoriza a desapropriação pelo Institu-
to de Colonização e Reforma Agrária – incra, quando for
verificado que nos territórios ocupados pelos remanes-
centes das comunidades de quilombos incide títulos de
domínio particular, não invalidados por nulidade, pres-
crição ou comisso, nem tomados ineficazes.

73 sundfield, Carlos Ari. p. 118.

124
Deve ser registrado que, em data anterior a edição do
Decreto 4887, houve algumas desapropriações realizadas
pelo incra ou por Estados Membros em favor das Comu-
nidades Negras do Rio das Rã (ba), das comunidades dos
rios Cuminá, Erepecuru e Trombetas (pa), das comunida-
des Kalunga (go), isso sem falar na solução inusitada
encontrada para resolver a questão fundiária das comuni-
dades de Frechal, no Maranhão e de Sapé do Norte, no
Estado do Espírito Santo; a de alocar as famílias quilombo-
las em uma reserva extrativista, típica unidade de conser-
vação de uso direto destinado a populações tradicionais 74.
O art. 3.º do Decreto 4887 estabeleceu um procedimen-
to único para o reconhecimento dos territórios quilombolas,
encerrando velha controvérsia sobre qual o melhor modelo
fundiário para a identificação e delimitação dessas áreas:

Compete ao Ministério do Desenvolvimento Agrário,


por meio do Instituto Nacional de Colonização e Refor-
ma Agrária – INCRA, a identificação, reconhecimento,
delimitação, demarcação e titulação das terras ocupa-
das pelos remanescentes das comunidades dos quilom-
bos, sem prejuízo da competência concorrente dos Esta-
dos, do Distrito Federal e dos Municípios.
§ 1.º O INCRA deverá regulamentar os procedimentos
administrativos para identificação, reconhecimento,
delimitação, demarcação e titulação das terras ocupa-
das pelos remanescentes das comunidades dos quilombos,
dentro de sessenta dias da publicação deste Decreto.
74 almeida, Alfredo Wagner Berno de. Reflexões sobre a Temática: Quais
são os obstáculos à titulação definitiva das comunidades remanescentes de
quilombos. In: “Vida de Negro no Maranhão, uma experiência de luta,
organização e resistência dos territórios quilombolas”. São Luís: Secre-
tária Municipal de Direitos Humanos, 2003, pg. 88.

125
§ 2.º Para os fins deste Decreto, o INCRA poderá estabe-
lecer convênios, contratos, acordos e instrumentos simi-
lares com órgãos da administração pública federal,
estadual, municipal, do Distrito Federal, organizações
não-governamentais e entidades privadas, observada a
legislação pertinente.
§ 3.º O procedimento administrativo será iniciado de
ofício pelo INCRA ou por requerimento de qualquer inte-
ressado.
(...)

Portanto, o incra passou a ter a competência para pro-


ceder a identificação, delimitação e regularização fun-
diária a emissão de títulos coletivos pro-indiviso, em
favor das comunidades remanescentes de quilombos.
Entretanto, quando houver incidência de domínio pri-
vado em áreas reivindicadas pelas comunidades, a titu-
lação não poderá ser realizada sem um prévio processo
de discriminação e desapropriação dos particulares que
detenham títulos legítimos. A não ser que se demonstre
a irregularidade ou ilegalidade no registro de proprieda-
de ostentado por terceiros.
Finalmente, o Decreto n.º 4887⁄2003 define que são ter-
ras ocupadas por remanescentes de quilombos as utiliza-
das para a garantia de sua reprodução física, social, econômi-
ca e cultural. Ao assim fazer, o ato normativo em questão to-
ma emprestado da Constituição o conceito de terras indíge-
nas estabelecido no art. 231 § 1.º, da Constituição Federal
para estabelecer que o território utilizado para a reprodu-
ção física, social e cultural do grupo constitui elemento de
reconhecimento das terras de quilombos (art. 2.º § 2.º).
Alfredo Wagner explica a necessidade de se reconhe-
cer aos quilombos o direito à terra, tendo em conta sua
126
relação com a natureza. Diz ele que “os procedimentos de
classificação que interessam são aqueles construídos pelos
próprios sujeitos a partir dos próprios conflitos, e não neces-
sariamente aqueles que são produto de classificações exter-
nas, muitas vezes estigmatizantes. Isso é básico na conse-
cução da identidade coletiva e das categorias sobre as quais
ela se apóia. Aliás, essas categorias podem ter significados
especificas, como sugere terra de preto, que pressupõe uma
modalidade codificada de utilização da natureza: os recur-
sos hídricos, por exemplo, não são privatizados, não são
individualizados; tampouco são individualizados os recur-
sos de caça, pesca e extrativismo. São mantidos como de
livre acesso. Caminhos, trilhas e poços são mantidos sob
formas de cooperação simples 75.
De outra parte, continua o autor, as chamadas roças
ou tratos agrícolas, que estão dispostas no cerne de uma
certa maneira de existir socialmente, são sempre indivi-
dualizadas num plano de famílias, pois as unidades fami-
liares não dividem o produto da colheita de forma - coleti-
va ou comunitariamente. De igual modo, um pomar é apro-
priado de maneira privada e, tal como no caso das roças,
expressa trabalho realizado familiarmente 76.
Do exposto, constata-se que a opção política pelo reco-
nhecimento da titulação coletiva, em nome de toda a
comunidade quilombola, previsto no art. 17 do Decreto
n.º 4887/2003, revelou-se acertada do ponto de vista ju-
rídico e consentânea ao modo de vida e a cultura própria
desses grupos, sendo de grande relevância a previsão do
instituto da desapropriação por interesse social para a
realização do direito constitucional das comunidades

75 almeida, Alfredo Wagner Berno de. (n.º 16), p. 68.


76 almeida, Alfredo Wagner Berno de. (n.º 16), p. 69.

127
remanescentes de quilombos as terras que ocupam ou
que tenham direito a ocupar.

5. dificuldades legais e operacionais


para a efetivação do direito à terra

Para facilitar o enfrentamento dos obstáculos à concretiza-


ção do art. 68 do adct, é preciso separar em três blocos dis-
tintos as dificuldades legais e operacionais para a efetiva-
ção do direito das comunidades quilombolas às terras que
ocupam ou que podem vir a ocupar. As dificuldades podem
ser classificadas como de ordem antropológica e proce-
dimental, jurídica e política e orçamentária e financeira.
A primeira delas, é de ordem antropológica e diz res-
peito as dificuldades de se identificar populações negras,
preponderantemente de origem rural e que tenham vín-
culos histórico-social com antigos quilombolas em um
procedimento administrativo.
Em um instigante artigo sobre os obstáculos à titula-
ção definitiva das comunidades remanescentes de qui-
lombos, Alfredo Wagner tenta responder a duas pergun-
tas repetidamente feitas pelo movimento quilombola e
que dizem respeito aos resultados em termos quantitati-
vos e à intensidade ou ritmo do processo de reconheci-
mento formal das comunidades remanescentes de qui-
lombos, a saber:

– Por que, após 16 anos do artigo 68 do ADCT, da Cons-


tituição Federal de 1988, foram tituladas menos de 5%
(cinco por cento) do total de áreas estimadas como per-
tencentes a comunidades remanescentes de quilombos?
– Por que, nos últimos dois anos, não teria ocorrido titu-
lação de nenhuma comunidade?
128
Para responder a tais perguntas, devemos enfrentar,
inicialmente, a questão antropológica, Não obstante o cri-
tério da auto-identificação do grupo, previsto na Conven-
ção n.º 169 da oit e reconhecido como melhor método de
aferição étnica, tenha sido expressamente incluído no
Decreto 4887⁄2003, não se mostra fácil a tarefa de carac-
terização do grupo e de seu processo de territorialização.
Em conseqüência, critica a antropóloga Eliane Canta-
rino O’Dwyer, os laudos antropológicos (relatórios de
identificação de comunidades), para fins de aplicação do
art. 68 do adct, deveriam, em vez de uma opinião pre-
concebida sobre os fatores sociais e culturais que defini-
riam a existência de limites desses grupos, opinar levan-
do em conta somente as diferenças consideradas signifi-
cativas para os membros do próprio grupo étnico, no
caso, dos próprios quilombolas 77.
De fato, a emissão de certidão pela Fundação Cultural
Palmares (fcp), conforme artigo 3.°, § 3 do Decreto
4.887⁄2003, regulamentado pela Portaria fcp n.º 06, de
1.° de março de 2004, preconiza o cadastramento das
comunidades quilombolas com base no critério do auto-
reconhecimento. No entanto, verifica-se que diversos
procedimentos cadastrais têm sido implementado o mes-
mo tempo por diferentes órgãos oficiais, como incra,
Fundação Palmares, denotando uma burocratização
excessiva no cadastramento dessas comunidades.
Outro ponto preocupante, anotado pelo antroplógo
Alfredo Wagner, seria o tempo demasiadamente longo de
“tramitação” entre o pronunciamento de auto identifica-
ção das comunidades, na forma do art. 2.º, § 1.º, do Decre-
77 o’dwyer, Eliane Cantarino. Os quilombos do trombetas e do erepecu-
ru-cuminá. In: Quilombos Identidade étnica e territorialidade. Org.: Elia-
ne Cantarino O’Dwyer. Rio de Janeiro: fgv, 2002, p. 268.

129
to 4887, junto aos órgãos oficiais e o ato efetivo de certi-
ficação. Para se ter uma idéia da lentidão do processo de
reconhecimento de uma comunidade quilombola, que
representa a etapa inicial de identificação do grupo, a
Fundação Cultural Palmares teria emitido apenas 96
(noventa e seis) certidões até dezembro de 2004 78.
Sabendo das dificuldades operacionais de incorporar
os fatores étnicos à ação agrária, Alfredo Wagner chama
a atenção para um dos riscos maiores dos procedimentos
burocrático-administrativos de natureza fundiária, qual
seja: o de confundir a área do imóvel rural, levantada por
cadeia dominial, com o território da comunidade rema-
nescente de quilombo, socialmente construído e auto-re-
conhecido. Segundo ele, não há qualquer coincidência
necessária entre eles, ainda que em alguns casos assim se
apresente. Esta distinção deveria, na sua opinião, ser um
pressuposto norteador das ações operacionais 79.
Uma dificuldade operativa adicional decorre do “rela-
tório técnico”, previsto no decreto n.º 4887, cuja com-
petência de autoria, não estando formalmente definida,
gera uma tensão permanente entre procedimentos de
inspiração meramente agronômica e aqueles de funda-
mentos antropológicos. Seria uma outra maneira de repe-
tir a idéia de que tais comunidades não podem ser iden-
tificadas tão somente por instrumentos agrários, por-
quanto devam ser objeto de uma intervenção de funda-
mento étnico. Não é por outro motivo que os juizes e o
próprio Ministério Público Federal têm invariavelmente
recorrido ao conhecimento científico de antropólogos
para dirimir dúvidas e solucionar conflitos.

78 almeida,Alfredo Wagner Berno de. (n.º 22), p. 86/7.


79 almeida,Alfredo Wagner Berno de. (n.º 22), p. 85.

130
Não há como negar as dificuldades na implementação
dos procedimentos político-administrativos no reconhe-
cimento das comunidades remanescentes de quilombos.
De fato, até ser promulgado o primeiro decreto de regu-
lamentação das disposições relativas à aplicação do arti-
go 68, passaram-se 13 anos até a edição do Decreto n.°
3.912, de 10 de setembro de 2001, que, além de limitar
drasticamente o alcance do artigo 68, revelou-se incons-
titucional e inoperante, como já analisado anteriormen-
te, apresentando resultados pífios 80.
Dois anos e dois meses depois, o Decreto 3912 foi subs-
tituído pelo Decreto n.° 4887, de 20 de novembro de
2003, seguido pela Instrução Normativa mda/incra n.°
16, de 24 de março de 2004. Mesmo reconhecendo os
avanços nas discussões e nas consultas aos movimentos
sociais, o antropólogo Alfredo Wagner lamenta o fato de
que, um ano após a edição do Decreto n.º 4887, nenhu-
ma comunidade quilombola tinha recebido, até novem-
bro de 2004, título de propriedade de suas terras pelo
governo federal 81.
O Instituto de Estudos Sócioeconômicos – inesc pu-
blicou recentemente um preocupante relato sobre a
questão fundiária quilombola. Embora existam 2.228
comunidades quilombolas no país, o relatório afirma
que somente duas teriam sido regularizadas no gover-
no Lula82.

80 De 2001 a 2003 foram tituladas 23 terras de quilombos, corresponden-


do a 127.133,39 hectares. Os trabalhos técnicos foram realizados pelos
órgãos estaduais de terra (itesp, iterpa e iterma). Todas elas sofreram
contestação judicial e os títulos encontram-se sob ameaça de anulação,
segundo informação de Alfredo Wagner Berno de Almeida.
81 almeida, Alfredo Wagner Berno de.
82 www.inesc.org.br\textos

131
Se é verdade que a Constituição de 1988 teria garan-
tido, em tese, o direito a posse permanente da terra às
comunidades quilombolas, é constrangedora a constata-
ção de que apenas 70 (setenta) comunidades remanescen-
tes de quilombos foram efetivamente beneficiados, des-
de 1988, com a expedição de títulos dominiais definiti-
vos, o que significa que o processo de reconhecimento e
delimitação dessas terras está longe de acabar e que há
uma distância abissal entre a declaração formal prevista
no art. 68 do adct e a efetividade desse direito.
O segundo ponto de discórdia, de natureza jurídica e
política, e que poderá dificultar a efetivação dos direitos
das comunidades remanescentes de quilombos às terras
por eles utilizadas, diz respeito a tramitação da Ação Di-
reta de Inconstitucionalidade n.º 3239-9/df, ajuizada
pelo Partido da Frente Liberal – pfl contra o Decreto n.º
4887⁄2003, que regulamenta o procedimento para iden-
tificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e
titulação das terras ocupadas por comunidades remanes-
centes de quilombos.
Depois de 15 (quinze) anos, aguardando uma defini-
ção legal, as comunidades quilombolas vêm um partido
político de grande expressão argüir, em junho de 2004,
junto ao Supremo Tribunal Federal, a inconstitucionali-
dade do novo Decreto sob a alegação, em síntese, de: a)
invadir a esfera reservada à lei; b) prever a desapropria-
ção de terras à essas comunidades e c) estabelecer o cri-
tério da auto-atribuição para identificação dos remanes-
centes de quilombos 83.
A Advocacia Geral da União alegou, em preliminar,
não existir ofensa direta à Constituição Federal, sob o

83 adin n.º 3239-9/df – Relator: Ministro César Peluso.

132
argumento de que o Decreto n.º 4.887⁄03 retiraria seu
fundamento de validade diretamente das normas do art.
14, iv, “c”, da Lei n.º 9.649⁄88 e do artigo 2.º, iii e pará-
grafo único, da Lei n.º 7.668⁄88.
No mérito, a União sustenta a inocorrência de invasão
do Decreto a esfera reservada à lei pois, aquele diploma
legal, retiraria seu fundamento da validade das próprias
leis federais, não havendo a alegada irregularidade do
ponto de vista formal propagada pelo autor.
Por fim, a Advocacia Geral da União aduziu que a de-
sapropriação, prevista no artigo 216, § 1.º, corresponde-
ria a um resgate da expropriação sofrida pelos quilom-
bos, possuindo o instituto, nítido interesse social.
O Ministério Público Federal reiterou os argumentos
da Advocacia Geral da União para pedir o não conheci-
mento ou a improcedência da adin. Em especial, o Pare-
cer do então Procurador Geral da República, Cláudio
Fonteles, contesta a idéia de que o Decreto 4887 seria um
decreto autonômo, por regular diretamente, sem a inter-
posição de lei, o art. 68 do adct, acentuando, todavia,
que, como norma protetora de uma minoria em situa-
ção de vulnerabilidade, o dispositivo tem plena e ime-
diata eficácia, independentemente de regulamentação
posterior.
De acordo com Carlos Ari Sundfeld, o art. 68 do adct
está devidamente regulamentado pela Lei n.º 9649⁄98
(art. 14, iv. “c”) – que confere ao Ministério da Cultura
competência para aprovar a delimitação das terras dos
remanescentes de quilombos e pela Lei n.º 7668⁄88 (art.
2.º, ii, e parágrafo único) que dá à Fundação Cultural Pal-
mares atribuição para realizar a identificação das comu-
nidades remanescentes de quilombos e também proce-

133
der a delimitação e demarcação das terras por eles ocu-
padas e conferir-lhes a correspondentes titulação 84.
Dessa forma, nos parece inteiramente improcedente a
argüição de inconstitucionalidade no sentido de que o
Decreto 4887 teria “autonomia legislativa”. Na verdade,
o decreto em questão retira o seu fundamento de valida-
de diretamente das leis federais já mencionadas, não
havendo a irregularidade formal apregoada pelo pfl.
Como aqui já foi dito, o critério de identificação da
“auto-atribuição” fixado pela norma do art. 2.º do Decre-
to n.º 4.887, de 2003, não incorre em inconstitucionali-
dade. Antes, à luz da norma constitucional regente (art.
215 e art. 216, da cf c/c art. 68 do adct), busca o con-
ceito de remanescentes de quilombos nos métodos for-
necidos pela Antropologia e em princípio estabelecido no
direito internacional público. Portanto, não há nenhum
óbice legal à utilização do critério de auto identificação
para a legitimação do processo de reconhecimento das
comunidades quilombolas.
Aliás, a escolha de critério antropológico para a defini-
ção de grupo étnico com base na auto-atribuição somente
de forma reflexa poderia suscitar qualquer inconstitucio-
nalidade, sendo opção política do poder público adotá-lo
para a tarefa de dar cumprimento ao art. 68 do adct, que
obriga a União a proceder a titulação das terras ocupa-
das por comunidades remanescentes de quilombos.
Por outro lado, não se nega que o reconhecimento ofi-
cial dessas comunidades, ao menos no papel, gera, na
contra-partida uma violência crescente contra as comu-
nidades remanescentes de quilombos, através da amea-

84 sundfield, Carlos Ari. Comunidades Quilombolas: direito à terra. Fun-


dação Cultural Palmares/MINC e Abaré, Brasília, 2002, pg. 22.

134
ça de morte por parte de jagunços a mando de latifun-
diários e grileiros, que queimam as casas e tentam des-
mobilizar as lideranças quilombolas, de modo a incorpo-
rar ao domínio privado, por meios arbitrários, os espa-
ços coletivos tradicionalmente utilizados pelas popula-
ções tradicionais85.
Segundo Alfredo Wagner, em algumas unidades da
federação como Maranhão e Bahia, a titulação de terras
das comunidades quilombolas pode se constituir num des-
tacado instrumento de desconcentração da propriedade
fundiária. Contrapondo-se frontalmente à dominação oli-
gárquica. Os antagonismos sociais têm se acirrado nestas
regiões, com comunidades quilombolas praticamente cer-
cadas e com suas vias de acesso interditadas por interes-
ses latifundiários86.
Não cabe neste estudo análise mais detalhada sobre os
aspectos formais da referida ação direta de inconstitucio-
nalidade, mas não se pode negar que o pfl, ao insurgir-
se contra o principal instrumento legal de reconheci-
mento, identificação, delimitação e demarcação dos ter-
ritórios quilombolas, age, politicamente, em favor dos
grandes latifundiários e de setores econômicos interes-
sados na pulverização desse território.
Afinal, negar o fator étnico, e nele o critério de auto
identificação, para reconhecimento das comunidades
quilombolas, além de servir à judicialização da escolha
de um determinado critério antropológico pelo Decreto
4887, esvazia a reivindicação política das lideranças e
associações quilombolas e facilita os atos ilegítimos de
usurpação e de violação do art. 68 do adct.

85 almeida, Alfredo Wagner Berno de. (n.º 22), p. 89.


86 almeida, Alfredo Wagner Berno de. (n.º 22), p. 92.

135
Os antagonismos sociais em jogo transcendem os fato-
res meramente econômicos e trazem a questão à cena
política constituída. Mediante obstáculos desta ordem, a
titulação definitiva das comunidades remanescentes de qui-
lombos se mostra mais que essencial, posto que, historica-
mente, as famílias destas comunidades têm sido mantidas
como “posseiros” e assim parecem pretender mantê-las
aqueles interesses contrários ao seu reconhecimento. Man-
tidas como eternos “posseiros” ou com terras tituladas sem
formal de partilha, como no caso das chamadas terras de
preto, que foram doadas a famílias de ex-escravos ou que
foram adquiridas por elas, sempre são mais factíveis de
serem usurpadas 87.
Por último, vale destacar a importância da questão
orçamentária e de sua execução financeira como um obs-
táculo permanente para a efetivação dos direitos das
comunidades remanescentes de quilombos ao seu territó-
rio. E quanto a este ítem, o componente ideológico, que
possa assegurar a este ou aquele partido ou frente polí-
tica o exercício do poder no governo federal, é irrelevan-
te, pois a ausência de compromisso orçamentário para o
cumprimento efetivo de norma constitucional em defe-
sa dos direitos humanos parece ser universal e comum a
todas as agremiações políticas, e espraia-se sobre todos
os temas a serem enfrentados pelo poder público nesta
área, como os programas de combate a tortura, de prote-
ção a testemunhas, demarcação de áreas indígenas, cria-
ção de unidades de conservação e etc.
De fato, não se deve afastar, no curso do debate, a
importância do contingenciamento e de restrições orça-
mentárias para a inadequada e cronicamente insuficien-

87 almeida, Alfredo Wagner Berno de. (n.º 22), p. 92.

136
te aplicação de verbas destinados à titulação das comu-
nidades remanescentes de quilombos. Em decorrência
desse fato, comum a outras minorias, o mda/incra tem
alegado não ter como fazer as desapropriações e nem ter
funcionários especializados para executar os procedi-
mentos de identificação, delimitação e demarcação 88.
Um levantamento divulgado pelo inesc indica que os
r$ 11 (onze) milhões do orçamento do Ministério do De-
senvolvimento Agrário – mda destinado ao pagamento
de indenização aos proprietários rurais ficaram intactos
em 2004. Somente 8% (oito por dento) do orçamento de
R$ 14,4 milhões para reconhecimento, demarcação e titu-
lação de áreas quilombolas teriam sido aplicados até
junho deste ano 89.
Note-se que dois problemas referentes ao orçamento
se juntam e agravam, ainda mais, a questão do reconhe-
cimento do território quilombola. O primeiro diz respei-
to a escassez de recursos próprios do incra ou da Fun-
dação Palmares para fazer cumprir o disposto no art. 68
do adct em razão de falta de previsão de verbas para
este fim na lei de orçamento. O segundo é o contingen-
ciamento ou, pior, a não utilização dos recursos já pre-
vistos e incluídos no orçamento; seja por força de deci-
são das autoridades fazendárias; seja pela inexistência de
pessoal técnico para a consecução dos trabalhos em cam-
po, como antropólogos, agrimensores e engenheiros.
Alfredo Wagner lamenta que esses recursos orçamen-
tários que faltam ao processo de regularização de terras

88 Vide Relatório inesc/2005 sobre a situação fundiária das comunida-


des remanescentes de quilombos.
89 Notícia publicada no Correio Braziliense de 30 de agosto de 2005,
Caderno Brasil, p. 12.

137
quilombolas vão ser encontrados, entretanto, nos chama-
dos programas sociais do governo federal, na área de saú-
de, educação, e alimentação, como se as comunidades re-
manescentes de quilombos pudessem ser reduzidas a uma
categoria econômica, ou seja, como se tratassem de “comu-
nidades carentes” ou de baixa-renda ou ainda de comu-
nidades que podem ser classificadas como “pobres” 90.
Sob um ponto de vista de ênfase nas políticas sociais,
as comunidades quilombolas estariam se tornando “be-
neficiárias” de programas, projetos e planos governa-
mentais e passando a ser classificadas como “público
alvo” (veja mda, folder “Quilombolas”, 2004) e/ou “pú-
blico meta” englobadas assim por classificações mais
abrangentes, que designam os respectivos programas e
projetos, quais sejam: “pobres”, “excluídos”, “população
de baixa renda” e “desassistidos”.
Segundo Alfredo Wagner quilombola torna-se, deste
modo, um atributo que funciona como agravante da con-
dição de ser “pobre”. Ser “pobre”, numa sociedade auto-
ritária e de fundamentos escravistas, implica ser priva-
do do controle sobre sua representação e sua identidade
coletiva. Ser considerado “pobre” é ser destituído de
identidade coletiva. Além disto, ao serem classificadas
por necessidades definidas pelo Estado, tais comunida-
des se tornam despolitizadas, ainda que tenham o con-
trole de suas necessidades em virtude de processos de
mobilização e de lutas políticas continuadas. O risco aqui
é de confundir um elemento de política étnica com polí-
ticas sociais focalizadas, homogeneizando situações sob
uma noção de “pobreza exótica”91.

90 almeida, Alfredo Wagner Berno de. (n.º 22), p. 87.


91 almeida, Alfredo Wagner Berno de. (n.º 22), p. 87.

138
6. conclusão

Os obstáculos e entraves à titulação das terras das


comunidades remanescentes de quilombos não podem
ser reduzidos tão somente a “defeitos” na engrenagem da
máquina administrativa estatal ou a dificuldades opera-
cionais ou decorrentes de insuficiente ou má utilização
de recursos orçamentários para este fim.
Há várias configurações neste jogo de poder que
transcendem a questões de funcionalidade e a rubricas
orçamentárias. Há tipos de entraves que, inclusive, não
aparecem de maneira explícita, mas que efetiva e impli-
citamente inibem o poder público de cumprir a obriga-
ção de regularizar e titular as terras utilizadas pelas
comunidades remanescentes de quilombos .
Uma delas concerne às relações de poder historica-
mente apoiadas no monopólio da terra e na tutela de indí-
genas, ex-escravos e posseiros. Com fundamento nelas,
interesses latifundiários e outros grupos responsáveis
pelos elevados índices de concentração de terras rejei-
tam o reconhecimento de direitos étnicos pela proprie-
dade definitiva das terras das comunidades quilombolas.
A mencionada Ação Direta de Inconstitucionalidade
movida pelo Partido da Frente Liberal no Supremo Tri-
bunal Federal, em 25 de junho de 2004, buscando im-
pugnar o Decreto n.º 4.887⁄03, sobretudo o critério de
identificação das comunidades remanescentes de qui-
lombos pela auto-atribuição, com vistas a restringir ao
máximo o alcance do dispositivo, é um bom exemplo das
dificuldades para a efetivação do direito consagrado no
art. 68 do adct em favor dessas comunidades negras .
Em contraposição a estas formulações, observa Alfre-
do Wagner os movimentos quilombolas e os levantamentos
139
oficiais indicam que o número de comunidades remanescen-
tes de quilombos permanece ainda relativamente desconhe-
cido, mas sempre crescente e abrangendo novas modalida-
des. Em conformidade com as estimativas disponíveis,
verifica-se uma tendência ascensional com os totais sen-
do acrescidos a cada nova iniciativa de cadastramento 92.
O Programa de Ação Afirmativa, intitulado “Quilom-
bolas”, reitera que os dados oficiais do MDA apontam a
existência de 743 (setecentos e quarenta e três) áreas de
comunidades remanescentes de quilombos com 30 (trin-
ta) milhões de hectares, mas, ao mesmo tempo, promove
a subestimação desse número ao afirmar, de modo para-
doxal, que “no entanto, estimativas não-oficiais admitem
a existência de mais de duas mil comunidades”, acentuan-
do entre o que já se conhece e o que não se conhece sig-
nificativa discrepância numérica.
Em conclusão, a vasta maioria das comunidades rema-
nescentes de quilombos existentes no Brasil ainda é des-
conhecida do poder público e invisível aos olhos da
sociedade e não conseguiram ainda ver os benefícios que
deveriam lhes caber por força de um dispositivo consti-
tucional, sobretudo o direito às terras que ocupam e de
que necessitam para a sua reprodução, física, social, eco-
nômica e cultural.
Finalmente, listamos, de forma sumária, algumas su-
gestões para a implementação dos direitos concernentes
às comunidades remanescentes de quilombos e em prol
da igualdade étnico-racial:

1. reiterar a auto-aplicabilidade, com o máximo de efi-


cácia, do art. 68 do ADCT , onde se encontra a matriz nor-

92 almeida, Alfredo Wagner Berno de. (n.º 22), p. 90/91.

140
mativa para obrigar a União a regularizar as áreas uti-
lizadas pelas comunidades remanescentes de quilombos
e a expedir os respectivos títulos de domínio;
2. defender a constitucionalidade do Decreto n.º 4887⁄2003,
que estabelece o procedimento de identificação, delimi-
tação e demarcação dos territórios quilombolas;
3. denunciar as tentativas de se excluir do processo de
reconhecimento das comunidades remanescentes de qui-
lombos o critério da auto definição, essencial para a
identificação étnica nos termos da Convenção nº. 169,
da OIT e do Decreto 4887⁄2003;
4. apoiar a titulação coletiva – pro-indiviso – em favor
das comunidades remanescentes de quilombos, com a
cláusula de inalienabilidade, imprescritibilidade e im-
penhorabilidade das terras por eles ocupadas;
5. garantir a possibilidade de utilização do processo de
desapropriação nos territórios ocupados pelas comuni-
dades remanescentes de quilombos que estão sob domí-
nio privado;
6. defender as comunidades remanescentes de quilombos
de toda a forma de opressão, discriminação, de invasão
de seu território e de espoliação do seu direito ao título
de domínio coletivo sobre as terras por elas utilizadas;
7. fiscalizar, junto ao Congresso Nacional, a elaboração
da proposta orçamentária destinada aos Ministérios da
Cultura e Desenvolvimento agrário para a implementa-
ção do Decreto 4887⁄2003;
8. cobrar da Fundação Palmares e do Ministério do De-
senvolvimento Agrário/INCRA seja dada integral exe-
cução aos respectivos orçamentos para que não sejam
desperdiçadas as verbas destinadas ao processo de iden-
tificação, reconhecimento, delimitação e demarcação
das comunidades remanescentes de quilombos;
141
9. sensibilizar a opinião pública da necessidade de se res-
peitar e proteger as comunidades remanescentes de qui-
lombos, sua cultura, seu modo de ser e as suas terras;
10. articular com o Ministério Público, Poder Judiciá-
rio e a sociedade civil organizada a defesa da constitu-
cionalidade do Decreto n.º 4887⁄2003 e da retomada do
processo de identificação de terras quilombolas que
encontra-se paralisado no atual governo.

Aurélio Virgílio Rios


Subprocurador geral da República.

142
ministério público federal
Grupo de Trabalho sobre Quilombos, Povos e
Comunidades Tradicionais

Parecer contrário ao projeto


de Decreto Legisislativo
n.º 44, de 2007, de autoria
do Deputado Federal
Valdir Colatto

Contra o Decreto n.º 4.887, de 20⁄11⁄2003, que “[r]egu-


lamenta o procedimento para identificação, reconheci-
mento, delimitação, demarcação e titulação das terras
ocupadas por remanescentes das comunidades quilom-
bolas de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Cons-
titucionais Transitórias” da Constituição da República
Federativa do Brasil, foi apresentado o Projeto de Decre-
to Legislativo n.º 44, de 2007, que propõe a suspensão da
aplicação daquele Decreto.
Este parecer da 6.ª Câmara de Coordenação e Revisão
do Ministério Público Federal (Procuradoria-Geral da
República), produzido pelo Grupo de Trabalho sobre
Quilombos, Povos e Comunidades Tradicionais, revela o
143
descabimento do Projeto de Decreto Legislativo – pois
não houve exorbitância do poder regulamentar – e sua
improcedência – pois o Decreto 4.887⁄2003 não contém
os defeitos que lhe são apontados.

a autoaplicabilidade do art. 68 adct

Desde a promulgação da Constituição de 1988 que se dis-


cute a propósito da aplicabilidade (eficácia jurídica) do
art. 68 adct.
A aplicabilidade imediata (eficácia jurídica plena) é
evidente e ressalta já da redação do dispositivo. Estão su-
ficientemente indicados, no plano normativo, o objeto do
direito (a propriedade definitiva das terras ocupadas), seu
sujeito ou beneficiário (os remanescentes das comunida-
des dos quilombos), a condição (a ocupação tradicional
das terras), o dever correlato (reconhecimento da pro-
priedade e emissão dos títulos respectivos) e o sujeito
passivo ou devedor (o Estado, Poder Público). Qualquer
leitor bem-intencionado compreende tranqüilamente o
que a norma quer dizer, e o jurista consegue aplicá-la sem
necessidade de integração legal.
O art. 68 adct consagra diversos direitos fundamen-
tais, como o direito à moradia e à cultura. Do regime
específico e reforçado dos direitos fundamentais decor-
re a tendencial aplicabilidade imediata, visto que – apon-
ta o Professor Daniel Sarmento – “os direitos fundamen-

93 sarmento, Daniel. A garantia do direito à posse dos remanescentes de


quilombos antes da desapropriação. <<http://ccr6.pgr.mpf.gov.br/insti-
tucional/grupos-de-trabalho/quilombos-1/documentos/Dr_Daniel_Sar-
mento.pdf>>, Rio de Janeiro, 2006.

144
tais não dependem de concretização legislativa para sur-
tirem os seus efeitos”93.
Também indicam a eficácia jurídica plena desse arti-
go: o conteúdo da declaração normativa (simplesmente o
reconhecimento de um direito e a atribuição de um dever
específico de atuação do Poder Público) e sua localização
nas disposições transitórias (que, justamente para pode-
rem disciplinar imediatamente situações de transição
entre sistemas constitucionais que se sucedem, devem
estar dotadas de normatividade suficiente, segundo a
lição do Professor José Afonso da Silva 94).
Aspectos específicos relacionados ao âmbito concreto
(identificação de pessoas, delimitação de áreas etc.) e ao
âmbito administrativo (órgãos competentes, procedi-
mento...) não criam direitos e deveres “externos”, ape-
nas regulamentam a atuação estatal, e não carecem, por-
tanto, de lei para serem disciplinados.
Ademais, para satisfazer o princípio da legalidade lá
onde ele se impõe, já existe todo um arcabouço legislativo
que sustenta a aplicação do Decreto 4.887⁄2003: a orga-
nização administrativa, a legislação sobre desapropria-
ção etc. Ou seja: o art. 68 adct não necessita de lei para
sua aplicabilidade, mas onde esta é exigida no geral, exis-
tem diversas leis pertinentes. Citem-se, a propósito, a Lei
9.649⁄1998, sobre a organização da Presidência da Repú-
blica e dos Ministérios, que atribui ao Ministério da Cul-
tura competência para “aprovar a delimitação das terras
dos remanescentes das comunidades dos quilombos,
bem como determinar as suas demarcações, que serão
homologadas mediante decreto” (art. 14, iv, “c”); e a Lei

94 silva, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 2.


ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1982, p. 189-191.

145
7.668⁄1988, que institui a Fundação Cultural Palmares e
lhe dá competência para “realizar a identificação dos
remanescentes das comunidades dos quilombos, proce-
der ao reconhecimento, à delimitação e à demarcação das
terras por eles ocupadas e conferir-lhes a corresponden-
te titulação” (art. 2.º, iii).
Nesse contexto, ressalte-se o compromisso internacional
assumido pelo Brasil ao promulgar a Convenção n.º 169 da
Organização Internacional do Trabalho (oit, 1989), sobre
povos indígenas e tribais. Pela Convenção, os governos
comprometem-se a adotar “as medidas que sejam necessá-
rias para determinar as terras que os povos interessados
ocupam tradicionalmente e garantir a proteção efetiva dos
seus direitos de propriedade e posse” (art. 14.2) 95.
Mais importante, contudo, é considerar o tempo
transcorrido. Passados quase vinte anos da promulgação
da Constituição, não tem mais cabimento essa discussão a
respeito da autoaplicabilidade do art. 68 adct, senão
com intenção de neutralizar o comando constitucional.
Um comprometimento com a efetividade da Constituição
implica “construir uma argumentação sobre o art. 68 que
não inviabilizasse as ações positivas já existentes em prol
da realização do direito lá estabelecido”, destaca o Centro
de Pesquisas Aplicadas da Sociedade Brasileira de Direito
Público, capitaneada pelo Professor Carlos Ari Sundfeld 96.
Curioso que o anterior Decreto 3.912⁄2001, igualmen-
te editado diretamente para regulamentar o art. 68 adct,
mas cuja disciplina inadequada inviabilizava o efetivo

95 Aprovação pelo Decreto Legislativo 143, de 20/6/2002; promulgação


pelo Decreto 5.051, de 19/4/2004.
96 sundfeld, Carlos Ari (Org.). Comunidades quilombolas: direito à terra.
Brasília: Fundação Cultural Palmares; Abaré, 2002, p. 112.

146
reconhecimento da propriedade das terras de remanes-
centes de comunidades de quilombos, tenha passado
incólume à declaração de inconstitucionalidade ou à sus-
tação. Isso revela que o projeto de decreto legislativo em
questão na verdade insurge-se contra a perspectiva de um
reconhecimento efetivo do direito de propriedade aos
remanescentes de comunidades de quilombos (mais pró-
xima com o atual Decreto 4.887⁄2003 do que com o ante-
rior) e não contra a validade jurídica do Decreto 4.887.
Quando a densidade da norma constitucional é sufi-
ciente e há apenas necessidade de regulamentação para
uma atuação administrativa adequada, não faz falta a
interposição legislativa e pode ser estabelecida uma rela-
ção imediata entre a Constituição e o decreto 97.
Vejam-se os exemplos da “organização e funciona-
mento da administração federal, quando não implicar
aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos
públicos”, e da “extinção de funções ou cargos públicos,
quando vagos” (art. 84, vi), bem como da intervenção
federal (art. 36, § 1.º).
Em outras hipóteses, pode já existir legislação e o regu-
lamento é apenas aparentemente autônomo, conforme
decidiu recentemente o stf em relação à antiga Portaria
796⁄2000, do Ministro da Justiça, sobre classificação indi-
cativa dos programas de televisão: o Estatuto da Criança e
do Adolescente (Lei 8.069⁄1990) era a prévia lei necessária.
Equivoca-se a justificação do projeto em questão, ao
acusar o Decreto 4.887 de pretender “regulamentar dire-
ta e imediatamente preceito constitucional”. A uma, por-

97 Doutrina e jurisprudência admitem a reserva de lei relativa: martines,


Temistocle. Diritto constituzionale. 11. ed. Milano: Giuffrè, 2005, p. 379.
98 adi 2.398 AgR/df, rel. Min. Cezar Peluso, 25/6/2007.

147
que o art. 68 adct possui suficiente densidade normati-
va, sendo autoaplicável. A duas, porque a regulamenta-
ção de aspectos meramente administrativos relacionados
a dispositivo constitucional autoaplicável não um vício,
sendo perfeitamente cabível. A três, porque há diversas
leis preexistentes que dão sustentação ao Decreto.

o acerto e não a exorbitância do


decreto 4.887⁄2003

O projeto de decreto legislativo para sustar o Decreto


4.887 utiliza como pretexto, que este supostamente esta-
ria exorbitando do poder regulamentar, mas o que o pro-
jeto realmente combate é o acerto (conteúdo, mérito) des-
sa regulamentação. Desse modo, está-se a utilizar inde-
vidamente o poder conferido ao Congresso Nacional no
art. 49, v, da Constituição.
O que essa competência congressual tem em mira é so-
bretudo um defeito formal: quando o Poder Executivo
vai além da faculdade de regulamentar ou da delegação
legislativa, independentemente do acerto com que a ma-
téria é disciplinada. Trata-se de um instrumento de pro-
teção da reserva de competência exclusiva do Congresso
Nacional e não de uma alternativa para contestar o méri-
to da atuação do Executivo, quando esta se contém em
seus devidos limites.
O Congresso Nacional – na precisa anotação de José
Adércio Leite Sampaio – “não pode avaliar o mérito em si
do ato normativo, não pode aquilatar o seu acerto utili-
tário, de conveniência ou de oportunidade, se, por exem-

99 sampaio, José Adércio Leite. A constituição reinventada pela jurisdi-


ção constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 475-476.

148
plo, espaços para adoção de alternativas tiverem sido dei-
xados, expressa ou implicitamente, pelo legislador”99.
É o princípio fundamental da separação de Poderes
(art. 2.º) que está em jogo. Se a competência para disci-
plinar um assunto é do Poder Legislativo (reserva de lei),
uma indevida invasão (usurpação) de competência pode
ser combatida na esfera política pelo próprio Congresso
Nacional (por meio da sustação: art. 49, v) e na esfera
judicial pelo Poder Judiciário (por exemplo, por meio de
ação direta de inconstitucionalidade).
Entretanto, se a competência constitucional para dis-
ciplinar um assunto é do Poder Executivo, no exercício
do poder regulamentar (art. 84, iv, final), o Poder Legis-
lativo não pode alegar que houve usurpação de sua com-
petência e utilizar o poder de veto legislativo conferido
pelo art. 49, v, apenas porque não concorda com o méri-
to da regulamentação. Como esclarece o Professor Clè-
merson M. Clève, quando o Executivo deve apenas “dis-
ciplinar os procedimentos utilizados pela Administração
(modo de agir) nas relações que travará com os particu-
lares, efetivamente, não há delegação”, e “o Executivo
pode, perfeitamente, regulamentar a lei em virtude de
competência própria”100. Em termos mais gerais, mas res-
saltando essa atribuição regulamentar própria, enfati-
zam os Professores Luiz Alberto David Araujo e Vidal
Serrano Nunes Júnior que a lei “não pode impedir a sua
regulamentação, pois estaria invadindo a competência
do Poder Executivo”101. Portanto, a situação inverte-se no
100 cleve, Clèmerson M. Atividade legislativa do Poder Executivo no
Estado contemporâneo e na Constituição de 1988. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1993, p. 254.
101 araujo, Luiz Alberto David; nunes Júnior, Vidal Serrano. Curso de
direito constitucional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 310.

149
presente projeto de decreto legislativo: é o Congresso
Nacional que extrapola seu poder ao pretender suspen-
der o exercício adequado do poder regulamentar pelo
Presidente da República.
A desautorização da opção do Executivo pelo Legis-
lativo pode dar-se apenas onde houver autorização
expressa da Constituição. Fora daí, os Poderes deverão
respeitar suas respectivas esferas de atribuição. O Poder
Legislativo pode, sim, contestar o acerto das opções do
Executivo, por exemplo, em relação a escolhas de titula-
res de determinados cargos (art. 52, iii), ao veto (art. 66,
§ 4.º), a medidas provisórias (art. 62, § 5.º), à intervenção
(art. 36, § 1.º). Essas e outras hipóteses revelam a inter-
ferência recíproca (freios e contrapesos) entre os Pode-
res, que define por exceção o princípio da autonomia.
Em suma, o projeto de decreto legislativo em análise
tem em vista infirmar a opção do Poder Executivo, con-
substanciada no conteúdo do Decreto 4.887⁄2003, e uti-
liza indevidamente como pretexto uma alegada – mas
não explicada – ultrapassagem dos limites do poder
regulamentar.

respeito ao devido processo legal – Se pudesse


apreciar o mérito da regulamentação dada pelo Decreto
4.887, o Congresso Nacional, no uso do poder de sustação
de atos normativos do art. 49, v, da Constituição, haveria
de concluir pelo atendimento ao princípio do devido
processo legal, em sentido contrário ao que insinua o
projeto de decreto legislativo ora em exame.
Cuidadoso, o Decreto 4.887⁄2003 adota o critério an-
tropológico de auto-atribuição dos grupos étnico-raciais
(art. 2.º), pois não haveria como reconhecer autoridade a
alguém externo ao grupo para proceder, heteronoma-
150
mente, à atribuição de identidade. “Devemos encontrar
alguma outra maneira de assegurar a legitimidade, uma
maneira que não continue a definir grupos excluídos em
função de uma identidade que outros criaram para eles.”
– adverte Will Kymlicka 102.
É seguido o critério internacionalmente adotado, do
que dá testemunho a Convenção n.º 169 da oit, cujo art.
1.2 dispõe que a consciência da própria identidade “deve-
rá ser considerada como critério fundamental para deter-
minar os grupos” aos quais se aplica a Convenção103. Tanto
é assim que Julie Ringelheim, ao analisar a Convenção
Européia dos Direitos Humanos, refere que, no contexto
das diferentes culturas, conforme apontam sociólogos e
antropólogos, “as normas e as práticas são interpretadas,
negociadas, modificadas pelos próprios atores sociais”104.
Todavia, como o próprio Decreto determina, devem
ser avaliados também outros fatores (trajetória histórica
própria, relações territoriais específicas, ancestralidade
negra relacionada com a resistência à opressão histórica),
que revestem de objetividade a auto-atribuição inicial.
Juliana Santilli aponta justamente que os principais cri-
térios adotados para a identificação das comunidades de
quilombos são “a auto-atribuição (critério também con-
sagrado pela Convenção 169 da oit, já mencionado) e a
relação histórica com um território específico”105.

102 kymlicka, Will. Filosofia política contemporânea. São Paulo: Martins


Fontes, 2006, p. 293.
103 santilli, Juliana. Socioambientalismo e novos direitos. Proteção jurídi-
ca à diversidade biológica e cultural. São Paulo: Peirópolis, 2005, p. 136-137.
104 ringelheih, Julie. Diversité culturelle et droits de l’homme. L’émer-
gence de la problématique des minorités dans le droit de la Convention euro-
péenne des droits de l’homme. Bruxelles: Bruylant, 2006.
105 Op. e loc. cit.

151
Essa, contudo, é apenas uma etapa preliminar, que de-
verá ser seguida da “identificação, delimitação e levan-
tamento ocupacional e cartorial” da área (art. 7.º do De-
creto), retratadas num relatório técnico. Este será enca-
minhado a diversos órgãos para manifestação (art. 8.º) e
permitirá contestação por qualquer interessado (art. 9.º).
Como se percebe, os requisitos para o reconhecimento
do direito de propriedade deverão ser demonstrados, des-
de a condição de remanescente de quilombo até a posse tra-
dicional (mesmo quando não atual, por causa, por exem-
plo, de expulsão violenta). E são asseguradas amplas pos-
sibilidades de contestação por quem se sentir prejudicado.

ausência de privilégio odioso – É a própria Cons-


tituição de 1988 que, originalmente, institui um tratamen-
to jurídico diferenciado para os remanescentes das comu-
nidades de quilombos que ocupam ou ocupavam suas ter-
ras tradicionalmente, mas não têm título e/ou registro
imobiliário. Há o reconhecimento constitucional de uma
situação histórica. Regimes jurídicos diferenciados con-
cretizam a igualdade, “devendo as situações desiguais ser
tratadas de maneira dessemelhante, evitando-se assim o
aprofundamento e a perpetuação de desigualdades en-
gendradas pela própria sociedade”, assevera o Ministro
Joaquim. B. Barbosa Gomes 106.
Quando o projeto de decreto legislativo em foco acu-
sa o Decreto 4.887⁄2003 de “estabelecer privilégio”, na
verdade está a insurgir-se contra a opção feita na própria
Constituição, que também estabeleceu tratamento jurí-

106 gomes, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa & princípio constitu-


cional da igualdade. O Direito como instrumento de transformação social.
A experiência dos EUA. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 4.

152
dico distinto para os índios (art. 231), para as pessoas
portadoras de deficiência (art. 37, viii), para os cultos e
seus templos (art. 150, vi, “b”), para os Deputados e
Senadores (art. 53)...

modalidade já existente de desapropriação – O pro-


jeto também afirma, erroneamente, que o Decreto 4.887
“cria nova forma de desapropriação, alargando os limi-
tes constitucionais ao direito de propriedade, sem previ-
são constitucional ou legal”.
As modalidades expropriatórias que podem ser utili-
zadas, justamente para regularizar a situação fundiária e
garantir indenização a posseiros que residam e/ou culti-
vem as terras dos remanescentes de quilombos, são as
clássicas desapropriações por utilidade pública (previs-
ta no Decreto-lei 3.365⁄1941) e por interesse social (pre-
vista na Lei 4.132⁄1962). A propósito, recentemente, o
Presidente da República desapropriou por “interesse
social, para fins de titulação de área remanescente de
quilombo”, a área onde se situa a comunidade remanes-
cente de quilombo da Caçandoca, no Município de Uba-
tuba, Estado de São Paulo (Decreto de 27⁄9⁄2006).
As desapropriações por utilidade pública ou por inte-
resse social também podem ser realizadas pelos Estados,
Distrito Federal e Municípios, na medida de suas possi-
bilidades. Afinal, o art. 68 adct determina generica-
mente que ao Estado – no sentido de Poder Público, ou
seja, a todos os níveis federados de governo – incumbe a
emissão dos respectivos títulos de propriedade.
É discutível se seria cabível ainda, em casos específicos,
a desapropriação para fins de reforma agrária, pela União,
ou mesmo se haveria necessidade de desapropriação ou se
bastaria a indenização de eventuais posseiros (com ou sem
153
título de propriedade) por outras vias. A desapropriação
“por interesse social, para fins de reforma agrária” (art.
184 da Constituição) é a forma determinada na Instrução
Normativa n.º 20, de 19⁄11⁄2005, do Presidente do incra,
que regulamenta o procedimento estabelecido no Decreto
4.887⁄2003; essa in prevê também a desapropriação previs-
ta no art. 216, § 1.º, da Constituição (desapropriação com
o objetivo de promover e proteger o patrimônio cultural
brasileiro, hipótese contida no Decreto-lei 3.365⁄1941, art.
5.º, “l”) e a compra e venda “na forma prevista no Decre-
to 433⁄92” (sobre a aquisição de imóveis rurais, para fins
de reforma agrária). Toda essa discussão apenas indica a
possibilidade de outras modalidades expropriatórias ou
indenizatórias já previstas no ordenamento jurídico.
Como se pode ver, o Decreto 4.887 não “cria nova for-
ma de desapropriação” e nem precisaria, pois as diver-
sas modalidades expropriatórias já existentes prestam-se
à regularização fundiária dos territórios tradicionalmen-
te ocupados por comunidades quilombolas.

as formas de controle do decreto legislativo

O decreto legislativo de sustação dos atos do Poder Exe-


cutivo que exorbitem do poder regulamentar – decreto
legislativo que representa uma modalidade de controle
parlamentar sobre o Executivo – também é suscetível de
controle, judicial.
Quando o pretenso controle parlamentar é quem usur-
pa a competência regulamentar do Executivo, há afronta
ao princípio da separação de poderes, que caracteriza in-

107 matines, Temistocle. Diritto constituzionale. 11. ed. Milano: Giuf-


frè, 2005, p. 503.

154
constitucionalidade 107. Isso é afirmado pela jurispru-
dência do Supremo Tribunal Federal:

O exame de constitucionalidade do decreto legislativo


que suspende a eficácia de ato do Poder Executivo impõe
a análise, pelo Supremo Tribunal Federal, dos pressupos-
tos legitimadores do exercício dessa excepcional competên-
cia deferida à instituição parlamentar. Cabe à Corte Su-
prema, em conseqüência, verificar se os atos normativos
emanados do Executivo ajustam-se, ou não, aos limites
do poder regulamentar ou aos da delegação legislativa.
A fiscalização estrita desses pressupostos justifica-se
como imposição decorrente da necessidade de preservar,
hic et nunc, a integridade do princípio da separação de
poderes (adi 748-3 mc/rs, rel. Min. Celso de Mello,
1⁄7⁄1992) 108.

Em caráter preventivo, todavia, já é possível proceder a


uma avaliação da (in)compatibilidade do próprio proje-
to de decreto legislativo em comento, que não deverá re-
ceber parecer favorável das comissões incumbidas de
analisá-lo. Evitar-se-á, assim, que o Congresso Nacional
despenda tempo e esforços inutilmente, na discussão e
eventual aprovação de um decreto legislativo fadado,
então, a ter sua inconstitucionalidade declarada pelo
Supremo Tribunal Federal 109.
Ainda que não se considere a inconstitucionalidade
do projeto de decreto legislativo, ele não merece aprova-
108 Veja-se também a adi 1.553-2/df, rel. Min. Sepúlveda Pertence,
6/1/1997.
109 Encontra-se pendente de apreciação pelo Supremo Tribunal Federal
a Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.239/df, justamente contra o
Decreto 4.887/2003.

155
ção no mérito. Cabe ao Congresso Nacional, isto sim, afir-
mar a qualidade do Decreto 4.887⁄2003, que:
a) oferece um procedimento adequado de identifica-
ção, reconhecimento, delimitação, demarcação e titula-
ção das terras ocupadas por remanescentes das comuni-
dades dos quilombos;
b) permite a concretização do art. 68 adct e assegu-
ra, assim, um direito reconhecido pela Constituição de
1988, mas que mal tem sido implementado;
c) responde ao compromisso internacional assumido
pelo Brasil ao ratificar a Convenção 169 da oit.

Conclui-se que o Projeto de Decreto Legislativo n.º 44⁄2007


é descabido, improcedente e contrário à Constituição.

Piracicaba (SP), 17 de setembro de 2007.

Walter Claudius Rothenburg


Procurador Regional da República

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anexo i – Parecer n.º agu/mc – 1/2006.
Manoel Lauro Volkmer de Castilho

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182
anexo ii – Despacho do Advogado-Geral da União.
Álvaro Augusto Ribeiro da Costa

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