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ENTRE A JUSTIÇA TRADICIONAL E A POPULAR.

A RESOLUÇÃO DE CONFLITOS NUM CAMPO DE REFUGIADOS,


EM FINAIS DE 2002, NAS CERCANIAS DO HUAMBO, ANGOLA1.

Armando Marques Guedes


Faculdade de Direito, Universidade Nova de Lisboa

INTRODUÇÃO E ENQUADRAMENTO GERAL

Raros são aqueles que hoje têm dúvidas de que, um pouco


por todo o Mundo e de uma ou de outra maneira, vivemos uma
“crise da justiça”. Importa decerto não subestimar o problema,
trivializando-o, coisa a que muitas vezes somos infelizmente
tentados. Trata-se com efeito de uma crise cujo alcance não se
atem apenas a uma emergência cíclica e restrita de obstáculos
avulsos, mais ou menos difíceis de transpor, que contrariam o
bom funcionamento do sistema instalado. É bem mais grave do
que isso. Dá antes corpo a uma degradação muitíssimo profunda
nas suas raízes, a uma corrosão das fundações, elas mesmas,
sobre as quais o sistema (um termo neste contexto entendido num
sentido amplo) está erigido2. Uma malaise cujos sintomas se
1
A recolha dos dados empíricos expostos neste curto artigo constituiu uma pequena parcela
dos resultados obtidos durante uma rápida visita de estudo efectuada a Angola entre 15 de
Agosto e 3 de Setembro de 2002. Aí me desloquei na companhia de N’gunu Tiny, Francisco
Pereira Coutinho, Ravi Afonso Pereira e Ricardo do Nascimento Ferreira, por um curto
período de três semanas; pouco antes tinha lá estado Raquel Barradas de Freitas. Integraram
ainda o grupo dois Professores angolanos de Direito, Carlos Feijó e Carlos de Freitas. Tanto
a obtenção como o tratamento destas e de muitas outras informações recolhidas reflectem
um esforço conjunto, que aqui faço questão de testemuhar. A visita foi planeada no contexto
de um projecto de investigação, por mim coordenado, relativo a “mecanismos de resolução
de litígios nos Palop”, levado a cabo no âmbito da Faculdade de Direito da Universidade
Nova de Lisboa. Foi financiada pela Fundação Calouste Gulbenkian, à qual agradeço o
apoio concedido, sem o qual a nossa viagem de trabalho e estada não teriam sido possíveis.
2
Para uma delineação e discussão pormenorizadíssima sobre esta crise, ver António
Manuel Hespanha, 1993: 7-59. Este longo texto, aliás, constitui a introdução de uma
colectânea de artigos histórico-sociológicos em que a questão é perspectivada. São aí de
sublinhar os artigos de Marc Galanter (1993, original de 1984), e de Andreas Auer (1993,
original de 1986) cujo tema é, ainda que as questões sejam neles entrevistas de ângulos algo
diferentes entre si, precisamente essa crise vivida no Ocidente contemporâneo.

1
poderiam sinteticamente reconduzir a uma desobediência
generalizada à lei por parte dos cidadãos, à não aplicação, ou
aplicação selectiva, da lei por parte dos órgãos de poder, e a uma
concomitante ineficiência, ademais crescente, dos instrumentos
utilizados para a sua aplicação coerciva pelos Estados3.
Não é porém assim em toda a parte: este diagnóstico, pese
embora a relativa homogeneização a que os processos de
integração global têm vindo a dar azo4, não pode senão ser
geográfica (ou melhor, histórica e sociologicamente) restrito. Em
África, designadamente, apesar de muitos dos indícios das
dificuldades vividas na justiça terem com esta crise histórica
vivida no Mundo ocidental uma curiosa semelhança de
superfície5, a sua mecânica interna de fundo é bem diferente,
tanto ao nível da sua “configuração morfológica” como ao da sua
“operação fisiológica”.
É fácil esboçar essa especificidade a traço grosso. Muitas
das particularidades evidenciadas nos sistemas jurídicos
africanos radicam na presença de pluralismos jurídicos e
jurisdicionais6 de ordenamentos que, em espaços estatais que se

3
Este prognóstico (uma leitura que identifica bloqueios suficientes, por si sós, para
desencadear uma séria degeneração da justiça, ou “da ordem”) estaria, segundo A. M.
Hespanha, directamente articulado com a morosidade e a ineficácia dos mecanismos de
administração da justiça nos Estados de matriz europeia. Essa lentidão e ineficiência
seriam, porém, questões estruturais e não meros fenómenos de conjuntura. A “crise da lei”,
neste tipo de interpretação, relacionar-se-ia com um esgotamento histórico do “paradigma
legalista” enquanto “tecnologia disciplinar” (um conceito foucaultiano), que se terá
revelado como formando um enquadramento afinal passageiro cujos principais corolários
terão sido o princípio da legalidade, o primado da lei e, com especial interesse para o tema
que aqui me ocupa, os ideais de juridificação das relações sociais e de acesso à justiça
(entendida como a justiça “oficial” a ser dispensada pelos tribunais estaduais). A crise, na
“cultura de matriz europeia” a que António Hespanha, ecoando numerosos autores, fez
nesse e noutros textos alusão, seria por conseguinte um sintoma de que essa fase histórica
estaria a passar. Para uma discussão mais actual e de altíssima qualidade deste conceito, ver
o longo ensaio do jurista norte-americano Paul Kahn (1999).

4
Para uma interessante discussão sobre o alcance dessa globalização jurídica, ver o
excelente artigo de Mireille Delmas-Marty (1999).
5
Para um estudo sobre uma “organização judiciária” africana em que as semelhanças são
privilegiadas sobre as diferenças existentes, é interessante a leitura do trabalho monográfico
(da autoria de Boaventura de Sousa Santos mas nunca publicado) sobre os Tribunais de
Zona instalados durante a Primeira República monopartidária em Cabo Verde.

6
Para uma boa discussão recente de posturas analíticas alternativas relativamente a um
conceito tão usado e abusado como o de pluralismo jurídico, ver o artigo recente de Joël
Moret-Bailly (2002); embora tenda a limitar-se a uma ponderação das análises
empreendidas por autores francófonos, não deixa de constituir uma boa introdução ao state

2
querem unitários, convivem uns com os outros em interacções
complexas. Exprimem-se por renitências e resistências variadas
que denotam situações muitas vezes pouco pacíficas de uma
aparente “não-miscibilidade” normativa. Parecem, em todo o
caso, suscitar dificuldades porventura todavia resolúveis, pelo
menos em abstracto e em última instância; e muito indica que o
fazem em moldes formalmente não muito diferentes daqueles
que têm vindo a ser propostos para um desenvencilhar da crise
mais radical sentida no Ocidente contemporâneo.
Os fundamentos dessa outra crise de justiça patente na
África pós-colonial assentam sobre fundamentos bastante sui
generis. Com efeito, vários são os estudos de africanistas que nos
têm vindo a alertar para os obstáculos inerentes a quaisquer
tentativas de integração linear e directa entre o Direito estadual e
as “formas tradicionais”, ditas consuetudinárias, dos Direitos
costumeiros7 que vigoram um pouco por todo o Continente. Não
se trata, em boa verdade, de um dilema histórico de que apenas
restem hoje memórias já longínquas: a verdade é que, iniciado
nos últimos anos da época colonial, o processo continua neste
alvorecer do novo milénio.
Mas alguma coisa mudou. O processo não decorre hoje em
dia de maneira nenhuma de forma directa ou linear: em larga
medida espontaneamente, prossegue, ora sob a égide de uma
“recuperação” de, e de “reencontro” com, “práticas ancestrais”;
ora, ao invés, enquanto estratégia antes virada para uma
reconstrução “inovadora e mais democrática” de sistemas de
legalidade e justiça herdados da colonização, sistemas esses a
cujo destroçar, em muitos casos, algumas das administrações
africanas pós-coloniais se viram sujeitas nos anos quantas vezes
tão turbulentos que sobrevieram às suas independências. Sem
querer de maneira nenhuma insinuar que nisso estejamos perante
uma qualquer progressão evolucionária (o que redundaria numa
conjectura gratuita e por conseguinte descabida8), não deixa de
of the art quanto ao tema. É útil também a consulta do mais amplo enquadramento
disponibilizado em Norbert Rouland (1994).

7
Sobressaem aqui, da muita bibliografia publicada sobre o tema, as colectãneas editadas
por Hilda e Leo Kuper (1961) e por A. Allot (1971), bem como o trabalho de fundo mais
recente de Mahmood Mamdani (1996). Para um levantamento curto, denso e incisivo,
aconselho a leitura do artigo de Bernard Durand (2002).
8
Cf. os comentários críticos que a este respeito foram formulados em Simon Roberts
(1979): 193-194.

3
ser fascinante verificar ressonâncias. Não quereria deixar de
ilustrar algumas delas, pondo a tónica nas suas implicações.
Reatando tacitamente com projectos anteriores, quantas
vezes sem de tal terem plena consciência, as autoridades dos
novos Estados soberanos em África têm vindo a defrontar
dificuldades de algum modo semelhantes (mutatis mutandis, e
muito há que as distingue) àquelas com que os poderes coloniais
se confrontaram. Não será por isso surpreendente que as soluções
encontradas não difiram muito, tendo em vista alguns
paralelismos políticos evidentes; sobretudo se tivermos em mente
os constrangimentos formais a que tais processos de integração-
harmonização de regras sempre estão limitados.
Com efeito, o problema de fundo suscitado recapitula o
antigo e esse não sofreu grandes alterações. Aquilo que está em
causa, numa como noutra das conjunturas, é o controlo
administrativo e político de pessoas e regiões 9. Em extensas
porções da África dos finais do século XIX e do passado século
XX, administradores coloniais, sobretudo nas áreas de tutela
britânica, muitas vezes optaram por uma “indirect rule” nas suas
tentativas de encontrar leis e regulamentações que lhes
permitissem efectivar o controlo que desejavam das populações
locais. Um dos resultados foi o que seria de esperar. Em parte
com o intuito de simplificar a sua própria governação, em África
como noutros lugares as potências coloniais muitas vezes
reconheceram alguma autoridade às chefaturas tradicionais,
investindo-as com autoridade judicial e com um módico de poder
executivo: segundo os quadros político-jurídicos europeus as
condições mínimas para que elas pudessem dirimir conflitos e
litígios segundo os “usos e costumes” locais tidos como
“tradicionais”, ao mesmo tempo que era assegurada uma sua
submissão ao novo poder colonial. Uma articulação nem sempre
pacífica e raramente enxuta.
Acrescem a questões destas, no essencial e lato sensu
político-administrativas, problemas mais técnico-jurídicos, por
assim dizer. É fácil verificá-lo. Para além dos problemas
inerentes nos processos de integração de práticas costumeiras,

9
No que toca a este background histórico e à transição pós-colonial que se lhe segui, ver
Mahmood Mamdani (1996, op. cit.), para um excelente enquadramento histórico-
metodológico e Bernard Durand (2002, op. cit.) para um sem número de descrições e
minudências empíricas quanto às diferentes experiências africanas.

4
está a questão de saber dar boa conta do pluralismo jurídico
existente que elas indiciam. Disso depende não só o controlo
político-administrativo efectivo de muitas vezes numerosas
populações e extenssíssimos territórios, mas também a própria
legitimação dos Estados estabelecidos com as independências.
Vale a pena determo-nos um pouco sobre este autêntico
pano de fundo. No chamado “período colonial”, as soluções
encontradas não foram homogéneas: Variaram de região para
região, ao sabor da diferentes estratégias de colonização seguidas
pelas potências coloniais tutelares; e foram sendo
diacronicamente alteradas à medida que a pouca eficácia das
equações implementadas se iam revelando pouco satisfatórias.
Na nova fase pós-colonial, como um pouco de atenção aos factos
nos revela, as respostas a esta questão também não têm sido
uniformes.
Num extremo, temos assistido a reacções minimalistas e
conservadoras, que têm insistido na retenção do Direito
costumeiro como parte e parcela de um património cultural
próprio valioso. O que em consequência têm redundado numa
manutenção (ou numa reconstituição) da “estrutura jurisdicional
dualista” (a expressão era a dos administradores e dos juristas
coloniais) que permitem a coexistência, em paralelo, de tribunais
tradicionais e modernos, cuja articulação se reduz a uma revisão
jurisprudencial levada a cabo de cima para baixo em meros
processos integrados de revisão judiciária: foi o que fizeram, por
exemplo, Estados recém-independentes como a Guiné-Bissau, o
Chade e o Congo, para só dar alguns exemplos dos muitos
possíveis.
Outras respostas pós-coloniais, no entanto, têm sido mais
maximalistas e menos conservadoras. Em consonância com isso,
têm algumas vezes sido levadas a cabo reformas muitíssimo mais
abrangentes. Nalguns outros Estados, o objectivo programático
explícito de unificar o sistema de organização judiciária levou
(foi o caso, por exemplo, no Gana ou no Senegal) a esboços de
tentativas de integração-unificação de diversas das regras
costumeiras substantivas em uso com as leis modernas, em
códigos únicos apelidados de “leis nacionais”.
Em experimentações mais radicais, as reformas estatais
culminaram com a abolição pura e simples de todos os “tribunais
tradicionais”: o que designadamente foi levado a cabo em

5
Moçambique e na Tanzânia, depois das respectivas
descolonizações.
Como sabemos, infelizmente nenhuma destas variantes
estratégicas ensaiadas em África foi bem sucedida.

O CASO DE ANGOLA

A situação vivida na Angola pós-independência não


escapou a este tipo de dificuldades. E talvez nunca com tanta
premência como no Planalto Central e no que diz respeito à
administração da justiça em territórios de implantação de grupos
umbundos. A conjuntura regional sofrida não é para menos. Na
maioria dos casos, trata-se populações que, durante anos,
viveram sob o controlo a um tempo militar e indirecto da
UNITA, em regimes político-administrativos sui generis que
aliavam um domínio estrito e estreito de pessoas e grupos com
uma enorme margem de autonomia local por subsidiaridade, por
assim dizer10. O grosso das gentes foi vítima de arbitrariedades
sistemáticas às mãos de uns e outros dos agrupamentos
fortemente armados que iam ocupando ou cruzando o território:
de chacinas, a mobilizações forçadas, passando por roubos,
raptos, violações e queimas públicas de “bruxas”, houve de tudo
um pouco. A concentração de agrupamentos deslocados dos seus
lugares de origem e acumulados em campos de refugiados em
condições de uma precariedade indizível atingiu o auge em 2002;
calcula-se em quatro milhões o número de refugiados existentes
nesse último ano em Angola, a maior parte dos quais nesta região
central do país.
Consequências não se fizeram esperar: tanto a pluralidade
dos domínios jurídicos existentes, como a presença e vigência de
referenciais culturais particulares foram por tudo isso
potenciados. Uma qualquer noção de uma “lei geral”, ou uma
verdadeira “organização judiciária” que recobrisse todo o
território e alcançasse todas as populações (ambas realidades em
10
Para uma descrição detalhada da organização político-administrativa e judiciária das
“terras livres de Angola” (nome dado pelos próprios às regiões, essencialmente “regiões
militares” e de geometria variável sob controlo da UNITA), ver A. Marques Guedes (2003,
op. cit.). para uma perspectivação alternativa menos detalhada, e muito partisanne, ver
Nelson Pestana (1999).

6
todo o caso de geometria variável, dados os vai-vens típicos da
violenta situação de guerra que durante anos a fio assolou a
região), nunca foram mais do que um sonho distante.
O fim da guerra, com a morte de Jonas Savimbi em
Fevereiro de 2002, e a consequente rápida celebração do famoso
Memorando de Entendimento para a Paz, composto em início-
meados do mesmo ano, na sequência da efectiva vitória militar
do partido do poder, o MPLA, veiram alterar tudo isso. Ou, pelo
menos, viabilizou ao Estado angolano pós-colonial, quanto mais
não seja em princípio, lograr tentar fazê-lo. A “reposição” do
controlo governamental (na expressão localmente utilizada)
significou a possibilidade de uma extensão às antigas “terras
livres de Angola” (o termo usado pela UNITA para as fatias do
país sob sua ocupação) da administração estadual da justiça.
Mas não soletrou muito mais do que essa mera
possibilidade. A administração estadual angolana, e porventura
em particular a relativa ao âmbito da justiça, está mal equipada 11.
As com unidades “tradicionais” umbundo, habituadas a uma forte
clausura sobre si mesmas e vítimas de prepotências quantas vezes
brutais dos sucessivos “outsiders” que os pretendem tutelar,
tendem compreensivelmente a não encarar com bons olhos as
intervenções provindas do “exterior”. Os agrupamentos
existentes, seguindo aliás os modelos umbundo tidos como
imemoriais, parecem mais preocupados com a sua salvaguarda
enquanto comunidades e com o reatamento dos relacionamentos
sociais normais do que a aplicação de uma justiça externa, cega e
tida como abstracta. A tendência, por tudo isso, é para que a
maioria dos conflitos que eclodem sejam vistos como “privados”,
no sentido em que são considerados como devendo relevar da
estrita competência das próprias comunidades locais.

AS FORMAS “TRADICIONAIS” DE RESOLUÇÃO DE


CONFLITOS EM ANGOLA

11
Para um estudo recente, ver o trabalho redigido e publicado pela Comissão dos Direitos
Humanos da Ordem dos Advogados de Angola (2001), intitulado Diagnóstico Preliminar
sobre o Sistema de Administração da Justiça – perspectiva estático-estrutural.

7
No estudo relativo ao pluralismo jurisdicional em Angola,
interessa-me, essencialmente, esmiuçar alguma das estratégias
sociais que as comunidades angolanas “espontaneamente” criam
para dar resposta às situações de conflito que surjam e que, por
uma ou outra razão, não sigam os trâmites das instituições do
Estado12.
Tal ocorre, por vezes, por opção dos actores sociais
envolvidos. Noutros casos, porém, não está em causa nenhuma
escolha, mas o desenrolar das coisas resulta antes o facto de que
as estruturas estatais pura e simplesmente não chegam a todo o
território13: uma vez que a administração local do Estado, em
Angola, por via de regra apenas funciona até ao nível da
Comuna, deixando de fora território e população que
correspondem às Povoações das áreas rurais e aos Bairros das
zonas urbanizadas. E, quando chega (o que é raro), nem sempre
se lhe reconhece uma real legitimidade. Por outras palavras:
muitas vezes, o recurso a instâncias tradicionais manifesta uma
situação concreta de “pluralismo jurídico” em que os actores
sociais se vêem envolvidos; noutros casos, porém, aquilo que
está em verdadeiramente causa é uma simples ausência do
Estado, mesmo onde e quando ele possa ser desejado e
procurado. Ao defrontar a primeira destas circunstâncias, os

12
Cabe aqui um breve comentário. A existência em Angola de mecanismos alternativos de
realização de justiça é uma das principais causas de afastamento das pessoas em relação aos
tribunais. Em muitos casos, o recurso a dispute institutions “tradicionais” reflecte a
desconfiança dos actores sociais envolvidos numa qualquer quesília relativamente às
instituições estatais; em muitos casos, o recurso aos tribunais é mesmo considerado uma
“afronta”, porque segundo uma representação comum entre muitos angolanos, os conflitos
devem poder, ou ser resolvido pelas partes, sem necessidade de um tertius que se torne
parte envolvida, ou ver-se sujeitas a uma “, mais ou menos formalizada, de “mais velhos”,
notáveis, ou “chefes tradicionais” (estas classes não são necessariamente mutuamente
excludentes). Por outras palavras, muitos angolanos operam uma distinção entre o
“domínio público” e o “privado” (no seu sentido mais amplo) que não coincide
necessariamente com a do Estado.
13
Como é decerto bem sabido, a administração da justiça estadual (chame-se-lhe assim),
está ausente da maior parte do território nacional angolano: neste momento (inícios de
2003), só funcionam em Angola doze Tribunais Municipais em 164 Municípios, a grande
maioria do pessoal dos serviços de justiça está sediada em Luanda e o sistema judiciário
angolano é ainda muito centralizado e concentrado. Recordando o Relatório Preliminar do
Estudo de Identificação e Viabilidade... op. cit., p. 28, à distância física das instituições
estatais de administração da justiça junta-se a distância psicológica em populações que, por
razões de vária ordem, não configuram sequer a possibilidade de recorrer a um sistema
judiciário formal, alheio à sua realidade.

8
angolanos escolhem entre alternativas; ao confrontar a segunda,
resignam-se por uma qualquer alternativa que esteja disponível.
O primeiro grupo de casos é aquele a que aqui irei dar
atenção. É por isso exclusivamente sobre um exemplo ilustrativo
(embora se trate de uma ilustração porventura atípica) desse
pluralismo que me irei debruçar neste artigo. Num longo trabalho
monográfico que redigi em co-autoria com um grupo de docentes
de Direito angolanos e de estudantes (na sua maioria
doutorandos) da Faculdade de Direito da Universidade Nova de
Lisboa, descrevi as estruturas organizativas, estaduais ou infra-
estaduais, do poder judicial em Angola14. No presente artigo, irei
tentar pôr em relevo algumas das maneiras como os actores
sociais vão buscar a um conjunto de regras, ou tão-somente de
práticas, próprias e consuetudinárias (práticas e regras nas quais
o “jurídico”, o “político-social” e o “religioso”
caracteristicamente se confundem, ou pelo menos se
entrecruzam) uma resposta para os problemas, tensões ou
conflitos (inter-pessoais ou inter-grupais), que de alguma forma
os afligem.
Interessar-me-á, naquilo que se segue, descrever alguns
dos mecanismos deste tipo utilizados em Angola. Mecanismos
esses que, embora em última instância possam ser encarados
como estando direccionados para a realização de uma justiça
material, se distinguem pelo seu carácter muito local, pelo
informalismo das suas características, e pelo seu suporte na
religião, na organização social e no parentesco15.
14
Nomeadamente em A. Marques Guedes et al (2003, op. cit.). Toda a segunda parte desse
estudo foi dedicada a essa organização, às “formas híbridas” de resolução de litígios, e aos
meios alternativos que as suplementam.

15
Antes de partir para um breve esboço de análise dos casos específicos de realização da
justiça material através de formas tradicionais e, em muitos casos, não estatais, convém
fazer uma referência, sumária mas substantiva, ao papel desempenhado por algumas
organizações não governamentais (ONG´s) tanto durante o período da guerra como no
presente entre as forças governamentais e a oposição do Galo Negro. Embora muitas ONG
´s trabalhem em Angola, existem poucas verdadeiramente angolanas, das quais se destacam
a ADRA (Acção para o Desenvolvimento Rural e Ambiente) e a Cruz Vermelha Angolana,
muito embora a primeira não seja reconhecida pela UNITA, que a acusa de ligação estreita
ao Governo (na verdade, o sucesso ou insucesso da actividade destas organizações junto
das populações depende, em grande parte, da independência e imparcialidade que consigam
manter e demonstrar relativamente ao poder político). Já no que tange às ONG´s
internacionais (como a Africare, a World Vision, a Catholic Relief Services, a Caritas e a
Save the Children), a verdade é que raramente elegem as bandeiras da paz e da
reconciliação junto da sociedade, por receio de ganharem a inimizade dum lado e do outro
e, por consequência, com medo de verem negados o seu acesso e a liberdade de exercer a

9
Do ponto de vista do Direito, as instâncias tradicionais de
justiça e os “direitos consuetudinários tradicionais” (expressão
aqui sinónima de formas tradicionais encontradas para dar
resposta aos conflitos emergentes) que regulam as relações
sociais são, com efeito, elementos fundamentais da sociedade
angolana. Como sublinhei, são-no em parte pela falta de presença
do Estado e das suas instituições em grandes fatias do território,
em parte também pela “distância nocional” muitas vezes
existente entre as instituições do Direito positivo formal e as
instituições tradicionais. A situação é potenciada pelo facto de
estas instituições serem em muitos casos tidas pela população (e
por muitos dos responsáveis governamentais angolanos) como
sendo entidades de algum modo “anteriores ao poder do Estado”
(embora, como irei sublinhar, tal formulação me suscite algumas
dúvidas) e às quais “ainda” se deve “por isso” reconhecer um
papel importante no quadro global da administração do território
e das populações16. Uma questão complexa, que discuti noutro
lugar17.
Acrescente-se a isto o facto de que objectos conceptuais e
institucionais como o de “justiça tradicional” são particularmente
difíceis de circunscrever, dada a sua natureza cambiante, e as

sua actividade em determinadas zonas do território angolano. Todavia, alguns esforços têm
sido dispendidos no sentido de reconciliarem as duas partes do conflito angolano,
assumindo as ONG´s, por diversas ocasiões, as funções que ao Estado competem e
ganhando, dessa forma, maior legitimidade junto das populações (e diminuindo a
dependência destas face ao Estado). De entre eles, destacam-se: promover o contacto e a
interacção entre as facções contrárias, utilizar os media como veículo de transmissão das
ideias de paz, organizar conferências e debates com a temática da resolução do conflito,
promover estudos nesse sentido, treinar mediadores independentes capazes de arbitrar as
disputas existentes, fomentar o desenvolvimento económico, etc..
16
As principais funções das instituições do poder dito tradicional são, em Angola,
basicamente, as seguintes: o estabelecimento de ligações com os antepassados, a
concentração dos poderes mágico-religiosos, a administração da justiça no seu território, a
gestão das terras (tanto no que toca ao seu uso, como conflitos em torno da sua
“propriedade”, ou dos critérios da sua apropriação), a gestão da vida comunitária, a defesa
da população sob seu controlo, o estabelecimento de normas sociais e “jurídicas”, o
recrutamento de jovens para o exército, a construção e manutenção de infra-estruturas, a
gestão das relações com os numerosos agentes externos (Estados, ONGs, agentes
económicos, partidos políticos, etc.), a representação das suas comunidades e a
intermediação na ligação das mesmas com o Estado.
17
Mais uma vez em A. Marques Guedes et al (2003, op. cit.), no prelo. Nesse estudo
monográfico de fôlego, são esmiuçados em pormenor muitos dos problemas empíricos,
formais e informais, jurídicos e políticos, tanto dessas representações ideológicas como da
mecânica de articulação entre a administração periférica do Estado, ao nível local, e os
“poderes tradicionais” aí instalados.

10
dificuldades analíticas com que deparamos aumentam
vertiginosamente. Na verdade, a justiça tradicional está (em
Angola, como em toda a parte) sujeita a fortes rupturas e a óbvias
descontinuidades. Vê-se, ademais, muitas vezes deslocada
espacial e geograficamente, sendo remetida para zonas distintas
das dos seus lugares de origem (devido, nomeadamente, a
migrações internas, sejam elas o resultado de fluxos de
refugiados de guerra, sejam consequência de simples êxodos
rurais de motivações mais puramente económicas). Além disso, o
facto de existirem no território do país variadíssimos “direitos
consuetudinários” (como reflexo da realidade ricamente
multicultural e densamente pluriétnica de Angola) tem tido como
consequência fusões que resultam de uma mistura desses Direitos
tradicionais muitas vezes tão diferentes uns dos outros.
Não é tudo. Junta-se-lhe a dimensão sociológica própria
desses Direitos. Muitas das populações angolanas, sobretudo
aquelas que se encontram instaladas em áreas periféricas e rurais,
estão profunda e profusamente marcadas por uma consciência de
interdependência e coexistência mútuas (representações essas
que pesam na imagem que constróem daquilo que é a
“sociedade” em que participam); e pautam-se também pela
convicção de uma co-existência, que têm por antinómica, entre
um mundo visível e um mundo invisível (sendo este último
considerado como a fonte de toda a autoridade e um instrumento
tradicional para o sancionamento de actos considerados, a um
tempo, transgressões do que chamaríamos o Direito e a religião).
Uma das principais fontes de autoridade e legitimidade do
“direito tradicional” angolano são as crenças religiosas e os
rituais comunitários. E estes #direitos” são sempre encarados
como incorporando uma forte dimensão “política” (fazendo-o,
aliás, em vários sentidos).
Com todos os riscos de simplificação que generalizações
sempre acarretam, não será excessivamente abusivo asseverar
que, em tais grupos sociais, a comunidade social (ou “tribal”, se
se preferir o termo vernáculo, de adequação e utilidade
duvidosas) tende a ser considerada como uma sucessão contínua
e infinita de gerações, onde vivos e mortos coexistem; pelo que o
“direito da comunidade” (ou, pelo menos, a regularidade das suas
práticas) é por via de regra concebido como uma herança
provinda dessa cadeia infinda de gerações; e os rituais e as

11
cerimónias sagrados são em consonância com isso encarados
como formando uma parte inseparável do todos e de quaisquer
processos sociais, mesmo aqueles de “incidência jurídica”.
A fundamentação para este tipo de representações
partilhadas é simples de compreeender. Trata-se sociedades em
que as relações sociais de cada indivíduo não são pensadas como
as de um homem isolado, e nas quais por conseguinte ideias
como a de uma “personalidade jurídica” estão condicionadas pela
pertença a um entidade grupal e ao estatuto social (e até ao
recorte nocional da noção de “pessoa” e “indivíduo”) daí
resultante. O que, naturalmente, não deixa de se reflectir nas
formas de propriedade reconhecidas, e até na natureza daquilo
que é tido como susceptível de apropriação.
O “sistema jurídico” tradicional reporta-se, em
congruência com esse tipo de representações, aos problemas da
comunidade. E resolve-se, frequentemente, em diferentes níveis:
por um lado, a resolução dos conflitos faz-se publicamente (todas
as matérias pessoais controvertidas são tidas como sendo do
interesse da comunidade, dando lugar a discussões públicas em
que todos participam, embora haja sempre a pretensão de
resolver os problemas antes de estes se tornarem públicos); ou
seja, a linha divisória entre o público e o privado é traçada de
forma específica e sui generis. Por outro lado, desses
constrangimentos resultam implicações interessantes. Os
“direitos de propriedade”, por exemplo, não são nesse tipo de
formas de organização social por via de regra concebidos como
pertencendo a uma só pessoa, por exemplo ao chefe da aldeia ou
da família: tendem a ser antes pensados como pertença de toda
ou de parte, da comunidade, representada por esse indivíduo e
que nele deposita a responsabilidade desses direitos18.
Naquilo que acabei de afirmar, limitei-me a esquissar (com
todos os riscos de simplificação e reducionismo que isso acarreta,
repito) uma delineação genérica e tão-só formal da juridicidade
“tradicional”. Mas as dimensões sociológicas próprias destas
representações e práticas tradicionais têm também e ainda
consequências a um nível mais processual. Consistente com a
ideia subjacente de que são infracções especialmente graves
18
Para um estudo clássico deste tipo de “sistema” na África austral, ver a monografia de
John Comaroff e Simon Roberts (1981), relativa à “padronização-construção cultural” da
emergência e da resolução de conflitos num agrupamento do Botswana.

12
todas aquelas que ponham em perigo a própria comunidade (ou
uma sua parcela), a sua resolução-encaminhamento devem
igualmente tomar esse facto em linha de conta; pelo que o
“decisor do conflito” (seja este intitulado um chefe de linhagem,
ou um chefe da terra, para só darmos dois exemplos) não tem
muitas vezes por missão uma mera aplicação de um “direito”;
mas visa antes e também a reconciliação das partes.
Fá-lo com a preocupação omnipresente de produzir os
efeitos da sua decisão no futuro das mesmas; e com o intuito de
repor o normal funcionamento do tecido social através de uma
resolução negociada, que todos possam acatar19.

A RESOLUÇÃO-ENCAMINHAMENTO DE CONFLITOS E
AS “AUTORIDADES TRADICIONAIS” EM ANGOLA

No Planalto Central angolano, tudo aquilo que apresentei


como quadro geral africano de uma ou de outra maneira se
verifica. Embora nem sempre existam entidades (as chamadas
dispute institutions) bem definidas como formas tradicionais de
resolução de conflitos (tal como, aliás, acontece nos casos de S.
Tomé e Príncipe e Cabo Verde), é possível descobri-las muitas
vezes, tanto em meios urbanos como em meios rurais. Tanto num
como noutros destes meios, em muitos casos, a via dos tribunais
estatais parece, para muitos dos actores sociais angolanos, ser o
caminho “mais idóneo” (tanto em termos de eficácia, como nos
de “modernidade”) para o encaminhamento dos seus “litígios”20.
Não são, porém, difíceis de encontrar exemplos e instâncias em
que prevalece um maior envolvimento das estruturas sociais
locais e “tradicionais”, nos quais a resolução dos conflitos

19
Um exemplo de um trabalho monográfico empreendido desta perspectiva, é o do estudo
de Lawrence Rosen (1989) sobre os tribunais cádi no Marrocos de hoje.
20
Embora não me tenha esquecido da frase do então (Setembro de 2002) Bastonário da
Ordem dos Advogados, Manuel Gonçalves, de que “a percentagem de litígios que chegam
aos tribunais é ínfima”. Mesmo em cidades como Luanda. Em parte, isso deriva do facto de
também nalgumas cidades angolanas existirem sobas que para elas se deslocaram durante
períodos de êxodos rurais maciços com as suas populações - nos musseques de Luanda,
existem ainda sobas e sobetas, por exemplo na Kazenga, na Comuna Hoji Ya Hende, e na
Maianga, Kikolo, Comuna Rocha Pinto.

13
assume uma dimensão familiar (com recurso aos mais velhos,
por exemplo, ou ao “anciãos” linhagísticos).
Equacionada nestes termos, a situação pode parecer
simples. Nada disto, no entanto, é linear. Um momento de
atenção crítica mostra-nos porquê. Muitas das autoridades
tradicionais angolanas21 herdaram o seu estatuto do tempo
colonial. Outras, são de cepa mais recente. Algumas legitimaram
a autoridade que tinham por terem resistido às influências do
Estado colonial e da guerra. Há também as que, ao invés,
colaboraram com essas mesmas autoridades; destas algumas
souberam manter o poder que detinham, outras não. Estes são os
casos de muitos régulos, regedores (que tiveram importantes
funções no âmbito do desenvolvimento social e se situavam num
plano intermédio entre a comunidade a que pertenciam e o
Estado central) e sobas.
Sem querer incorrer em reducionismos simplificadores,
cabe aqui dizer que o termo soba é comummente utilizado para
denotar os chefes tradicionais de muitos os agrupamentos sociais
tradicionais existentes em Angola. A importância, o peso, e o
acervo de “competências” que têm, variam de grupo para grupo
e, em cada um destes, têm vindo a sofrer transformações, muitas
vezes de monta. Trata-se, por norma, de entidades que gozam de
poderes amplos como “representantes” dos poderes “temporais”
e “espirituais” reconhecidos pelas populações que “tutelam”, e
são muitas vezes “chefes” tidos como de algum modo
responsáveis pelo regular funcionamento das instituições
políticas locais. Além disso, têm por via de regra poderes para
resolver todos as questões conflituais que lhes forem
apresentadas.
Tende em Angola a haver, no entanto, a percepção de que
nem todos os casos são da competência destes sobas: quer dada a
sua gravidade (mais uma vez há aqui inúmeras variações, mas
21
De acordo com o Estudo sobre a Macro-Estrutura da Administração Local, realizado, em
2002, pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), sob a
superintendência do Ministério da Administração do Território, os recentes debates (de que
demos eco na primeira parte desta monografia) à volta do poder tradicional e das suas
instituições questionam a sua legitimidade, representatividade, os títulos, as funções, o
território de jurisdição, a autonomia, o poder de decisão e as relações delas com o Estado.
Relativamente à legitimidade, põem-se em causa os costumes sucessórios e a ligação de
descendência das autoridades tradicionais dessas “autoridades” em relação aos chefes
ancestrais. Quanto ao poder de decisão, contesta-se a acumulação, na autoridade
tradicional, dos poderes executivo, normativo e judicial, sem a existência de quaisquer
verdadeiros e eficazes mecanismos de moderação.

14
para casos mais graves, tende a haver a ideia de que as entidades
estatais deverão ser chamadas a intervir); quer pela dimensão
sobrenatural que neles possa existir (casos em que se se
considerar que o soba não pode intervir, é muitas vezes o
curandeiro e adivinhador – o termo genérico angolano para estas
entidades é o de kimbanda, muitas vezes uma espécie de
“conselheiro espiritual” do soba22 – que o faz). Em muitos casos,
como vimos, devido à guerra e à falta de recursos financeiros,
sobretudo fora das grandes cidades e no interior, o sistema
judicial formal-estatal não funciona e as formas tradicionais de
solução de conflitos constituem verdadeiras alternativas no plano
da administração da justiça23.
Como asseverei, as diferenças a este nível verificadas em
Angola são muitíssimas. No sul e no sudeste do território
angolano, por exemplo, os sistemas de organização social são
muitas vezes pouco complexos, e por isso neles as chefaturas não
assumem papéis importantes, ou são mesmo inexistentes.
Nalguns outros casos (vários deles no Planalto Central, tal como,
aliás, no noroeste do país) os sobas estão organizados em
autênticos “reinos”, profundamente hierarquizados. Diversos
grupos etnolinguísticos locais de Angola apresentam níveis de
integração política que os colocaria algures entre estes dois
pólos.

22
Como referi, estes chefes têm denominações (e é-lhes reconhecido um acervo de poderes)
diferentes consoante as áreas em que estão estabelecidos: chamam-se assim, por exemplo,
ohamba, no Cunene; totela, no Zaire; mfumu nzi, em Cabinda; soba, em toda a região
ambundo - Luanda, Malanje, Kwanza-Norte; dembo, no Bengo. Para apenas detalhar a
abrangência semântica de um destes termos: chamba significa (a tradução é
inevitavelmente uma traição abusiva) “o dono da terra”, mas o seu verdadeiro poder era
governar a kanda (agrupamento de pessoas que possuem um território comum) e resolver
todos os conflitos que surgissem entre as comunidades, entre as kanda ou entre as mikunda
(Províncias). Além disso, era também o chefe máximo da guerra, era ele que chamava a
chuva e organizava a defesa de todo o seu território contra as invasões dos estrangeiros.
23
Mutats mutandis podemos afirmar em relação a Angola aquilo que G. J van Niekerk
(1995: 84) asseverou a respeito de uma questão semelhante quanto à Namíbia e à África do
Sul: unofficial dispute resolution has been the norm in [...] metropolitan areas in South
Africa for as long as these areas have existed. Official legal institutions have been regarded
to be of secondary importance, seemingly because their inability to satisfy the community’s
sense of justice. This was the position not only in urban areas. In rural areas the very first
magistrates’ courts were widely dispersed over large areas. Because of a lack of policemen
or troops, they were not able to enforce the [...] official law imposed on the indigenous
people, nor curb the influence of the unofficial traditional courts. Em Angola, a situação de
guerra vivida foi um motivo suplementar para uma vitalização das dispute institutions
tradicionais.

15
No que toca ao estudo destas chefaturas e das suas
“competências jurisdicionais”, no presente artigo limitar-me-ei a
esboçar três passos preliminares. Primeiro (e aqui restrinjo-me a
uma recomendação genérica), tento encaminhar o leitor para os
(poucos) trabalhos publicados neste domínio. Em segundo lugar,
farei alusão a duas recolhas de dados que logrei levar a cabo em
duas longas conversas com outros tantos “informadores” de
eleição: os “reis” do Sambo e do Bailundo, com quem estivemos
no Huambo. Primeiro para um desses casos e depois para o outro,
exponho aquilo que me foi dito em relação às dispute institutions
locais24. Na subsecção deste artigo que se segue a essa, como
terceiro e último passo irei fazer alusão aos mecanismos
utilizados num campo de refugiados dessa região centro-
angolana, o campo Casseque 3, para a resolução de muitos dos
“litígios” que aí eclodem. Concluo com algumas considerações
de índole geral e teórico.

A RESOLUÇÃO DE CONFLITOS NO SAMBO E NO


BAILUNDO

O rei (o soba dos sobas) do Sambo, com quem tive


oportunidade de trocar impressões, falou-nos da “estrutura
administrativa e judiciária” do território que tutela: chama-se
Cipriano Kaningi, controla 48 embalas (“cortes”), tem 21
conselheiros (os sekulos), cada um deles ocupando um lugar
atribuído em função do seu nascimento, e responsáveis pela
comunicação do “reino” com as instâncias estaduais. É Cipriano
Kaningi que tem o poder de fazer chuva e que comunica com os
outros sobas e os seus sekulos, através de mensageiros.
Segundo Cipriano Kaningi, existem três níveis de
resolução de conflitos no território sambo, julgando-se neles as
matérias em função da sua gravidade e, portanto, em função da
sua incidência no todo da comunidade: começando pela
24
Quero aproveitar para manifestar aqui a minha gratidão tanto aos dois líderes que (um de
cada vez, para evitar melindres protocolares) connosco passaram uma manhã inteira, como
ao notável Dr. Paulino Máquina (por quem todos ficámos com forte admiração e respeito,
pela sua simpatia e sabedoria), que pacientemente nos serviu de intérprete durante horas a
fio. Sem a sua ajuda, a disponibilidade de Augusto Cachitiopololo, de Cipriano Kaningi e
de António Pinto, a recolha destes dados não teria sido possível.

16
“instância mais baixa, temos assim, em primeiro lugar, o nível
dos sekulos (os conselheiros) que funciona como a instância de
base e que julga, sobretudo, roubos; no segundo lugar está o nível
dos sobas, no qual são julgados, por exemplo, os casos de
infidelidade das mulheres; em terceiro e último lugar está o nível
do rei, a instância máxima, na qual se resolvem, essencialmente,
os crimes de traição e todos os que atentem contra a organização
social tradicional da comunidade25.
Quanto ao “julgamento” (ekanga) dos casos, este processa-
se da seguinte forma: os crimes são participados à “instância”
que vai julgar; esta convoca as partes; são ouvidos os
conselheiros (que analisam o peso das acusações, ponderam os
argumentos apresentados pela defesa e dão parecer sobre a
sentença a aplicar); são mobilizadas testemunhas de defesa
(ocyame) e de acusação (epindikiso); e só depois o “presidente do
‘tribunal’” (muenlekanga) decide, tentando alcançar, muitas
vezes por negociação, um acordo que as partes aceitem de livre
vontade.
Falei, também, com o rei do Bailundo, Augusto
Cachitiopololo. Na também muito detalhada conversa que com
ele tivémos, Augusto Cachitiopololo descreveu a administração
da justiça no seu território. Trata-se de uma configuração geral no
todo muito semelhante à anterior (ambos os grupos
etnolinguísticos que estes “reis” representam– Sambos e
Bailundos – são falantes de Umbundo), ainda que com algumas
particularidades: este rei tem 122 sobas sob a sua égide, na
Província do Huambo; outros na do Bié.
Em território bailundo, ao que me foi dito, casos de roubo
e infidelidade são julgados pelos sobas; os conflitos no seio dos
sekulos são resolvidos por eles mesmos, sendo a acusação feita
pelo representante legal do soba (excepto quando considerem
que lhes falta capacidade ou competência para isso, caso em que
são os próprios sobas que julgam); a competência para o
julgamento de conflitos é de tal modo definida, que, quando um
25
De acordo com um estudo feito por Raúl David sobre a administração da justiça no
território dos Umbundo (Da Justiça Tradicional nos Umbundos, 1989, Instituto Nacional
do Livro e do Disco, pp. 37 e ss.), são crimes considerados graves a mulher encontrada em
flagrante delito de adultério, a violação de menor ou de mulher casada, a bruxaria e
feitiçaria, o incêndio provado, o roubo de bens e gado e o assassínio. Por outro lado, os
delitos mais comuns são a sedução e rapto de mulher casada, a calúnia e a difamação
(ofensa à moral), as ofensas corporais e os litígios respeitantes à delimitação de
propriedades.

17
determinado caso é julgado por órgão incompetente, este é
sancionado pela “instância” imediatamente superior; antes (não
ficou claro quando), quem matasse era julgado e condenado a
pagar uma multa à família do morto (ou, no caso de insolvência,
a trabalhos forçados), enquanto que hoje o condenado (apiswa) é
detido num njangu26 e levado à polícia ou ao administrador; o
“julgamento” faz-se, muitas vezes, através de adivinhação levada
a cabo por um kimbanda27.
Conforme foi referido, também nas cidades é possível
encontrar sobas que para aí se deslocaram com as suas
populações, durante o período da guerra.

OS CONFLITOS E A SUA RESOLUÇÃO NO CAMPO DE


DESLOCADOS CASSEQUE 3, HUAMBO

Além de se fixarem nos musseques, dentro das cidades ou


seus arrabaldes, é também verdade que muitos sobas inicilamente
se estabeleceram nos campos de refugiados, desempenhando,
longe das suas terras de origem, as funções que sempre se lhes
reconheceu. Raramente, porém, ao que nos foi dito, o fizeram por
muito tempo. Muitas vezes, os sobas, dotados tanto de meios
económicos próprios como de ligações políticas e familiares
extensas e activas, preferiram instalar-se em meios urbanos ou
peri-urbanos em que as condições de vida são mais fáceis: a
maior deles partiu assim há muito para Luanda.
Nesses outros casos, o papel “judicial”, tradicional nos
sobados, é preenchido por outras entidades. Essa é a situação
com que deparámos no “Campo de Deslocados de Guerra”,
localizado a uma trintena de Quilómetros da cidade do Huambo,
que em finais do último Verão tivemos a oportunidade de visitar.
Na viagem que fizemos ao Huambo, deslocámo-nos ao campo de
refugiados Casseque 3 (um centro que, até três meses antes,
26
Uma construção circular, sem paredes e com telhado de capim ou adobe, em cujo interior
se sentam e congregam os co-residentes num agrupamento. Com poucas variações,
constitui, em numerosas regiões da África subsaariana, o ponto de encontro e discussão
tradicional para questões de “índole pública”.
27
Uma dessas formas é a do juramento por veneno: no auge do conflito, uma das partes
dirige-se ao kimbanda e o acusado aceita beber o mbulungu; o acusado bebe a dose de um
só trago; se for culpado, fica com dores de estômago e cai morto, ante a comoção e a
revolta dos familiares que o cercam; se não for culpado, resiste aos efeitos do veneno e é
assistido pelo kimbanda, ficando então ilibado da acusação.

18
contara com cerca de 2500 refugiados; mas o qual, em Agosto de
2002, muitas das pessoas tinham já lentamente abandonado,
saindo de regresso às suas terras).
Aí tivemos o gosto de conhecer António Pinto, um homem
jovem e muitíssimo afável, destacado pelo Governador (trata-se
de um militante do MPLA) para coordenar a “área cultural” do
campo. Aquilo que se segue resume a longa conversa que com
ele tive (juntamente com três membros da minha equipa que
comigo aí se deslocaram) e que contou com a presença de
numerosos residentes locais que se nos associaram num njangu.
Nesse campo de refugiados que visitámos (e onde a
organização certamente, ao que nos foi dito, não será muito
diferente da dos restantes), estiveram até há bem pouco tempo
sobas, responsáveis não só pela comunicação com as autoridades
estatais (os Delegados Provinciais, por exemplo), estabelecendo a
ligação entre a “comunidade” e o Estado, e assegurando também
a disciplina das populações tão duramente congregadas.
A fazer fé no que nos foi dito, o formato desses “tribunais”
não terá diferido muito das formas canónicas tradicionais na
região. Ao que nos foi narrado, quando surgiam conflitos, o soba
reunia com os sekulos num dos njangu do Casseque 3, onde a
história da desavença ocorrida era “contada por mais velhos”,
“representantes” das “partes”. Estas, porém, não intervinham.
Eram ouvidas logo a seguir as testemunhas de defesa (ocyame) e
de acusação (epindikiso). E só depois o soba , enquanto
“presidente do ‘tribunal’” (muenlekanga) decidia, tentando
alcançar, muitas vezes por negociação, um acordo que as partes
aceitassem de livre vontade.
Segundo nos foi confiado, com a partida dos sobas do
campo (o que cedo ocorreu, dados contactos e meios materiais
que estes possuíam), deu-se uma sua substituição pelo
“responsável cultural” local do MPLA, o já referido António
Pinto. Este último explicou-nos que sempre fazia questão de
cumprir à risca o formato “tradicional” acima descrito, que antes
os sobas tinham utilizado. Mas introduzira algumas alterações-
acrescentos ao processo.
Os conflitos mais comuns em Casseque 3, segundo o
representante do Governo que connosco conversou, são
facilmente tipificáveis. Resultam, na larguíssima maioria dos
casos, de um de três “tipos de ocorrência”: ora de infidelidades

19
conjugais entre os residentes, ora de acusações recíprocas de
feitiçaria, muitas vezes no seio de uma família de deslocados, ora
ainda de roubos a aglomerados residenciais da vizinhança do
campo.
Também as penas, ao que parece, estão bastante
estandartizadas. A maior parte dos conflitos (fossem eles
originados por infidelidades28, feitiçaria29, roubos30, ou
bebedeiras), António Pinto (tal como antes dele os sobas) decidia
por norma multar o acusado, podendo essa multa consistir numa
mera proibição (de fazer feitiço, por exemplo), ou redundar num
pagamento pecuniário, ou na prestação de um determinado
serviço, ao lesado.
Quando António Pinto (e, antes dele, um soba) não
conseguia resolver um qualquer conflito (ou porque este
apresentava grande complexidade, ou porque não estava na posse
de todos os elementos, ou porque se tratava de situações de
extrema gravidade, como homicídios31), era por todos tido como
lícito recorrer às autoridades oficiais para o julgamento dos
casos. O que então era feito.
Mas regressemos às inovações processuais introduzidas
por António Pinto. Ao que nos foi com digna sobriedade relatado
28
Curiosamente este rol de ilícitos não parece diferir muito daquilo que terá sido
historicamente o caso entre as populações umbundo não deslocadas. Na justiça tradicional
dos umbundo (conforme explica Raúl David, op. cit., pp. 54 e 55), as questões de adultério
são resolvidas, inicialmente, em reunião de família e só depois vão à embala. As provas
tiram-se das declarações do ofendido; o acusado raramente é interpelado; e a mulher é
ouvida, para se saber se houve sedução ou adultério consentido. Uma vez provada a culpa,
o réu é obrigado a pagar o etevo (indemnização por adultério) e, caso não o possa fazer, é
torturado e condenado a trabalhos forçados.
29
A feitiçaria (designada por wanga nas línguas Umbundo e Quimbundo) consiste por via
de regra numa agressão mística levada a cabo por um kimbanda, através do recurso aos
seus poderes especiais, quando consultado por alguém que quer agir contra outrem (é o
caso da entrega de amuletos para usar contra quem o deseja molestar e que provocam mal-
estares físicos de gravidade e intensidade variáveis, esterilidade nas mulheres, alienação
mental ou uma qualquer doença mortal). Um ataque de um feiticeiro pode consistir,
também, na acção directa através de veneno ministrado em alguém, como acontece em
alguns julgamentos para se apurar a culpa do acusado.
30
De acordo com Raúl David, op. cit., p. 53, os umbundo são ensinados, desde cedo, a
repudiar a prática do roubo, e os ladrões são sempre condenados a pagar multas pesadas
(sendo muitos deles, por vezes, torturados antes do julgamento).
31
Nos casos de assassínios, no contexto umbundo deixou de se aplicar o brocardo “olho por
olho, dente por dente” (em que o assassino era morto da mesma forma que usara para matar
a vítima), ficando o culpado obrigado a servir a família do morto, quando não pudesse
pagar com bens materiais.

20
pelo próprio, estas adições coadunuar-se-iam bem com os
modelos idealizados de uma “justiça popular” com os quais,
enquanto militante activo do partido no poder, António Pinto
comungava. Envolviam aquilo que sou tentado a caracterizar
como estando a meio caminho entre uma “consulta popular”
directa e pública, e uma sessão colectiva de “crítica
revolucionária”. Se encarado deste ponto de vista, o acrescento
processual encontrado foi uma trouvaille.
Depois de ouvidas as testemunhas, António Pinto,
inovadoramente, passava sempre a palavra a todos os presentes.
Instados a fazê-lo, estes então “criticavam, defendiam, atacavam”
e, interactivamente, sugeriam uma solução para “o caso”. Tinha
lugar assim uma espécie de consulta generalizada e semi-
informal às opiniões locais. O que não fazia parte do rol de
tradições umbundo, mas que o jovem “responsável cultural”
tivera por bem acrescentar. Só então António Pinto se sentia
legitimado na eventual decisão que tomasse. Por outro lado, essa
decisão mais facilmente seria acatada32, explicou-nos, em virtude
dessa consulta popular alargada e pública, e tomados em linha de
conta “considerandos de fundo” que permitiam aos participantes
pôr o caso em perspectiva.
Em resposta à nossa pergunta sobre o acatamento das suas
“sentenças”, António Pinto assegurou-nos ter até aqui tido um
enorme sucesso: as decisões que tomara foram “sempre”, ao que
com convicção e alguma alegria e orgulho nos afirmou,
integralmente respeitadas e cumpridas.
Não tive maneira de apurar até que ponto tal corresponderá
efectivamente aos factos.

ALGUMAS BREVES CONCLUSÕES

32
Formas compósitas deste género não são raras na África austral contemporânea. Para
uma discussão pormenorizada sobre adaptações “democráticas” a que têm sido
recentemente sujeitas dispute institutions tradicionais deste tipo no sul do Continente
africano, ver G. J. van Niekerk (1995, op. cit.: em particular pp. 84-94), em que são
equacionadas questões ligadas à progressão histórica, na Namíbia e na África do Sul, de
alguns dos mecanismos locais de articulação-compatibilização de legitimação “tradicional”
e de legitimação “democrática” dos dispositivos e processos “judiciais” utilizados.

21
Em guisa de conclusão, não quero deixar de fazer alguns
comentários gerais, no intuito de sugerir33 um mais amplo
enquadramento para as questões que a cristalização de “formas
judiciais” destas não podem deixar de suscitar. Comecemos pelo
topo. O que mais interessante se afirma no estudo dos sistemas
jurídicos africanos actuais é decerto aquilo que, ao mesmo
tempo, os torna mais refractários em relação a quaisquer
explicações simples e unitárias: a saber, o enovelar densíssimo
das múltiplas ordens normativas que neles se conjugam, um
entretecer que emerge sobre a base de uma difícil
dissociabilidade entre os ordenamentos normativos estaduais
“europeus”, de que desses conjuntos fazem parte integrante, e as
matrizes culturais locais que muitas vezes tão profundamente os
redimensionam.
Trata-se de uma indissociabilidade que muitas vezes
tendemos a subvalorizar. Tal como, aliás, tendemos também a
subestimar a importância dessa trama, desse entretecimento ou
enovelamento. Uma primeira aproximação dos fenómenos
jurídicos na África contemporânea, por muito cursória que possa
ser, revela-o porém com clareza. Com esse intuito, vale a pena
determo-nos um pouco sobre estas características da estrutura
desses Direitos.
Com esse objectivo em mente, alteremos a perspectiva:
para melhor aflorar e entrever essas características estruturais,
talvez seja útil começar a circunscrevê-las e identificá-las “de
cima para baixo”, por assim dizer, do mais para o menos geral.
Em muitos casos, porventura em larga maioria, a nível jurídico
como em muitos outros planos, tradicionalismo e modernismo
estão, nas sociedades africanas pós-coloniais de hoje, de tal

33
E tão-somente sugerir, já que não disponho de dados empíricos suficientes para mais do
que isso, visto ter sido curtíssima (de pouco mais de um dia) a minha permanência no
Huambo. Tento não especular para além daquilo que as informações recolhidas me
permitem. Parece-me me todavia indiscutível a interesse de futuras e mais pormenorizadas
investigações sobre este tipo fascinante de “miscigenização judiciária”.

22
forma entremeados34 que se torna dúbia a utilidade analítica deste
venerável par de conceitos35.
Mais uma vez, os exemplos abundam. Em largos sectores
das vidas locais e nacionais vigoram, em muitos casos, variantes
compósitas de Direitos “tradicionais”, porventura próximas dos
modelos idealizados de formas normativas “originariamente
africanas”36, mas que todavia exibem tons indeléveis deixados
pelos Direitos “modernos” e estaduais “do ocidente” com que
convivem. Na maioria, senão na totalidade dos casos, essa
interpenetração mútua dos ordenamentos em vigor é um dado
empírico impossível de contornar. É porém a um nível mais
baixo de inclusividade que esse entrosamento e essa
permeabilidade mútuas se tornam mais visíveis: em que as
interacções melhor se manifestam. São com efeito muitas e
34
“Entremeados” parece-me efectivamente ser o melhor termo. Esse ponto foi
magnificamente posto em evidência impressionística no ano já distante de 1986 por Sally
Falk Moore, jubilada em finais de 2002 como professora de Antropologia Jurídica em
Harvard, quando escreveu que: “when, at the foot of Mount Kilimanjaro, one meets a
blanket wearing, otherwise naked, spear-carrying Maasai man on a back path in the
Tanzanian bush, one notices that he has a spool from a Kodak film packet in his earlobe as
an earring plug. That earring alone is sufficient to indicate that he is not a total reproducer
of an integrated ancestral culture. His film spindle is made of extruded plastic
manufactured in Rochester, New York, his red blanket comes from Europe, his knife is made
of Sheffield steel. Dangling from a thong around his neck is a small leather container full of
Tanzanian paper money, the proceeds from selling his cattle in a government–regulated
market. The price of his animals varies with world inflation. The roads nearby have buses
with tourists. The international economy has penetrated everywhere. Ideas and information
have moved with it. All peoples live within nations and have seen the silvery side of planes
flying over their lands. The definitions of social part and social whole have changed”
(1986: 4-5). É curioso verificar que, apesar da sua aparente actualidade, isto foi redigido há
já quase uma geração. Não me parece carecer de demonstração que a generalização de
situações híbridas deste tipo a domínios como o jurídico, o político, o religioso e o sócio-
cultural, tornam difusas as fronteiras nocionais de conceitos histórico-sociológicos
“clássicos” como os de “modernidade” e “tradição”.
35
Para além de insuficiente. A invocação destes dois conceitos não deixa em todo o caso de
constituir uma excelente arena para a luta pela supremacia. Para uma exposição, muito bem
ilustrada com exemplos africanos contemporâneos, da manipulação dos ideais do
modernismo por tradicionalistas apostados em manter o seu ascendente (nomeadamente os
de matriz religiosa) e de alusão a “tradições ancestrais” por modernistas em busca e
suplementos de legitimação, ver Bernard Durand (2002, op. cit.: 246-264).
36
A expressão é de Geneviève Chrétien-Vernicos (2001), uma historiadora francesa do
Direito, e com ela pretende fazer alusão àquele Direito em vigor em África que, segundo
esta A., estará supostamente fora do âmbito do contacto colonial. Um Direito “intocado”,
por assim dizer. Perspectivas destas, em minha opinião, dão corpo a visões idílicas e
desfasadas de uma realidade empírica que se tem revelado como muitíssimo mais
compósita e complexa do que aquela hipoteticamente vislumbrada por antinomias fáceis
deste tipo. Uso aqui a expressão num sentido meramente alusivo, com alguma ironia.

23
variadas as “hibridizações” (ou “mestiçagens” se se preferir) a
que as variantes compósitas a que fiz alusão dão corpo.
Destrincemo-las. Comecemos por notar que as
interpenetrações exibidas não são unidireccionais. Por um lado, é
intuitivamente evidente que as formas socioculturais africanas
remodelam (em muitos casos profunda e radicalmente) as
importações estaduais europeias. Por outro lado, e ainda que tal
nem sempre seja tão óbvio, a presença de estruturas estaduais
também age sobre e reformata (de maneiras igualmente radicais e
profundas) as formas socioculturais existentes nos meios em que
se implantam. Um momento de atenção torna-o claro. Não é raro,
por exemplo, que conceitos transferidos para África como o de
“justiça”, o de “sistema de governo semi-presidencialista”, o de
“Boa Governação”, ou até o de “Democracia”, se vejam sujeitos
a reconfigurações locais que, muito mais do que os
descaracterizar, os re-caracterizam.
Também não é raro o recíproco e inverso: é fácil a
verificação, designadamente, de que as representações locais
relativas ao domínio genérico daquilo que o Estado apelida de
“conflitos” e da sua “resolução” (para só dar um de muitos
exemplos possíveis), se lançam numa fascinante colagem verbal
e categorial relativamente a figuras estaduais típicas, num
mimetismo notável. Este é porém um facto de que tendemos a ter
menos consciência.
Sem pretensões de mais do que aflorar de forma muito
breve e ligeira este último tema, esta segunda e menos óbvia
parcela de uma interacção mútua, podemos com facilidade pô-la
em evidência com apenas um caso paradigmático, que por
comodidade e curiosidade irei buscar a um outro dos Estados
africanos lusófonos: o do recurso a feiticeiros no decurso de
conflitos em S. Tomé e Príncipe (uma prática comum num país
onde o envolvimento dos tribunais é raro 37). Escolho este
37
Para uma discussão detalhada destas questões, ver a monografia de A. Marques Guedes
et al. (2002): sobretudo 91-121. Nesta monografia, discuti em pormenor esta e outras
questões pertinentes para uma melhor compreensão do “jurídico” no pequeno arquipélago
equatorial. Uma palavra de salvaguarda: ao utilizar neste artigo sobre Angola uma
ilustração santomense, não pretendo de maneira nenhuma sugerir quaisquer semelhanças de
fundo entre os dois casos, para além de pôr em evidência processos paralelos e
funcionalmente equivalentes de “hibridização”. Para uma desconstrução pertinente desse
estabelecimento sistemático de semelhanças entre os PALOP, ver a longa introdução
redigida por Patrick Chabal (2002, op. cit.) à sua colectânea relativa às histórias pós-
coloniais dos cinco países africanos lusófonos.

24
exemplo por razões meramente pragmáticas: a “colonização
ideológica” do “popular” e do local pelo estadual, em S. Tomé e
Príncipe, é neste domínio claríssima, não sendo precisa muita
argúcia para a fazer sobressair. O tópico genérico dos discursos
localmente entretidos no arquipélago sobre tensões sociais parece
ser, no essencial, económico-político-moral; ou relevando,
mesmo, de um vocabulário “jurídico” (e das representações nele
embebidas) que parecem ter colonizado aquilo que talvez não
seja abusivo descrever como “o imaginário e o vocabulário
sociais e políticos” utilizados naquelas ilhas.
A incorporação sistemática deste vocabulário e desta
imagética é, com efeito, de uma evidência notória 38. São os
próprios termos crioulos (ou portugueses) utilizados pelos
santomenses no contexto de disputas interpessoais e inter-grupais
em que são mobilizados feiticeiros e feitiçaria que o traem: pagá
devê, dever, pagamento, contrato, sentença, castigo, disprezo,
xicote, vingança, preso, justiça, mestre, paço do mestre, etc., (são
estas as expressões “canónicas” e “tradicionais”, de algum modo
vernáculas, utilizadas no arquipélago) são vocábulos que
obviamente nos remetem para metáforas alusivas a
subordinações económicas e à dominação política39.
O fundamentos desta miscigenação, como lhe chamei, são
assim tornados nítidos. E são-no, alego, neste exemplo
santomense como também, mutatis mutandis, no muito diferente
(mas não totalmente alheio) caso angolano que antes descrevi
com o detalhe que por ora me foi possível. Os vocábulos

38
Em S. Tomé e Príncipe, esta “mestiçagem” verifica-se também em planos muito mais
macro, configurando aquilo que apelidei de “um complexo de alheamento-mimetismo” (op.
cit.: 21), que subtende as relações entre Estado e sociedade civil. Prediquei aí esse
complexo no que chamei as renitências e resistências da população face à natureza de um
poder (sucessivamente esclavagista, “de plantação”, autoritário e, mais recentemente,
totalitário) como aquele que os santomenses comuns tiveram de defrontar até à instauração,
em 1990, da 2ª República pluripartidária.
39
E, ao que tudo indica, não se trata apenas uma questão terminológica. Tanto quanto
consegui apurar, muitas das práticas “tradicionais” santomenses recorrem a um marcado
mimetismo relativamente às estaduais suas afins. Assim, por exemplo, há fortes
semelhanças entre a distribuição espacial das personagens em ocorrências jurídico-políticas
públicas e colectivas e os protocolos “consuetudinários” aí seguidos e os seus equivalentes
funcionais estatais; ou entre as formas (bastante formalizada, adversarial e “mediada” por
um discurso com pretensões à isenção) tradicionais e estaduais de encaminhamento de
conflitos interpessoais no arquipélago. Como escreveu, num outro contexto, Gyan Prakash
(2002: 28), é sempre um erro subestimar “the extent to which community mimics the
modern state”. Um tema fascinante para investigações futuras.

25
utilizados realizam isomorfismos que nos remetem para situações
e vivências sociais, expressam correspondências extraídas
decerto da experiência histórica dos santomenses e depois
entrevistas em quadros conceptuais por sua vez marcados por
uma “juridicidade contratualista” de ecos também curiosa e
claramente estatizantes, ou “estadualistas”40.
No meu exemplo angolano, a hibridização não é tão
linearmente “estadual” e a juridicidade não parece ser a de um
contratualismo. Mas as afinidades são, creio eu, óbvias. Também
aqui os processos complexos de integração-harmonização de
regras e procedimentos passam por um entretecimento criativo
que visa assegurar alguma eficácia no controlo administrativo e
político efectivo, pelo Estado, de pessoas e regiões. E, neste caso
também, aquilo que me parece estar em jogo é uma reduplicação,
por homologia e como que por contágio, de uma experiência
social prévia de submissão ao poder, ou melhor, às formas mais
óbvias do seu exercício.
É assim no Huambo.

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Patrick Chabal (2002), “Lusophone Africa in historical and
comparative perspective”, em Patrick Chabal et al, op. cit.: 3-
137.
40
Acrescentemos, no entanto, uma consideração suplementar: é interessante verificar (neste
exemplo santomense como em vários outros por toda a África pós-colonial) os diferentes
níveis de permeabilidade à “colonização ideológica” aqui em causa: a aparente porosidade
ideológica das elites, que tendem a preferir, de maneira linear, adoptar “por atacado”
modelos europeus, e a porosidade relativamente menor do resto da população, que ao que
tudo parece indicar instrumentaliza antes “à peça” e em termos porventura mais
tradicionais, apenas uma poucas das figuras e alguma da terminologia “importada”.

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