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CARLO GINZBURG O QUEI[O E OS VERMES O COTIDIANO E AS IDEIAS DE UM MOLEIRO PERSEGUIDO PELA INQUISICAO ‘Tradugio: MARIA BETANIA AMOROSO ‘Tradlugio dos poemas: ‘JOSE PAULO PAES Revisdo técnica HILARIO FRANCO JR. 48 wipresao onde ee i PREFACIO A EDIGAO INGLESA Como ocorre com fregtiéncia, esta pesquisa também surgiu pot acaso. Passei parte do vero de 1962 eni Udine, O Arquivo da Géria Episcopal daquela cidade preserva um acervo de documentos inquisitoriais extremamente rico e, aquela época, ainda inexplorado, Pesquisei os jul- gamentos de uma estranha seita de Friuli, cujos membros os julzes identificaram como bruxas ¢ curandeiros. Mais tarde escrevi um livro sobre eles (I benandanti: Stregone- ria e culti agrari tra Cinquecento e Seicento), publicado in 1966 e reimptesso em Turim, em 1979. Ao folhear um dos volumes manuscritos dos julgamentos, deparei-me com ‘uma sentenga extremamente longa. Uma das acusagées fei- tas a um réu eta a de que ele sustentava que o mundo ti- ha sua origem na putrefacdo. Essa frase atraiu minha curiosidade no mesmo instante, mas eu estava & procura de outras coisas: bruxas, curandeiros, benandanti. Anotei © niimero do processo, Nos anos que se seguiram aquela 11 anotagio ressaltava periodicamente de meus papéis ¢ se fazia presente em minha meméria, Em 1970 resolvi tar entender 0 que aquela declaragéo poderia ter si cado para a pessoa que a formulara. Durante esse tempo todo a tinica coisa que sabia a seu respeito era o nome: Domenico Scandella, dito Menocchio Este livro narra sua histéria. Gragas a uma farta do- cumentagao, temos condigdes de saber quais eram suas leituras € discusses, pensamento ¢ sentimentos: temo- res, esperancas, ironias, raivas, desesperos, De vez em quando as fontes, tio diretas, 0 trazem muito perto de nés: € um homem como nés, é um de nés, Mas é também um homem muito diferente de nés. A reconstrugao analitica dessa diferenca tornou-se neces sitia, a fim de podermos reconstruir a fisionomia, parcial- mente obscurecida, de sua cultura ¢ contexto social no qual ela se moldou. Foi possivel rastrear o complicado relacio- namento de Menocchio com a cultura escrita, os livros (ou, mais precisamente, alguns dos livros) que leu e © modo como os leu, Emergiu assim um filtro, um crivo que Me- nocchio interpds conscientemente entre ele ¢ 0s textos, obscuros ou ilustres, que Ihe cairam nas mios, Esse crivo, por outro lado, pressupunha uma cultura oral que era pa- triménio nao apenas de Menocchio, mas também de um vvasto segmento da sociedade do século xvi. Em conse- gligncia uma investigacao que, no inicio, girava em torno de um individuo, sobretudo de um individuo aparente- mente fora do comum, acabou desembocando numa hipé- tese geral sobre a cultura popular — e, mais precisamen- te, sobre a cultura camponesa — da Europa pré-industrial, numa cta marcada pela difusio da impzensa e a Reforma Protestante, bem como pela repressio a esta iltima nos paises catGlicos. Pode-se ligar essa hipstese aquilo que jé 12 foi proposto, em termos semelhantes, por Mikhail Balth- tin, e que € possivel resumir no termo “circulatidade”: entte a cultura das classes dominantes e a das classes su- baltemas existiu, na Europa pré-industrial, um relacio- namento circular feito de influénciss reciprocas, que se ‘movia de baixo para cima, bem como de cima para baixo (exatamente 0 oposto, portanto, do “conccito de absoluta autonomia e continuidade da cultura camponesa” que me foi atribufdo por certo crftico). © Queijo e os Vermes pretende set uma histér bem como um escrito hist6rico. Dirige-se, portanto, ao lei. tor comum, bem como 2o especialista. Provavelmente ape- nas 0 iiltimo leré as notas, que coloquei de propésito no fim de livro, sem referéncias numéricas, para néo atravan- car a natrativa. Espero, porém, que ambos teconhegam nesse episédio um fragmento despercebido, porém extra- ordindtio, da realidade, em parte obliterado, e que coloca implicitamente uma série de indagagdes para nossa pro- pria cultura e para nés. 13

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