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revisão
Luciane Silva da Costa
Duprat, Deborah
pncsa.ufam@yahoo.com.br
Sumário
Art – Artigo
cf – Constituição Federal
cdb – Conveção sobre Diversidade Biológica
oit – Organização Internacional do Trabalho
onu – Organização das Nações Unidas
pnpct – Política Nacional de Desenvolvimento dos Povos
e Comunidades Tradicionais
snuc – Sistema Nacional de Unidades de Conservação
da Natureza
§ – Parágrafo
Unesco – Organização das Nações Unidas para Educação,
a Ciência e a Cultura
coleção
DOCUMENTOS DE BOLSO
7
indígenas, quilombolas, ribeirinhos, quebradeiras de coco
babaçu, seringueiros, faxinalenses, comunidades de fundos
de pasto, pomeranos, ciganos, geraizeiros, vazanteiros, pia-
çabeiros, pescadores artesanais, pantaneiros, afro-religio-
sos e demais sujeitos sociais emergentes, cujas identidades
coletivas se fundamentam em direitos territoriais e numa
autoconsciência cultural.
O trabalho de direção da coleção ficou a cargo do Coorde-
nador do pncsa, o antropólogo Alfredo Wagner Berno de
Almeida. Em discussão com advogado, procuradora e an-
tropóloga, organizadores de cada volume, foram fixados os
critérios de seleção e agrupamento dos documentos. A res-
ponsabilidade principal da seleção, entrementes, ficou sob
a responsabilidade daqueles especialistas mencionados
diretamente referidos aos temas em questão, concernentes
respectivamente a direitos étnicos, culturais e territoriais.
Os gêneros dos documentos em jogo foram criteriosamente
considerados. No primeiro e no terceiro volume foram clas-
sificadas: convenções internacionais (oit, unesco, onu) e
protocolos adicionais, declarações aprovadas em assem-
bléia geral (onu, unesco) e respectivas portarias e decre-
tos ratificadores ou que orientam a sua implementação. No
segundo volume foram agrupados sobretudo pareceres
jurídicos de circulação restrita (mpf, agu, incra).
8
O Direito sob o marco
da plurietnicidade /
multiculturalidade
10
que a consciência constitui o objeto segundo suas cate-
gorias apriorísticas, importa, em ultima análise, em que
o outro apenas existe a partir do ego, ou seja, o outro é
antecipado e apreendido reflexivamente através de mim.
O racionalismo construtor kantiano inspira, ainda, o
Estado-nação. O conceito de nação é celebrado e reconfi-
gurado pela Revolução Francesa, cujos elementos funda-
mentais encontram-se na obra O que é o Terceiro Estado?,
de Sieyès, consubstanciados em uma identidade cultural
e integradora, fundada numa continuidade biológica de
relações de sangue, numa abrangência espacial de territó-
rio, e em comunidade lingüística (Hardt e Negri, 2001:113).
A solidificação do poder da soberania requereu e
engendrou, em larga medida, a naturalidade do concei-
to, ou seja, a identidade da nação e, mais ainda, a identi-
dade do povo, teria de parecer natural e originária (Hardt
e Negri, 2001:120), possibilitada por meio de um simbo-
lismo cultural de povo com caráter próprio, comuns pro-
cedência, história e linguagem (Habermas, 2000:88).
O Direito, nesse contexto, é entendido como uma qua-
lidade moral que compete à pessoa (qualitas moralis perso-
nae competens, segundo a conhecida definição de Grocio),
onde, portanto, o indivíduo ocupa o lugar primeiro e cen-
tral. Esse sujeito de direito, no cadinho de homogeneida-
de e de unidade que lhe é correlato, é um ser abstrato,
intercambiável, sem qualidades (Bourdieu, 2001:163).
E o tema da justiça passa a ser decidido com a doutri-
na das “esferas de liberdade” de cada indivíduo. Frases
como “minha liberdade termina onde começa a liberda-
de do outro” desenhavam apropriações territoriais sob o
signo da ubiqüidade. O termo ubiqüidade, na física, é
sinônimo de exclusão: dois corpos físicos não podem
ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo. Levado para o
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campo do direito, estava a significar que todo homem
desloca aos demais homens de seu campo de ação (Car-
pintero, 1993:40). A propriedade privada é o arquétipo
dessa geografia de figuras geométricas, fronteiriças e
excludentes entre si.
Mas aquilo que um dia foi sólido acabou se desman-
chando no ar.
O conhecimento caracterizado pelo logocentrismo,
pela semelhança, pela adequação, pela unidade, bem
como os constructos teóricos por ele engendrados, são
colocados em questão inicialmente por Nietszche, que o
vê como desconhecimento, na medida em que, ao esque-
matizar, ao assimilar as coisas entre si, ignora as diferen-
ças, cumprindo seu papel sem nenhum fundamento na
verdade. Seguem-se Foucault, Heidegger, Adorno, Der-
rida, denunciando a colonização da diferença pelo sem-
pre-igual e pelo homogêneo e anunciando o reino do
fragmento contra a totalização, do descontínuo e do múl-
tiplo contra as grandes narrativas e as grandes sínteses.
Também vem à luz a falácia da idéia de nação como
entidade social originária. Observa Hobsbawm que,
15
É fato que o direito preexistente à Constituição de
1988 não os contemplou; ao contrário, sequer se apre-
sentavam como sujeitos em face dele.
Todavia, o direito internacional e várias convenções
já incorporadas ao nosso ordenamento jurídicos assegu-
ram aos membros desses povos o gozo dos direitos que a
legislação nacional outorga aos demais membros da
população.
Aplicar esse direito, tout court, sem levar em conta as
suas especificidades, seria perpetuar o quadro de exclu-
são e lançar por terra as conquistas constitucionais.
De outro giro, colocá-los à margem do direito à espe-
ra da elaboração de leis que os contemplem especifica-
mente é um desatino.
Não é demais lembrar que direitos culturais e étnicos,
porque indissociáveis do princípio da dignidade da pes-
soa humana, têm o status de direito fundamental. São,
portanto, de aplicação imediata.
Assim, é preciso que se considere que (1) todo esse
acervo jurídico existente pode e deve ser mobilizado para
assegurar o exercício pleno e imediato de direitos étnicos
e culturais; (2) há que se eleger o instrumento de mais
ampla e rápida eficácia e adaptá-lo às especificidades des-
ses direitos; e (3) a aplicação do direito nacional, em
demandas que envolvam esses grupos e/ou seus mem-
bros, requer leitura que leve em conta as suas diferenças.
Por ora, nenhuma grande novidade. Sabe-se que, com
o advento de um novo texto constitucional, não se revo-
ga, até porque tal empreitada seria absurda, todo o direi-
to preexistente. Apenas aquelas normas claramente em
desconformidade com a nova Constituição são tidas por
revogadas. As demais seguem em vigor, com a cautela de
a ela se adequarem por ocasião de sua aplicação.
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E é exatamente na aplicação do direito preexistente
que reside o segundo e grande desafio.
Os chamados operadores do direito aprendem, em seus
cursos universitários, que Savigny distinguiu entre a
interpretação gramatical, lógica, histórica e sistemática.
Essa classificação dos critérios interpretativos, aos quais
se agregou posteriormente o teleológico, teve tal êxito que
chegou a ser patrimônio comum de nossa cultura jurídica.
É chegada a hora, contudo, principalmente em função
do pluralismo que a Constituição preconiza, de estabele-
cer uma relação com a norma que não seja de mera inter-
pretação, no sentido da reflexividade, da onipotência do
pensamento que retorna sobre si.
A interpretação, nessa acepção, é a realização mais aca-
bada da visão escolástica: a de um espectador dotado de
determinada competência que assiste ao espetáculo que
se lhe apresenta e, a partir de seu ponto-de-vista, captu-
ra o que lhe parece essencial e o coloca sob a moldura da
norma, por ele também pré-compreendida.
O espetáculo tem a sua definição estabelecida por uma
terceira pessoa, e com isso perde a normatividade que
lhe é própria. Assume a visão que o intérprete a ele con-
fere, faz-se objeto.
No entanto, o que dizer da lição de Wittgenstein, se-
gundo a qual as normas, vistas separadamente das ativida-
des práticas dos seres humanos, são meros itens mentais
ou lingüísticos? Como, então, apreender o sentido da nor-
ma deslocada de seu contexto de uso? Como, num siste-
ma constitucional que assegura o pluralismo, transformar
os agentes e suas práticas em objeto a ser interpretado?
É preciso, portanto, em primeiro lugar, desfazer a
noção de que o intérprete, por uma dada competência,
está habilitado a decifrar, por si só, a norma em abstrato.
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Não há esse ato de deciframento prévio. Norma e prá-
tica se interpelam o tempo todo, e aquela só tem sentido
à vista desta.
Depois, é preciso, por mandamento constitucional, re-
conhecer ao grupo e aos seus membros a sua liberdade
expressiva. Há, aqui, um deslocamento da terceira para a
primeira pessoa. São eles que apresentam o ambiente no
qual se faz uso da norma e a atenção que a ela conferem.
Só então, compreendido o contexto de uso revelado
pelos próprios agentes e, a partir daí, o sentido da nor-
ma, será possível, ao aplicador do direito, decidir ade-
quadamente.
Alguns exemplos talvez dêem maior clareza ao que
foi dito.
São muito comuns, na atualidade, ações possessórias
contra índios e quilombolas. É preciso que o julgador
tenha em mente que o centro do debate está na própria
definição de posse e que as partes contrapostas perten-
cem a comunidades lingüisticas distintas.
Para os guaranis, por exemplo, o tekoha é uma insti-
tuição divina criada por Ñande Ru. Deles desalojados
com a chegada do homem branco, procuram ali perma-
necer, inclusive trabalhando para este nos ervais e em
roças. Consideram-se, dessa forma, de posse de seu ter-
ritório tradicional.
Fala-se que alguns grupos indígenas praticam infan-
ticídio, dentre eles os yanomami. Mais uma vez, a ques-
tão nuclear é a definição de vida.
A mulher yanomami, quando sente que é chegada a
hora do parto, vai sozinho para local ermo na floresta,
fica de cócoras, e a criança cai ao chão. Nessa hora, ela
decide se a pega ao colo ou se a deixa ali. Se a coloca nos
braços, dá-se, nesse momento, o nascimento. Se a aban-
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dona, não houve, na concepção do grupo, infanticídio,
pela singela razão de que a vida não se iniciou.
São visões que, goste-se ou não, não podem ser des-
cartadas, sob pena de, em afronta à Constituição e a
outros tantos documentos internacionais, se negar qual-
quer valor às asserções de verdade do outro.
BIBLIOGRAFIA
Deborah Duprat
Subprocuradora-Geral da República
Coordenadora da 6.ª Câmara de Coordenação e
Revisão do Ministério Público Federal
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A inconstitucionalidade
do Decreto 3912,
de 10 de setembro
de 2001
22
irregular, etc. Não se pode, na compreensão constitucio-
nal, desconsiderar tal fato. Ora, este fenômeno (expulsão,
exclusão) afeta diretamente a dignidade das pessoas a
quem se dirige a norma. Afeta a dignidade da pessoa hu-
mana, garantia constitucional, que não admite tergiversa-
ções. No momento em que estas pessoas foram atingidas
em sua dignidade, através de um processo espoliativo, de
exclusão, não poderia a norma expressa no artigo 68 dar
guarida a isto. O princípio já referido, fulmina qualquer
interpretação que queira afirmar o sentido contrário: pes-
soas expulsas de suas terras, em qualquer momento, e que
sejam consideradas comunidades remanescentes de qui-
lombos, não podem ser excluídas, novamente, da abran-
gência do dispositivo constitucional. Em outras pala-
vras, a Constituição não pode excluir o direito destas
pessoas. Nesta mesma linha encontra-se o Decreto que
afirma: o reconhecimento somente sobre as terras “que
estavam ocupadas por remanescentes das comunidades
dos quilombos em 5 de outubro de 1988”. Se à Constitui-
ção não é possibilitado excluir os grupos que foram obri-
gados a desocupar suas terras, muito menos um Decreto.
O princípio hermenêutico da efetividade dos direitos
fundamentais vem a exigir que de modo algum é lícita
qualquer discriminação contra estas pessoas.
Passamos agora a análise da outra exigência proposta
pelo Decreto Executivo, que determina o reconhecimento
das comunidades remanescentes somente sobre terras que
“eram ocupadas por quilombos em 1888”. Vige em nosso
ordenamento jurídico o princípio constitucional da pro-
porcionalidade, da proibição do excesso. Retira sua “for-
ça” de outro princípio constitucional que refere a razoa-
bilidade como diretriz a ser obedecida pela Administra-
ção, ou seja expressa que toda conduta administrativa
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deve ser adequada, racional, de acordo com um senso
normal da sociedade. O princípio da proporcionalidade
que possui sua matriz, como já salientado, na razoabili-
dade, refere que a conduta da Administração Pública só
tem validade na medida que suas atividades sejam exer-
cidas, conforme leciona Celso Antônio Bandeira de Mel-
lo “na extensão e na intensidade proporcionais ao que seja
realmente demandado para cumprimento da finalidade de
interesse público a que estão atreladas”4.
O mesmo jurista refere que a atividade que transbor-
dar das medidas necessárias para o cumprimento de deter-
minada medida atingem o princípio da proporcionalida-
de, “sobremodo quando a Administração restringe situa-
ção jurídica dos administrados além do que caberia, por
imprimir às medidas tomadas uma intensidade ou exten-
são supérfluas, prescindendas, ressalta a ilegalidade de
sua conduta. É que ninguém deve estar obrigado a supor-
tar constrições em sua liberdade ou propriedade que não
sejam indispensáveis à satisfação do interesse público”5.
Tal lição vem enquadrar-se como uma luva ao caso em
tela. A atividade administrativa-normativa, modelada
através de um Decreto, implica em uma sobrecarga de exi-
gências para o reconhecimento determinado pelo texto
constitucional. O prazo referido pelo Decreto acarretaria a
necessidade de comprovar a ocupação por cem anos de
qualquer terreno reivindicado. Até mesmo as normas que
exigem prazos mais dilatados para a prescrição aquisitiva,
como o usucapião previsto na Lei Substantiva Civil (artigo
24
550 do Código Civil) 6, referem vinte anos. Em outras pala-
vras: se algum integrante de uma comunidade quiser ter
o reconhecimento estampado na Constituição deverá pro-
var cem anos de ocupação; se este mesmo integrante qui-
ser adquirir o mesmo terreno, via usucapião, deverá pro-
var vinte anos de ocupação. Oitenta anos menos!!! A exi-
gência, contida no Decreto, é menos benéfica para as
Comunidades do que as exigências contidas em uma nor-
ma criada no início do século passado. Em conclusão: tal
requisito não é razoável, violando, totalmente, os princí-
pios constitucionais vigentes. Além disso, a coleta de pro-
vas vai se tornar extremamente difícil, para não dizer
impossível. Produzir um conjunto probatório utilizando
material com mais de um século de existência é tarefa
hercúlea. Os experts teriam imensas dificuldades para
conseguir demonstrar uma ocupação ocorrida nesta épo-
ca. Não é, portanto, razoável estabelecer este período.
De outra banda, o estabelecimento de um ano determi-
nado, in casu, 1888 (ano da abolição), não é a técnica nor-
mativa mais correta. O reconhecimento das comunidades
vai se tornar uma atividade raríssima posto que restrita a
um tempo acentuadamente preciso. Se é necessário, tal-
vez, evitar o alargamento dos conceitos, é necessário,
também, evitar restringi-los. Fincar o ano de 1888 como
requisito para o reconhecimento é espremer demais o
conceito de comunidade proposto pela Constituição, até
porque esta Carta Política não trabalha com essa data, e
não pode a atividade infraconstitucional ir além do que
6 “Aquele que, por 20 (vinte) anos, sem interrupção, nem oposição, pos-
suir como seu um imóvel, adquirir-lhe-á o domínio, independentemente
de título e boa-fé que, em tal caso, se presume, podendo requerer ao juiz
que assim o declare por sentença, a qual lhe servirá de título para trans-
crição no Registro de Imóveis”.
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estabeleceu o Constituinte. Os laudos antropológicos
eventualmente construídos para demonstrar a existência
de uma comunidade terão uma margem maior para ope-
rar e estabelecer suas conceituações e limites a partir,
também, da leitura do texto constitucional. Se estes lau-
dos não forem consentâneos com o texto, o próprio órgão
federal poderá não lhes dar guarida, e mesmo que esta
aprovação ocorra, tais trabalhos antropológicos poderão
passar pelo crivo do Poder Judiciário. Ou seja, se os lau-
dos extrapolarem o conceito aberto de remanescentes de
comunidades quilombolas cunhado pela Constituição
existirão mecanismos para evitar que reconhecimentos
despropositados aconteçam. Em vista disso, pode-se afir-
mar peremptoriamente que o inciso i viola, por comple-
to, o princípio constitucional da razoabilidade.
Refere Paulo Bonavides que tal atitude atinge direta-
mente o próprio Estado democrático e o ordenamento
jurídico: “A lesão ao princípio é indubitavelmente a mais
grave das inconstitucionalidades porque sem princípio
não há ordem constitucional e sem ordem constitucional
não há garantia para as liberdades cujo exercício somen-
te se faz possível fora do reino do arbítrio e dos poderes
absolutos. Quem atropela um princípio constitucional,
de grau hierárquico superior, atenta contra o fundamen-
to de toda a ordem jurídica. A construção desta, partin-
do de vontade constituinte legítima, consagra a utiliza-
ção consensual de uma competência soberana de primei-
ro grau”7. Além disso, o mesmo mestre reforça a idéia da
positivação deste princípio: “O princípio da proporcio-
nalidade é, por conseguinte, direito positivo em nosso
26
ordenamento constitucional. Embora não haja sido ain-
da formulado como ‘norma jurídica global’, flui do espí-
rito que anima em toda sua extensão e profundida o § 2.º
do art. 5.º, o qual abrange a parte não-escrita ou não ex-
pressa dos direitos e garantias da Constituição, a saber,
aqueles direitos e garantias cujo fundamento decorre da
natureza do regime, da essência impostergável do Esta-
do de Direito e dos princípios que este consagra e que
fazem inviolável a unidade da Constituição”8.
O alemão Robert Alexy refere que “Los principios son
mandatos de optimizacion com respecto a las posibilida-
des jurídicas y fácticas. La máxima de la proporcionali-
dad em sentido estricto, es decir, el mandato de ponde-
ración, se sigue de la relativización com respecto a las
posibilidades jurídicas. Si uma norma de derecho funda-
mental com carácter de principio entra em colisión com
um principio opuesto, entonces la posibilidad jurídica
de la realización de la norma de derecho fundamenatl de-
pende del principio opuesto. Para llegar a uma decisión,
es necesaria uma ponderación em el sentido de la ley de
colisión. Como la aplicación de principios válidos, cuan-
do son aplicables, está ordenada y como para la aplica-
ción em el caso de colisión se requiere una ponderación,
el carácter de principio de las normas iusfundamentales
implica que, cuando entran em colisión se requiere uma
ponderación, el carácter de principio de las normas ius-
fundamentales implica que, cuando entran em colisión
com principios opuestos, está ordenada uma pondera-
ción. Pero, esto significa que la máxima de la proporcio-
nalidad em sentido estricto es deducible del carácter de
principio de las normas de derecho fundamental.
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De la máxima de proporcionalidad em sentido estric-
to se sigue que los principios son mandatos de optimiza-
ción com relación a las posibilidades jurídicas. Em cam-
bio, las máximas de la necesidad y de la adecuación se
siguen del carácter de los principios como mandatos de
optimización con relación a las posibilidades fácticas”9.
Nesta mesma linha, o jurista português Canotilho afir-
ma que a proporcionalidade, ou proibição de excesso,
possui desdobramentos principiológicos da seguinte for-
ma: princípio da conformidade ou adequação de meios;
princípio da exigibilidade ou da necessidade; e princí-
pio da proporcionalidade em sentido restrito.
O princípio da adequação dos meios refere que a medi-
da adotada pelo Poder Público tem que ser apropriada
para o fim exigido. Ou seja, “a exigência de conformida-
de pressupõe a investigação e a prova de que o acto do
poder público é apto para e conforme os fins justificati-
vos da sua adoção. ... Trata-se, pois, de controlar a rela-
ção de adequação medida-fim”10.
No presente caso, em relação ao inciso i, nota-se que a
Administração torna mais difícil o reconhecimento referido
pela Constituição. E a finalidade desta norma só pode ser,
dando integral cumprimento a norma constitucional, pro-
porcionar o correto e justo reconhecimento dos remanescen-
tes das comunidades de quilombos. Se a finalidade é esta
então o procedimento utilizado pelo Poder Público para
levá-lo a cabo não é adequado. Por conseguinte, o meio uti-
lizado, estabelecer uma data precisa para o reconhecimento,
não se mostra adequado para o fim pretendido. Pelo contrá-
9 alexy, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro
de Estudios Constitucionales, 1997. pp. 112/113.
10 canotilho, J.J. Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Livraria
Almedida, 1996. p. 382.
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rio, desvirtua completamente os desideratos das políticas
públicas voltadas para estes grupos, ao restringir direitos
fundamentais dos beneficiários da atividade estatal.
Canotilho refere o princípio da exigibilidade ou da ne-
cessidade como sendo aquele em que o cidadão tem “di-
reito à menor desvantagem possível”11.Ora, como compro-
vado acima, os requisitos contidos no Decreto são menos
vantajosos que os contidos, por exemplo, no usucapião.
Sopesando os princípios acima referidos, em um for-
mato strictu sensu, como propõe Canotilho, pode-se afir-
mar que meios utilizados e fins destinados, estão com-
pletamente distantes de uma adequada atuação, exigida
nos casos em tela.
BIBLIOGRAFIA
Marcelo Beckhausen
Procurador Regional da República, professor de Direito
Constitucional Unisinos/rs, Mestre em Direito Unisinos/rs
e Doutorando em Ciência Política/ufrgs
29
Breves considerações
sobre o Decreto
3.912/2001 12
31
Prosseguindo na análise da inconstitucionalidade do
dispositivo invocado, decorre ela de restrição não autori-
zada constitucionalmente, já que o art. 68 expressamente
não a revela, ou tampouco permite, hermeneuticamente,
a sua inferência. Senão, vejamos.
Ao dispor que aos remanescentes das comunidades dos
quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida
a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os
títulos respectivos, o art. 68 do adct não apresenta qual-
quer marco temporal quanto à antigüidade da ocupação,
nem determina que haja uma coincidência entre a ocu-
pação originária e a atual. O fundamental, para fins de
se assegurar o direito ali previsto, é que de comunidades
remanescentes de quilombos se cuide e que, concorren-
temente, se lhe agregue a ocupação das terras enquanto
tal. Assim, os dois termos – remanescentes de comuni-
dades de quilombos e ocupação de terras – estão em rela-
ção de complementariedade e acessoriedade, de tal for-
ma que a compreensão de um decorre necessariamente
do alcance do outro. E estes, e apenas estes, são necessá-
rios à interpretação do comando constitucional. O que
não se admite, certamente, é que um mero decreto – o
que sequer à lei se autoriza – numa visão unilateral, ope-
re um reducionismo no conteúdo de sentido da norma.
Poder-se-ia objetar no sentido de que o ato normativo
estaria apenas a explicitar um limite imanente. Contudo,
entende-se por limite imanente – critério a fornecer,
32
muito mais, tópicos de investigação e argumentação inte-
pretativa – aquele que decorre do sistema dos direitos
fundamentais e dos próprios princípios fundamentais da
ordem constitucional, de modo a que o domínio de prote-
ção da norma vá até onde não conflitue com estes valores
maiores. Neste ponto, a adoção de um marco temporal, a
par de não se constituir num limite imanente, pelas razões
expostas, apenas acriticamente pode ser considerado ele-
mento definitivo – ou mesmo mediador – numa eventual
colisão entre direitos e valores constitucionais.
A rigor, o marco temporal, ao invés de harmonizar, sub-
verte, definitivamente, o sistema constitucional. Isto por-
que, em todas as ocasiões em que o legislador constituin-
te condicionou o direito à propriedade ao decurso de cer-
to lapso de tempo, fê-lo expressamente, como decorre dos
artigos 183 e 191 da cf, diante da singela razão de que toda
e qualquer restrição a direito constitucionalmente assegu-
rado só pode resultar do próprio texto constitucional.
Desconhece, ainda, o decreto a natureza da norma
cuja regulamentação postula.
O art. 68 do adct, muito embora deslocado do corpo
permanente da Constituição, há de ser interpretado a
partir deste, que sinaliza exatamente quanto à sua razão
de ser, quanto ao sentido que lhe deva ser emprestado,
quanto aos princípios que hão de ser levados em conta
no momento de sua interpretação. Pois bem, levando-se
adiante este intento, tem-se que a expressão quilombos
consta do § 5º do art. 216, que trata do tombamento dos
documentos e sítios dos antigos quilombos. Este dispo-
sitivo, por sua vez, insere-se na seção da Constituição de-
dicada à cultura, a qual tem um princípio retor: a nacio-
nalidade brasileira se forma a partir de grupos étnicos
diferenciados, grupos com histórias e tradições diversas,
33
cabendo ao Estado protegê-los e garantir espaço e per-
manência para essa diferenciação.
Parece-nos indene de dúvidas de que esta seção des-
tinada a tratar da cultura revela nova compreensão acer-
ca do tema, tomando a expressão cultura não mais em
sua acepção meramente folclórica, monumental, arquite-
tônica e/ou arqueológica – nota dos textos constitucio-
nais pretéritos – mas o conjunto de valores, representa-
ções e regulações de vida que orientam os diversos gru-
pos sociais, numa visão que não se remete mais ao pas-
sado, mas, ao contrário, se orienta e se renova no presen-
te. Isto se faz certo na medida em que a Constituição bra-
sileira impõe ao Estado garantir a todos o pleno exercício
dos direitos culturais (...), apoiando e incentivando a
valorização e a difusão das manifestações culturais (...)
populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros gru-
pos participantes do processo civilizatório nacional (art.
215, caput, e seu § 1º), manifestações culturais estas que
se traduzem em suas formas de expressão e em seus modos
de criar, fazer e viver (art. 216, i e ii).
A Constituição de 1988 representa, assim, uma cliva-
gem em relação a todo o sistema constitucional pretéri-
to, ao reconhecer o Estado brasileiro como pluriétnico e
multicultural, assegurando aos diversos grupos forma-
dores dessa nacionalidade o exercício pleno de seus
direitos de identidade própria.
E, ao conferir aos remanescentes das comunidades de
quilombos a propriedade das terras por eles ocupados,
fé-lo à vista da circunstância de que os territórios físicos
onde estão esses grupos constituem-se em espaços sim-
bólicos de identidade, de produção e reprodução cultu-
ral, não sendo, portanto, algo exterior à identidade, mas
sim a ela imanente.
34
Se assim o é, trata-se, à toda evidência, de norma que
veicula disposição típica de direito fundamental, por dis-
ponibilizar a esses grupos o direito à vida significativa-
mente compartilhada, por permitir-lhes a eleição de seu
próprio destino, por assegurar-lhes, ao fim e ao cabo, a
liberdade, que lhes permite instaurar novos processos,
escolhendo fins e elegendo os meios necessários para a
sua realização, e não mais submetê-los a uma ordem pau-
tada na homogeneidade, onde o específico de sua iden-
tidade se perdia na assimilação ao todo. É, ainda, o direi-
to de igualdade que se materializa concretamente, assim
configurada como igual direito de todos à afirmação e
tutela de sua própria identidade.
Nota característica dos direitos fundamentais é a sua
indisponibilidade. Como ensina Luigi Ferrajoli 14, esta
indisponibilidade há de ser entendida em sua dupla face:
indisponibilidade ativa, que não permite aos seus titula-
res a sua alienação, e a indisponibilidade passiva, no sen-
tido de não serem expropriados ou limitados por outros
sujeitos, começando pelo Estado. Neste sentido, nenhu-
ma maioria, sequer por unanimidade, pode legitimamen-
te decidir sobre a violação de um direito de uma mino-
ria naquilo que diz respeito à sua própria identidade.
Mais uma vez valendo-nos da lição de Ferrajoli, à vista
do princípio da igualdade que se realiza com respeito à
diferença, nenhuma maioria pode decidir em matéria de
direitos por conta dos demais, tanto mais quando a mino-
ria tem interesses ligados à sua diferença 15.
Daí a razão por que as normas que veiculam tais direi-
tos são chamadas téticas, assim concebidas como aquelas
14 Derechos y garantías – La ley del más débil. Ed. Trotta, Madrid, 2001, p. 47
15 Ferrajoli, ob. Cit., p. 90
35
que imediatamente dispõem sobre as situações por elas
expressadas 16, não se sujeitando os direitos ali previstos
a serem constituídos, modificados ou extintos por qual-
quer ato. Distinguem-se das normas ditas hipotéticas na
exata medida em que as situações nestas previstas encon-
tram-se apenas predispostas pela norma, a reclamar a
intermediação de um ato – legislativo, jurídico – para a
sua realização.
Assim, os direitos fundamentais são todos ex lege, con-
feridos diretamente pela Constituição, e imediata e ple-
namente realizáveis, não se admitindo a intermediação
de ato, de que natureza for, para o seu exercício pleno,
muito menos para impor-lhes restrições ou diminuir o
seu alcance, como pretendeu fazer o decreto ora objeto
de análise.
Resulta, ainda, inconstitucional o dispositivo ao exigir,
para o implemento do direito, a permanência na terra por
prazo determinado, posto que, a pretexto de interpretar
a norma constitucional e dar-lhe correta aplicação, repro-
duz discurso próprio de práxis escravagista e o rein-
troduz na ordem jurídica vigente, em evidente descom-
passo com o texto constitucional.
Com efeito, anotam Michael Hardt e Antonio Negri
que a escravidão tem como princípio vetor a mobilida-
de, quer sob a perspectiva do poder, por meio do apara-
to repressivo para impedir a mobilidade e o nomadismo
dos escravos, que por parte dos escravos, com o desejo
irreprimível de fuga 17.
Ao tomar os elementos sígnicos da norma constitucio-
nal e conotá-los tal qual se fazia em 1741 – posto que toda
36
a interpretação se alça ao plano da mera mobilidade, e,
na contraface, a sua recusa – importa-se a cultura da épo-
ca da escravidão 18, e se desorganiza não só uma retórica
– em razão de o signo ser agora compreendido em face
de um novo contexto social – mas toda uma ideologia,
pois se subverte um regime de liberdades e igualdades
construídos sob a égide da diferença étnica.
Seguindo ainda esta linha, a norma pretensamente
regulamentadora do artigo 68 do adct conduz à conclu-
são absurda de que a Constituição, rigorosamente, esta-
ria a instituir, agora com todo o peso do direito, quilom-
bos tais como concebidos em 1741, pois o espaço de liber-
dade para a regulação ritual da vida seria obtido à custa
do confinamento.
Ademais, como antes assinalado, a nota característica
dos direitos fundamentais é a indisponibilidade. Nesta
perspectiva, não se autoriza que, hermeneuticamente, se
conclua que um direito fundamental apenas tenha con-
dições de se realizar com o sacrifício absoluto do outro,
pois, se assim o fosse, um deles perderia o traço da indis-
ponibilidade. Neste passo, o que o decreto postula, de
forma inconstitucional, certamente, é que o direito asse-
gurado no artigo 68 do adct só se torne possível me-
diante o aniquilamento do direito de liberdade, do direi-
to de ir e vir, do direito de eleger, constantemente, o local
de permanência.
Mas não só o interregno de tempo entre os marcos ini-
cial e final da ocupação, como condições ao exercício do
direito, padecem de inconstitucionalidade. Eles pró-
37
prios, considerados cada qual de per se, revelam idênti-
co vício.
De início, não há razão, constitucional ou mesmo his-
tórica, para que o direito previsto no art. 68 do adct re-
monte aos idos de 1888. Historicamente, a figura do qui-
lombo – tal como significado à época, reitere-se – antece-
de, em muito, o marco apontado, e tampouco encontra
nele o seu período áureo, à vista mesmo de medidas ten-
dentes à abolição da escravidão já implementadas ou em
franco curso. Resultaria ofensivo ao princípio da isonomia
que o direito fosse reconhecido aos remanescentes dos qui-
lombos estabelecidos em 1888, e não àqueles que exis-
tiram em época pretérita e não lograram prosseguir em sua
existência até a época apontada. Careceria, assim, de qual-
quer razoabilidade o marco inicial previsto no decreto.
Ademais, e já foi assinalado, o art. 68 do adct orienta-
se numa perspectiva de presente, com vistas a assegurar
a estes grupos étnicos ligados historicamente à escravidão
o pleno exercício de seus direitos de auto-determinação
em face de sua identidade própria. E porque o território é
imanente à identidade, o que a Constituição determina é
a proteção deste território que se apresenta na atualidade,
sendo de todo irrelevante o espaço imemorialmente ocu-
pado pelos ancestrais se não mais se configura como cul-
turalmente significativo para as gerações presentes.
Do mesmo modo, o marco final, além de arbitrário, re-
vela nítido viés etnocentrista, na medida em que se sina-
liza com um termo fatal além do qual se nega o direito à
identidade étnica e o correlato território que a requer e,
em certa medida, a determina. Neste ponto, há dupla
ofensa ao texto constitucional. A uma, porque alguém
estranho ao grupo étnico é quem determina o prazo final
de sua existência constitucionalmente amparada, o que,
38
evidentemente, conflita com a noção de plurietnicidade.
A duas, por impor ao grupo uma rigidez cultural e impe-
di-lo de, a partir de 5 de outubro de 1988, conceber novos
estilos de vida, de construir de novas formas de vida co-
letiva, enfim, a dinâmica de qualquer comunidade real,
que se modifica, se desloca, idealiza projetos e os realiza,
sem perder, por isso, a sua identidade.
Apenas comunidades ideais, erigidas a partir de ficções
coisificadoras, apresentam-se como totalidades pétreas
coerentes. As reais, ao contrário, são marcadas pelo signo
da mudança, do impulso, da reelaboração permanente.
Há, ainda, outros vícios.
Ao fazer a atuação estatal depender de provocação do
interessado, desconhece o decreto que o art. 68 do adct
é comando dirigido ao Poder Público, consubstanciando
obrigação de fazer, independentemente de solicitação dos
interessados. Deste modo, não pode a lei – muito menos
um decreto – fazer depender o direito de providência que
não tem estatuto constitucional, e, mais grave ainda, exi-
mir, por tal fato, o Poder Público de obrigação fundada
no texto constitucional e de natureza incondicionada.
Por último, o decreto, além de atentar contra a ordem
constitucional, revela-se completamente destituído de
utilidade ao fim proposto – regulamentação do art. 68 do
adct – e padecendo de vício de ilegalidade. A uma, por-
que não enfrenta, sequer remotamente, a questão da
incidência desses remanescentes de comunidades de
quilombos em áreas já tituladas, sob o domínio privado,
ao não disciplinar os aspectos que necessariamente a tan-
genciam, como a necessidade, forma e procedimento de
desapropriação, nulidade ou não dos títulos privados. A
duas, porque, limitando-se à disciplina das terras da
União – o que resulta do fato de passar ao largo das ter-
39
ras sob domínio privado e manter, implicitamente, a
competência dos Estados e do Distrito Federal quanto
aos seus bens - além de não exaurir a regulamentação a
que se destina, conflita com a Lei 9.636, de 15 de maio
de 1998, que dispõe especificamente sobre a regulariza-
ção, administração, aforamento e alienação de bens imó-
veis da União (v.g, art. 18). Em sendo ato normativo de
estatura inferior à lei, não há como prevalecer.
Deborah Duprat
Subprocuradora-Geral da República
Coordenadora da 6.ª Câmara de Coordenação
e Revisão do Ministério Público Federal.
40
Parecer n.º:
agu/mc - 1/2006
43
comando do art. 68 adct, ora atribuindo ao Ministério
da Cultura, outras à Fundação Cultural Palmares o encar-
go de reconhecer,delimitar e demarcar as terras de ocu-
pação quilombola. Diferentes disposições legais ao orga-
nizarem órgãos da administração pública federal confe-
riram assim algumas atribuições correspondente são
Ministério da Cultura, outras à Fundação Cultural Pal-
mares e outras tantas ainda à Secretaria Especial de Polí-
ticas de Promoção da Igualdade Racial – seppir (o histó-
rico da disciplina é mais ou menos o seguinte: Lei n.º 7.668,
de 22.8.1988 (art. 22, III e § único) que autorizou a insti-
tuição da Fundação Cultural Palmares – FCP , então cria-
da pelo Decreto n.º 418 de 1992, e, com a redação da MP
2.216-37 de 31.8.2001, conferiu ao Ministério da Cultura
a identificação, delimitação, demarcação e titulação das
terras quilombolas e à FCP o registro dos títulos; e a Lei n.º
9.649 de 1998 (art. 14, III ‘c’, com a redação dada pela
Medida Provisória n.º 2.216-37 de 2001) atribuindo ao
Ministério da Cultura aprovar a delimitação e demarca-
ção das terras “que serão homologadas mediante decreto”,
regulamentado então pelo Decreto n.º 3.912, de 2001,
encargo mantido pela Lei n.º 10.683,28.05.2003 (art. 27,
VI, ‘c’) que deu ao Ministério da Cultura a atribuição de
delimitar as terras dos remanescentes de quilombos, deter-
minar-lhes a demarcação e submetê-las à homologação por
decreto, esta última regulamentada pelo Decreto n.º 4.887,
de 2003 – que revogou o Dec. 3.912⁄2001, e a Lei n.º 10.678,
de 23.5.2003 que criou a SEPPIR ).
Vale assinalar, também, que para disciplinar o assunto
tramitara no Congresso Nacional projeto de lei (PL do Sena-
do n.º 129, de 1995 e pl n.º 3.207 de 1997 da Câmara) des-
tinado a regulamentar o mencionado art. 68 do adct, mas
o Senhor Presidente da República na ocasião negou-lhe a
44
sanção vetando integralmente seus termos com base em
razões de inconstitucionalidade suscitadas pela Casa Civil
e pelo Ministério da Cultura (veto de 14.5.2002, por ale-
gadas inconstitucionalidades enumeradas pela Casa Civil
na Nota saj n.º 791⁄02, o qual foi mantido em 20.5.2004).
Por conta dessas dificuldades constitucionais, argüi-
das pela Subchefia de Assuntos Jurídicos da Casa Civil da
Presidência da República (Parecer saj 1490⁄2001) com
relação ao encaminhamento dos procedimentos e condu-
tas ainda antes da Lei n.º 10.683⁄2003 e ao propósito de
interpretar a legislação anterior a ela, o Senhor Presidente
da República editara o Decreto n.º 3.912, 10 de setembro
de 2001, estabelecendo, então, com base nas conclusões
do dito parecer, normas de aplicação do art. 68 do adct.
Ocorre que as disposições desse decreto aparentemen-
te não observavam o melhor entendimento constitucio-
nal, razão porque, já no novo governo, foi ele revisado
pelo Senhor Presidente da República ao editar o Decre-
to n.º 4.887, de 20 de novembro de 2003, após estudos
de um Grupo de Trabalho constituído para esse fim, pre-
valecendo daí por diante, então, a feição atual do regime
infraconstitucional do reconhecimento da ocupação qui-
lombola, isto é, o da Lei n.º 10.683 de 2003 como Decre-
to n.º 4.887 de 2003, tendo o incra (em nome do mda,
que ficou encarregado da delimitação e demarcação das
terras referidas, por força do Decreto n.º 4.883 de 2003),
como responsável pela aplicação dos seus dispositivos no
que respeita ao aspecto fundiário e a Fundação Cultural
Palmares pela declaração e certificação da condição étni-
ca, ficando o tema regulamentado através da Instrução
Normativa incra n220, de 19 de setembro de 2005.
O Decreto n.º 4.887⁄2003, contudo, foi objeto de Ação
Direta de Inconstitucionalidade requerida perante o
45
Supremo Tribunal Federal pelo Partido da Frente Libe-
ral-pfl (Adin n.º 3239), pendente de julgamento mas já
com parecer do Procurador-Geral da República pela
improcedência.
Desse modo, no quadro normativo atual, estão preva-
lecendo além do referido art. 68 do adct e do Decreto
n.º 4.887 de 2003 (este sob discussão perante o stf) o art.
27,.vi, ‘c’ da Lei n.º 10.683⁄2003 e o art. 2.º, iii e o seu §
único da Lei n.º 7.668, e as disposições da in 20⁄2005 -
editada pelo incra, como normas de conduta com rela-
ção à definição das terras de quilombos.
II
48
“nacionalidade” quilombola e os diversos fatores ou
necessidades de sua reprodução e sua manutenção socio-
cultural ultrapassam naturalmente até mesmo os limites
de um dado espaço de território. Não parece, pois, que
o preceito constitucional mencionado tenha ignorado
outras tantas dimensões da vida e cultura dos remanes-
centes das comunidades de quilombos igualmente mere-
cedoras da proteção do poder público. Lembra o mesmo
estudioso, aliás, que houve escravos que não fugiram
nem se organizaram em resistência, ou outros que tenta-
ram mas não lograram fugir, não se podendo deixar de
reconhecer que também estes são verdadeiros remanes-
centes das comunidades de quilombos enquanto a elas
ontologicamente ligados. Uma leitura menos atenta do
art. 68 poderia, por exemplo, assim excluir dos remanes-
centes de comunidades de quilombos (ex)escravos que
não foram fugidos ou não se exilaram nas matas em resis-
tência ao capitão do mato e aos fazendeiros escravistas,
incorrendo em discriminação inaceitável que certamen-
te não tem o apoio constitucional.
Por tudo isto, a noção de quilombo que o texto refere
tem de ser compreendida com certa largueza metodoló-
gica para abranger não só a ocupação efetiva senão tam-
bém o universo das características culturais, ideológicas e
axiológicas dessas comunidades em que os remanescentes
dos quilombos (no sentido lato) se reproduziram e se apre-
sentam modernamente como titulares das prerrogativas
que a Constituição lhes garante. É impróprio, assinala o
autor citado, lidar nesse processo como ‘sobrevivência’
ou ‘remanescente como sobra ou resíduo’ quando pelo
contrário o que o texto sugere é justamente o oposto 21.
49
III
IV
54
nescentes das comunidades com elas minimamente rela-
cionadas. Aliás, o reconhecimento constitucional expres-
sa declaração da propriedade anterior cujo título é cons-
tituído pela ocupação e pela condição de remanescente de
comunidade de quilombo.
O que a regra constitucional traduz, uma vez verifi-
cados os seus pressupostos,é preceito erga omnes, garan-
tindo a estes conjuntos de sujeitos de direito a proprie-
dade incondicional com todos os seus atributos e ações
(daí porque também parece lógica a atribuição de legitimi-
dade para agir em juízo às comunidades de remanescentes
de quilombos) e que obriga a todos, inclusive ao Estado.
Embora o texto mencione o reconhecimento da proprie-
dade definitiva como um momento posterior, não se
segue que estivesse esse direito antes submetido a algu-
ma condição. Pelo contrário, a determinação em causa
assenta que a propriedade que antes já se admitia plena
e incondicionalmente agora, após a identificação formal,
passa a se atribuir publicamente e sem qualquer outra
formalidade, e de modo coletivo porque referente aos re-
manescentes, isto é, ao conjunto dos remanescentes de
cada uma das comunidades em questão. Ou seja, a pro-
priedade só pode ser reconhecida coletivamente ao gru-
po dos remanescentes, pois só nessa condição é que cons-
tituem remanescentes uma vez que isoladamente deixam
de sê-lo no sentido constitucional.
60
O desdobramento das proposições constitucionais do
art. 68 do adct sugere ainda outras questões de difícil
solução. O crescimento vegetativo da população rema-
nescente das comunidades de quilombos, por exemplo,
pode exigir legitimamente a expansão da área de ocupa-
ção titulada, assim como os legítimos remanescentes que
não tenham ocupação por terem sido desapossados das
terras, tal qual aqueles que as deixaram voluntariamen-
te mas que a elas querem retomar, e outros podem pre-
tender aumentar as terras coletivas e não parece contes-
tável ou infundada essa pretensão uma vez que deriva
ela da mesma razão constitucional que presidiu o reco-
nhecimento da ocupação e propriedade destinadas à pro-
teção das comunidades, porque visando também a sua
reprodução natural. Ao Estado caberá, nesses casos, atra-
vés da desapropriação por interesse social com funda-
mento no art. 216, § 1.º da Constituição,pelo mesmo cri-
tério e modo, prover criando os acréscimos de espaços
territoriais necessários em ordem a promover o integral
reconhecimento mencionado na Constituição,na medida
em que esse reconhecer abrange o universo protegido da
ocupação ele mesmo contendo em si a necessidade da sua
reprodução e crescimento.
VI
66
A apuração preliminar oferecida pelo incra deve ser
apresentada aos diferentes órgãos públicos com atribui-
ções potencialmente incidentes sobre a área preliminar-
mente reconhecida sempre que verificada a relação com
as atribuições respectivas. Assim, a coincidência ou su-
perposição com áreas do patrimônio histórico, com áreas
de preservação ambiental de qualquer tipo ou porte, ou
do patrimônio da União, ou com ocupação indígena,
deve ser considerada previamente embora o direito dos
remanescentes de comunidades de quilombos mantenha-
se em princípio íntegro. É que todas estas instituições têm
por missão defender interesses nacionais de fundo igual-
mente constitucional, cuja proteção e preservação não
podem ser abandonados, cumprindo a todos eles a admi-
nistração concertada mediante adequação proporcional
dos interesses em jogo.
Nada obstante, parece ainda assim evidente que a
remessa do relatório técnico pelo incra a tais institui-
ções precisa ser entendida na devida conta, isto é, nos
limites da competência de cada uma destas organizações,
mostrando-se sobremodo inconveniente e desnecessá-
rio, por exemplo, encaminhar-se à funai, ou ao iphan,
ou ao ibama cópia (muitas vezes volumosa) dos relató-
rios técnicos quando manifestamente não se cuide de
sobreposição ambiental ou indígena, ou quando obvia-
mente não tenham nenhuma relação com o patrimônio
histórico. Do mesmo modo, revela-se excessiva a con-
sulta à Secretaria-Executiva do Conselho de Defesa
Nacional se as ocupações em processo de reconheci-
mento evidentemente não se relacionarem com a sobera-
nia nacional ou a defesa do Estado democrático,nem se
situarem em áreas indispensáveis à segurança nacional
(v.g. faixa de fronteiras) ou de preservação e explora-
67
ção de recursos naturais de qualquer tipo (art. 91, § 1.º,
iii da Constituição).
A disposição do art. 8.º do decreto, por tal razão,
merece leitura compreensiva evitando-se desnecessida-
des burocráticas que correm sempre em prejuízo dos
interesses dos remanescentes das ditas comunidades,
podendo o encarregado do processo administrativo, em
manifestação devidamente fundamentada, dispensar as
consultas inúteis. De qualquer sorte, a intervenção dos
diferentes órgãos tem natureza opinativa, não vinculan-
te, e serve tão só ao esclarecimento da autoridade admi-
nistrativa encarregada de deliberar ou julgar o caso ou
recurso, razão adicional para que a esta mesma autorida-
de caiba deliberar também sobre a necessidade da
audiência referida no art. 82 do decreto.
74
VII
75
A garantia do Direito à
posse dos remanescentes
de quilombos antes da
desapropriação
1. introdução: o problema
77
Com efeito, alguns sustentaram que o próprio cons-
tituinte já teria operado a transferência da propriedade
aos quilombolas, afigurando-se, portanto, desnecessá-
ria a desapropriação das terras particulares a serem titu-
ladas em nome dos remanescentes de quilombos, e inde-
vido o pagamento de qualquer indenização aos antigos
proprietários privados. Outros, por sua vez, defende-
ram a necessidade da prévia desapropriação para a
transferência regular da propriedade às comunidades
quilombolas 24.
Inicialmente, o Governo Federal inclinou-se no senti-
do do descabimento da desapropriação, como se infere
da leitura do Parecer saj n.º 1.490⁄01, da Casa Civil da
Presidência da República, e do Decreto n.º 3.912, de 10
de setembro de 2001. Porém, diante de pressões legíti-
mas advindas do próprio movimento quilombola, o
Governo Federal, já na gestão do Presidente Luiz Inácio
Lula da Silva, alterou aquele entendimento, editando o
Decreto n.º 4.887, de 20 de novembro de 2003, que esta-
beleceu em seu art. 13:
78
vel, objetivando a adoção dos atos necessários à sua
desapropriação, quando couber.”
79
ainda na desapropriação para fins de reforma agrária (Lei
Complementar n.º 76⁄93, art. 6.º, inciso i). Contudo,
estas medidas apenas são cabíveis depois do ajuizamen-
to da ação de desapropriação e do depósito do preço em
favor do proprietário, tal como determinado em lei.
Sabe-se, porém, que o Poder Público não tem sido
suficientemente ágil na propositura das ações expropria-
tórias relacionadas ao art. 68 do adct, por razões varia-
das, que vão da escassez de recursos financeiros para o
pagamento das indenizações, até a demora excessiva nos
procedimentos administrativos tendentes à identifica-
ção das comunidades de remanescentes de quilombos e
à demarcação dos respectivos territórios étnicos.
Infelizmente, os números, neste particular, são mais
que eloqüentes: embora a Fundação Cultural Palmares
estime serem mais de 1.000 as comunidades de remanes-
centes de quilombos existentes no Brasil 26, sendo gran-
de parte delas localizada, no todo ou em parte, em pro-
priedades particulares, contam-se nos dedos as desapro-
priações já promovidas visando à futura titulação de ter-
ritórios quilombolas.
Neste contexto, evidencia-se a precariedade da situa-
ção dos quilombolas, pois até a desapropriação ou a imis-
são provisória do Estado na posse da área a que fazem
jus, a sua permanência nos respectivos territórios étni-
cos permanece exposta ao risco grave e constante de
investidas dos respectivos proprietários e de terceiros. E
este risco é ainda maior, tendo em vista o fato de que
80
grande parte das comunidades quilombolas está situada
em áreas caracterizadas por intenso conflito fundiário.
No presente parecer buscar-se-á apontar e fundamen-
tar uma solução para esta problemática.
De modo muito resumido, pode-se adiantar que a
solução preconizada consiste no reconhecimento de
que o próprio texto constitucional operou a afetação
das terras ocupadas pelos quilombolas a uma finalida-
de pública de máxima relevância, eis que relacionada a
direitos fundamentais de uma minoria étnica vulnerá-
vel: o seu uso, pelas próprias comunidades, de acordo
com os seus costumes e tradições, de forma a garantir a
reprodução física, social, econômica e cultural dos gru-
pos em questão.
Assim, diante desta afetação constitucional, os pro-
prietários particulares não podem reivindicar a posse da
terra, ou buscar a sua proteção possessória contra os
quilombolas antes da desapropriação ou da imissão pro-
visória na posse pelo Poder Público. Diante da privação
da posse da terra, gerada pela sua ocupação pela comu-
nidade quilombola, o máximo que estes proprietários
podem fazer é postular o recebimento de indenização do
Poder Público, tal como ocorre na desapropriação indi-
reta. Já os remanescentes de quilombos, ao inverso,
podem se valer de todos os instrumentos processuais
adequados à efetivação e à proteção do seu direito à pos-
se do território étnico, mesmo antes da desapropriação,
e até independentemente dela, contra o proprietário ou
contra terceiros.
Esta, em suma, é a tese. A seguir, ela será explicitada
e fundamentada em maior detalhe.
81
2. o direito dos quilombolas aos seus territórios
étnicos como direito fundamental
82
moradia integra o mínimo existencial, sendo um compo-
nente importante do princípio da dignidade da pessoa
humana.
Mas não é só. Para comunidades tradicionais, a terra
possui um significado completamente diferente da que
ele apresenta para a cultura ocidental hegemônica 29. Não
se trata apenas da moradia, que pode ser trocada pelo
indivíduo sem maiores traumas, mas sim do elo que man-
tém a união do grupo, e que permite a sua continuidade
no tempo através de sucessivas gerações, possibilitando
a preservação da cultura, dos valores e do modo peculiar
de vida da comunidade étnica30.
Privado da terra, o grupo tende a se dispersar e a desa-
parecer, tragado pela sociedade envolvente. Portanto,
não é só a terra que se perde, pois a identidade coletiva
também periga sucumbir. Dessa forma, não é exagero
afirmar que quando se retira a terra de uma comunida-
de quilombola, não se está apenas violando o direito à
moradia dos seus membros. Muito mais que isso, se está
cometendo um verdadeiro etnocídio.
83
Por isso, o direito à terra dos remanescentes de qui-
lombo pode ser identificado como um direito fundamen-
tal cultural (art. 215, cf), que se liga à própria identida-
de de cada membro da comunidade.
Neste ponto, não é preciso enfatizar que o ser huma-
no não é um ente abstrato e desenraizado, mas uma pes-
soa concreta, cuja identidade é também constituída por
laços culturais, tradições e valores socialmente compar-
tilhados 31. E nos grupos tradicionais, caracterizados por
uma maior homogeneidade cultural e por uma ligação
mais orgânica entre os seus membros, estes aspectos
comunitários da identidade pessoal tendem a assumir
uma importância ainda maior 32.
Por isso, a perda da identidade coletiva para os inte-
grantes destes grupos costuma gerar crises profundas,
intenso sofrimento e uma sensação de desamparo e de
desorientação, que dificilmente encontram paralelo
entre os integrantes da cultura capitalista de massas.
Mutatis mutandis, romper os laços de um índio ou de um
quilombola com o seu grupo étnico é muito mais do que
impor o exílio do seu país para um típico ocidental.
84
Assim, é possível traçar com facilidade uma ligação
entre o princípio da dignidade da pessoa humana – epi-
centro axiológico da Constituição de 88 – com o art. 68
do adct, que almeja preservar a identidade étnica e cul-
tural dos remanescentes de quilombos. Isto porque, a
garantia da terra para o quilombola é pressuposto neces-
sário para a garantia da sua própria identidade.
Não bastasse, não é apenas o direito dos membros de
cada comunidade de remanescentes de quilombo que é
violado quando se permite o desaparecimento de um gru-
po étnico. Perdem também todos os brasileiros, das pre-
sentes e futuras gerações, que ficam privados do acesso a
um “modo de criar, fazer e viver”, que compunha o pa-
trimônio cultural do país (art. 215, caput e inciso ii, cf).
Neste ponto, cabe destacar que a proteção à cultura
dispensada pela Constituição de 88 parte da premissa de
que o pluralismo étnico e cultural é um objetivo da máxi-
ma importância a ser preservado e promovido, no inte-
resse de toda a Nação. Diferentemente das Constituições
anteriores, a Carta de 88 não partiu de uma visão “monu-
mentalista” sobre o patrimônio histórico e cultural, inte-
grando-o antes em uma compreensão mais ampla, que se
funda na valorização e no respeito às diferenças, e no
reconhecimento da importância para o país da cultura de
cada um dos diversos grupos que compõem a nacionali-
dade brasileira.
Portanto, pode-se afirmar que o art. 68 do adct, além
de proteger direitos fundamentais dos quilombolas, visa
também à salvaguarda de interesses transindividuais de
toda a população brasileira.
Por tais razões, é legítimo concluir que o art. 68 do
adct contém autêntica norma consagradora de direito
fundamental. No próximo item, examinar-se-ão as con-
85
seqüências relevantíssimas desta conclusão no que tan-
ge à interpretação do referido preceito constitucional, e
da legislação que se volta à sua concretização.
86
§ 1.º As normas definidoras dos direitos e garantias
individuais têm aplicabilidade imediata.
88
nas e emancipatórias aos institutos e conceitos tradicio-
nais da ordem jurídica.
E isso vale inclusive em relação ao Direito Administra-
tivo. De fato, em um contexto de constitucionalização do
Direito, não pode o intérprete, em nenhuma área, quedar-
se refém dos conceitos e categorias tradicionais, ignoran-
do a penetração dos valores constitucionais no tecido nor-
mativo, especialmente os relacionados aos direitos funda-
mentais. Por isso, também no Direito Administrativo, con-
soante as palavras de Gustavo Binenbojm, ‘toda a ativida-
de interpretativo-aplicativa (do legislador, do administra-
dor e do juiz) deve ser realizada em conformidade e com vis-
tas a maior realização possível dos direitos fundamentais”41.
Estas idéias reforçam a tese defendida neste estudo,
de que o instituto do Direito Administrativo da afetação,
que é utilizado para impedir a retomada por particulares
de áreas que tenham sido empregadas pelo Estado em
finalidades públicas, pode ser aplicado para proteger a
posse dos quilombolas antes do advento da desapropria-
ção, uma vez que não há finalidade mais importante, sob
a perspectiva constitucional, do que a garantia de direi-
tos fundamentais e da dignidade humana de um grupo
vulnerável como os remanescentes de quilombos.
Finalmente, há uma outra característica dos direitos
fundamentais que também tem importância na questão
ora examinada. Trata-se da sua eficácia horizonta , que
significa a vinculação dos particulares a estes direitos 42.
41 Gustavo Binenbojm. Uma Teoria do Direito Administrativo: Direitos
Fundamentais, Democracia e Constitucionalização. Rio de Janeiro: Reno-
var, 2006, p. 76.
42 Veja-se, a propósito, Daniel Sarmento. Direitos Fundamentais e Rela-
ções Privadas. 2.ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006; Wilson Stein-
metz. A Vinculação dos Particulares aos Direitos Fundamentais. Porto
89
A concepção tradicional dos direitos fundamentais
era a de que eles só obrigavam ao Estado. Contudo, com
o passar do tempo, foi se tornando evidente que, diante
da ubiqüidade da opressão e da injustiça, os direitos fun-
damentais não poderiam se limitar ao campo das relações
entre cidadãos e Estado, sob pena de não desempenha-
rem a contento o seu papel de proteção da dignidade hu-
mana. Assim, passou-se a reconhecer que os direitos fun-
damentais se projetam nas relações privadas – ainda que
com certas nuances e especificidades –, criando deveres
também para particulares.
No Brasil, a jurisprudência, inclusive do stf, tem
reconhecido que os direitos fundamentais também vin-
culam os particulares e entidades privadas 43, em perfei-
ta consonância, neste particular, com a filosofia que
transparece na Carta, que não se ilude com a miragem
liberal-burguesa de que só o Estado representa ameaça
aos direitos humanos.
Assentada esta premissa, fica fácil sustentar que é per-
feitamente compatível com a Constituição restringir, em
nome da tutela dos direitos fundamentais dos quilombo-
las, certas faculdades inerentes ao direito de proprieda-
90
de dos particulares, retirando-lhes a possibilidade do
uso de instrumentos possessórios e petitórios contra
remanescentes de quilombos, mesmo antes da desapro-
priação das terras destinadas a estes pelo constituinte.
É certo que tampouco seria constitucionalmente cor-
reto ignorar na solução do problema estes direitos de
propriedade – que também receberam proteção consti-
tucional. Porém, o que se propõe no caso é solução bem
diversa, que visa a conciliar, numa ponderação de inte-
resses constitucionalmente adequada, tanto os direitos
dos proprietários privados, como os direitos dos quilom-
bolas, assegurando aos primeiros a faculdade de postu-
larem uma indenização por perdas e danos contra o Esta-
do, mas também protegendo a posse dos remanescentes
de quilombos. Este tema será explorado mais detidamen-
te no próximo item deste estudo.
44 Cf. Norberto Bobbio. A Era dos Direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho.
Rio de Janeiro: Ed. Campus, p. 42.
91
necessidade de recorrer, nestas hipóteses, a ponderações
de interesses 45, que visem a preservar ao máximo possível
os bens jurídicos envolvidos nos conflitos normativos.
Esta situação se manifesta no caso em questão, em que
se tem, de um lado, o direito de propriedade dos particu-
lares cujos imóveis são ocupados por quilombolas, e, do
outro, o direito à terra das comunidades de remanescen-
tes de quilombos. Não seria legítimo, diante deste confli-
to, ignorar qualquer dos termos da equação. Pelo contrá-
rio, exige-se a busca de solução proporcional, que im-
ponha restrições recíprocas aos bens jurídicos em litígio,
atenta à importância relativa que eles possuem no sistema
de valores sobre o qual se assenta a ordem constitucional.
Assim, cabe, inicialmente, valorar os interesses cons-
titucionais em jogo.
De um lado, tem-se o direito das comunidades quilom-
bolas às terras que ocupam. No item 2 deste parecer, já
se demonstrou que este não é um simples direito patri-
monial, pois a sua garantia é condição necessária para a
existência da comunidade étnica. Por isso, tal direito en-
contra-se associado diretamente à própria identidade e
dignidade humana de cada membro do grupo, ligando-se
também, por outro lado, ao direito de todos os brasileiros
à preservação do patrimônio histórico-cultural do país.
Do outro lado da balança figura o direito de proprie-
dade das pessoas ou entidades privadas em cujos nomes
92
as terras ocupadas pelos quilombolas estiverem registra-
das. Não há dúvida de que a propriedade privada é tam-
bém um direito fundamental (art. 5.º, inciso xxii, cf),
configurando, ademais, um princípio essencial na ordem
econômica do capitalismo.
Contudo, é importante destacar que o direito de pro-
priedade não tem mais a primazia absoluta que desfru-
tava no regime constitucional do liberalismo-burguês.
Com o advento do Estado Social, o direito de proprieda-
de foi relativizado, em proveito da proteção de outros
bens jurídicos essenciais, como os direitos dos não-pro-
prietários, a tutela do meio ambiente e do patrimônio
histórico-cultural.
Neste sentido, muitas constituições, e dentre elas a bra-
sileira (art. 5.º, inciso xxiii, e art. 170, inciso iii, cf), pas-
saram a impor o cumprimento da função social da proprie-
dade. E neste novo contexto, alguns autores chegaram até
a afirmar que a propriedade que não cumpre a sua fun-
ção social deixa de ser tutelada pela ordem jurídica46.
Neste quadro, pode-se avaliar o peso do direito à pro-
priedade privada na nossa ponderação. Trata-se, no caso,
não de uma propriedade qualquer, mas de uma proprieda-
de cuja função social já foi pré-definida pela Constituição
no art. 68 adct: a de servir para ocupação das comunida-
des de remanescentes de quilombos, possibilitando a exis-
tência de um grupo étnico e a reprodução da sua cultura.
Portanto, qualquer outra finalidade que o proprietá-
rio privado queira dar à terra – ainda que relacionada a
46 Veja-se, neste sentido, Gustavo Tepedino. “Contornos Constitucio-
nais da Propriedade Privada”. In: Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro:
Renovar, 1999, p. 267-292; e Pietro Perlingeri. Perfis do Direito Civil:
Introdução ao Direito Civil-Constitucional. Trad. Maria Cristina de Cicco.
Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 220-232.
93
atividades economicamente produtivas – não significa
atendimento à função social da propriedade, mas sim
numa necessária violação a ela.
A conclusão que se obtém, portanto, é a de que, na
escala de valores da Constituição, o direito à terra dos
quilombolas tem, a priori, um peso superior ao direito de
propriedade privada dos particulares em cujos nomes as
áreas estejam registradas. Contudo, isto não significa,
como se adiantou antes, que se possa simplesmente igno-
rar este último direito na resolução da questão. Pelo con-
trário, no equacionamento da colisão, é necessário pre-
servá-lo em alguma medida, de forma compatível com o
princípio da proporcionalidade.
Este princípio, cuja vigência no ordenamento brasi-
leiro é hoje reconhecida em uníssono pela doutrina e
jurisprudência, consiste no principal instrumento para
aferição da validade das medidas restritivas de direitos
fundamentais. De acordo com a posição majoritária,
cujas origens remontam à dogmática constitucional ger-
mânica, tal princípio pode ser desdobrado em três sub-
princípios, assim sintetizados por Luís Roberto Barroso:
94
No caso, vejamos se a solução preconizada está em
conformidade com o princípio da proporcionalidade.
Em relação ao subprincípio da adequação, trata-se de
saber se a restrição à faculdade do proprietário de valer-
se dos instrumentos possessórios e petitórios contra as
comunidades de remanescentes de quilombos antes da
desapropriação é medida adequada para os fins a que se
destina. O fim aqui perseguido é a garantia do direito à
terra dos quilombolas, e, por conseqüência, a preservação
da própria comunidade de remanescentes de quilombo.
A resposta só pode ser positiva. Não há dúvida de que
preservar e garantir a posse do território étnico para os
quilombolas mesmo antes da desapropriação configura
medida adequada visando lhes assegurar o gozo do seu
direito à terra e à preservação da sua identidade coleti-
va, bem como o interesse social na tutela do patrimônio
histórico-cultural.
Já o teste da necessidade ou exigibilidade envolve o
exame da eventual existência de medida mais branda
que pudesse atingir os mesmos objetivos. Neste caso, não
se vislumbra qualquer medida mais suave, uma vez que
a tutela do direito à posse dos quilombolas antes da desa-
propriação afigura-se realmente indispensável para o
atingimento daqueles objetivos. Sem a garantia efetiva
desta posse, os riscos de perecimento da própria comu-
nidade, até o advento da desapropriação, são, como já
salientado, bastante elevados.
continuação 47 também Robert Alexy, op. cit., p. 111-115; José Joaquim
Gomes Canotilho. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Op. cit.,
p. 262-263; e Paulo Bonavides. Curso de Direito Constitucional. São Pau-
lo: Malheiros, 1999, p. 360-361; e Suzana de Barros Toledo. O Princípio
da Proporcionalidade e as Leis Restritivas de Direitos Fundamentais. Bra-
sília: Brasília Jurídica, 1995, p. 148-153.
95
Neste ponto, há que se ter em vista o fato de que a
solução ora preconizada está longe de ser drástica, na
medida em que reconhece o direito do proprietário de
obter junto ao Poder Público uma indenização pela pri-
vação da posse do bem antes da perda definitiva da pro-
priedade. Apenas não se condiciona a tutela da posse do
quilombola ao prévio pagamento da referida indenização,
uma vez que esta outra alternativa, embora mais branda,
seria francamente insatisfatória, já que importaria em
não-atendimento do objetivo constitucional perseguido,
que é a preservação da comunidade étnica.
Finalmente, passa-se à última fase do teste, que con-
siste no exame da proporcionalidade m sentido estrito.
Em outras palavras, cuida-se agora de sopesar os ônus e
benefícios advindos da medida para os interesses cons-
titucionais em conflito, o que deve ser realizado dentro
do marco axiológico da Carta de 88.
Primeiro o benefício: a proteção da posse dos quilom-
bolas independentemente da desapropriação possibilita
que a comunidade continue vivendo no seu próprio ter-
ritório, com segurança jurídica e de acordo com os seus
costumes e tradições, mesmo diante da eventual demora
do Estado no ajuizamento da competente ação expropria-
tória. É um benefício extremamente importante numa
Constituição que se preocupa tanto com a garantia da dig-
nidade da pessoa humana dos grupos vulneráveis, com a
proteção do patrimônio histórico-cultural e com a defesa
do pluralismo.
Em seguida, o ônus. Há uma restrição às faculdades
do proprietário relacionadas à possibilidade de exclusão
dos quilombolas do uso e gozo dos territórios étnicos.
Note-se, porém, que esta restrição atua a favor e não con-
tra a função social da propriedade, uma vez que, como
96
antes destacado, a função social dos territórios ocupados
por remanescentes de quilombos é, por definição cons-
titucional, a de servir de locus para a vida daquelas co-
munidades, e não a realização de quaisquer outros obje-
tivos visados pelo proprietário particular. Ademais, tra-
ta-se de restrição mitigada pelo reconhecimento do direi-
to subjetivo do proprietário ao recebimento de uma
indenização, a ser paga pelo Poder Público, tal como
ocorre na desapropriação indireta.
Neste quadro, não há como negar que a medida se justi-
fica plenamente, uma vez que os benefícios constitucio-
nais obtidos sobrepujam visivelmente os ônus impostos.
Portanto, trata-se de solução equilibrada, que presti-
gia, na medida do possível, os interesses constitucionais
em conflito, numa ponderação pautada pelo princípio da
proporcionalidade.
Vejamos, a seguir, como a solução sugerida está em
perfeita consonância com a dogmática do Direito Admi-
nistrativo. No próximo item, será demonstrado como as
mesmas razões que justificam a inadmissibilidade da
proteção à posse do particular no caso da desapropriação
indireta estão presentes – e em intensidade muito maior
– nas questões envolvendo o direito à terra dos remanes-
centes de quilombos.
98
posse do autor, em face do caráter irreversível da afe-
tação pública que lhe deu a Administração Públicas.
Subsistindo o título de propriedade do autor, daí resul-
ta sua pretensão a indenização, pela ocupação indevida
do imóvel, por parte do Poder Público, com vistas à rea-
lização de obra pública. (stf, Rec. Ext. 109853/sp, Rel.
Min. Néri da Silveira, julgado em 19.12.1991)
99
por cima, sem observância das formalidades legais per-
tinentes, no caso das terras quilombolas a situação é bem
diferente.
Nesta outra hipótese, a afetação do bem foi promovi-
da pelo próprio poder constituinte originário, no art. 68
do adct, pois foi ele quem destinou aos quilombolas as
terras por eles ocupadas.
Ademais, nesta situação, a ocupação não constitui ato
ilícito, sendo antes protegida pela Constituição. Ilícita é
apenas a demora do Estado na propositura da ação de de-
sapropriação, que não pode ser imputada direta ou indire-
tamente às comunidades de remanescentes de quilombos.
E o interesse público presente no caso é de elevadís-
sima importância: trata-se da tutela da dignidade huma-
na de um grupo étnico vulnerável, associada à proteção
do patrimônio histórico-cultural do país. Avaliado sob a
perspectiva constitucional, o interesse público aqui pre-
sente é muito mais valioso do que, por exemplo, aquele
que subjaz à construção de uma obra pública qualquer.
Ademais, do ponto de vista lógico, seria um enorme
contra-senso permitir a retirada de remanescentes de
quilombos dos seus territórios étnicos – pondo em risco
a sobrevivência do grupo – para, em seguida à desapro-
priação, restituir a eles as mesmas terras. Mais que isso,
seria um atentado indesculpável aos direitos fundamen-
tais destas populações, com a completa frustração dos
objetivos subjacentes ao referido art. 68 do adct.
Portanto, se é verdade, como sustentado ao longo des-
te parecer, que os institutos do Direito Administrativo
devem ser interpretados ao lume da Constituição, visan-
do a maximizar a eficácia dos direitos fundamentais,
então parece inequívoco que a não-propositura pelo Esta-
do da ação de desapropriação não pode despojar os qui-
100
lombolas do direito de permanecerem nas terras que lhes
devem pertencer, por vontade do próprio constituinte.
Neste quadro, pode-se concluir que a solução para a
questão passa pelo mesmo caminho que levou a jurispru-
dência a reconhecer o instituto da administração indire-
ta. Deve-se, por um lado, rechaçar a possibilidade de os
proprietários vindicarem as terras ocupadas por rema-
nescentes de quilombos, reconhecendo-se, contudo, o
seu direito ao recebimento de indenização do Estado pela
privação do uso destas terras.
E, por outro lado, deve-se reconhecer, a partir de uma
interpretação teleológica do art. 68 do adct, o direito
dos remanescentes de quilombo de ocuparem o seu ter-
ritório étnico mesmo antes da desapropriação, valendo-
se de todos os meios processuais pertinentes para a
defesa deste direito, em face de terceiros ou do próprio
proprietário.
O mesmo raciocínio do parágrafo anterior vale para
hipóteses em que os títulos em nome de particulares
sejam inválidos. Também neste caso, o direito à posse das
comunidades quilombolas deve ser protegido antes, e in-
dependentemente, do ajuizamento das eventuais ações
desconstitutivas dos títulos registrados, ressalvando-se
apenas que nesta situação não haverá que se falar em in-
denização por desapropriação indireta50.
Finalmente, cumpre ressaltar que o incra, em algu-
mas localidades, já vem expedindo Termo de Reconheci-
mento de Posse em favor das comunidades quilombolas
situadas em áreas tituladas em nome de particulares,
independentemente da propositura de ação expropriató-
ria. Neste sentido, a orientação defendida no presente
101
parecer apenas forneceria fundamentação constitucional
à referida prática administrativa.
6. sugestão de encaminhamento
É o parecer.
Daniel Sarmento
Procurador Regional da República
103
Quilombos na perspectiva
da igualdade étnico-racial:
raízes, conceitos,
perspectivas 51
105
sou a abranger, além do indivíduo, as entidades de clas-
se, as organizações sindicais, os grupos vulneráveis e a
própria humanidade. Este processo implicou ainda a
especificação do sujeito de direito, tendo em vista que,
ao lado do sujeito genérico e abstrato, delineia-se o sujei-
to de direito concreto, visto em sua especificidade e na
concreticidade de suas diversas relações. Isto é, do ente
abstrato, genérico, destituído de cor, sexo, idade, classe
social, dentre outros critérios, emerge o sujeito de direi-
to concreto, historicamente situado, com especificidades
e particularidades. Daí apontar-se não mais ao indivíduo
genérica e abstratamente considerado, mas ao indivíduo
“especificado”, considerando-se categorizações relati-
vas ao gênero, idade, etnia, raça, etc”53.
Aos poucos, um novo regime jurídico de proteção a
pessoas ou grupos de pessoas particularmente vulneráveis
vêm merecendo atenção especial dos sistemas normati-
vos internacional e nacional, que passam a reconhecer di-
reitos próprios destinados às crianças, aos idosos, às mu-
lheres, às pessoas vítimas de tortura, e aquelas que sofrem
discriminação racial ou que não se beneficiaram de políti-
cas públicas genericamente adotadas no Brasil, como é o
caso dos afrodescendentes, em especial os remanescentes
de quilombolas, que estão ainda a perseguir o reconheci-
mento do Estado de seus direitos culturais e territoriais .
Nesse sentido, é importante notar que a construção do
Estado Democrático de Direito (art. 1.º da Constituição
Federal) no Brasil deu validade ou positividade jurídica
às minorias étnicas no longo caminho das conquistas das
garantias e direitos fundamentais da pessoa humana.
106
Como cláusula pétrea da Constituição de 1988, o Esta-
do Democrático de Direito integra-se ao conceito do que
seja o Estado brasileiro. Além de ser indispensável às ga-
rantias individuais e sociais das pessoas, o regime demo-
crático passou a ser condição para um governo justo e le-
gítimo através da ampla participação da população em suas
instâncias representativas, e tem como característica dele
indissociável o pluralismo político; e por objetivo a cons-
trução de uma sociedade justa e solidária, sem precon-
ceito de cor, raça, religião, sexo, abolindo todas as formas
de discriminação (arts. 1.º e 3.º da Constituição Federal).
José Afonso da Silva observa que a introdução do
princípio democrático no Estado de Direito implica em
que os direitos culturais próprios dos seguimentos
sociais e étnicos que compõem a população brasileira
passem a fazer parte dos direitos fundamentais, a que o
Estado obriga-se a resguardar e proteger 54
Na mesma linha, Gomes Canotilho, repara que a prote-
ção dos direitos culturais há de ser a mais ampla possível,
estando a exigir a garantia de participação plena de todos
os segmentos da sociedade, sem a exclusão de nenhum 55.
Há, inegavelmente, uma relação simbiótica entre a
dignidade da pessoa humana, o princípio democrático e
o reconhecimento da igualdade substantiva, de modo a
legitimar a ampliação de direitos específicos pelo Estado
às pessoas que não têm usufruído das mesmas oportuni-
dades conferidas que a lei confere genericamente a todos
os cidadãos.
107
Como produto do Estado Social de Direito, Joaquim
Barbosa Gomes explica que a igualdade substancial ou
material propugna redobrada atenção por parte do legis-
lador e dos aplicadores do direito à variedade das situa-
ções individuais e de grupo, de modo a impedir que o
dogma liberal da igualdade formal impeça ou dificulte a
proteção e a defesa das pessoas socialmente fragilizadas
e desfavorecidas, de modo a se extinguir ou pelo menos
mitigar o peso das desigualdades econômicas e sociais e,
conseqüentemente, de promover a justiça social56.
108
Brasil foi finalmente reconhecida, em texto legal a diver-
sidade cultural brasileira como patrimônio nacional ima-
terial, que, em conseqüência passou a ser protegida e enal-
tecida, passando a ter relevância jurídica os valores popu-
lares, indígenas e afrobrasileiros 57.
Desse modo, constata-se a significativa modificação
conceptual de bens culturais dada pela atual Constitui-
ção, que afastou a referência exclusiva aos monumentos
e a grandiosidade da aparência externa de coisas imóveis
já feitas ou acontecidas para privilegiar outras situações
e contextos que ainda estão acontecendo, dentro de uma
visão de cultura como processo contínuo e dinâmico,
como a representatividade e identidade étnica de cada
um dos grupos formadores da nacionalidade, em seu sen-
tido mais amplo 58.
O que se pretendeu assegurar na nova Constituição é que
os diferentes grupos formadores da sociedade gozem da
proteção quanto a seus modos de viver, isto é, o direito à
sua cultura própria, ao mesmo tempo em que se estabele-
ce a garantia de ampla participação social e política desse
seguimento (ou minoria) através dos benefícios sociais
que a igualdade segundo a lei impõe, sem descurar-se das
diferenças culturais, ínsitas a todas as minorias étnicas.
Sob o ponto de vista cultural, é que a proteção às ter-
ras ocupadas pelas comunidades remanescentes de qui-
lombos deve ser entendida, por se tratar da efetivação de
109
um direito constitucionalmente garantido em um Estado
democrático pluriétnico.
De modo particular o art. 68 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias expressa que “aos remanes-
centes das comunidades dos quilombos que estejam ocu-
pando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva,
devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.
Evidentemente, não se deve pensar isoladamente o art.
68 do adct, imaginando-se que a obrigação do Estado com
relação a essas comunidades finda-se com a mera expedi-
ção dos títulos de domínio sobre as terras que ocupam.
O que se busca assegurar é o respeito a essas comuni-
dades, a possibilidade de que possam continuar se repro-
duzindo segundo suas próprias tradições culturais e
assegurando, também, a sua efetiva participação em uma
sociedade pluralista.
Para isso é importante registrar que o Estado, após a
Constituição de 1988, passou a ter a obrigação de arrolar
e identificar essas comunidades, onde se localizam,
quantos habitantes possuem, como vivem e que proble-
mas fundiários enfrentam.
111
Os elementos da definição do Rei de Portugal, que
orientaram as perseguições aos escravos fugidos no sécu-
lo xviii e xix, são importantes (até porque estes concei-
tos espraiaram-se no tempo) para chegarmos às caracte-
rísticas legais do que fosse um quilombo, segundo o
ordenamento jurídico colonial.
Em primeiro lugar, não se exigia que o número de fu-
gitivos fosse grande. Bastava, em geral, que superassem
cinco, mas a lei colonial estabelecia a fuga como elemen-
to essencial para definição de quilombos. Então, cinco
ou mais escravos fugidos poderiam, em tese, caracterizar
um quilombo.
Em segundo lugar, não era necessário, nos termos es-
tabelecidos pelo Rei, que houvesse ranchos levantados,
vale dizer, não se exigia que esses fugitivos fixassem mo-
rada em qualquer canto.
Em terceiro lugar, não se exigia que os fugitivos cons-
tituíssem qualquer forma de organização social, particu-
larmente a forma militar de resistência, uma vez que o
ajuntamento de escravos fugidos tinha por objetivo a
subversão da ordem escravocrata ou a guerra à coroa por-
tuguesa e a brasileira que a sucedeu.
Percebe-se pela leitura das leis municipais e do Alvá-
rá Régio de 1740 que o conflito armado entre escravos e
o poder colonial ou, mais precisamente, o medo de sua
ocorrência, orientou, posteriormente, a caracterização
de quilombos, a partir do arquétipo Palmares 60.
112
Assim, pode-se concluir que qualquer grupo composto
primordialmente por negros fugidos, que tenha logrado
permanecer livre durante a vigência das leis escravistas
do país, ainda que composto de outros indivíduos que não
apenas os escravos fugidos, era considerado quilombo.
Em todas elas podemos notar o vínculo histórico-so-
cial que liga a atual comunidade com um grupo formado
por escravos fugidos, perseguidos ou não, e que perma-
neceram livres, embora não alforriados.
Com a abolição da escravatura e o fim das persegui-
ções oficiais, esses grupos tiveram a oportunidade de se
aproximar dos núcleos populacionais da sociedade en-
volvente, passando o contato a ser natural e gradativo,
embora já houvesse relações de troca e até de casamento
entre os dois grupos, anteriormente à abolição, como
indicam pesquisas históricas recentes 61.
Entretanto, ainda que as relações comerciais qualifi-
cadas por interesses comuns entre as duas sociedades
possam ter sido fortemente estabelecidas com o passar do
tempo, isso não significou que essas comunidades, for-
madas originariamente por escravos fugidos, tenham
passado a se identificar com qualquer outro grupo da
sociedade que os havia excluído ou mesmo perseguido.
Dessa maneira, as populações que mantiveram o vín-
culo social e histórico com os grupos formados essencial-
mente por escravos fugidos, ainda que composto por ele-
mentos não considerados escravos, os quais eram conside-
113
rados quilombolas perseguidos pelas forças escravistas, e
que construíram sua própria história, a margem do domí-
nio da sociedade envolvente, passaram a ser considera-
das primordialmente como remanescentes de quilombos.
O vínculo histórico social emerge então como parâme-
tro constitucional adequado para a definição de que
sejam comunidades remanescentes de quilombos, a par-
tir da própria legislação colonial.
Por outro lado, a idéia de que teria havido um com-
pleto isolamento de comunidades rurais negras da socie-
dade envolvente e mesmo das relações de mercado não
tem sustentação histórica ou antropológica. Alfredo
Wagner lembra que a afirmação da identidade dos qui-
lombolas se fez nas transações econômicas. Isto é, na
“fronteira” entre os grupos étnicos. Segundo ele, a tran-
sação comercial é que assegurava solidez na fronteira do
quilombo, de modo que a identidade étnica teria se fir-
mado com mais intensidade no contato do que no supos-
to isolamento das comunidades negras rurais no Brasil 62.
Para além do vínculo histórico social que deve nortear
o critério de reconhecimento de um território quilom-
bola, é preciso lembrar que o Decreto n.º 4887, de 20 de
Novembro de 2003, estabeleceu o critério da auto-de-
finição como forma primordial de identificação e carac-
terização das comunidades remanescentes de quilombo-
las, como consta do seu art. 2.º:
114
específicas, com presunção de ancestralidade negra rela-
cionada com a resistência à opressão histórica sofrida.
§ 1.º – Para os fins deste Decreto, a caracterização dos
remanescentes das comunidades de quilombo será ates-
tada mediante auto-definição da própria comunidade.
§ 2.º – São terras ocupadas por remanescentes das co-
munidades dos quilombos as utilizadas para a garantia
de sua reprodução física, social, econômica e cultural.
§ 3.º – Para a medição e demarcação das terras, serão
levados em consideração critérios de territorialidade
indicados pelos remanescentes das comunidades dos
quilombos, sendo facultado à comunidade interessada
apresentar as peças técnicas para a instrução procedi-
mental.
116
lando-se aí a sua insuficiência e imprecisão, bem como a
necessidade de superá-la.
Por isso, a extrema importância das investigações de
Frederik Barth, que coloca como questão central para a
identificação da comunidades não as diferenças culturais
entre grupos percebidas por um observador externo,
mas sim os “sinais diacríticos”, isto é, aquelas diferenças
que os próprios atores sociais consideram significativas
e que, por sua vez, são revelados pelo próprio grupo 65.
Daí a importância do critério do auto reconhecimen-
to ter sido incorporado ao Decreto n.º 4887⁄2003. Obser-
va-se que essa condição difere radicalmente do que esta-
belecia o Decreto n.º 3912⁄2001 que, ao regulamentar o
art. 68 do adct, estabeleceu critério temporal para o re-
conhecimento dos direitos das comunidades remanes-
centes de quilombos.
Nos termos do parágrafo único do art. 1.º do mencio-
nado decreto, somente pode ser reconhecida a propriedade
sobre terras que: I – eram ocupadas por quilombos em
1888; II – estavam ocupadas por remanescentes das comu-
nidades de quilombos em 5 de outubro de 1988.
Deborah Duprat de Britto Pereira, ao examinar a legali-
dade do Decreto n.º 3912, observou que não há razão cons-
titucional ou mesmo histórica para que o direito previsto
no art. 68 do adct remonte aos idos de 1888. Historicamen-
te, a figura do quilombo – tal como significado à época, –
antecede, em muito, o marco apontado, e tampouco encon-
tra nele o seu período áureo, à vista mesmo de medidas ten-
dentes à abolição da escravidão já implementadas ou em
117
franco curso. Resultaria ofensivo ao princípio da isono-
mia que o direito fosse reconhecido aos remanescentes dos
quilombos estabelecidos em 1888, e não àqueles que exis-
tiram em época pretérita e não lograram prosseguir em sua
existência até a época apontada. Careceria, assim, de qual-
quer razoabilidade o marco inicial previsto no decreto 66.
Ademais, prossegue a autora, o art. 68 do adct orien-
ta-se numa perspectiva de presente, com vistas a assegu-
rar a estes grupos étnicos ligados historicamente à escravi-
dão o pleno exercício de seus direitos de auto-determina-
ção em face de sua identidade própria. E porque o terri-
tório é imanente à identidade, o que a Constituição deter-
mina é a proteção deste território que se apresenta na atua-
lidade, sendo de todo irrelevante o espaço imemorialmen-
te ocupado pelos ancestrais se não mais se configura como
culturalmente significativo para as gerações presentes.
O Decreto n.º 3.912, de 2001 derivou de um equívoco
conceptual de quilombos, há muito abandonado pela
antropologia. Esse conceito, advindo do período colonial
e aqui já referido, descrevia o quilombo como “toda habi-
tação de negros fugidos, que passem de cinco, em parte
despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados e
nem se achem pilões nele”. Mas, a prevalecer esse con-
ceito jurídico-formal de quilombo, estar-se-ia, como
explica Alfredo Wagner Berno de Almeida 67, a “frigorifi-
cá-lo” mais do que já foi, estabelecendo-o como uma cate-
goria histórica acrítica e como um grupo social estático,
66 brito pereira, Deborah M. D. Breves considerações sobre o Decreto n.º
3.912/01. In Q’Dwyer, E. C. Quilombos identidade étnica e territorialidade.
Rio de Janeiro, aba/fgv. 2002. pp. 281-289.
67 almeida, Alfredo Wagner Berno de. Os quilombos e as novas etnias.
In. Quilombos. In: Quilombos Identidade étnica e territorialidade. Org.:
Eliane Cantarino O’Dwyer. Rio de Janeiro: FGV, 2002, p. 267
118
preso a ao arquétipo simbólico de Palmares, como se fora
possível achar hoje comunidades negras cercadas em for-
tificações militares em guerra com o poder imperial.
Em conclusão, o marco final revelado pelo Decreto 3912,
além de arbitrário, revelava nítido viés etnocentrista, na
medida em que se sinalizava com um limite temporal além
do qual se negava o direito à identidade étnica e o correla-
to território que a requer e, em certa medida, a determina.
Ainda que tal ato tenha sido expressamente revogado
pelo Decreto n.º 4877, de 20 de novembro de 2003, havia
nele dupla ofensa ao texto constitucional, bem apontada
por Deborah Duprat, e que merece registro. Primeiro,
porque alguém estranho ao grupo étnico é quem deter-
minaria o prazo final de sua existência constitucional-
mente amparada, o que, evidentemente, conflita com a
noção de plurietnicidade e com o direito das minorias em
um estado democrático de direito.
E segundo, por impor ao grupo uma rigidez cultural
e impedi-lo de, a partir de 5 de outubro de 1988, conce-
ber novos estilos de vida, de construir de novas formas
de vida coletiva, enfim, a dinâmica de qualquer comu-
nidade real, que se modifica, se desloca, idealiza proje-
tos e os realiza, sem perder, por isso, a sua identidade68.
Para a antropologia, apenas as comunidades ideais,
erigidas a partir de ficções jurídicas, apresentam-se
como entidades imóveis, isoladas e impermeáveis às
influências culturais externas. As reais, ao contrário, são
marcadas pelo signo da mudança social e econômica, em
um processo dinâmico que interfere e molda as relações
119
interétnicas, e que demanda, por conseqüência, reelabo-
ração permanente por parte dos pesquisadores de gru-
pos e comunidades indígenas e tradicionais 69.
Por isso se torna essencial participação de antropólo-
gos e historiadores no processo de identificação dessas
comunidades. Tratam-se de profissionais que são treina-
dos e habilitados para o trabalho de recolhimento e com-
pilação dos dados necessários à elaboração de laudos fun-
dados sobre a identificação e distinção das fronteiras étni-
cas, com o objetivo de verificar a caracterização de cada
grupo concreto, dentre as comunidades remanescentes de
quilombos. E esse trabalho difere substancialmente da
avaliação agronômica e da medição fundiária de um dado
território reivindicado por comunidades quilombolas.
Portanto, o direito de auto-atribuição da condição de
quilombolas deriva do § 2.º do art. 5.º da Constituição
Federal, e este tem fundamento na Convenção 169 da
oit, ratificada pelo Congresso Nacional que, no plano
internacional, estabeleceu o critério da auto definição
como essencial para caracterização dos grupos tribais,
indígenas e comunidades tradicionais.
120
No que respeita à territorialidade das comunidades
remanescentes de quilombos, os casos conhecidos per-
mitem apontar para uma ocupação comunal da terra, o
que indica que os títulos expedidos pelo Estado não
deveriam ser individuais, mas coletivos como foi estabe-
lecido no Decreto 4887⁄2003.
De forma contundente, o art. 17 do referido Decreto
estabelece que a titulação ou reconhecimento do domí-
nio em favor das comunidades quilombolas será reconhe-
cida e registrada mediante outorga de outorga de título
coletivo e pró-indiviso, com obrigatoriedade de inserção
de claúsula de inalienabilidade, imprescritibilidade e
impenhorabilidade.
A opção do poder público em favor da titulação cole-
tiva das terras de quilombos favorece o sistema comunal de
utilização da terra e evita que o território possa ser frag-
mentado em pequenos títulos individuais de propriedade,
com a grande vantagem de proteger as comunidades qui-
lombolas contra a especulação imobiliária, uma vez que
estaria vedada a transferência dessas terras a terceiros.
Alfredo Wagner explica bem os benefícios da titula-
ção coletiva: “a propriedade definitiva idealmente torna-
ria todos “iguais” nas relações de mercado, com os quilom-
bolas, emancipados de qualquer tutela, expressando-se
através de uma via comunitária de acesso à terra. O fato
de a propriedade não ser necessariamente individualizada
e aparecer sempre condicionada ao controle de associações
comunitárias torna-a, entretanto, um obstáculo às tentati-
vas de transações comerciais e praticamente as imobiliza
enquanto mercadoria 70.
121
Por isso, afirma o autor, as terras das comunidades
quilombolas cumprem sua função social precípua, quan-
do o grupo étnico, manifesto pelo poder da organização
comunitária, gerencia os recursos no sentido de sua re-
produção física e cultural, recusando-se a dispô-los às
transações comerciais. A posse coletiva, representada
como forma ideológica de imobilização que favorece a
família, a comunidade ou uma etnia determinada, em de-
trimento de sua significação mercantil tal forma de pro-
priedade, impede que domínios privados venham a ser
transacionados no mercado de terras 71.
Não se pode esquecer que o elemento territorial é ape-
nas um dos parâmetros que adentram na categoria qui-
lombo, para conferir-lhe a devida significação. Sendo
assim, ainda que algumas terras não estivessem efetiva-
mente ocupadas pelos quilombos, e que fosse demons-
trado que eles não ocupavam outras terras à época da
abolição da escravatura ou ainda que não permaneces-
sem nelas, na data da promulgação da Constituição Fede-
ral de 1988, tais circunstâncias não seriam suficientes
para impedir o reconhecimento da propriedade, uma vez
constatado que essas comunidades não teriam como se
reproduzir física, social, econômica e culturalmente, sem
a incorporação ou ampliação desses territórios.
122
Inegavelmente os quilombos devem ser entendidos
como “signo de referência” que apontam em duas dire-
ções distintas: passado e futuro. Isso quer dizer que de
nada adiantaria reconhecer títulos de propriedade de
terras para essas comunidades se, dentro dessa circuns-
crição espacial, esses mesmos grupos étnicos não tiverem
condições de se desenvolverem, preservando, assim, sua
identidade e o poder público não estivesse obrigado a
proceder a regularização fundiária desse território.
Carlos Ari Sundfield lembra que existe uma intrínse-
ca relação entre a “identidade coletiva” e os parâmetros de
identificação dos quilombos, na medida em que a auto-pre-
servação da comunidade, ao longo do tempo, deu-se em
contraste com várias influências externas (por exemplo:
os madeireiros, garimpeiros, fazendeiros, agricultores etc),
que, em muitas vezes, acarretaram expulsão ilegítima das
comunidades quilombolas de suas próprias terras72.
Neste caso, a desapropriação corresponderia a um res-
gate da expropriação sofrida pelos quilombos, ainda
mais quando a constituição não reconhece a essas comu-
nidades direitos originários sobre as terras que tradicio-
nalmente ocupam, como faz em relação às comunidades
indígenas no art. 231 e seus parágrafos, e tampouco tor-
na nulos e sem efeito os títulos de domínio incidentes
sobre tais terras.
Os títulos de domínio privado, se não são nulos ou não
foram anulados pela autoridade competente, permane-
cem válidos até que sobrevenha o reconhecimento ofi-
cial dessa comunidade enquanto remanescente de qui-
lombo e se determine a delimitação da área ocupada pelo
123
grupo, de modo que a União Federal possa proceder a sua
desapropriação dessas terras, expedindo, ao final, os jus-
tos títulos de domínio às comunidades remanescentes de
quilombos.
Neste sentido, Carlos Ari Sundfield também entende
ser recomendável a desapropriação dessas terras em
beneficio das comunidades quilombolas:
124
Deve ser registrado que, em data anterior a edição do
Decreto 4887, houve algumas desapropriações realizadas
pelo incra ou por Estados Membros em favor das Comu-
nidades Negras do Rio das Rã (ba), das comunidades dos
rios Cuminá, Erepecuru e Trombetas (pa), das comunida-
des Kalunga (go), isso sem falar na solução inusitada
encontrada para resolver a questão fundiária das comuni-
dades de Frechal, no Maranhão e de Sapé do Norte, no
Estado do Espírito Santo; a de alocar as famílias quilombo-
las em uma reserva extrativista, típica unidade de conser-
vação de uso direto destinado a populações tradicionais 74.
O art. 3.º do Decreto 4887 estabeleceu um procedimen-
to único para o reconhecimento dos territórios quilombolas,
encerrando velha controvérsia sobre qual o melhor modelo
fundiário para a identificação e delimitação dessas áreas:
125
§ 2.º Para os fins deste Decreto, o INCRA poderá estabe-
lecer convênios, contratos, acordos e instrumentos simi-
lares com órgãos da administração pública federal,
estadual, municipal, do Distrito Federal, organizações
não-governamentais e entidades privadas, observada a
legislação pertinente.
§ 3.º O procedimento administrativo será iniciado de
ofício pelo INCRA ou por requerimento de qualquer inte-
ressado.
(...)
127
remanescentes de quilombos as terras que ocupam ou
que tenham direito a ocupar.
129
to 4887, junto aos órgãos oficiais e o ato efetivo de certi-
ficação. Para se ter uma idéia da lentidão do processo de
reconhecimento de uma comunidade quilombola, que
representa a etapa inicial de identificação do grupo, a
Fundação Cultural Palmares teria emitido apenas 96
(noventa e seis) certidões até dezembro de 2004 78.
Sabendo das dificuldades operacionais de incorporar
os fatores étnicos à ação agrária, Alfredo Wagner chama
a atenção para um dos riscos maiores dos procedimentos
burocrático-administrativos de natureza fundiária, qual
seja: o de confundir a área do imóvel rural, levantada por
cadeia dominial, com o território da comunidade rema-
nescente de quilombo, socialmente construído e auto-re-
conhecido. Segundo ele, não há qualquer coincidência
necessária entre eles, ainda que em alguns casos assim se
apresente. Esta distinção deveria, na sua opinião, ser um
pressuposto norteador das ações operacionais 79.
Uma dificuldade operativa adicional decorre do “rela-
tório técnico”, previsto no decreto n.º 4887, cuja com-
petência de autoria, não estando formalmente definida,
gera uma tensão permanente entre procedimentos de
inspiração meramente agronômica e aqueles de funda-
mentos antropológicos. Seria uma outra maneira de repe-
tir a idéia de que tais comunidades não podem ser iden-
tificadas tão somente por instrumentos agrários, por-
quanto devam ser objeto de uma intervenção de funda-
mento étnico. Não é por outro motivo que os juizes e o
próprio Ministério Público Federal têm invariavelmente
recorrido ao conhecimento científico de antropólogos
para dirimir dúvidas e solucionar conflitos.
130
Não há como negar as dificuldades na implementação
dos procedimentos político-administrativos no reconhe-
cimento das comunidades remanescentes de quilombos.
De fato, até ser promulgado o primeiro decreto de regu-
lamentação das disposições relativas à aplicação do arti-
go 68, passaram-se 13 anos até a edição do Decreto n.°
3.912, de 10 de setembro de 2001, que, além de limitar
drasticamente o alcance do artigo 68, revelou-se incons-
titucional e inoperante, como já analisado anteriormen-
te, apresentando resultados pífios 80.
Dois anos e dois meses depois, o Decreto 3912 foi subs-
tituído pelo Decreto n.° 4887, de 20 de novembro de
2003, seguido pela Instrução Normativa mda/incra n.°
16, de 24 de março de 2004. Mesmo reconhecendo os
avanços nas discussões e nas consultas aos movimentos
sociais, o antropólogo Alfredo Wagner lamenta o fato de
que, um ano após a edição do Decreto n.º 4887, nenhu-
ma comunidade quilombola tinha recebido, até novem-
bro de 2004, título de propriedade de suas terras pelo
governo federal 81.
O Instituto de Estudos Sócioeconômicos – inesc pu-
blicou recentemente um preocupante relato sobre a
questão fundiária quilombola. Embora existam 2.228
comunidades quilombolas no país, o relatório afirma
que somente duas teriam sido regularizadas no gover-
no Lula82.
131
Se é verdade que a Constituição de 1988 teria garan-
tido, em tese, o direito a posse permanente da terra às
comunidades quilombolas, é constrangedora a constata-
ção de que apenas 70 (setenta) comunidades remanescen-
tes de quilombos foram efetivamente beneficiados, des-
de 1988, com a expedição de títulos dominiais definiti-
vos, o que significa que o processo de reconhecimento e
delimitação dessas terras está longe de acabar e que há
uma distância abissal entre a declaração formal prevista
no art. 68 do adct e a efetividade desse direito.
O segundo ponto de discórdia, de natureza jurídica e
política, e que poderá dificultar a efetivação dos direitos
das comunidades remanescentes de quilombos às terras
por eles utilizadas, diz respeito a tramitação da Ação Di-
reta de Inconstitucionalidade n.º 3239-9/df, ajuizada
pelo Partido da Frente Liberal – pfl contra o Decreto n.º
4887⁄2003, que regulamenta o procedimento para iden-
tificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e
titulação das terras ocupadas por comunidades remanes-
centes de quilombos.
Depois de 15 (quinze) anos, aguardando uma defini-
ção legal, as comunidades quilombolas vêm um partido
político de grande expressão argüir, em junho de 2004,
junto ao Supremo Tribunal Federal, a inconstitucionali-
dade do novo Decreto sob a alegação, em síntese, de: a)
invadir a esfera reservada à lei; b) prever a desapropria-
ção de terras à essas comunidades e c) estabelecer o cri-
tério da auto-atribuição para identificação dos remanes-
centes de quilombos 83.
A Advocacia Geral da União alegou, em preliminar,
não existir ofensa direta à Constituição Federal, sob o
132
argumento de que o Decreto n.º 4.887⁄03 retiraria seu
fundamento de validade diretamente das normas do art.
14, iv, “c”, da Lei n.º 9.649⁄88 e do artigo 2.º, iii e pará-
grafo único, da Lei n.º 7.668⁄88.
No mérito, a União sustenta a inocorrência de invasão
do Decreto a esfera reservada à lei pois, aquele diploma
legal, retiraria seu fundamento da validade das próprias
leis federais, não havendo a alegada irregularidade do
ponto de vista formal propagada pelo autor.
Por fim, a Advocacia Geral da União aduziu que a de-
sapropriação, prevista no artigo 216, § 1.º, corresponde-
ria a um resgate da expropriação sofrida pelos quilom-
bos, possuindo o instituto, nítido interesse social.
O Ministério Público Federal reiterou os argumentos
da Advocacia Geral da União para pedir o não conheci-
mento ou a improcedência da adin. Em especial, o Pare-
cer do então Procurador Geral da República, Cláudio
Fonteles, contesta a idéia de que o Decreto 4887 seria um
decreto autonômo, por regular diretamente, sem a inter-
posição de lei, o art. 68 do adct, acentuando, todavia,
que, como norma protetora de uma minoria em situa-
ção de vulnerabilidade, o dispositivo tem plena e ime-
diata eficácia, independentemente de regulamentação
posterior.
De acordo com Carlos Ari Sundfeld, o art. 68 do adct
está devidamente regulamentado pela Lei n.º 9649⁄98
(art. 14, iv. “c”) – que confere ao Ministério da Cultura
competência para aprovar a delimitação das terras dos
remanescentes de quilombos e pela Lei n.º 7668⁄88 (art.
2.º, ii, e parágrafo único) que dá à Fundação Cultural Pal-
mares atribuição para realizar a identificação das comu-
nidades remanescentes de quilombos e também proce-
133
der a delimitação e demarcação das terras por eles ocu-
padas e conferir-lhes a correspondentes titulação 84.
Dessa forma, nos parece inteiramente improcedente a
argüição de inconstitucionalidade no sentido de que o
Decreto 4887 teria “autonomia legislativa”. Na verdade,
o decreto em questão retira o seu fundamento de valida-
de diretamente das leis federais já mencionadas, não
havendo a irregularidade formal apregoada pelo pfl.
Como aqui já foi dito, o critério de identificação da
“auto-atribuição” fixado pela norma do art. 2.º do Decre-
to n.º 4.887, de 2003, não incorre em inconstitucionali-
dade. Antes, à luz da norma constitucional regente (art.
215 e art. 216, da cf c/c art. 68 do adct), busca o con-
ceito de remanescentes de quilombos nos métodos for-
necidos pela Antropologia e em princípio estabelecido no
direito internacional público. Portanto, não há nenhum
óbice legal à utilização do critério de auto identificação
para a legitimação do processo de reconhecimento das
comunidades quilombolas.
Aliás, a escolha de critério antropológico para a defini-
ção de grupo étnico com base na auto-atribuição somente
de forma reflexa poderia suscitar qualquer inconstitucio-
nalidade, sendo opção política do poder público adotá-lo
para a tarefa de dar cumprimento ao art. 68 do adct, que
obriga a União a proceder a titulação das terras ocupa-
das por comunidades remanescentes de quilombos.
Por outro lado, não se nega que o reconhecimento ofi-
cial dessas comunidades, ao menos no papel, gera, na
contra-partida uma violência crescente contra as comu-
nidades remanescentes de quilombos, através da amea-
134
ça de morte por parte de jagunços a mando de latifun-
diários e grileiros, que queimam as casas e tentam des-
mobilizar as lideranças quilombolas, de modo a incorpo-
rar ao domínio privado, por meios arbitrários, os espa-
ços coletivos tradicionalmente utilizados pelas popula-
ções tradicionais85.
Segundo Alfredo Wagner, em algumas unidades da
federação como Maranhão e Bahia, a titulação de terras
das comunidades quilombolas pode se constituir num des-
tacado instrumento de desconcentração da propriedade
fundiária. Contrapondo-se frontalmente à dominação oli-
gárquica. Os antagonismos sociais têm se acirrado nestas
regiões, com comunidades quilombolas praticamente cer-
cadas e com suas vias de acesso interditadas por interes-
ses latifundiários86.
Não cabe neste estudo análise mais detalhada sobre os
aspectos formais da referida ação direta de inconstitucio-
nalidade, mas não se pode negar que o pfl, ao insurgir-
se contra o principal instrumento legal de reconheci-
mento, identificação, delimitação e demarcação dos ter-
ritórios quilombolas, age, politicamente, em favor dos
grandes latifundiários e de setores econômicos interes-
sados na pulverização desse território.
Afinal, negar o fator étnico, e nele o critério de auto
identificação, para reconhecimento das comunidades
quilombolas, além de servir à judicialização da escolha
de um determinado critério antropológico pelo Decreto
4887, esvazia a reivindicação política das lideranças e
associações quilombolas e facilita os atos ilegítimos de
usurpação e de violação do art. 68 do adct.
135
Os antagonismos sociais em jogo transcendem os fato-
res meramente econômicos e trazem a questão à cena
política constituída. Mediante obstáculos desta ordem, a
titulação definitiva das comunidades remanescentes de qui-
lombos se mostra mais que essencial, posto que, historica-
mente, as famílias destas comunidades têm sido mantidas
como “posseiros” e assim parecem pretender mantê-las
aqueles interesses contrários ao seu reconhecimento. Man-
tidas como eternos “posseiros” ou com terras tituladas sem
formal de partilha, como no caso das chamadas terras de
preto, que foram doadas a famílias de ex-escravos ou que
foram adquiridas por elas, sempre são mais factíveis de
serem usurpadas 87.
Por último, vale destacar a importância da questão
orçamentária e de sua execução financeira como um obs-
táculo permanente para a efetivação dos direitos das
comunidades remanescentes de quilombos ao seu territó-
rio. E quanto a este ítem, o componente ideológico, que
possa assegurar a este ou aquele partido ou frente polí-
tica o exercício do poder no governo federal, é irrelevan-
te, pois a ausência de compromisso orçamentário para o
cumprimento efetivo de norma constitucional em defe-
sa dos direitos humanos parece ser universal e comum a
todas as agremiações políticas, e espraia-se sobre todos
os temas a serem enfrentados pelo poder público nesta
área, como os programas de combate a tortura, de prote-
ção a testemunhas, demarcação de áreas indígenas, cria-
ção de unidades de conservação e etc.
De fato, não se deve afastar, no curso do debate, a
importância do contingenciamento e de restrições orça-
mentárias para a inadequada e cronicamente insuficien-
136
te aplicação de verbas destinados à titulação das comu-
nidades remanescentes de quilombos. Em decorrência
desse fato, comum a outras minorias, o mda/incra tem
alegado não ter como fazer as desapropriações e nem ter
funcionários especializados para executar os procedi-
mentos de identificação, delimitação e demarcação 88.
Um levantamento divulgado pelo inesc indica que os
r$ 11 (onze) milhões do orçamento do Ministério do De-
senvolvimento Agrário – mda destinado ao pagamento
de indenização aos proprietários rurais ficaram intactos
em 2004. Somente 8% (oito por dento) do orçamento de
R$ 14,4 milhões para reconhecimento, demarcação e titu-
lação de áreas quilombolas teriam sido aplicados até
junho deste ano 89.
Note-se que dois problemas referentes ao orçamento
se juntam e agravam, ainda mais, a questão do reconhe-
cimento do território quilombola. O primeiro diz respei-
to a escassez de recursos próprios do incra ou da Fun-
dação Palmares para fazer cumprir o disposto no art. 68
do adct em razão de falta de previsão de verbas para
este fim na lei de orçamento. O segundo é o contingen-
ciamento ou, pior, a não utilização dos recursos já pre-
vistos e incluídos no orçamento; seja por força de deci-
são das autoridades fazendárias; seja pela inexistência de
pessoal técnico para a consecução dos trabalhos em cam-
po, como antropólogos, agrimensores e engenheiros.
Alfredo Wagner lamenta que esses recursos orçamen-
tários que faltam ao processo de regularização de terras
137
quilombolas vão ser encontrados, entretanto, nos chama-
dos programas sociais do governo federal, na área de saú-
de, educação, e alimentação, como se as comunidades re-
manescentes de quilombos pudessem ser reduzidas a uma
categoria econômica, ou seja, como se tratassem de “comu-
nidades carentes” ou de baixa-renda ou ainda de comu-
nidades que podem ser classificadas como “pobres” 90.
Sob um ponto de vista de ênfase nas políticas sociais,
as comunidades quilombolas estariam se tornando “be-
neficiárias” de programas, projetos e planos governa-
mentais e passando a ser classificadas como “público
alvo” (veja mda, folder “Quilombolas”, 2004) e/ou “pú-
blico meta” englobadas assim por classificações mais
abrangentes, que designam os respectivos programas e
projetos, quais sejam: “pobres”, “excluídos”, “população
de baixa renda” e “desassistidos”.
Segundo Alfredo Wagner quilombola torna-se, deste
modo, um atributo que funciona como agravante da con-
dição de ser “pobre”. Ser “pobre”, numa sociedade auto-
ritária e de fundamentos escravistas, implica ser priva-
do do controle sobre sua representação e sua identidade
coletiva. Ser considerado “pobre” é ser destituído de
identidade coletiva. Além disto, ao serem classificadas
por necessidades definidas pelo Estado, tais comunida-
des se tornam despolitizadas, ainda que tenham o con-
trole de suas necessidades em virtude de processos de
mobilização e de lutas políticas continuadas. O risco aqui
é de confundir um elemento de política étnica com polí-
ticas sociais focalizadas, homogeneizando situações sob
uma noção de “pobreza exótica”91.
138
6. conclusão
140
mativa para obrigar a União a regularizar as áreas uti-
lizadas pelas comunidades remanescentes de quilombos
e a expedir os respectivos títulos de domínio;
2. defender a constitucionalidade do Decreto n.º 4887⁄2003,
que estabelece o procedimento de identificação, delimi-
tação e demarcação dos territórios quilombolas;
3. denunciar as tentativas de se excluir do processo de
reconhecimento das comunidades remanescentes de qui-
lombos o critério da auto definição, essencial para a
identificação étnica nos termos da Convenção nº. 169,
da OIT e do Decreto 4887⁄2003;
4. apoiar a titulação coletiva – pro-indiviso – em favor
das comunidades remanescentes de quilombos, com a
cláusula de inalienabilidade, imprescritibilidade e im-
penhorabilidade das terras por eles ocupadas;
5. garantir a possibilidade de utilização do processo de
desapropriação nos territórios ocupados pelas comuni-
dades remanescentes de quilombos que estão sob domí-
nio privado;
6. defender as comunidades remanescentes de quilombos
de toda a forma de opressão, discriminação, de invasão
de seu território e de espoliação do seu direito ao título
de domínio coletivo sobre as terras por elas utilizadas;
7. fiscalizar, junto ao Congresso Nacional, a elaboração
da proposta orçamentária destinada aos Ministérios da
Cultura e Desenvolvimento agrário para a implementa-
ção do Decreto 4887⁄2003;
8. cobrar da Fundação Palmares e do Ministério do De-
senvolvimento Agrário/INCRA seja dada integral exe-
cução aos respectivos orçamentos para que não sejam
desperdiçadas as verbas destinadas ao processo de iden-
tificação, reconhecimento, delimitação e demarcação
das comunidades remanescentes de quilombos;
141
9. sensibilizar a opinião pública da necessidade de se res-
peitar e proteger as comunidades remanescentes de qui-
lombos, sua cultura, seu modo de ser e as suas terras;
10. articular com o Ministério Público, Poder Judiciá-
rio e a sociedade civil organizada a defesa da constitu-
cionalidade do Decreto n.º 4887⁄2003 e da retomada do
processo de identificação de terras quilombolas que
encontra-se paralisado no atual governo.
142
ministério público federal
Grupo de Trabalho sobre Quilombos, Povos e
Comunidades Tradicionais
144
tais não dependem de concretização legislativa para sur-
tirem os seus efeitos”93.
Também indicam a eficácia jurídica plena desse arti-
go: o conteúdo da declaração normativa (simplesmente o
reconhecimento de um direito e a atribuição de um dever
específico de atuação do Poder Público) e sua localização
nas disposições transitórias (que, justamente para pode-
rem disciplinar imediatamente situações de transição
entre sistemas constitucionais que se sucedem, devem
estar dotadas de normatividade suficiente, segundo a
lição do Professor José Afonso da Silva 94).
Aspectos específicos relacionados ao âmbito concreto
(identificação de pessoas, delimitação de áreas etc.) e ao
âmbito administrativo (órgãos competentes, procedi-
mento...) não criam direitos e deveres “externos”, ape-
nas regulamentam a atuação estatal, e não carecem, por-
tanto, de lei para serem disciplinados.
Ademais, para satisfazer o princípio da legalidade lá
onde ele se impõe, já existe todo um arcabouço legislativo
que sustenta a aplicação do Decreto 4.887⁄2003: a orga-
nização administrativa, a legislação sobre desapropria-
ção etc. Ou seja: o art. 68 adct não necessita de lei para
sua aplicabilidade, mas onde esta é exigida no geral, exis-
tem diversas leis pertinentes. Citem-se, a propósito, a Lei
9.649⁄1998, sobre a organização da Presidência da Repú-
blica e dos Ministérios, que atribui ao Ministério da Cul-
tura competência para “aprovar a delimitação das terras
dos remanescentes das comunidades dos quilombos,
bem como determinar as suas demarcações, que serão
homologadas mediante decreto” (art. 14, iv, “c”); e a Lei
145
7.668⁄1988, que institui a Fundação Cultural Palmares e
lhe dá competência para “realizar a identificação dos
remanescentes das comunidades dos quilombos, proce-
der ao reconhecimento, à delimitação e à demarcação das
terras por eles ocupadas e conferir-lhes a corresponden-
te titulação” (art. 2.º, iii).
Nesse contexto, ressalte-se o compromisso internacional
assumido pelo Brasil ao promulgar a Convenção n.º 169 da
Organização Internacional do Trabalho (oit, 1989), sobre
povos indígenas e tribais. Pela Convenção, os governos
comprometem-se a adotar “as medidas que sejam necessá-
rias para determinar as terras que os povos interessados
ocupam tradicionalmente e garantir a proteção efetiva dos
seus direitos de propriedade e posse” (art. 14.2) 95.
Mais importante, contudo, é considerar o tempo
transcorrido. Passados quase vinte anos da promulgação
da Constituição, não tem mais cabimento essa discussão a
respeito da autoaplicabilidade do art. 68 adct, senão
com intenção de neutralizar o comando constitucional.
Um comprometimento com a efetividade da Constituição
implica “construir uma argumentação sobre o art. 68 que
não inviabilizasse as ações positivas já existentes em prol
da realização do direito lá estabelecido”, destaca o Centro
de Pesquisas Aplicadas da Sociedade Brasileira de Direito
Público, capitaneada pelo Professor Carlos Ari Sundfeld 96.
Curioso que o anterior Decreto 3.912⁄2001, igualmen-
te editado diretamente para regulamentar o art. 68 adct,
mas cuja disciplina inadequada inviabilizava o efetivo
146
reconhecimento da propriedade das terras de remanes-
centes de comunidades de quilombos, tenha passado
incólume à declaração de inconstitucionalidade ou à sus-
tação. Isso revela que o projeto de decreto legislativo em
questão na verdade insurge-se contra a perspectiva de um
reconhecimento efetivo do direito de propriedade aos
remanescentes de comunidades de quilombos (mais pró-
xima com o atual Decreto 4.887⁄2003 do que com o ante-
rior) e não contra a validade jurídica do Decreto 4.887.
Quando a densidade da norma constitucional é sufi-
ciente e há apenas necessidade de regulamentação para
uma atuação administrativa adequada, não faz falta a
interposição legislativa e pode ser estabelecida uma rela-
ção imediata entre a Constituição e o decreto 97.
Vejam-se os exemplos da “organização e funciona-
mento da administração federal, quando não implicar
aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos
públicos”, e da “extinção de funções ou cargos públicos,
quando vagos” (art. 84, vi), bem como da intervenção
federal (art. 36, § 1.º).
Em outras hipóteses, pode já existir legislação e o regu-
lamento é apenas aparentemente autônomo, conforme
decidiu recentemente o stf em relação à antiga Portaria
796⁄2000, do Ministro da Justiça, sobre classificação indi-
cativa dos programas de televisão: o Estatuto da Criança e
do Adolescente (Lei 8.069⁄1990) era a prévia lei necessária.
Equivoca-se a justificação do projeto em questão, ao
acusar o Decreto 4.887 de pretender “regulamentar dire-
ta e imediatamente preceito constitucional”. A uma, por-
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que o art. 68 adct possui suficiente densidade normati-
va, sendo autoaplicável. A duas, porque a regulamenta-
ção de aspectos meramente administrativos relacionados
a dispositivo constitucional autoaplicável não um vício,
sendo perfeitamente cabível. A três, porque há diversas
leis preexistentes que dão sustentação ao Decreto.
148
plo, espaços para adoção de alternativas tiverem sido dei-
xados, expressa ou implicitamente, pelo legislador”99.
É o princípio fundamental da separação de Poderes
(art. 2.º) que está em jogo. Se a competência para disci-
plinar um assunto é do Poder Legislativo (reserva de lei),
uma indevida invasão (usurpação) de competência pode
ser combatida na esfera política pelo próprio Congresso
Nacional (por meio da sustação: art. 49, v) e na esfera
judicial pelo Poder Judiciário (por exemplo, por meio de
ação direta de inconstitucionalidade).
Entretanto, se a competência constitucional para dis-
ciplinar um assunto é do Poder Executivo, no exercício
do poder regulamentar (art. 84, iv, final), o Poder Legis-
lativo não pode alegar que houve usurpação de sua com-
petência e utilizar o poder de veto legislativo conferido
pelo art. 49, v, apenas porque não concorda com o méri-
to da regulamentação. Como esclarece o Professor Clè-
merson M. Clève, quando o Executivo deve apenas “dis-
ciplinar os procedimentos utilizados pela Administração
(modo de agir) nas relações que travará com os particu-
lares, efetivamente, não há delegação”, e “o Executivo
pode, perfeitamente, regulamentar a lei em virtude de
competência própria”100. Em termos mais gerais, mas res-
saltando essa atribuição regulamentar própria, enfati-
zam os Professores Luiz Alberto David Araujo e Vidal
Serrano Nunes Júnior que a lei “não pode impedir a sua
regulamentação, pois estaria invadindo a competência
do Poder Executivo”101. Portanto, a situação inverte-se no
100 cleve, Clèmerson M. Atividade legislativa do Poder Executivo no
Estado contemporâneo e na Constituição de 1988. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1993, p. 254.
101 araujo, Luiz Alberto David; nunes Júnior, Vidal Serrano. Curso de
direito constitucional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 310.
149
presente projeto de decreto legislativo: é o Congresso
Nacional que extrapola seu poder ao pretender suspen-
der o exercício adequado do poder regulamentar pelo
Presidente da República.
A desautorização da opção do Executivo pelo Legis-
lativo pode dar-se apenas onde houver autorização
expressa da Constituição. Fora daí, os Poderes deverão
respeitar suas respectivas esferas de atribuição. O Poder
Legislativo pode, sim, contestar o acerto das opções do
Executivo, por exemplo, em relação a escolhas de titula-
res de determinados cargos (art. 52, iii), ao veto (art. 66,
§ 4.º), a medidas provisórias (art. 62, § 5.º), à intervenção
(art. 36, § 1.º). Essas e outras hipóteses revelam a inter-
ferência recíproca (freios e contrapesos) entre os Pode-
res, que define por exceção o princípio da autonomia.
Em suma, o projeto de decreto legislativo em análise
tem em vista infirmar a opção do Poder Executivo, con-
substanciada no conteúdo do Decreto 4.887⁄2003, e uti-
liza indevidamente como pretexto uma alegada – mas
não explicada – ultrapassagem dos limites do poder
regulamentar.
151
Essa, contudo, é apenas uma etapa preliminar, que de-
verá ser seguida da “identificação, delimitação e levan-
tamento ocupacional e cartorial” da área (art. 7.º do De-
creto), retratadas num relatório técnico. Este será enca-
minhado a diversos órgãos para manifestação (art. 8.º) e
permitirá contestação por qualquer interessado (art. 9.º).
Como se percebe, os requisitos para o reconhecimento
do direito de propriedade deverão ser demonstrados, des-
de a condição de remanescente de quilombo até a posse tra-
dicional (mesmo quando não atual, por causa, por exem-
plo, de expulsão violenta). E são asseguradas amplas pos-
sibilidades de contestação por quem se sentir prejudicado.
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dico distinto para os índios (art. 231), para as pessoas
portadoras de deficiência (art. 37, viii), para os cultos e
seus templos (art. 150, vi, “b”), para os Deputados e
Senadores (art. 53)...
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constitucionalidade 107. Isso é afirmado pela jurispru-
dência do Supremo Tribunal Federal:
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ção no mérito. Cabe ao Congresso Nacional, isto sim, afir-
mar a qualidade do Decreto 4.887⁄2003, que:
a) oferece um procedimento adequado de identifica-
ção, reconhecimento, delimitação, demarcação e titula-
ção das terras ocupadas por remanescentes das comuni-
dades dos quilombos;
b) permite a concretização do art. 68 adct e assegu-
ra, assim, um direito reconhecido pela Constituição de
1988, mas que mal tem sido implementado;
c) responde ao compromisso internacional assumido
pelo Brasil ao ratificar a Convenção 169 da oit.
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anexo i – Parecer n.º agu/mc – 1/2006.
Manoel Lauro Volkmer de Castilho
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anexo ii – Despacho do Advogado-Geral da União.
Álvaro Augusto Ribeiro da Costa
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