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BIOPOLITICAS As formulagdes de Foucault Leon Farhi Neto BIOPOLITICAS As formulagées de Foucault ‘crDabe FUTURA “ : 2010 . Copyright© Leon Farhi Neto Todos os direitos reservados ‘Nenbuma parte deste vo pode ser ulzada ot reprodusida sem antorisogdoexpresa da editor, Fotodacapa: Alessandro Pinzant Diageamagio: Studio S~ Diagramagioe Arte Visual Revisio: Tony Roberson de Mello Rodrigues Dados ntermeionside catgagom ft: usb FuNewo. Leon opal as frags Foe eon Far No ~ Horanpole:Ciade Fata, 210 28, In itiogfia ISN ITE HS ATIST-S7-9 | Foucault Mil 192619642 Fst Bape «cael loa) Rode Poa). 6 Senos Raga 8 Nelberasno 1 Tito cpu aslagur ma pug por: On Si Cuimaries CRB-1407E EDITORA CIDADE FUTURA Rua Lauro Linhares, 2123 ~ Sala 303-8 ‘CEP 88036.002 ~ Fone/Fax: (48) 3239-5282 "loriandpols ~ Santa Catarina ~ Brasil -E-mall:editoratedadefutura come ‘rrwidadefuturacom.be Gostaria de mostrar meu reconhecimento agradecer sin ‘ceramente a todos os que colaboraram, com sugestOes, com criticas, com apoio aftivo, para a realzacio deste livro: és indicagdes de leitura, sempre oportunas, do Prot. Selvino ‘Assmann; ao estimulo do Prof. Peter Pi Pelbart; a0 apoio dos editores da Cidade Futura; as diversas pessoas, colegas, amigos que, discutindo comigo, ou simplesmente ouvindo- mme, ajudaram-me a firmar meu ponto de vista; & paciéncia, dda minha esposa e de meus filhos Dedico este livo, em especial, & meméria do meu pai Abreviaturas bibliogréficas Lista de abreviatura ut das para referencias os livros de Michel Foucault. [Nas referencias, 20 final de cada capitulo, depois da abreviatura,&indicada a gina do texto referenciado Para simplifcar, a cada vez que siofeitas pequenas referénctas, em uma mes- ‘ma pagina, a um mesmo texto, essa reeréncias apontam para a mesma nota de rodapé, com o mesmo numero, MTC: Les mots et les choses. [1966] LPP: Le pouvoir psychiatrique: Cours au Collage de France, 1973-1974, SEP: Surveiller et punir: Nassance de la prison. (1975] ANO: Les anormaux: Cours au Collége de France, 1974-1975 IDS: Il faut défendre la socité: Cours au Collige de France, 1975 ‘VSR: Histoire de a serualité I: La volomté de savoir. 1976) ‘STP: Sécurité teritoire, population: Cours au Colige de France, 1977-1978 BQ: Naissance de la biopolitique: Cours au Collige de France, 1978-1979. UDP: Historia da sexualidade I: Lusage des plisirs. 1984] DEI: Dits et éerits. Vol. 1954-1975. DER: Dts et éerts, Vol. II 1976-1988, Entre colehetes,aparecem as datas da primera edigio do livro ow artigo. Sumario Abreviaturas bibliogrfica8 nn Apresentagao, Introducdo LAp ILA biopolitica ¢ a guerra ica na sua relagdo com a medicina IIL. A biopolitica e 0 dispositivo de sexualidade.... IV. A biopolitica e 0 pacto de seguranca. 'V.O governo segundo a racionalidade econémica Conclusdes e depois Referéncias bibliogréficas... atk) 7 23 $1 83 17 155 189 1203, Apresentacao eitor tem em maos uma primorosa andlise da questi da biopolitica em Michel Foucault. Mas atengdo: ela é em tudo surpreendente. Num momento em que 0 termo comega a cit- cular de maneira inflacionada, , como 0 assinala 0 autor logo na primeira pagina, com sentidos tdo diversos que vao da me- tafisica dos genocidios até a resistencia dos corpos, a reconstru- «qo tebrica proposta por Leon Farhi Neto vai na contramao da crescente generalizagio, De maneira clara, fluente e nuangada, ele mostra que seu uso em Foucault nada tem de genérico ou de vago: ele sempre € convocado em contextos os mais precisos, em meio a anilise de mecanismos muito delimitados, historica e geograficamente, O procedimento genético utilizado pelo autor para abordar a biopolitica vai de par com a prdpria genealogia defendida por Foucault, a saber, a andlise das praticas histéricas, das técnicas de poder, das formulacées discursivas. Por um lado, este livro destaca os planos em que se desdo- bra o problema da biopolitica em Foucault: a medicina, a guerra, a sextalidade, a seguranca, a economia. Por outro, mostra o que permitiu reunir num arco conceitual tal diversidade de dominios: a problematizacao, nao a histéria das idéias. Mesmo quem usa as atuais derivas de sentido em torno da biopolitica nao poderia ser suficientemente grato ao tipo de trabalho aqui realizado. Primeiro, porque permite repensar a biopolitica no contex- to desse deslizamento ocorrido em Foucault, do enfoque sobre os micropoderes para os macropoderes, das insttuigdes para o Esta- do, das relagdes de forca para as de governo, permitindo repensar hoje essa articulagio micro e macropolitica, o que nos facilita reto- ‘mar as duas pontas do processo, tanto os processos de subjetivagio quanto a governamentalidade. 14 Biorouincas Segundo, porque detecta em Foucault o momento em que cle mesmo comeca a usar 0 termo biopolitica num sentido duplo, a saber, sendo ela tanto a apreensio da vida pela politica quanto 0 avango do tema da vida enquanto resisténcia & forma pela qual 0 Estado se encarrega de nossas vidas. Assim, esse estudo mostra em Foucault a brecha pela qual adentrou a interpretacao dos italianos, sobretudo de Negri, Lazzarato, Virno eo grupo da revista Mul- titudes, num crescendo que desembocou na inversio do sentido do termo, A sobreposicio e oscilacao entre biopoder e biopolitica assim detectadas justificam a utilizagao dos desenhos de Escher para esclarecer tal topologia. ‘Terceiro, porque esse trabalho acaba “protegendo” Foucault de certa redugio abusiva feita por Giorgio Agamben quando este reinscreve a biopolitica na chave da soberania. Dai também a ob- servagio que decorre desse alerta, de que ha um hiato entre as medidas de excecio e 0 totalitarismo, A estratégia de abordagem dessas sociedades “como totalitarismos, utilizando-se de ‘velhos conceitos histéricos’ para recodificar o presente, deixa escapar aquilo que a atualidade tem de especifico, ¢ restringe nossa capa- cidade analitica” (p. 119). Embora esse livro nao seja 0 primeiro a notar isso, nele essa objegao fica clarfssima, e como nao tem o tom polémico, ela certamente terd efeitos mais precisos. E, por dltimo, por abordar num de seus capitulos mais noti- veis um dos aspectos menos trabalhados nos estudos foucaultia- nos: a relacio entre economia, governamentalidade ¢ biopolitica ‘Ali aparece o redesenho da fungio do Estado na governamenta- lidade neoliberal, o papel de vigilancia exercida pelo mercado, 0 surgimento do homo oeconomicus, o empreendedorismo, a pre- vvaléncia da forma empresa ~ em suma, o recobrimento do socius por uma racionalidade de mercado. Se governar a populacio é fazer com que todo fendmeno social seja também uma atividade econémica, analisivel segundo a racionalidade econdmica, para- doxalmente essa mesma légica acaba trazendo de volta o Estado que parecia dispensado, jé que ele deve incidir sobre 0 meio, 0 ‘meio econémico, 0 mercado. Como diz Farhi Neto: “Para a razo Avnesexnagio 15, governamental neoliberal, obviamente, s6 uma sociedade com- pletamente econ6mica, livre de todos os entraves dirigistas, que bloqueiam a naturalidade desses vinculos causais entre mercado e populacao, é verdadeiramente passivel de ser governada. S6 em uma sociedade completamente econdmica, s6 em uma sociedade na qual os individuos funcionem como empresas ¢ as empresas como individuos, num meio de elevada concorréncia, © modelo do governo econémico, a determinagao do comportamento social pela situagéo do mercado pode funcionar plenamente. Entretanto, as diversas realidades sociais concretas jamais slo totalmente eco- némicas. Como se verifica facilmente, nelas permanecem diversos setores que nao funcionam economicamente, como enormes bo- Ihas de ar presentes no mar da economia [..]. A intervengio do Estado neoliberal vai na diregao da diluigdo dessas bolhas de ar atficiais[..]. Portanto, para que ndo haja diferenca entre popu- lagio e governo, para que nao haja 0 ingoverndvel, ndo deve haver diferenca entre sociedade e mercado, tudo deve se tornar merca- do” (p. 182). Donde a conelusio aguda de que a biopolitica, desde {que entendida como naturalizagao e regulaco da multiplicidade pelo meio em que esta inserida, estéinteiramente presente na go- ‘vernamentalidade neoliberal, no governo econdmico. A biopoliti- ca concebida como “tecnologia de exercicio do poder sobre uma ‘multiplicidade, mediante intervengdes sobre o meio em que ela se insere, aplica-se como uma luva a ‘mao invisivel’ da governamen- talidade neoliberal” (p. 182), que traz de volta o Estado. Assim, “a biopolitica é 0 governo da populagao pelo Estado, mediante a vigilancia, o controle ea manipulagdo de algumas varidveis econd- ‘iicas; a biopolitica é 0 governo econdmico que concebe e opera a populacio a partir de sua economicidade natural” (p. 183). Claro que o leitor pode se perguntar se nao cabe insistir so- bre a diferenca entre biopolitica e governamentalidade neoliberal, € se 0 autor néo estaria tornando indiferentes esses dois termos. ‘Mas, talver, justamente ai consista a novidade e a aposta deste li- ‘vro, no qual ele desbravou a terra mais virgem e teve a ousadia maior de redefinir com seus termos a nogdo de biopolitica, apro- 16 Borouineas fundando-a e fazendo uma ponte extremamente instigante com a governamentalidade a fim de repensar um contexto do qual nio podemos fugir hoje. A andlise de Foucault tal como aparece neste livro & de uma estonteante antecipagio. Trata-se de um Foucault ‘menos conhecido, e que é cada ver mais pertinente para pensar justamente aquilo que o descrédito do marxismo deixou na mao das sociologias moles ou de um pensamento fraco. Peter Pal Pelbart Introdugao © termo ‘biopolitica, utilizado para designar algum tipo de pratica politica, interessa & reflexio contempordnea. Ele é em- pregado por intimeros autores da filosofia, das ciéncias polticas, a sociologia, da economia, da medicina, da psicandlise, muitos dos quais afirmam ser, em certa medida, seguidores da obra de Foucault. Ele intriga as centenas de milhares de leitores de Fou- cault, das mais variadas dreas de atividade, no mundo inteiro, e desencadeia incontiveis comentarios. Na sequencia e desenrolar de sua recepeio, 0 termo ‘biopolitica foi associado a um leque de significados, 4s vezes opostos entre si. ‘Tem sido empregado, em grandes linhas, para qualificar as metafisicas dos genocidios, para caracterizar as politicas de exclusio de grandes parcelas das po- pulagées, para designar as forcas que formatam nossos corpos, para rotular os modos alternativos de subjetivacio de feministas, de homossexuais, de presididrios, de multidées em sua produgao material, como a face oculta e denunciada do estado de direito, como a esséncia totalitéria de toda forma de soberania, como a visio de mundo ocidental que sacraliza a vida individual ou o pro- cesso vital da espécie, como a politica de salvaguarda da dignidade da vida, como o movimento de resisténcia dos corpos aos proces- sos de sua sujeicio. ‘A frequéncia € a difusio do uso do termo, como era de se esperar, terminou por diluit, pelo menos em parte, quando nio alterou completamente, 0 uso original que Foucault fez do termo. Entretanto, isso, de modo algum, representaria, para 0 proprio Foucault, um abuso. Foucault escreveu sua obra como se produz ‘uma ferramenta, justamente para ser manipulada, na construcéo de algo outro, que caminhasse para além dela. Seu compromisso nao era propriamente com a verdade, seja ela absoluta ou relativa, 18 Bioottricas ‘no importa, mas com os efeitos de verdade, muitas vezes polit ‘cos, aos quais, as ferramentas, por ele forjadas, pudessem induzir. Diante dessa oferta, dessa instrumentalidade, dessa abertura para 0 novo, 0 projeto deste livro é conservador. Mas, € preciso deixar claro, para nao frustrar expectativas, nao faremos aqui 0 {que seria um caminho possivel e intrigante, a listagem, a reconsti- tuigdo, a comparacao, o inquérito dos usos posteriores, préprios € impréprios, apontando aqui e ali os erros, os desvios, as transgres- bes, as incompatibilidades. Preferimos dedicar nossos esforcos & reconstrugio, a mais fiel possivel, das formulagdes que Foucault fez da nocio de biopolitica, em suas palestras, entrevistas, artigos, livros e cursos, sem recorrer explicitamente as intimeras interpre- tagdes feitas por comentadores. A produgao de Foucault a respeito da biopolitica concen- trou-se em uns poucos anos ~ entre 1974 ¢ 1979). Apesar disso, essa concentragio proximidade nao diminuiram as ambigui- dades dessa producio. Nossa primeira leitura desses diversos textos e falas pressentiu algumas diferengas relevantes entre as diversas formulagées. Elas nao nos pareceram, a primeira vista, totalmente congruentes e articuléveis, umas com as outras, nem. tampouco, absolutamente estranhas entre si. Resolvemos, entio, rmarcar, tracar e enfatizar os contornos dessas formulagbes, tan- to para mostrar o uso préprio que Foucault fez do termo, como para relevar, no interior desse uso ~ digamos ~ auténtico, varia- ‘goes muito importantes. ‘Ao final da pesquisa, identificamos nao mais nem menos do que cinco formulagées, cada uma remetendo a um confronto da politica com algum outro dominio, aparentemente, exterior a cla - satide, guerra, sexualidade, seguranca ou economia, Cada tum desses cinco confrontos, analisados por Foucault, éabordado aqui em um capitulo & parte. (1) Assim, no primeiro capitulo, em que a biopolitica aparece relacionada ao poder medical, recons- tituimos as interferéncias entre Estado € medicina, a partir do século XVII, na Europa. (2) No segundo capitulo, so analisadas algumas modalidades pelas quais foram pensadas, desde 0 sé- Iermoougs0 19 culo XVI, as correlagdes entre politica e guerra e a precedéncia possivel de uma relativamente & outra. A biopolitica se caracte- riza, nessa formulacio, pela articulago do discurso ¢ da pratica da guerra com a nogao de raca bioldgica. (3) As conexdes entre politica e sexualidade sio abordadas no terceiro capitulo, em que 1 biopolitica se envolve com um dispositive de sexualidade. A formacao do complexo pratico-discursivo da sexualidade - endo simplesmente o da repressio sexual - aparece intrinsecamente vinculada aos interesses politicos da burguesia. (4) No quarto capitulo, é discutida a questo da garantia, assumida pelo Estado, a seguranga da populacao. A biopolitica aparece como disposi- tivo de seguranga, resultante da absorcdo, pelo Estado, de cer- tas priticas do poder pastoral. (5) Finalmente, o dltimo capitulo aborda a reflexao liberal e neoliberal sobre a possibilidade do governo pela economia, sobre os meios indiretos de intervencéo do Estado na sociedade, ou seja, sobre 0 governo da populacdo mediante a manipulagio das variaveis econdmicas do mercado. Buscamos defender, a partir de Foucault, a pertinéncia da aplica- io do termo ‘biopolitica’ as técnicas neoliberais de governo. ‘Com a reconstituigio ea anilise dessas correlagdes, estabele- cidas por Foucault, entre politica e satde, politica e guerra, politica e sexualidade, politica e seguranca, politica e economia, que esto na base de cada formulagio, nos encontramos diante do seguinte problema: as cinco formulagées da biopolitica, afinal de contas, so somente abordagens distintas de um mesmo objeto, ou las so, representam, designam, coisas diferentes? Quando falamos de biopolitica em Foucault, falamos de cinco fenémenos alheios entre si, ou haveria entre eles algum tipo de parentesco? E, se for 0 caso, qual seria esse parentesco? De que maneira poderfamos reunir as diferentes formulagdes como elementos de um mesmo conjunto? E certo, ha iniimeros crtérios para estabelecer a pertenca de bidem, p40. B verdad, a pgnas de Vigiare pur terminam com una resposta postive esses quests, a qual devemos considera, contd, transitia: "Ness Thumanidade central ecentraieda, fio enstrumet de relaSes de per com= plenas, corpos efrgasseltados por dispositive de encarceraments miltipos, ‘objeoe para dscuros, que so eles mesmos elementos des estrtigia,deve-s ‘ouvir ride da bata, SEP, 360 % HOBBES, Thomas, Leviathan, Indianapoli/Cambridge: Hacket, 1994 [1651] (Cap XL p76 2 IDS, Cours dd frier 1976, p.79. Seque a soberania por aqusigSo, que se exrce pela aquisicio de um teria, © ‘que presupde,dealgum modo,» goers, equer esa forma de soberania se Funda fs guerra, © fandammento liao a soberanin, sea el institu peo acordo 0x pelsbatalha, no goers mas vontade de iver eo medo de morer dos suelo ‘Asoberaa pr agulsigi “aifee da soberania por insuicao apenas miss ~ ec ‘eee Hobles que os homens queesclhem se sberano fazem-no por medo uns dos outros e fo daquele a quem instuem, enguanto neste caso [0 da soberania por aqusito), eubmetem:reaquele de quem ttm mede” HOBBES. op. ct. Cap. XX, py 127 No fundamen da soberana, do poder politic em Hobbes, est sem ‘rem skima instncia, «vontade do sujet, CE. IDS, p83. ‘CLAUSEWTTZ, Cal von. Dela guerre Paris Minuit, 1955 [1832], apud FONTANA, Alessandro; BERTANI, Maura Nota 9 a0 Cours ci 7 janvier 1976. ln: IDS, p. 20. IS, Cours de 17 mars 1976, p.240 % IDS, Cours cd 28 janvier 1976, p67 » Biopotiricas| Ibidem,p.240. DS, Cours 4 fsror 1976, p 86-96. DS, Cours 11 févrer 1976, p. 101-111. bide, p, 111-120; IDS, Cours du 18 fron 1976, p. 125-147; IDS, Cows du 3 ‘mars 1976, p.Y73-188 DS, Cours cu 3 mars 1976, p. 173-188. 1S, Cours a vier 1976, p88 Ibidem, . 89, Tbidem, p93, Ibider, p98. Tbidem, p85, 1S, Cours ce I frien 1976, p17 STEVES, Emmanuel. Qu’est-ce que le Tiers Etat? Pass: Qvadidge / PUF, 1982 [0789], p31. WS, Cours cu 10 mars 1976, . 210, TBidem, p21 idem, p.212. CCE FONTANA, Alesandro; BERTANL, Mauro, Nota 6 20 Cours di 28 janvier 1976. In: 1DS, p74. DS, Cours cu 10-mars 1976, p. 201 DS, Cours 21 jamver 1976, p52. Herbert Spence €o nome mais conhecio desasocologia que, no século XIX, faz ‘wo des concetos elaborados por Darwin. lis, num campo o social totalmente tlio tora de Darwin, Segundo Timashef, base da eo socilogica de Spen a hava sido publicada em Social Statics (1850), portant, nove anos aes da publicgio de The Origin of Species (1859), de Darwin. Destacase em Spence, & iso onganicista da sociedad, a analog possvel entre sociedad eorganismobio- 1igico entre socilogia ebologn Para Spence, entesoiedadeeser individual, até ‘mais do que uma simples analgia, hi semelhangas, "a mesma defini devia se pica a0 dot? Na socedade en individu, reconhece-se 9 mesmo ciclo de ces- iment, maturidadeedecadéncia; com a evolugio,em ambos ds o aumento da ‘complenidade das partes das respectivasfuncioalidades; ambos so compostos 4e partes relatvamenteautdnomas em relario ao toe. Um orgznsmo vivo indi- ‘vidual pode ser considerado ums nag de unidades que vivem indvidualmente, ‘como a sociedad, uma nagio de indviduos.TIMASHEFE, Nichols S. Teoria so- lldglea, Tad. Antinio Bulhdes. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1973 [1955]. p. 56 Peristem tagos de darwinismo social até mesmo em Max Weber. Depos de tatar da categoria ‘ut, Weber fla de 'seleg “seep € uta (Latente) pela exsténcia, que opoe uns aos outros, sem into signifiatva de tafe por isso uma hts Tayeme], 05 individvos ou 0s tpos humans, em vista de suas chances de vida ou de sobrevivenels; ela € dita “leet soca, enquanto se trata das chances de ind- ‘ios vivo, na vid ordindria Slee bole enquanto se wata das chances ‘de sobrevivéacia de carter heeditrio:Econtinus "toa ita ou concorréncia que Artorotinica EA GUERRA 81 sc desenvove de mado tipico ou em massa cond, apes de tudo, no decorer do temp, despito dos acidents ou fatalidadespreponderanes, (J, a uma Seec30 ‘daquees que poser, nam grou mais elevado, a qualidadespessais, que sio em tata [ectcunstancialmente) importantes, para aiveguraro tuafo no curso da Tutt: WEBER, Max Economie et soclét, Cap 1, 8 p.75.Noracisme de stado ‘no darwinismo soil, pode-se dizer, as categorias sleio soca e'selegiobiologi- i no esto dierencadas ‘ara avaliar quo Tonge foram ect exsas tora: confer as explicardes, baseadas tem Gumplowicz, de Bulides du CUNHA, em Os series. Campana de Camudos [1902]. In SANTIAGO, Silvano (Orgs) Intérpretes do Brasil Val. 1.2ed. Rio 4e ans: Nova Agullar, 202 2000), p, 195-606. Notas preliminares.p 195, Era o caso de Spencer, que, como afirma Timashef “queria demonstrat, pel sociologis, que os homens nfo devem interfer nos processosnaturais ques ‘erfcam na sociedad A sociedade civil, debads asi, livemente, desenvalve telhoros "does originals das raas A intervengao do Estado, por exerplo, com ts polticas de sade e at medidas sanltrias, para Spence, representa, se= fgundo Tims, "una interferénciaestipida a evolucto naturel. TIMASHEFE, ‘Nicholas. Teoria soeloldgie, Trad. Antnio Bulhses. 4d. Rio de aneto:Zahat, 1973 [1955]. p 59-60. DS, Cour du 21 janvier 1976, p53 biden, . 53, Ibider p53, Ibidem, p71. idem, p58 ANO, Résume ci cows, p31, ‘Umexcerto do leo de Morel presents, em grandes linha, odesafio co prign que a dogeneescecia ea sua tansnisabllidade represent para as geracdes faturas “tase devi [a cdegencrescénil, por mas simples qu se suponha, na su origem, cncerr entetunto elementos de transmisibiidad, de wa natureza tl que [ol © ‘rogresiointlectwal, jf eliminado na pessoa [do degenerado], se encontra ainda [meagado na pesion do seus descendentes: MOREL, Bénédict Augustin. Traité ‘des dégénérescences physiques, intlletuclls et morales de Pespdce humaine, ‘et des causes qul produisent es varigtés maldives. Pars: J.-B Bailie, 1857. Cita por Jacques Lagrange, nata 7L & Levon ci 16 janvier 1974. I: LP, p. 230. (0 vine entre rime eloucare€contitsint da estat de intereréncia no po der judiciéio pelo pode piqutrio edo modo pelo qual "a psgulatria mancbrou para se fazer reconhece como parte da higlene pbc’ Le jen de Michel Foucaul, ‘Texto 206 [1977] In DED, p30. ANO, Cours dy 19 mors 1975, p.298. idem, p. 258. Ibider, p28. |ANO, Cours dt 5 fsrier 1975, p.124. Foucault evita fazer un uizo moral, mas eer 0 nalsmoe2 stlinismo como pitologis do poder. Cr FOUCAULT, Michal. Le sujet et le pouvolr. Texto 305 [i9e2)- tn: DE2,p. 1083 Bropoufricas 1S, Cours a 28 janvier 1976, p.72. Tider, p72 Tbidem, p58 Tider, p72 Tider,» 72 HOBBES, Thomas. Leviathan, Indianapolis/Cambridge: Hacket, 1996 [1651] (Cap XVII p. 114 TBider,p 208. DS, Cours ch 17 mars 1976, p. 214 Ibidem, p24. Tbider,p 215 Tbider,p.216. Tbidem, p25 bide, p 225-226 Ibidem, p. 225. preciso diferencia Yopularizar” (torn regula, sjustado, equ: bdo) ¢ regulamentar’(etabelecero rgulamento, as regras). Da mesma form, Aiferenciam-seregulagi' e‘Yegulamentagac. Tider, p25. Ibidem,p.222. idem, p 226 Tbidem,p. 226-227, Tider, p.227. Rider, p.227. Ibidem, p.227. [Bider,p 227 bider,p. 227 Ibidem,p. 228 Tider, p 228 Tbider,p. 228 Tbider,p.231, Tbider,p 231, Si, cap. 1, seco 2, p 123 III. A biopolitica e o dispositivo de sexualidade A terceira formulagdo da biopolitica, que aparece em A von- tade de saber, faz a descrigio das relagies estabelecidas, ao longo dos tltimos séculos, entre politica e sexualidade, Nessa tercei formulagio, a biopolitica encontra na sexualidade dos indivi- duos de uma populacio ~ sexualidade que a prOpria biopolitica indus, incita, produz =, um suporte de regulagio. O dispositive de sexualidade e os mecanismos de sexualizagao, cujas técnicas femontam, em parte, & dirego de consciéncia da pastoral crista, no século XVI, e sio deslocadas progressivamente, tornando-se ‘mais complexas, para as instituigées pedag6gicas, para a familia burguesa e finalmente, para toda a sociedade, constituem um dos principais instruments politicos de regulagéo das populagées. Como acontece, em cada nova formulagao, iremos reencontrar elementos das formulagoes anteriores. A questdo da sexualidade std em estreita relagdo com a medicina ¢ a psiquiatria, com 0 racismo, a afirmagio da raga e a eugenia. Neste capitulo, por- tanto, estaremos percorrendo trilhas semelhantes as percorridas anteriormente, masa bissola que nos guia agora é diferente. Esse nosso novo guia éa sexualidade. A sexualidade remete a concepgio de uma natureza intrin- seca a populaco, Sendo universal, a sexualidade seria um prin- cipio unificador do conjunto de individuos; sendo natural, fun- cionaria segundo leis proprias cognosciveis. Isso nos abre duas trilhas paralelas, como que tracadas sobre as duas vertentes da ‘mesma cadeia de montanhas. A racionalizagao da sexualidade, © conhecimento das suas leis, motivaria a tremenda vontade de saber em torno do sexo, pois sendo natural e universal, a sexuali- dade seria a chave do sentido e da esséncia da populagdo. Essa se- ria a primeira trilha, a da historia da formagio de um saber sobre 8% Brorotinicas 0 sexo. A segunda trilha, a que os individuos logo se encontram na obrigagéo de seguir, aponta para a sexualidade de cada um. Bla tinge a sexualidade individual com um valor de verdade, ela aponta para a sexualidade auténtica do individuo, e the diz: “ai esté a sua verdade’, A primeira trilha constitui um saber sobre a sexualidade que leva a verdade universal; a segunda, um saber sobre a sexualidade que leva a verdade sobre si. Mas é a universa- lidade da lei da sexualidade que conduz o individuo a encontrar 4 sua verdade em sua sexualidade. Correspondentemente, na forma histérica complexa que as- sume, tornando-se um dispositive armado sobre a materialidade do sexo e do prazer dos corpos, a sexualidade é tanto um mecanis- ‘mo de assujeitamento, uma maneira pela qual os individuos sao submetidos socialmente, como um modo de subjetivacao, da qual faz parte 0 modo de autocompreensio desses mesmos individuos. A formagio do sujeito sexual, do homo sexualis, do ser humano dotado de sexualidade, que encontra no seu sexo a mais rigoro- sa verdade sobre si, cuja forma de manifestacio, alguma vezes, se torna a mais profunda afirmacao social de sua “interioridade’, 0 correlato da histéria da articulagao do dispositivo de sexualidade. sexo tornou-se, com o dispositivo de sexualidade, o desfiladeiro por que deve passar todo aquele que quer “ter acesso & sua propria inteligibilidade’, “& totalidade de seu corpo’, “a sua identidade”. Como pode compreender-se, como pode saber o que é seu pré- prio corpo, como pode afirmar-se idéntico a si mesmo, aquele que no faz-a experiéncia de sua sexualidade? Essas so as questoes prementes que o dispositivo de sexualidade nos urge responder. ‘Mas, respondé-las, no significa, segundo Foucault, liberarmo-nos, do poder desse dispositivo. O dispositivo de sexualidade nao € 0 poder que esconde, que reprime, que recalca, em nome da civiliza- 0 burguesa, 0 sexo, ¢ com ele nosso sentido, nosso corpo ¢ nossa identidade auténticos. Pelo contrério, é no afi de produzir as res- postas adequadas a essas questdes que nos tornamos 0s sujeitos do dispositivo de sexualidade, “Ironia deste dispositive ~ nota Fou- cault ~ ele nos faz crer que se trata de nossa ‘iberagio’”’, Quanto ‘mais nos debatemos, na areia movediga da sexualidade, tanto mais nos afundamos nela. Um dos principios essenciais do dispositivo de sexualida- de & "0 desejo do sexo ~ desejo de possui-lo, desejo de ter acesso a ele, de descobri-lo, de liberé-lo, de articulé-lo em discurso, de formulé-lo em verdade”. O desejo do sexo é a vontade de saber 0 sexo, de poder o sexo; éjustamente essa vontade, que tem a forma de um dispositivo, que nos faz sujeitos, sujeitos de uma vontade ¢ sujeitos a um dispositive, que ¢ congruente com essa vontade. ‘A vontade, assim entendida, nao ¢ uma faculdade humana; ela é, num certo modo de dizer as coisas, exterior ao ser humano; apesar disso, da sua exterioridade, ela é 0 que determina a subjetividade do homem. homem nasce sujeito & vontade, e é por meio dela, reconhecendo em si mesmo essa vontade, que a principio the € exterior, que ele se subjetiva. Homo sexualis £0 nome desse sujeito da vontade de saber o sexo, sujeito do desejo do sexo. A sexualidade, para Foucault, ndo tem nada de uma sexua- lidade objetal, antecedente ao sujeito do conhecimento. A sexua- lidade, para Foucault, nao é natural, originéria, essencial, ou ela 0 é, mas de um modo peculiar. A sexualidade & de fato essencial para a populacao, nao porque ela ¢ originéria, mas porque ela é imanente, consecutiva, indissocidvel do modo pelo qual a politica fez da vida sexual da populacio 0 objeto de suas priticas. Fou- cault escreve o primeiro volume de uma histéria da sexualidade, para refutar a concepcio de uma sexualidade natural. O grande alvo de A vontade de saber € a “hipétese repressiva" 0s represen- tantes do freudo-marxismo, entre outros, Reich e Marcuse, icones do movimento estudantil e revolucionério, nos anos 1960 € 1970. Hipétese jé comentada, no capitulo anterior, que considera 0 po- der, principalmente, em seu aspecto repressivo, em seu papel de coagio de uma classe, de um instinto e, neste caso especifico, de uma sexualidade. Ao argumentar contra essa hip6tese, Foucault no busca negar a realidade da repressio as formas nao candnicas de comportamento sexual, mas assinalar o né indissocidvel, aima- néncia, entre as formas da sexualidade e os mecanismos de poder. 86 BroPotfricas Nao hé “mulher nervosa’, “onanista’, “perverso sexual’, “taxa de natalidade’, independentes de um mecanismo de poder, digamos, 6tico-linguistico, que permita, ao dar-Ihes uma forma, enxergar € nomear tais naturezas. Segundo a hipétese repressiva, a repressio da sexualidade € no apenas uma consequéncia, mas também uma condicao his- t6rica da constituigdo do capitalismo. A hipdtese repressiva,“[..] ao fazer nascer a época da repressio, no século XVII, depois de centenas de anos a céu aberto e livre expressio, faz. coinci com o desenvolvimento do capitalismo: ela faria corpo com a or- dem burguesa”, A tinica funcio aceita da sexualidade deve ser a de reprodugao ordenada da forca de trabalho. Para evitar desper- dicio das energias produtivas, a atividade sexual deve restringir- se a0 casal constituido por alianga legitima, ao casal cuja uniio familiar foi legitimada pelo poder. Assim, pode-se observar duas consequéncias do capitalismo, dois corolérios da hipétese re- pressiva: a injuncao moral ao siléncio sobre 0 sexo e a obriga- ‘sao da restrigao das miiltiplas possibilidades de manifestagao da sexualidade & forma do casal heterossexual monogimico. Dessa rclagio histérica, entre capitalismo e sexualidade reprimida, a hipotese repressiva deduz.o vetor da revolucio, o qual conduzi ao fim do capitalismo - o sexo livre representa uma tal ameaca & ordem burguesa que, simplesmente mencioné-lo, simplesmente falar sobre 0 sexo, constitul uma demonstragao de forca e rebel- dia frente ao poder instituido. Para refutar 0 viés revolucionsrio da liberagao sexual, Fou- cault vai negar a validade dos dois corolérios da hipétese repres- siva. Ele vai contestar a realidade histérica da interdigio do dis- curso sobre o sexo ¢ a realidade histérica de que 0s mecanismos de poder operam no sentido de restringir a sexualidade a aliancas conjugais legitimas. Foucault procura mostrar que nao ha siléncio, mas, muito pelo contrério, proliferagio de discursos sobre o sexo. Com 0 Con- clio de Trento, no século XVI, transformam.-se as instrugdes para a confissio religiosa, aumentam as pressbes sobre os fii, para que AsioroLitica #0 bisPosiTIv0 DESEXUALIDADE 87 acelerem o ritmo das confissdes’. As admoestagdes da pastoral ca- ‘lica, no final do século XVII, apesar da necessidade de policia- ‘mento da linguagem, do cuidado com o vocabulério, da supressio dios termos explicitos, do uso de metéforas, vo no sentido de uma intensificagao do ato confessional, A exigéncia de colocagio do sexo em discurso, exigéncia que se torna cada vez mais frequen- tee minuciosa, cada vez mais penetrante, desvia-se do ato sexual em si para todos os pensamentos e sentimentos que o circundam. ‘A “came se torna a raiz de todos os pecados”; 0 momento mais, importante do pecado nao é mais o ato sexual ilicito, mas a sua raiz, as tentagdes da carne ~ mal disperso e camuflado. E preciso 0 penitente persegui-las, descobri-las nos seus infimos esconderijos, nas suas primeiras manifestagdes, na imaginacdo que vagueia, nos pensamentos, desejos; & preciso encontré-las, essas insinuagdes da carne, nos detalhes do dia-a-dia, e expurgi-las pela confissio pela peniténcia ‘A Igreja foi apenas o primeiro foco de uma verdadeira “fer- ‘mentacao discursiva que se acelerou desde o século XVIII”. Mes- ‘mo Sade e a “literatura escandalosa” inserem-se, segundo Fou. caullt, sob a mesma injungio de “tudo dizer”* sobre o sexo. Mas 0 iscurso sobre 0 sexo nao se restringe aos sussurros velados dos confessionérios, as indiretas dos serm@es reformistas, nem as fo- Ihas freneticamente manuscritas de autores libertinos; ele emerge também nas disciplinas das escolas. Nos colégios, a sexualidade dos alunos, as facilidades e as exigencias para o seu controle sio determinantes para os regulamentos internos, para a disposigao do mobilidrio colegial, dos dormit6rios, dos lavatérios. “Em torno do colegial ede seu sexo, prolifera toda uma literatura de preceitos, de avisos, de observacées, de conselhos medicais, de casos clini- cos, de esquemas de reforma, de planos de instituiges ideais™. Nasce, no século XVIII, apesar de tateante e receoso, em meio as instituigdes do Estado, um discurso racional sobre o sexo, des- perto ¢ justficado por um interesse na questao que corresponde & transformagio da tecnologia de poder. Para esses novos mecanis- mos de poder, o sexo nao é tanto uma questo moral, mas, na pers- 88 Bropotinicas pectiva de uma regulacao social das condutas procriadoras, algo “a gerenciar, a inserir nos sistemas de utilidade, a regulamentar para (© bem de todos, a fazer funcionar conforme um optimum’. 0 sexo, no século XVIII, torna-se assunto de Estado, Nesse contexto, a problematizacdo da conduta sexual da populacio ¢ feita a partir de uma série de indices que permitem a comparacio e o acompa- nhamento de sua evolucdo: a idade média dos cbnjuges nos casa- mentos, a taxa de nascimentos ilegitimos, a fecundidade das mu- Iheres, a precocidade e a frequéncia dos atos sexuais, a incidéncia das préticas contraceptivas. A proctiagdo deixa de ser uma questio limitada ao casal ou 4 familia, para se tornar uma questio social Além da confissio, da literatura, da sexualidade infantil, da policia das populagdes, Foucault identifica outros focos de proli- ferado da discursividade sobre o sexo: “a medicina primeiro, pelo intermédio das ‘doengas dos nervos’ a psiquiatria em seguida, (..] sobretudo quando anexa ao seu dominio préprio o conjunto das perversdes sexuais; a justica penal, também, [.. que, além] dos cri- ‘mes ‘hediondos’ ¢ contra a natureza, [..] em meados do século XIX, abre-se & jurisdigao mitida dos pequenos atentados” Assim, ao contrério do que afirma a hipétese repressiva, no processo de afirmagao do capitalismo, nao houve injuncao a0 siléncio em torno do sexo, mas produgéo e proliferagao de discursos, reunindo enunciados religiosos, opinides populares, estatisticas de governo, preceitos pedagogicos, regulamentos dis- ciplinares, teorias cientificas. Em torno da sexualidade dos seres, humanos, a partir de uma perspectiva individual ou coletiva, di- ferentes dominios discursivos entram em relacao: “a demografia, a biologia, a medicina, a psiquiatria, a psicologia, a moral, a pe- dagogia, a critica politica”™. Quanto ao segundo corolitio da hipétese repressiva, Fou- cault busca mostrar que, ao invés de restringir a sexualidade ao ca- sal monogimico heterossexual, a sociedade burguesa multiplica as formas de manifestacao extraconjugal da sexualidade, instauran- do e provocando, pela saturacio sexual da familia das escolas, das diversas relagbes sociais, uma série de perversidades, aberra¢des, A.mioPoLftich #0 DIsPOStTIvO DE SEXUALIDAD 88 desvios sexuais. Saturadas sexualmente, essas insténcias tornam- se ambientes propicios para a eclosfo de uma sexualidade indisci- plinada, monstruosa, anormal. As diversas relagGes, estabelecidas entre familiares, entre domésticos e familiares, entre alunos, entre professores e alunos, entre criminosos ¢ vitimas, so acompanha- das de uma ameaca sexual que, como uma sombra, as persegue permanentemente, sempre prestes a tornar-se uma causa real de corrupgio dos individuos ¢ da sociedade. A perversio toma a forma de uma “contranatureza’, que subjaz 4 dimensio normal da sexualidade, limitada as relagbes heterossexuais entre adultos, algo como um antigénero humano, ao qual pertencem as varias cespécies, mais ou menos aparentadas, de “sexualidades periféri- cas’, e seus personagens tipicos: necréfilos, sédicos, homossexuais, exibicionistas, fetichistas, zo6filos etc. Apesar de especificadas, as aberragdes sexuais néo esto circunscritas a uma parcela imedia- tamente reconhecivel da sociedade, elas pairam como uma sus- peita geral, para identificd-las & preciso persegui-las, elacioné-las com 0s locais provaveis de sua ocorténcia, pois incégnitas essas sexualidades aberrantes constituem um perigo social. No entanto, nio se trata, de fato, de um projeto de eliminagao ou de exclusio da sexualidade aberrante, mas sim da titica de seu espraiamen- to na sociedade. “Exclusio dessas mil sexualidades aberrantes? Nao exatamente, mas especificagao, solidificagao regional de cada ‘uma delas. Trata-se, ao dissemini-las, de semeé-las no real e de incorporé-las ao individuo"®. O dispositivo de sexualidade, no século XIX, é 0 mecanismo de poder que encontra na perversio a possibilidade de sen aprofundamento, A deflagracéo de um es- tado latente de sexnalidade aberrante permite estabelecer os pon- tos aos quais o poder se agarra, para controlar a sociedade e os comportamentos individuais. “O implante das perversoes é um efeito-instrumento: é pelo isolamento, pela intensificagao e pela consolidagao das sexualidades periféricas que as relagdes de poder 0 sexo € a0 prazer se ramificam, se multiplicam, escalam 0 corpo, € penetram nas condutas”*. Os disparates sexuais sio o efeito de tum tipo de poder que esté em permanéncia & sua caca, si0, 20 ‘mesmo tempo, os instrumentos que lhe possibilitam exercer mais, intensamente seu controle" Foucault frisa que esse tréfego entre poder e sexualidade, do poder & sexualidade, da sexualidade ao poder, em que cada lado reforea o fluxo que leva a0 outro lado, ¢ garantido por “inume- raveis Iucros econémicos que, pelo intermédio da medicina, da psiquiatria, da prostitui¢éo, da pornografia, se vincularam & essa multiplicagio analitica do prazer e a essa majoragio do poder que a controla’"*. A economia, as relagdes econdmicas néo tém, no dispositivo de sexualidade, contudo, um papel infraestrutural; as relacdes entre poder e sexualidade ndo séo constituidas na sua base por relagdes econdmicas, mas as relagdes econdmicas, para- lelamente as relagées de poder do dispositivo de sexualidade, es- tabelecem uma rede que garante o seu funcionamento, mas nao © funda. O dispositivo de sexualidade nao se constitui para estabe- lecer uma fonte de lucros, mas a fonte de lucros reforga o processo de sua constituicao. (O prazer perverso torna-se o ponto a partir do qual 0 po- der psiquitrico alcanca 0 corpo social. O isolamento do instinto sexual, a partir da segunda metade do século XIX, e o reconhe- cimento do seu papel como “elemento de formacio em todas as, doengas mentais e, de forma ainda mais generalizante, em todas, as desordens do comportamento’, abre novos campos de inge- réncia para a psiquiatria, tanto no campo judictério das “grandes infragées que violam as leis mais importantes’, como no campo das familias, com as “mintisculas irregularidades que perturbam a pequena célula familial”. Devido a fragilidade da sua natureza, fragilidade que remete a sua precocidade, & sua ampla presenca no organismo, a sua vivacidade, este instinto deborda facilmente seu limite natural, o de uma relagdo entre adultos heterossexuais, e se desdobra em uma série de anomalias e aberragdes. As noses de hereditariedade e de instinto sexual aparecem articuladas na teo- ria da degenerescéncia, segundo a qual, uma carga hereditéria im- pregnada de doencas orginicas e psiquicas produz uma perversio do instinto sexual, enquanto, por outro lado, a perversio sexual Abiorouincs ro pisposmvo ne sexuALIDADE 91 produz 0 enfraquecimento da descendéncia, O sexo aparece em *posicio de ‘responsabilidade bioldgica’ em relagao a espécie: ndo somente 0 sexo podia ser afetado por suas proprias doencas, mas cle podia, se nao fosse controlado, transmitir doenas ou crié-las para as futuras geracdes: ele [o sexo] aparecia, assim, no principio de todo um capital patolégico da espécie™™. Incitagéo a0 discurso sobre o sexo € implantagao social da perverses sexuais sio as duas refutagdes, elaboradas por Fou- cault, contra a hipétese repressiva. Em oposicdo & exterioridade centre poder e sexualidade, que esta na raiz da hipétese repressiva, Foucault prope analisar sua relagdo intrinseca. Para Foucault, 0 poder nao bloqueia, nao interdita a sexualidade, nem a liberagao da sexualidade seria uma forma de livrat-se do jugo do poder capitalista, mas o exercicio do poder, na sociedade burguesa, ¢ a sexualidade estio intricados um no outro ¢, desde 0 inicio, sio constituintes um do outro. Poder e sexualidade estio juntos no que Foucault chama de dispositivo de sexualidade. Mas, afinal, o que € um dispositivo? Foucault, em uma entrevista de 1977, divide a resposta em trés partes: primeiramente, um dispositivo & “um conjunto decidida- ‘mente heterogéneo, comportando discursos, instituig6es, arranjos arquitet6nicos, decisdes regulamentares, leis, medidas administra- tivas, enunciados cientificos, proposicdes filoséficas, morais,flan- tr6picas, enfim: do dito, tanto quanto do nao-dito”®; em segundo lugar, 0 dispositivo “éa natureza do elo que pode existir entre esses elementos heterogéneos”; e em terceiro lugar 0 dispositive é uma espécie de “formagio, que num dado momento histérico, teve por fangio maior responder a uma urgéncia. O dispositivo tem, entéo, ‘uma fungio estratégica dominante™”. Segundo esse esquema, o dispositive de sexualidade & com- posto de elementos discursivos diversos, cientificos ou ndo, de priticas institucionais, com suas regras ¢ técnicas de poder, per- tinentes a drgios do Estado, ministérios, secretarias, comissbes, escolas, familias ete. Esse conjunto heterogéneo nao é necessaria- ‘mente harménico, concertado, suas partes nio se encaixam umas 52 Brovouincas as outras sem conflitos, sem ajustes: o préprio balango, o proprio jogo de poder, jogo discursivo e titico, faz parte do dispositivo. 0 dispositivo de sexualidade ¢ formado por esses elementos pritico- discursivos, mas, também, é aquilo que os conecta, 60 que se esta- belece, imanentemente, a partir da relagio entre esses elementos, € se constitui como o objeto-elo, supostamente natural, que liga esses elementos disparates: a sexualidade dos seres humanos. A genese do dispositive, sua formagao histérica, ndo pres- supde de modo algum um programa pré-estabelecido, tampouco “uma asticia estratégica de qualquer sujeito meta- ou trans-hist6- rico que o teria percebido ou querido™, Ha, na génese do disposi- tivo, uma espécie de espontaneidade, independente das vontades particulars. © dispositivo de sexualidade é esse conjunto pratico-dis- cursivo em torno do sexo, cuja espontaneidade e urgéncia, con- trariamente ao que afirma a hipétese repressiva, nao surge es- trategicamente para evitar 0 desperdicio das energias vitais dos trabalhadores, para concentré-las exclusivamente na produgio, reservando a sexualidade uma tinica fungao, a de reprodutora da forca de trabalho. Segundo Foucault, a urgéncia histérica, & qual © dispositivo de sexualidade surge como resposta, é a necessida- de de autoafirmagao das classes dominantes, particularmente, da burguesia, em meados do século XVII. “E preciso reconhecer ai [os efeitos] da autoafirmagao de uma classe, antes que [0s efeitos] da submissdo de uma outra: uma defesa, uma protegao, um refor- 50, uma exaltagio, que foram, na sequéncia ~ depois de diferen- tes transformagdes -, estendidas as outras {classes}, como meio de controle econdmico € sujeicio politica’. Os mecanismos de sexualizagao incidem primeiramente sobre a classe burguesa, é na familia burguesa que a sexualidade infantil e a dos adolescen- tes se torna problema, que a mulher histérica ser medicalizada. Ea familia burguesa que, em primeiro lugar, serd sensibilizada a respeito das possiveis patologias e intimeros desvios sexuais. Suas ciangas sexualmente precoces, seus adolescentes onanistas, suas mulheres nervosas, seus perversos sio os primeiros a se subme- Astorouinca ro rose pesexuatiDApe 98 ter as “tecnologias racionais de corregdo’, & medicina dos ner- vos, & psiquiatria; tecnologias inventadas pela burguesia e para a burguesia, na medida de sua inquietagao por seu proprio sexo. 0 dispositivo de sexualidade, segundo Foucault, surge do projeto de ‘uma superioridade burguesa frente as outras classes sociais, como instrumento de autoafirmagao, que se faz pelo corpo e pelo sexo. “Um organismo em forma e uma sexualidade sadia” faziam parte da consciéncia de classe da burguesia, do modo pelo qual ela se autorrepresentava, A sexualidade era um assunto que dizia respei- to somente a ela mesma, Por essa razao, “ela levou tanto tempo ¢ ‘opés tantas reticéncias a reconhecer um corpo e um sexo as outras classes ~ Aquelas mesmas que ela explorava”™. corpo e o sexo do proletariado s6 séo problematizados, ‘mais tarde no século XIX, quando jé esté disposta uma tecnologia de controle, de tipo disciplinar (escola, prisao, hospital) e de tipo biopolitico (higiene publica, sistemas de seguranca, medicalizacio geral da populacio), que garantem a implantagao da sexualidade no proletariado, sem os riscos que isso poderia apresentar para ‘a burguesia, Dessa forma, desde o inicio sob 0 controle de todo tum aparelho técnico-administrativo pré-estabelecido, a sexuali- dade péde ser atribuida a classe explorada, sem 0 perigo de que cla se tornasse um fator de afirmacio desta classe, pois quando 0 proletariado incorpora a sexualidade, ele o faz jé na forma do as- sujeitamento, como instrumento de reforgo da hegemonia burgue- sa. A problematizagio do sexo do proletariado se faz. necesséria, 1 partir de alguns pontos conflituosos: questoes de satide ligadas ‘a0 espago urbano, concernentes & medicina social - promiscuida- de, alojamento, epidemias ~ e urgéncias econdmicas, oriundas do surgimento da indiistria pesada, que requer 0 controle dos fluxos populacionais e as regulagdes demograficas. Na Europa, afirma Foucault, até 0 século XVIII, no campo € nas populagées urbanas, mesmo pobres, havia poucas unides livres e um niimero limitado de filhos ilegitimos. Para isso, con- tavam a pressio da Igreja, da sociedade e do sistema jurfdico. Era ~ digamos ~ 0 tempo em que as aliancas legitimas, com seu dispo- 94 Brorotinicas sitivo préprio, atuavam com maior intensidade, Foucault chama esse dispositivo, a que as camadas populares estavam submetidas, de “dispositivo de alianca: valorizacao do casamento legitimo e da fecundidade, exclusio do casamento consanguineo, prescrigao de endogamia social e local”. O dispositivo de alianga é o sistema, determinado pelas relagdes de sexo, pelo qual, em uma socieda- de, se fixam e se desenvolvem as regras de parentesco, as regras de transmissio dos nomes e das riquezas; & 0 sistema das formas juridicas de alianca, de proibigdo das aliangas consanguineas, de interdicao do incesto, de condenacio do adultério. “O disposi- tivo de alianga é ordenado, sem divida, para uma homeostasia (homéastasie) do corpo social, que ele tem por funcio manter; dai sua ligacdo privilegiada com o direito; dai também sua marca forte, a ‘reprodugao’ ” Com a configuracio de um proletariado urbano de maior relevancia, no inicio do século XIX, os suportes legas ereligiosos, sobretudo os suportes econdmicos e sociais da alianga legitima perdem sua funcionalidade. O casamento perde sua funcio, “a partir do momento em que se é uma populagao flutuante, esperan- do ou buscando trabalho, que é de todos os modos um trabalho precério e transitério, em um lugar de passagem”*. Respondendo 1 essa necessidade de flexibilidade e movimentacao da forga de trabalho, as formas de unio livre aumentam nos meios popu- lares, Logo em seguida, entretanto, devido ao desenvolvimento dda indkistria pesada e a valorizagao da mao-de-obra, devido tam- bém a necessidade de controle politico sobre essa massa mével e instével, aparece uma necessidade contréria, faz-se preciso fixar 08 operdtios na proximidade de seus locais de trabalho, conter sua mobilidade, minimizar sua capacidade de agitacio. Disso decorre, em torno de 1830, uma vigorosa campanha piiblica de valorizacéo do casamento - propaganda panfletéria e moralista, respaldada por toda uma série de incentivos econdmicos a cons- tituigdo de uma familia legitima: associagdes de socorro, caixas de poupanga, politica de alojamento, vilidas somente para casados. Paralelamente a essa campanha pelo reforgo da unio legitima e AmoroLfrica Fo pisrostrwvo pe sexuatipape 95 estivel dos cénjuges proletérios, que pode ser considerada como ‘uma reafirmacio do dispositivo de alianga, divulga-se uma ou- tra campanha ~ uma série de injungdes, de conselhos, de avisos que se referem a sexualidade operaria, particularmente, a preven. gio do incesto. A familia proletéria que deve se estabelecer &, 20 ‘mesmo tempo, posta de sobreaviso. E preciso configurar os me- canismos que garantam o distanciamento entre os membros da familia proletaria, e evitem o seu colapso erético*. A campanha pelo casamento, pela formacio de uma familia operaria canénica, embora promulgue a alianca legitima, é, ao mesmo tempo, de- vido & provavel intengao incestuosa dos adultos, um mecanismo de sexualizagio das camadas sociais populares e de generalizacdo do dispositivo de sexualidade. A suspeita do incesto permite de- senvolver, em torno da familia proletéria, um esquadrinhamento cerrado de vigilincia policial: 0 juiz ou o agente de policia; e mais, tarde, no comeco do século XX, indiretamente policial: “todas as, instincias ditas de controle social, oassistente social”. Todos eles formam o contingente de profissionais e agentes plblicos que, a partir da saturagéo sexual da familia proletéria, exercem sobre ela seu poder de controle ¢ vigilincia. Nesse proceso de sexualizacao das classes populares, de infl- tragio e universalizagio da sexualidade, a forma-familia foi um i termediério incontornavel. Na sua consttuigéo, 0 dispositivo de se- xxualidade se apoia no dispositive dealianca, Semelhante apoio havia ocorrido também no tocante & burguesia. Foi na familia burguesa que dispositivo de sexualidade encontrou um ponto de ancoragem, ce difusio ~ ‘0 dispositivo de sexualidade, que havia se desenvolvido primeiro as margens das insttuigbes familias (na direcao de cons éncia, na pedagogia), vai se focar pouco a pouco na familia”, como forma de autoafirmagao da familia burguesa. Assim, tanto no caso da burguesia como no caso do proletatiado, mas por motivos e me- canismos diferentes, o dispositivo de sexualidade, ao se estabelecer, ‘ancora-se no dispositivo de alianca, nas aliancas legitimas, das quais, 1 familia € constituida. Na passagem de um dispositivo ao outro, da alianga 8 sexualidade, a familia ¢ 0 elo de ligaco”. 96 Brorotimcas ‘A familia serve de elo de ligagao, mas participa do processo histérico ~ a forma moderna da familia burguesa esta vinculada ao dispositivo de sexualidade. Admitamos que a interdicao do incesto seja fundamental para a forma da familia e, para além dela, da for- macio social; admitamos “que o limiar de toda cultura & o incesto interdito”™; serd preciso notar, contudo ~ assinala Foucault -, que hhouve, nas familias burguesas, na formagio do dispositivo de se- xualidade, no apenas a interdigdo, mas também a incitagao ao incesto, Essa incitago ao incesto se encontra presente, na Euro- pa, desde a campanha praticamente bissecular contra o onanismo. No inicio do século XVIII, floresce, em toda Europa, uma série de livros, panfletos, textos, que discorrem sobre os efeitos noci- ‘vos da masturbacio juveni Essa campanha se ditige ao publico burgués, aos préprios adolescentes, a seus pais, a pedagogos; si0 conselhos, avisos, sugestdes terapéuticas, armadilhas, receitas di- versas. A preocupagao com o onanismo infantil possui, € certo, um cunho moralizante, mas Foucault sublinha que ela concerne sobretudo a saiide do corpo. “Aquilo com que se ameaga as crian- «a, quando se proibe que se masturbem, ndo é uma vida adulta perdida em devassidao e vicio, é uma vida de adulto tolhida por doengas”®, O onanismo, seja por representar em si mesmo uma doenga, seja por atuar como uma porta de entrada para diversas doengas, enfraquece e limita o potencial de vida da classe burgue- sa, € & por isso que ele é combatido como uma praga insidiosa. A causa da introducio das criangas a masturbagdo, mais comumente invocada por esses textos, é a sedugdo das criangas pelos adultos agregados a familia nuclear, que se interp6em “entre a virtude dos pais e a inocéncia natural dos filhos"™. Assim, o principal alvo da campanha antimasturbatéria sio esses personagens que formam, a grande familia. Trata-se de uma campanha pelo encolhimento da familia, pela reaproximacio de pais e filhos, pela eliminacéo ou redugio maxima de todos os intermediérios e domésticos. Trata- se de dar uma nova forma a familia, distinta daquela determinada pelo dispositivo de alianca, que era a familia estendida, como rede de relagbes de consanguinidade; trata-se de estreitar a familia, de Aiorotinica £0 pisosirvo pe sexuaLiDAne 97 formar a familia afetiva. A linha de penetracio da sexualidade na familia burguesa, pela ameaca do onanismo infanto-juvenil, é um dos elementos constitutivos da familia celular, restrita a0 casal ¢ a seus filhos. A necessidade de vigilancia continua dos filhos pelos pais exige que pais ¢ filhos compartilhem um mesmo espago, & noite, por exemplo, o mesmo leito. “Pode ser que, historicamente, a grande familia relacional, essa grande familia, feta de relagoes, permitidas e interditas, se tenha constituido com base na proibi- ga0 do incesto. Mas ~ diz Foucault -, a pequena familia afetiva, sélida, substancial, que caracteriza nossa sociedade, da qual vemos co nascimento, em todo caso, no fim do século XVIII, se constituit a partir do incesto dos olhares e dos gestos que [para vigid-lo € protegé-Io] rocam o corpo da crianga"™. & essa forma de incesto, suscitado nos pais pelo dever de conhecer e vigiar imediatamente, pelo olhar, pelo contato, 0 corpo dos seus filhos e filhas, de sua prole, de seu patriménio biolégico, que se encontra, segundo Fou- cault, na base da familia burguesa moderna. A sexualidade familial, que se constituiu, a partir do século XVIIL, como marca distintiva da burguesia, vai generalizar-se, a0 longo do XIX, pela totalidade do corpo social. O que néo quer di- zer, porém, que a burguesia perdeu sua sexualidade especifica. Na demarcagao da especificidade do sexo burgues, em relacio ao sexo proletério, o incesto e a psicanidlise tiveram um papel relevante. ‘Apesar da socializacao do dispositivo de sexualidade, a burguesia alcanca, com a psicanilise, novos meios para manter a especifici- dade de sua sexualidade: “é preciso dizer que ha uma sexualidade burguesa, que ha sexualidades de classe”. A psicandlise oferece ‘uma interpretagio universalista da sexualidade, mas seus efeitos incidem, e se fardo sentir cada vex mais, no decorrer do século XX, principalmente, sobre a sexualidade da burguesia. A psicané- lise serve, no momento em que o dispositivo de sexualidade esta totalmente socializado, para demarcar uma especificidade prépria a sexualidade da burguesia. Essa demarcacao de especificidade & uum efeito de classe decorrente da formulagao de uma lei universal, a lei do incesto™. Com o acesso A terapéutica psicanalitica, a bur- 98 Brorotinicas guesia passa a ocupar em relagdo ao incesto uma posigdo singular, “a psicandlise se esforca em trazé-lo [0 incesto] & luz. do dia, como desejo, e a suspender, para aqueles que sofrem disso, o rigor que o recalca’””. A absorcao da psicanlise provoca um efeito especifico sobre a classe burguesa, ela péde diferenciar sua sexualidade da sextalidade proletéria, “Aqueles que haviam perdido o privilégio cexclusivo de preocupar-se de sua sexualidade se arrogam, a partir de entio, o privilégio de experimentar, mais do que outros, 0 que a interdita, e 0 privilégio de possuir o método que permite suspen- der o recalcamento™", A burguesia, no momento de sua afirmagao como classe, no século XVIII, faz do seu sexo saudavel o elemento diferenciador. A partir do fim do século XIX, 0 que diferencia a burguesia serd sua sexualidade menos reprimida. “Agora, a dife- renciacio social se afirmar nao pela qualidade ‘sexual’ do cor- po, mas pela intensidade de sua repressio”. Onde essa repressao torna-se ou pode tornar-se patogénica, a psicandlise agiré suspen- dendo o seu rigor. ‘Temando-se em consideragio todo esse miitiplo processo de formagio da sexualidade, entende-se por que, para Foucault, a sexualidade no é uma esséncia que antecede a forma constran- gida, interditada, que o poder the impinge, mas a sexualidade é © correlato de uma forma de exercicio do poder que faz. do sexo e do prazer um seus dos pontos de inscricdo sobre os corpos in- dividuais, “Nao se deve descrever a sexualidade como uma pon- tada, um acesso renitente, estrangeiro por natureza e indécil por necessidade a um poder que, de seu lado, se esgota a submeté-la e frequentemente falha em controté-la inteiramente. Ela aparece antes como um ponto de passagem particularmente denso para as relagées de poder: entre homens e mulheres, entre jovens e velhos, entre pais e progenitura, entre educadores e alunos, entre padres e legos, entre uma administragao e uma populagio™. Estamos diante de uma interpretagio da sexualidade a que corresponde 0 posicionamento metodolégico de Foucault. Foucault nao aborda a sexualidade como um objeto que, pouco a pouco, se desvela, de Asiorotincs 20 Dispostnvo DE SEXUALIDADE 98 forma cada vez mais objetiva, para as ciéncias; nem, por conse- _guinte, como uma naturalidade pré-existente as préticas-discursi- -vas do que ele chama de dispositivo de sexualidade, Nesse método, que é a genealogia, trata-se de partir de uma anélise das priticas historicas, das técnicas de poder associadas elas, das formulagoes discursivas oriundas das mais diversas fontes, sem desqualificé-las de antemao, Praticas, estratégias ¢ discursos polimorfos, nos quais a questio da sexualidade se coloca como problema, A genealogia de Foucault, a essa forma de abordagem de uma problematizacio, feita néo a partir de uma histéria das ideias, su- postamente cada vez mais claras, mas das préticas concretas em que as nogées tomam corpo; feita no a partir dos discursos, su- postamente cientificos, mas da anilise histérica das praticas em que esses discursos puderam tomar forma, mediante a reativagao também dos discursos cientificamente desqualificados; & essa ge- nealogia, a essa forma de interpretagio de um problema, corres- ponde uma concepsao do poder como multiplicidade de relacdes de forgas, multiplicidade permeada por lutas incessantes que re- forcam ou transformam sua organizagdo, invertendo localmente ‘08 equilibrios e globalmente o vetor resultante dessas forsas. Relativos ao que se pode chamar de poder so também os apoios que essas relagées de forga encontram uma nas outras, para formar cadeias ou sistemas; sio as relagbes de forga orientando-se mutuamente, ordenando-se, emparelhando-se, determinando-se uumas pelas outras, alinhando-se umas com as outras, formando forcas resultantes mais complexas que assumem a aparéncia de um todo global, seja como soberania (sexo-rei), Seja como princi- io ontoldgico (tudo € sexo) ou deontologico (deve ser sexo), seja como dominagdo total (de um poder impostor ¢ artificial sobre ‘uma natureza vital) Poder sao as estratégias segundo as quais as relagbes de forga se efetivam, estratégias, mais uma vez, que no seu desenho geral, za sua cristalizagZo institucional, tomam corpo nos aparelhos de Estado, nas formulagoes da lei, nas hegemonias sociais. Se Fou- cault fala de onipresenca do poder, nao € porque o poder, para 109 Bropoutnicas ele, seja como um grande guarda-chuva, um grande céu, que tudo abraca e engloba. poder ¢ onipresente porque ele esté em todo lugar, porque ele se produz a cada momento, em toda relagio de tum ponto a outro do corpo social. O que o poder tem de fixo, de central, de global, de repeticao, de permanéncia, de autorrepro. dutibilidade é apenas o efeito de conjunto, a somatéria, o efeito integralizado, aparentemente uno e estivel, de uma multiplicidade microfisica, pontual e potencialmente instavel. Esse efeito global, Estado, lei, dominacéo, apoia-se nessa rede de relagées locais de forca, ej que depende delas, busca reforgé-las, reconduzi-las, tor- ni-las estaveis, reproduzir-se mediante a sua reproducao, manter- se por meio da manutengao local dessas unidades sobre as quais se apoia. A polaridade, 0 desequilibrio, a diferenca de potencial que se estabelece entre cada dois pontos, entre cada dois nés da rede que forma a sociedade, é o que permite, pela coordenagio, pelo alinhamento, pela conjuncio, pela integragio dessas miiltiplas di- ferengas, obter fendmenos globais; os quais, por sua vez, buscam. perpetuar a orientagdo global dessas polaridades. © tratamento do dispositivo de sexualidade nos permite acrescentar a essa concepgdo de poder, que é basicamente a que Foucault defende desde Vigiar e punir,trés elementos que, se nao constituem propriamente variantes dessa concepeao, pelo menos, Ihe sio complementares: (1) a questdo da resisténcia, (2) a inten- G40 nio-subjetiva do poder e (3) 0 nominalismo, (1) Com 0 tratamento da resistencia, Foucault quer desfazer uma impressio que pode resultar da leitura de Vigiar e punir. A impressio de que nao hé como resistir, como opor uma forga efi- az aos mecanismos de assujeitamento, como os mecanismos dis- ciplinares. A impressio de que a onipresenga do poder afirmaria a nossa inexordvel submissio a sua lei Dizer que nao ha escapatéria ao poder, afirmar sua onipre- senga, nfo quer dizer que nao hé saida, possibilidade de reconfigu- rago das relacdes de poder. De fato, nao hi poder sem resistencias, 6 justamente sobre a resisténcia que o poder se exerce. Na relacéo Aniopouirics Fo DisOsITIvO DE SEXUALIDADE 101 de poder, ela faz“o papel de adversirio, de alvo, de suporte, de pro- tuberiincia para uma presa”', A resisténcia é imprescindivel para a relagio de poder, os pontos de resisténcia estio disseminados por todos os lugares da malha de poderes. A multiplicidade de resis- téncias é simétrica em referéncia & multiplicidade das relacdes de poder, ¢ nao assume uma forma tinica como, por exemplo, a do ideal revoluciondrio, A revolugio ndo éa Gnica forma de resistén- cia, as formas que a resistencia pode assumir numa relagio de po- der sio muitas, A revolugdo pode ser considerada uma forma de integragdo das multiplas resistencias, “um pouco como o Estado repousa sobre a integragdo institucional das relagdes de poder”. Devemos entender essa resisténcia, essa resisténcia ao poder, como reatividade? A resisténcia € uma forga, certo, mas é forsa sempre reativa? Resistr & reagir ou exercer uma ago que inova e no apenas reage? Como afirma Judith Revel, a resisténcia, em Foucault, néo € a ocupagao de uma posigao de simples enfrenta- ‘mento do poder, nao ¢ mera reatividade, Segundo Revel, Foucault insiste em trés pontos: a) a resistencia nao € nem anterior nem. posterior ao poder que ela enfrenta, mas Ihe é coexistente, “o par resisténcia/poder nao ¢ 0 par liberdade/dominacao™ b) a resis- tencia deve ser tdo criativa, to ativa quanto 0 poder, a “resisténcia nao vem, portanto, do exterior do poder, ela realmente se asseme- tha a ele por assumir suas caracteristicas"™s c) a resisténcia pode transformar ou fundar novas relagdes de poder, da mesma forma que novas técnicas de poder suscitam novas formas de resistencia. “A descri¢ao de Foucault dessa ‘teciprocidade’indissohivel nao & redutivel a um modelo simplista no interior do qual o poder se- ria inteiramente negativo ¢ as lutas como tentativas de liberacdo [..J"™, As lutas de resisténcia ao poder nao devem ser pensadas como lutas de libertacdo para acabar com o poder, mas como lutas para estabelecer outras formas de relagao de poder. Para Deleuze, “a definicio de Foucault parece muito sim- ples, o poder é uma relacio de forgas ou, antes, toda relagdo de forcas & uma ‘relacdo de poder’ ”*, A forga nao esta nunca sori nha, mas sempre em relagio com outras forgas, as quais afeta ou 102 Brovoufticas pelas quais 6 afetada, Deleuze reconhece nisso 0 “profundo niet- zscheanismo” de Foucault. A forca & uma forga justamente por seu poder de afetar outras forgas, mas “a forga afetada néo deixa de ter a capacidade de resistencia. De uma s6 vez, cada forga tem poder de afetar (outras) e de ser afetada (por ainda outras)": A resisténcia é a capacidade de uma forga para afetar, em retorno, a forca que a afeta, Mais uma vez, esse retorno nao & mera reati- vidade, mas reinvengéo continua da relagio de forca. E Deleuze toma como exemplo a biopolitica. Na biopolitica, “é bem a vida ‘que surge como novo objeto do poder’, mas é também a questo da vida, por outro lado, aquilo, em torno do que se articula uma resisténcia. “A vida torna-se resisténcia ao poder, quando o poder toma a vida por objeto”, A vida &a forga que a forga biopolitica afeta, mas como forca, ela também tem a capacidade de afetar, por sua vez, os mecanismos de poder que se configuram como biopolitica. Por isso, para Deleuze, a biopolitica tem duas vias, ela € tanto a apreensio da vida pela politica, e uma preocupacio do Estado, como o avango do tema da vida como resisténcia & forma pela qual o Estado se encarrega de nossas vidas. (2) “[..] as relagdes de poder so, ao mesmo tempo, inten- cionais e ndo-subjetivas”® ~ afirma Foucault. Uma relagdo de po- der é um jogo de intengées, mas a formulagio dessas intengdes no tem sua origem no interior anterior de uma subjetividade. As intengdes dos agentes ndo antecedem a relagdo de poder, mas surgem dela; é a partir das relagdes de poder que as intengBes se estabelecem. Relacdes de poder se constituem através das inten- ‘des, da colocagio de objetivos, da aplicagio oportuna de titicas, de calculos ligados a imperativos hipotéticos, condicionados a pri- meira pessoa (se eu-nés queremos isso, devemos agir assim!) ou 8 terceira (se ele-eles agirem desse modo, devemos agir assim!). So ‘essas intengées calculadas que tornam inteligiveis as relagdes de poder. O que faz. com que as relacbes de poder sejam inteligiveis €0 fato de que elas sio ligadas, 0 tempo todo, a um tipo de “cal- culo’, uma racionalidade instrumental que estabelece estratégias, Anmonotinica £0 pispostrivo Ds sexUALIDAD® 103 objetivos intermedisrios; objetivos que sempre se renovam, por- que nio sio objetivos terminais, porque estdo vinculados a outros cilculos estabelecidos de uma parte & outra da relagdo de poder, “Mas isso nfo quer dizer que [o poder] resulta da escolha ou da deciséo de um sujeito individual. Nao busquemos o estado-maior ‘que preside segundo sua racionalidade. Nem a casta que governa, nem os grupos que controlam o aparelhio do Estado, nem aqueles que tomam as decisées econdmicas mais importantes nao gerem 0 conjunto da rede de poder que funciona numa sociedade (c a faz, funcionar)”. Os dispositivos de conjunto sio formadas pela aglo- ‘meragio, pela integragio dessas miiltiplas intengdes, que, na sua logica local, no seu célculo imediato, alinham-se umas em relagio as outras, umas em fungao das outras. As decisdes tomadas, em nivel local, sio fruto de célculos que levam em consideragao 0s cilculos e as decisées tomadas dentro de téticas estabelecidas por terceiros. Essas decisdes, esses célculos, essa téticas “encadeando- se uns aos outros, atraindo-se, propagando-se, encontram alhures (© seu apoio e a sua condigéo™; alhures, no no interior de uma subjetividade. Em um dispositivo ou em um mecanismo de poder, hd um automatismo, do fato de que as mltiplas relacdes de poder entre os individuos orientam-se umas pelas outras. Esse automa- tismo dos dispositivos de conjunto permite afirmar que as relagdes de poder néo sio subjetivas, apesar de intencionais e inteligiveis” (3) Foucault diz: “ preciso, sem duivida, ser nominalista: 0 poder nio é uma instituigao, néo é uma estrutura, nao é uma cer- ta poténcia de que alguns seriam dotados; poder é 0 nome que atribuimos a uma situagio estratégica complexa, em uma dada sociedade™®. © poder é um nome, a sexualidade é um nome, arti- culados um ao outro, na formacao do dispositivo de sexualidade. ‘© que esti em jogo no nominalismo ¢ a ontologia do uni- versal. © universal é uma entidade real, & qual corresponde um nome? Ou o universal, como defendem os nominalismos, € sim- plesmente um nome, ¢ os tinicos existentes fo 0s individuos? Marx, por exemplo, para fazer a ciéncia da histéria dos homens, 106 Biovouiricas mesmos, que, por isso, nds no o percebemos.™. Isso é um pouco, segundo Foucault, o que faz. a filosofia analitica anglo-americana, ‘que podemos seguir como modelo, transformando-o em parte. Embora o espectro da filosofia analitica seja extenso, ele se refere provavelmente a filésofos como Wittgenstein, John Austin, John Searle, O que faz, segundo Foucault, a filosofia analitica? “A filoso- fia analitica anglo-saxa nao se d& como tarefa refletir sobre o ser da linguagem ou sobre as estruturas profundas da lingua {como 0 fa- zem os linguistas; ela reflete sobre o uso quotidiano que se faz da lingua nos diferentes tipos de discurso[,..] uma anélise critica do pensamento a partir da maneira com a qual dizemos as coisas”. ‘Um pouco a0 modo da filosofia analitica, 0 olhar de Foucault vvasculha os discursos, tais quais eles se enunciam no quotidiano ‘de uma prética para, a partir deles, compreender 0 jogo de relagdes de poder. f a partir dos discursos que Foucault percebe o fluxo e 0 jogo dessas relagées. Como na filosofia analitica, trata-se de per- ceber no que é visivel, na superficie da aparéncia - e néo no que estaria por trés dela, no desvelado, no mais real que o real, no fun- damental, no originério, no transcendental -, 0 que esté em jogo, os objetivos, as taticas, as estratégias, as reiteragdes, as conexdes, as, préticas que, finalmente, dio nome as coisas. Apesar dessas semelhangas, trata-se de implementar uma distingio de enfoque. A filosofia analitica da politica seria “uma filosofia que trataria, por conseguinte, mais das relagdes de po- der do que dos jogos de linguagem, uma filosofia que trataria de todas essas relagdes que atravessam 0 corpo social, antes do que dos efeitos de linguagem que atravessam ¢ sustentam 0 pensamento™ Para a filosofia analitica da politica, e & sobre isso que ela discorreria, a figura que 0 corpo social assume é corre- Iativa &s ordenagdes das relagdes de poder, tais como elas apare- em nas préticas discursivas. Para a filosofia analitica da linguagem, os significados dos termos universais, como Estado, soberania, poder, sio definidos pelo uso que nés fazemos deles, no interior de um jogo de lingua- ‘gem. A filosofia analitica anglo-saxa procura, portanto, o signifi- Anorotftica ro bisrosrmivo pesexvatipap: 107 cado das palavras, no uso quotidiano que fazemos delas, no jogo de linguagem em que elas esto inseridas, néo numa suposta refe- réncia Ultima e defintiva dessas palavras a esséncias metafisicas. ‘A busca dessas esséncias seria uma espécie de patologia do pensa- mento. Para Wittgenstein, “a filosofia é uma luta contra o enfeitica- ‘mento do nosso entendimento por meio de nossa linguagem’™% a linguagem é 0 que nos enfeitica e, ao mesmo tempo, o que pen te, quando a restituimos a seu uso quotidiano, a nossa cura, “Nos reconduzimos as palavras de seu uso metafisico de volta para seu ‘uso quotidiano”*, Para Foucault, para uma filosofia analitica da politica, o uso das palavras remete a uma pritica discursiva em que estio em jogo relagoes de poder. O esclarecimento, o tornar visivel o visi- vvel dessas praticas, dessas relagdes de poder, dos seus modos de funcionamento, dos mecanismos de poder que condicionam esas relagdes, com suas estratégias globais e titicas locais, éa tarefa de ‘uma filosofia analitica da politica, A filosofia para Foucault tam- ‘bém é uma luta contra o fitigo, uma luta pelo esclarecimento das priticas. O significado da palavra ‘sexualidade’é esclarecido se tor- rnamos vislveis as relagdes de poder que estao em jogo, em torno do uso quotidiano desta palavra. “Importancia, por conseguinte, [na questao da linguagem, como na de poder] da nogio de jogo”. Compreender o poder como um jogo, nao tanto como uma telagio de dominagao, em que os papéis de dominantes e dominados estio definidos de uma vez por todas. Quando jogamos, jogamos ¢s- trategicamente, perseguindo objetivos, utilizando-nos de diversas titicas que aplicamos, em determinado instante, em determinado lugar. Titicas que modificamos, segundo o que é oportuno. Quan- do jogamos, consideramos, ao elaborarmos a5 nossas estratégias, também as presumiveis estratégias dos parceitos do jogo. Para tor- nar mais clara a relagdo de poder, pensé-la a partir do modelo do jogo, mais do que da dominasao. Dizer que Foucault € um nominalista, no quer dizer que, para ele, a linguagem € independente do ser das coisas, que ela determina o ser das coisas a partir das relacoes que as palavras e3- 108 Bropotiricas tabelecem entre si, porque as coisas nao antecederiam ontologica- ‘mente is palavras. O nominalismo de Foucault deve ser entendido como uma filosofia analitica da politica, em que o nome estéligado ‘uma pritica, a um mecanismo de poder e de saber, que nio so, contudo, independentes de um trago material. Como Veyne ob- servon, hi, para Foucault, uma base material para o nome. O dar rome a essa base material, porém, é um processo que se forma no interior de uma pritica, uma pritica discursiva, que envolve cam- pos de forga e de saber, estratégias em contflito, técnicas de poder, de adestramento, de assujeitamento, de obtengao de obediéncia, Afirmar que 0 nominalismo de Foucault ¢ 0 que faz de Fou- cault um filésofo, como afirmou Veyne, requer um pouco mais de nossa atengao. Nessa grande discussdo — Foucault ¢filésofo, é historiador? -, certamente se coloca uma questio epistemolégica, a respeito do que ¢ filosofia, do que é 0 conhecimento de tipo fi- loséfico, Sem nos aprofundarmos nesse assunto, talvez possamos aplicar a Foucault o que disse Althusser sobre Marx, nas suas indi- cagies de leitura do livro I de O Capital: “nao buscar, em O Capi- tal, nem um livro de historia ‘concreta’ nem um livro de economia politica ‘empirica, no sentido com que os historiadores e econo- mistas compreendem esses termos. Mas encontrar ai, um livro de teoria que analisa 0 modo de produgéo capitalista’*. Da mesma forma, poderiamos sugerir a respeito dos livros de Foucault: nao buscar af um conteido de hist6ria, mas a andlise dos mecanismos, «€ das tecnologias de poder pertinentes a0 capitalismo. Em uma entrevista de 1978, um interlocutor pergunta a Fou- caultse suas anzlises da delinquéncia na sociedade francesa seriam universalmente aplicaveis, “O objeto de anélise ~ responde Fou- cault - & sempre determinado pelo tempo e pelo espaco, mesmo se tentamos dar-Ihe uma universalidade. Meu objetivo é analisar a técnica de poder que busca constantemente novos meios, e meu objeto é uma sociedade submetida a legislacéo criminal. Essa so- ciedade difere na Franga, na Alemanha ¢ na Itélia. Por outro lado, « organizagéo que torna o poder eficaz.é comum”®, Foucault nao faz historiografia da Franca, da Inglaterra ou da Alemanha, em- Amorotinica #0 pisrosirivo br sexuatiDAp® 109 bora, muitas vezes, suas pesquisas aparecam atreladas & historia desses paises, mas Foucault utiliza-se de elementos historiografi- cos para fazer a anilise de mecanismos de poder, tais como a dis- ciplina, a biopolitica, o poder pastoral, e de dispositivos, como 0 da sexualidade, o da loucura, 0 da delinguéncia. Embora Foucault parta de dados histéricos, localizados num certo espaco e tempo, para descrever esses mecanismos € dispositivos, suas formas, suas, organizagbes, sio comuns a diversas sociedades. No nosso enten- des, Foucault nao faz somente historia, e seria limitar 0 impac- to de suas formulagdes sobre 0 nosso presente, querer localizar ¢ temporalizar rigidamente seus estudos. Quem nao reencontra, hoje em dia, nas empresas, na organizagao das instituicdes bancé- rias, nas escolas, nos érgios publicos, mecanismos de poder muito proximos ao poder disciplinar do século XIX francés? Quem nao reencontra, nos discursos dos nossos politicos, nos principais té- picos dos programas de governo, nas reivindicacbes de seguranca ede satide et., os tragos evidentes das tecnologias biopoliticas dos ‘trés iltimos séculos, na Europa? Quem nao reconhece, no modo como lidamos com nossa sexualidade, importantissima, midiética, consumista, mas também, perigosissima, uma semelhanga com 0 dispositivo de sexualidade que se originou da necessidade de au- toafirmacio da burguesia francesa do século XVIII? Em Foucault, na genealogia, nao se trata de fazer historia primeiro, para depois econhecer os tracos que ainda permanecem ativos no presente; trata-se de partir do presente, das questées que nos so mais re- levantes, para constituir retrospectivamente 0 modo como essas 4questdes se articularam na histéria com os mecanismos de poder {que nos sujeitam, que nos governam. Trata-se de problematizar historicamente o presente. E a partir da problematizacéo do que nos acontece, hoje, que se arma a histéria da sexualidade. * © dispositivo de sexualidade é uma das ordens do biopoder, ‘uma das configuragoes politicas das forgas, na qual individuos, las- 4 110 Brovouiricas ses econdmicas, populagées se encontram vinculados por seu sexo, na qual o sexo constitui a matéria que, elaborada em um regime pri- tico-discursivo, toma a forma da sexualidade. InstituigSes e gover- nos, disciplinas e biopoliticas encontram, na forma da sexualidade, © ponto de apoio para o assujeitamento dos seres humanos, 0 ponto de apoio a partir do qual os comportamentos podem ser normali- zados, conduridos. A sexualidade é objeto para saberes diversos — ‘medicina, psiquiatria, psicandlise, sexologia, antropologia, sociolo- gia -, para toda a scientia sexualis, da qual emerge o objeto homem. como sujeito de sexualidade, o homem inexoravelmente sujeito de seu sexo, O dispositivo de sexualidade é um modo de objetivacio do homem em relagao com um mecanismo de assujeitamento. No que diz respeito aos aspectos propriamente biopoliticos desse mecanis- ‘mo, a sexualidade se apresenta como um operador de regulacio das populagdes. A sexualidade é, por um lado, concebida como 0 ingre- diente essencial da natureza humana, por outro, como um sistema de distingdes que acompanha a estratificagao da populagéo. Obje- tificada, a sexualidade faz-se indice de mapeamento da populacao, por géneros, por faixas etérias, por classes econdmicas. Os costumes sexuais, normalizados e normalizaveis, sio considerados 0 micleo dos comportamentos e aquilo a partir de que esses comportamentos, podem ser conduzidos. A sexualidade e 0 comportamento sexual sio um problema de Estado, concernem de muito perto a satide da opulagio, so 03 motores e veiculos de sua bio-histéria, estio es- treitamente ligados as questdes macroeconémicas,& constituicao da populacio ativa, a diversos setores produtivos e consumidores. As estratégias ¢ programas governamentais de higiene e satide pablicas, de natalidade, os sistemas de ensino, os sistemas habitacionais se configuram com base nessa sexualidade comum e estratificada das populagées e, com isso, seguem e reforgam, a0 mesmo tempo, os principios da scientia sexualis Amorotinics 20 pisposirivo De seXUALIDADE 111 NOTAS & REFERENCIAS 1 vSR, cap Vp. 20, 2 VSR cap. Vp. 211 Ss neste primero volume da Histria da seualdade, Foucault nals, na todernidade, a sexuaidade como um modo de assyjeltamento~ em {gee asim chamads,lberapdo sexual, de fat, nos tora sujetos submetidos 20 Seas do sexo ~ no volume subsequene, Foucault mostra com, pare os gregos. ‘ss ophrodisiacontiem s materilidade a "wbstincia ei sobrea qual incidem pric de commole de sq sto exercicloseetidos de erdade.Teata-se, nssas {nica de "da possibidade dese constitute como sujet mestre de sua cond ‘uf UDP, cap Ih, secdo 4p 183. > Bbidem,p. 207 + Toidem, cap. 1p. 12 ara uma breve hiss da conisio, confer: ANO, Cours du 19 février 1975, p 157-164, ‘VSR, cap, seg 1. p28 idem, p26 Tbidem, p30, Tider, p40. A sexualidade fant, portant ofl uma descoberta da psicanl como a proprio Freud afrmon no segundo dos rs ensaio:“neshur autor 0 ‘que eu sibs ~esceve Freud, reconhecew com clareza a normatvidade da pulsto semua n infil, nos escrtosjnumerosos sobre o desenvolvimento infantil, 0 ‘aptulo sabre ‘Desenvolvimento Sexual costuma ser omitide: FREUD, Sigmund, ‘Tris ensaos sobre a teorin da sexwalidade, Tad. Paulo Dia Corts Rode Janci- ro: Imag, 2002 (1905). p. vp, p34 idem, p42, iden, p46 idem, cap. I, segio 2,60. idem, p66, Eau Ox anarmais (ANO, Cours du 26 férier 1975, p. 19s), Foucault remete 0 sparecimento dos fendienos de possessio demonisca em meio reigioso 20 re ‘rudescimento das tcnicas de exame e direio de conscéncia, no poder pastoral ‘eceslistico, nos culos XVI e XVI, Para Foucault, a carne possulds’€ lugar de ‘onffonto entre a tentagberdabdics, ax prescigies do exorelstaea vontade amn- bigwa dat religiosas. O dab surge al, ondeo perseguimos, como revistincia aes ereegugioe coma justiicagso dessa persegulgso. Analogament,pode-se dize, © flparate sexual se apresenta como efeito do dipostvo de sexualdade, ade como ‘emento que antecede um poder represivo. "sR, cap. seo 2, p. 66. "© ANO, Cours dr 12 mars 1975, 261, Foucault atrbuloisolamento do instinto sexual aum texto de Heinrich Kaan, de 1844, Peychopathia sexual, primero dos trataos de psiulatrin a falar somente de psicopatologia sexual ANO, p. 262 (CE VSR, cap. IV, seg 4p 155 112 Brorotsricas VSR, p. 156, Desa centalidade do sexo decorrem os projets medias e 0 pro rams de eugenia,inovagdestcnolégicas da segunda metade do século XIX. A Dacanilie epreentos, nese proceso, possblldade de uma peur. Apesar de ‘ta insrida no dispositive de seruslidade, apesac de econduzir e implementar 0 ‘eu quad tedrico (ator do instnto sexual como paso), retomarerelaborar ‘ss suns priticas (como aconfissi), a psicanlse buscou desvincular a sexualidade (a tora da hereditaredade da degenerescéncia,portanto, de todos os racismos ‘eeugenismos. A plcanlise, segundo Foucault, fi at 0 anos 40, aquela que se ‘opés rigorosamente a eftiospolltiose instiuconais do sstema perversio-here ddaiedade-degenerescnci: VSR, p. 158 Por exemplo em seu ensio sabre abvrragies sexuais, 0 falar dos “invertios, Freud assume. deimediato uma posto de desconfang em relgo&commpreensso de versio do objeto semua partir da tora da perverso, da degenerescéncia 08 ‘da hereditridade, Para Pread, a excolha de um objeto homessexual no indice de “degeneescicia nem propriamente de nverso. "A pscaise considera, ates, quea Independencia da ecoba cbjetal em relago a sexo do objeto iberdade de dspor igulment de objetos masculinose feminine, tal camo obseread na infin, nas condigsprimitivas nas Gpocas ré-histrias,¢abas orga da qual, mediante 4 restrigo.num sentido 0u no out, desenvolem-e tanto tipo normal como © invertid? (FREUD, 2002 [1905], p24, ota complementar de 1915). "8 ROUCAULT, Michel. Le jeu de Miche Foucault Texto 2061977) Ins DE2, p. 298 -Embora Foucault nio o tea flo, poderiamos,retrospectvamente,aplicat ano ‘50 de dispositive também as temas dos dols capituls precedents, «falar de um . Aces em: 2 ago 2009. FOUCAULT, Michel. a soetééascipinaire on erte. Texto 281 (1978) In: DE2, pss, IV. A biopolitica eo pacto de seguranga Nas trés primeiras ligbes do curso de 1978 - publicadas no livro intitulado Sécurité, territoire et population -, Foucault apre- senta o que contamos como a quarta formulagdo da biopolitica. A apreensio e a regulacao da vida humana sao abordadas, desta vez, a partir de mecanismos de poder que visam a promover a segu- ranga da populagio. A seguranga é aqui uma questo ampla, que envolve nao apenas a doenca, os gendtipos corruptores ou a anor- malidade hereditaria, que pdem em risco 0 patriménio biologico _ dda espécie, mas tudo aquilo que representa um perigo, uma amea- «a vida da populacdo, Nas trés abordagens da biopoliticajé trata- das, abordagens feitas pelo viés da satide, da raga e da sexualidade, fazia-se presente um fator positivo de implementagdo da vida da espécie. Pelas politicas de medicina social, pelos mecanismos de guerra interna ou externa ou pela ancoragem sexual, tratava-se sempre no apenas de proteger, de resguardar a vida das popu- lagées, mas sobretudo de promové-la, incrementé-la, purificé-la._ ‘Na abordagem da biopolitica como dispositivo de seguranga di-se maior enfoque as agbes de cuidado, de protecio, de defesa, acdes mais negativas, digamos, do que positivas. Com isso, Foucault am- plia a perspectiva analitica da biopolitica, da questio do racismo, da eugenia, para um novo campo, a seguranga, que Ihe permite continuar a interpretar, biopoliticamente, as relagdes contempori- reas entre Estado e popullagao, “A referéncia de um Estado a uma populacio - segundo Fou- cault ~ se faz essencialmente sob a forma disso que poderlamos chamar o ‘pacto de seguranca {..] © que o Estado propde como pacto & populago €: ‘Voces estardo garantidos. Garantidos contra tudo o que pode ser incerteza, acidente, dano, risco”. O Estado toma para si a responsabilidade de organizar uma série de me- 118 Bropotficas canismos capazes de reduzir as ocorréncias danosas ocasionais e controlar seus efeitos ~ entre eles, além dos tradicionais mecanis- ‘mos de seguranca militar e juridica, os mecanismos de seguranga social, seguro-saiide, seguro-desemprego, fundos de solidarieda- de, vigilancia policial e prevengao da criminalidade. Trata-se de desenvolver os mecanismos capazes de apreender e regularizar os eventos aleatérios que, de algum modo, ameagam a seguranga de uma populacio, ‘Uma dessas ameacas, entre tantas, seria 0 terrorismo. O pac- tode seguranca explica por que a repercussio do terrorismo sobre 1s Estados é tio impactante. Segundo Foucault, o terrorismo nao constitui uma ameaca real e direta a forca do Estado; é num outro plano que ele constitui um perigo. Quando 0 terrorismo atinge 1 populacio, é percebido pelo Estado como uma ameaca, porque pée em risco nio diretamente o aparelho do Estado, mas 0 pacto_ de seguranca, pacto que é a condi¢io de aceitabilidade das suas _ _telagées do Estado com a populacéo, cuja seguranca é sua funcio ‘garantir.O atentado terrorista, enquanto fato espetacular, atinge fem cheio 0 contetido desse pacto, e desactedita 0 Estado e sua promessa, “justamente no plano em que ele afirmou a possibili- dade de garantir as pessoas que nada [de mal, de arriscado] Ihes sucederia””. 0 Estado reage com viruléncia ao terrorismo porque este poe em xeque a esséncia do pacto que vincula aquele a popu- lagao, Para enfatizar que cumpre a sua parte no pacto, a cada ver, que a seguranca da populacdo € posta em risco, a acio do Estado deve ser espetacular. Foucault afirma que “toda a campanha sobre a seguranca piiblica deve estar apoiada ~ para ter credibilidade e ser rentével politicamente ~ por medidas espetaculares que pro- ‘vem que o governo pode agi, rapidamente efirmemente, acima da legalidade. Agora, a seguranga esta acima da lei Estado, no desempenho de sua fungao de garantir a segu- ranga da populagio, deve demonstrar constantemente sua inten- fo e sua capacidade de se colocar acima do sistema de leis e do ‘mecanismo juridico. Diante do inusitado do acontecimento, o Es- tado intervém excepcionalmente, sem que essa intervengao, essa Axtorotfrica Bo PactO De stounaxca 119 deciséo excepcional, parega uma arbitrariedade ou um abuso de poder, mas, pelo contrério, uma disposigdo solicita do Estado para ‘cumprir seu papel, Foucault reconhece, nessa tendéncia a excegio, a vocacéo dos Estados ao totalitarismo. “Toda uma efervescencia, de abusos, de excessos, de irregularidades, forma nao uma detur- pagdo inevitivel, mas a vida essencial ¢ permanente do estado de ireito”. Certamente porque, quando 0 principio que orienta o, Estado é 0 cuidado com a vida, hé uma tendéncia a vinculat 0 poder sobre a vida, a biopolitica, ao poder totalitério; pois a vida, substrato bioldgico comum’% espécie humana, totaliza a popula- ‘Gao, € relega as especificidades biogréficas individuais e o pluralis- ‘mo a um plano secunditio. 7 ‘A transformagio da aco politica em atividade de defesa e de valorizagio do processo vital da espécie humana perfaz essa ten- déncia totalitéria dos governos. Mas, “no sentido estrto ~ insiste Foucault -, um Estado totalitario é um Estado em que os partidos politicos, os aparelhos de Estado, os sistemas institucionais, a ideo- Jogia fazem corpo, em uma espécie de unidade controlada de alto a baixo, sem fissuras, sem lacunas e sem desvios posstveis". Por iss0, Foucault nio compartilha 0 posicionamento daqueles que afir- ‘mam que as democracias liberais ocidentais sao regimes totalité- ros, Hé um hiato irredutivel entre o recurso recorrente a medidas de excecio eo totalitarismo. As “sociedades de seguranca’ do final do século XX, sio muito mais tolerantes a respeito das diferencas ideolégicas e comportamentais: “hé uma margem de manobra € tum pluralismo tolerados infinitamente maiores que nos totalita- rismos. Trata-se de um poder mais habil, mais sutil do que aquele do totalitarismo”*. Os Estados néo se tornaram mais rigidos e in- flexiveis, mas, iversamente, se ordenaram de tal forma a poderem se tornar mais elisticos, e por isso, mais resistentes. Obviamente essa tolerncia e essa elasticidade podem cessar diante do “aciden- te perigoso”, Para Foucault, no entanto, aestratégia de abordagem dessas “sociedades de seguranga’ como totalitarismos, utilizando- se de “velhos conceitos histéricos” para recodificar o presente, dei- xa escapar aquilo que a atualidade tem de especifico, restringe

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