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Respondendo 4 pergunta: quem é a Ilustragdo? RUBENS RODRIGUES TORRES FILHO Luzes (Século das): com essa metafora de claridade (Lumieres, Tluminismo, Enlightenment, Ilustracién, Aufkldrung), 0 pensamento europeu do século XVIII formou sua auto-imagem, caracterizada pela confianga no poder da luz natural, da razao, contra todas as formas de obscurantismo. Podemos ainda ouvir ressoar esse otimismo, em suas cordas mais sensiveis, no proprio prefacio da Critica da Razdo Pura (1781), mesmo ali onde se trata de marcar, para a razao, limites claros e definitivos: ‘‘Nossa época é propriamente a época da critica, A qual tudo tem de submeter-se. A religido, por sua santidade, e a legislagao, por sua majestade, querem comumente esquivar-se a ela. Mas desse modo suscitam justa suspeita contra si e nao ter pretensdes Aquele tespeito sem disfarce que a razdo somente outorga Aquilo que foi capaz de sustentar seu exame livre e ptiblico”.! Pois furtar-se 4 claridade, querer permanecer nas trevas, é 0 mesmo que ter algo a esconder. A questao — j4 nao apenas de teoria, mas de ética — é que tudo possa ser esclarecido, trazido a ptiblico, ao aberto (Oeffentlichkeit!), e ali, as claras, possa fazer valer o seu valor. Tudo? Kant acaba de mencionar os dois assuntos em que rege renitente o principio da autoridade e que acabarao pondo em questo o proprio conceito da Ilustracao: a religiaio a politica. E simplesmente histérico constatar que desde o inicio o lema “ousar saber” (Sapere aude), formulado mais tarde por Kant em nome (1) Kritik der reinen Vernunft, 1% edigao (A), p. XI, nota. 101 de uma valorizac&o do uso nao tutelado do intelecto, j4 era praticado pelos primeiros “ilustradores”; e€ que foi justamente por oposigao a toda aucroritas (e, em particular, a da Revelagao crista), que se defi- niu, desde 0 inicio, o movimento da Ilustragao. Seu gesto inaugural é, por definig&o, o desmascaramento da autoridade como preconceito, inibidor do livre exercicio da luz natural, que cabe, por direito, a todos os homens.? Mas que essa Ilustragao viesse a buscar, deliberada e metodicamente, uma definigado de si mesma e, num moyimento refle- xivo, desviar-me de seus objetos para ilustrar-se sobre sua propria natureza — o que s6 ira acontecer bem mais tarde, na formulag&o da pergunta: “‘O que é Ilustragao?" e em sua “‘Resposta’’ por parte de Kant (1784) — 6, sintomaticamente, conseqiiéncia dessa sua mesma colocacao perante um oponente que, afinal, nao pode sair perdendo: 0 poder constituido. Um primeiro indicio daquilo que efetivamente suscita essa “‘pau- sa para a reflexaio” € j4 a propria ocasiao do escrito de Kant “Em Resposta A Pergunta: O Que é Ilustragao?”, que, como se sabe, é rigorosamente contemporaneo — simultaneo mesmo — ao artigo de Moses Mendelssohn sobre o mesmo tema: ‘Sobre a Pergunta: O Que é Ilustrar?” Coincidéncia de preocupagées, que marca um momento decisivo na trajet6ria do pensamento ilustrado; ao receber o antncio da publicacaio do texto de Mendelssohn, Kant, que acaba de terminar o seu, acrescenta-lhe uma nota final para dizer: a resposta de Men- delssohn a esta mesma pergunta ‘ainda nao me chegou as maos; do contrario, teria impedido esta, que agora s6 pode permanecer como ensaio para experimentar em que medida o acaso pode promover concordancia de pensamentos’’.? A concordancia, que de fato se veri- fica no essencial (sobretudo na énfase dada ao carater ético, nao simplesmente tedrico, do esforgo de ilustrar, na sua vinculagao com a destinagao da totalidade da humanidade e na distingao crucial entre o homem como ser humano e como cidadao), nao é entretanto ditada pelo acaso. Esta inscrita, de antemdo, no proprio sentido da pergunta. O que se quer saber, de fato, é quem é a Ilustracao: em que nome ela (2) As referéncias na Alemanha yao de Christian Thomasius, De Prejudiciis oder von den Vorurteilen (1689); Eileitung in der Vernunfft-Lehre (1691), até Gotthold Ephraim Lessing, com Nathan der Weise e Die Erziehung des Menschengeschlechts (1777). Para uma visio de conjunto sobre o papel da Ilustragao na cultura alema, consultar: Peter Piitz, Die Deutsche Aufklarung, Darmstadt, 1979. (3) “Beantwortung der Frage: Was ist Aufilarung?”, citado pela paginagaio da 1? edigdo (A), in Berlinischer Monatschrift, 1784. Aqui: A 494, nota. 102 fala. Questiona-se sua idoneidade moral, seu grau de respeitabilidade ou, ao contrario, de periculosidade. Em que medida ela pde em risco as instituicdes? Antes de iniciar um exame do texto de Kant, para comprovar que éesse o sentido que 0 autor tem constantemente em mente, desenyol- yendo toda sua argiicia para desarmar suspeitas, vale a pena lembrar essa ocasiao, isto é: como, no debate intelectual alemao, emergiu a propria pergunta. . O ponto de partida — surpreendentemente inécuo, sobretudo quando encarado a partir destes tiltimos decénios do século XX — foi a questao do casamento ciyil. Johann Erich Biester, um dos fundadores do Mensério Berlinense (Berlinischer Monatschrift), publicagio do circulo de intelectuais que se autodenominava ‘Sociedade dos Amigos da Ilustragao”’ ou ‘Sociedade das Quartas-Feiras”, por causa das reunides semanais que mantinham visando desenvolver e propagar a liberdade de critica e de pensamento, publicava em 1783, nesse perid- dico, sob o pseudénimo de E. y. K., seu artigo: ‘“Proposta de nao mais se dar trabalho aos eclesidsticos na consumacéo do matriménio’’. Argumentando que outras relacdes*juridicas entre seres humanos, de igual dignidade e importancia, dispensavam qualquer sangAo religiosa, defendia 0 mesmo tratamento para o contrato que liga homem e mulher, rematando com a frase: ‘‘Afinal, para ilustrados sAo desneces- sarias todas essas cerim6nias!”’. A resposta nao demora. Outro daqueles mesmos ‘‘amigos da Ilustragao”, Johann Friedrich Zéllner, é de opinido contraria. Nada mais natural. Estamos na época da luzes e do debate livre, e 0 Men- sdrio Berlinense ira publicar no numero seguinte sua resposta, sob 0 titulo: “Sera aconselhavel nao mais sancionar o vinculo matrimonial pela religiio?”. Seu argumento, quanto ao assunto mesmo da dis- cussao, também nao tem nada de extraordin4rio: o casamento é um ato que decide, em grande medida, sobre a felicidade do ser humano, e nZo se deve tratar todas as obrigacdes juridicas como se fossem do mesmo grau. O importante, porém, quanto 4 mudanga de atitude, ja esta inscrito no tom do titulo: “Zst es ratsam... (Sera recomendavel...)”’. Nao € prudente, diz o texto, desvalorizar a religiio em todos os as- suntos profanos e desse modo, ‘sob o nome de J/ustragao, confundir as cabegas e os coragées dos homens”. Ilustrar, sim: 0 espirito dos tempos € o bem da humanidade o exigem. Mas fazer da Ilustracao, tomada sem critica e sem a consciéncia de seus limites, um pretexto para a Subyersao e para a anarquia — ilustrar ds cegas — seria por a perder até mesmo aquilo que as Luzes conseguiram, até-agora, laboriosa- 103 mente conquistar. sera nesse ponto, com esse contexto preciso, que Zéliner se tornara o formulador da pergunta classica, que atinge em seu nervo mais profundo a consciéncia do ilustrador: “‘O que é Ilus- tragio?” Eo autor comenta: “Essa pergunta, que € quase tao impor- tante quanto: o que é a verdade, deveria certamente ser respondida antes que se comece a ilustrar! E eu ainda nao a encontrei respondida em parte nenhuma!”’. Essa quest’o preliminar (ou “prejudicial”, como diria um ju- rista), formulada, paradoxalmente, nos anos finais do Século das Lu- zes, solicitando a todos os ilustradores que suspendam suas atividades enquanto nao tiverem investigado o conceito que as sustenta, nao deixa de evocar o apelo langado por Kant aos metafisicos no prefacio de seus Prolegémenos a Toda Metafisica Futura: ‘é incontornavelmente neces- sario pér de lado provisoriamente seu trabalho, considerar tudo 0 que aconteceu até agora como nio acontecido e antes de todas as coisas formular primeiramente a pergunta: se algo como a metafisica é sim- plesmente possivel’’.4 Sabendo da profundidade com que esta “‘questao prejudicial” de Kant atingiu a metafisica, nao é dificil compreender a gravidade com que o mesmo Kant vai retomar por sua conta a pergunta de Zéllner, no artigo que escrever4 para o mesmo Mensdrio Berlinense, tendo em vista, diretamente, o contexto em que ela emergiu: o trecho de Zéllner vem reproduzido em nota de rodapé e, no cabecalho do artigo, vém indicadas a data e a pagina ($/12/1783, p. 516) em que ela foi formulada. Eis, pois, o ponto de partida das reflexdes que Kant, 0 filésofo que consagrou a parte decisiva de sua vida a investigar o poder da raz4o e seus limites, ira dedicar 4 Ilustragao: a Ilustrago tornou-se pro- blema. Por isso, embora 0 artigo comece, sem vacilagées, por uma definicZo formal do conceito em quest&o, em correspondéncia grama- tical direta com a pergunta (“Ilustragdo é...”) ele nao termina ai. A aquisi¢io dessa definig&o nao é seu ponto de chegada e esta longe de esgotar, aos olhos do préprio Kant, o que esta propriamente em quest’o. A ‘‘Resposta 4 Pergunta’’ ira estender-se ainda, para além dessa definicdo, por uma dezena de paginas, nas quais sera possivel assinalar uma série de expressdes.que deixam transparecer claramente o interesse apologético que move a discusso. (4) Prolegomena zu einer jeden kiinftigen Metaphysik etc., 12 edigdo (A), Riga, 1783, p. 4. 104 Nao estivesse a Ilustracfo sob suspeita, qual a necessidade de reafirmar sua inocéncia, de garantir que a liberdade que é seu tnico requisito é ‘‘a mais inofensiva de tudo 0 que se pode chamar liberdade” (A 484), de demonstrar pelo exemplo que, existindo essa liberdade num determinado pais, sob determinado governo, “nao ha o minimo que preocupar-se pela tranqitilidade publica e pela concérdia da comu- nidade” ou que, mesmo em relagao a legislagao, o exame livre e piblico é “sem perigo” (A 493)? Trata-se de afastar a possibilidade de que se pense 0 contrario; admite-se, pois, que pensar o contrario faz sentido. “Nossa época € a €poca da critica, 4 qual tudo deve submeter-se”’, ja dizia a Critica da Razdo Pura. Mas deve haver um modo correto de se entender essa critica, regras claras norteando seu exercicio, para que ela nao se confunda com alguma atividade ofensiva, ameagadora da tranqitilidade publica e perigosa. Kant compreendeu perfeitamente a pergunta de Zéllner: Afinal, até onde vai chegar a Ilustragéo? Quais so seus limites? Tanto que seu empenho sera apontar, com clareza e seguranga, esses limites. Dois poderes, segundo o prefacio da Critica da Razdo Pura, desafiam 0 avango das Luzes: a santidade da religido e a majestade da legislacio. Este artigo dirige seu foco, expressamente, ao primeiro deles, e justifica, no final, essa escolha. Nao, porém, por oposi¢gao 4 legislacaio, 4 qual suas conclusdes poderao trangiiilamente estender-se, mas em relacdo as ciéncias e as artes, j4 que, a respeito dessas, ‘‘nossos governantes nao tém nenhum interesse em desempenhar a tutela sobre seus stiditos” (A 493). Defende, pois, 0 pensamento nao tutelado, o uso livre da raz4o, especificamente nos “‘assuntos de religiao"’. E é precisamente esse 0 tema do debate que se trava nas paginas do Mensério Berlinense: sera permitido, em nome da razao ilustrada, questionar a sangdo religiosa a um ato civil? Kant procurara mostrar sob que condigdes e dentro de que limites a resposta tem 0 direito de ser afirmativa. Se for valida essa hipdtese, de que o texto de Kant se torna mais inteligivel quando restituido a seu contexto imediato, sera possivel reconstituir agora, 4 luz dessas indicagSes, a construgado de sua argu- mentagao. O texto desenvolve-se numa seqiiéncia de trés perguntas. A pri- meira parte, claramente introdutéria e conceitualmente analitica, con- duzindo da definigdo da Ilustragao A afirmaga’o de que seu unico Tequisito € a liberdade, move-se no interior da pergunta, tal como foi formulada por Zéllner: “O que é Ilustragao?”. JA a segunda parte, contendo o mais substancial da argumentacio e servindo-lhe de eixo, 10S ser dirigida ao sentido mesmo, tal como est implicito na pergunta, A formulaciio verbal desse sentido, em termos explicitos, é 0 que ira constituir a segunda pergunta do texto kantiano: “Qual restri¢gdo (da liberdade) é obstaculo para a Ilustrag0? Qual nao é, mas, pelo con- trario, Ihe é até mesmo propicia?”’ (A 484). E a palavra usada aqui, por oposicao a hinderlich (impeditiva, que faz recuar), sera beférderlich; isto é: qual restrig&o da liberdade promove o avango das Luzes? Final- mente, uma terceira pergunta, que se refere 4 aplicagao historica daquele conceito de Ilustrac&o internamente esclarecido, conduzira ao fecho da discussao: ‘‘Vivemos agora numa época ilustrada? Nesta ultima pergunta, é facil reconhecer 0 eco daquela excla- macao de Johann Erich Biester, no artigo que propunha a supressdo do casamento civil e desencadeou toda a discuss4o: “Afinal, para ilus- trados s&o desnecessdrias todas essas ceriménias!". Mas, dira Kant, sera que podemos considerar-nos “‘ilustrados’? E a resposta vira: “Nao, mas vivernos em uma época da Jlustragdo. Para que os homens, no estado em que esto as coisas, tomados em seu todo, estivessem em em condicdes, ou simplesmente pudessem vir a ser postos em condigdes de, nas coisas da religiio, poder servir-se de seu proprio entendimento sem a direcdo de outrem com seguranga e bem, ainda falta muito” (A 491). Mas vivemos na época da Ilustragao, isto é, ha um campo aberto para que eles trabalhem nesse sentido: os obstaculos para isso se tornam menos numerosos. Entenda-se: diminuem as restrigdes da li- berdade impeditivas do progresso das Luzes. Mas isso ocorre talvez, por uma questo de equilibrio, gragas ao aumento das restrigdes que lhe sao propicias. Esse jogo entre as duas qualidades de restrigdes, que opera diretamente sobre a conclusdo kantiana, é justamente o que falta compreender, para avaliar em seu pleno sentido aquilo que o autor, no final do artigo, chamara de ‘‘inesperado paradoxo”’, no qual se revela o earater proprio de seu inabalavel otimismo quanto a Ilustragao: ‘Um grau maior de liberdade civil parece vantajoso para a liberdade de espirito do povo e no entanto Ihe poe barreiras intransponiveis; um grau menor daquela primeira, em contrapartida, proporciona a esta Ultima espaco para estender-se em todo seu poder” (A 493). a Retomemos, entao, o primeiro paragrafo do texto: ‘‘Ilustracdo éa saida do homem de sua minoridade, pela qual ele mesmo é culpado. Minoridade é a incapacidade de servir-se de seu entendimento sem a conducgao de outrem. Auto-inculpdvel € essa minoridade quando a 106 causa dela nao esta na falta de entendimento, mas na falta de decisao e de coragem para servir-se do seu sem a condugao de outrem. Sapere aude! Tenha coragem de servir-se de seu préprio entendimento! — é, portanto, o lema da Ilustrag&o”’ (A 481). “Tlustragao é a saida do homem de sua minoridade, pela qual ele proprio é culpado.” Essa tao citada definicao, pela qual Kant comega diretamente seu artigo, que sera reiterada duas vezes em momentos decisivos da parte final, modificada apenas pela interessante intro- dugdo de um plural (‘‘os homens" em lugar de ‘to homem”’) e que aqui yem imediatamente acompanhada pela definigao de seus termos (‘‘mi- noridade” e “‘auto-inculpavel"), nao deve, ja se viu, ser confundida com a “Resposta 4 Pergunta’’, que ira alongar-se muito mais. Para compreender seu sentido e a funcao que ela esta desem- penhando no interior da argumentagao, talvez nao fique fora de propé- sito consultar aquilo que Kant diz a respeito de duas outras definigées, de importancia central para a sua obra: a do “‘sentimento de prazer’’, referente a Critica do Juizo, e a da “faculdade de desejar’"’, referente a Critica da Razdo Prdtica. Para trabalhar com esses conceitos tomados em sua devida universalidade, diz Kant, € preciso que sua definicao seja transcendental.* Assim, a do sentimento de prazer sera: “é€ um estado da mente no qual uma representag4o concorda consigo mesma, como fundamento, seja meramente para conservar esse proprio estado, seja para produzir seu objeto”; a da faculdade de desejar: “é a facul- dade de, por suas representacdes, ser causa da realidade efetiva dos objetos dessas representagdes”’.® Tais definigdes, ‘‘compostas unica- mente de notas do entendimento puro, isto é, categorias que nada contém de empirico”’, tém a vantagem de nao antecipar o resultado da investigacdo e, justamente por sua formulagao “cautelosa”, sao prefe- riveis As costumeiras defini¢des “‘ousadas” pelas quais se pre-julga do objeto “antes do completo desmembramento analitico do conceito, que sd é alcancado muito mais tarde’’.’ Seu lugar é, pois, no inicio da investigacao, e a estranheza que despertam 4 primeira vista, por sua generalidade descarnada, é simplesmente o efeito da elementar cautela de nada imiscuir nelas de empirico, que possa ser desmentido pela investigacao. (5) “Primeira Introdugao a Critica do Juizo", colegao Os Pensadores, p. 189. (6) A primeira definigao pode ser lida na pagina recém citada. A outra encontra- Se mencionada na nota correspondente e também em: Kritik der praktischen Vernunft, 1? edigao (A), p. 16, nota. (7) Kritik der praktischen Vernunft, A 16/17, nota. 107 Mas é a propésito da segunda dessas definigdes, a da faculdade de desejar, acusada, nao de generalidade excessiva, mas de conter um evidente absurdo (a representacao — o mero desejo — ser causa de seu objeto), que Kant ira explicar-se melhor, nas duas versdes de uma mesma nota, contida no manuscrito conhecido como “*Primeira Intro- dugao a Critica do Juizo” e na Introdugao do proprio (na 2? edicao, p. XXII-XXIV). Que uma definicfo deixe “‘indecidido’’ 0 resultado da investigagéo completa sobre determinado conceito é perfeitamente aceitavel; mas nao que o contradiga, como parece acontecer nesse caso, Uma obje¢ao dessa natureza, entretanto — e € isto que Kant julga imperioso acentuar — decorre apenas da incompreens&o do verdadeiro carater de uma ‘‘definig&o transcendental": o fato de haver desejos yazios, nao realizados ou irrealizaveis, “prova apenas’ — diz a nota da “Primeira Introdugao"’ — ‘que ha também determinacées da facul- dade de desejar em que esta esta em contradicio consigo mesma: decerto, para a psicologia empirica, um fendmeno digno de nota (como por exemplo para a ldgica a observacdo da influéncia que tém sobre 0 entendimento os preconceitos), mas que nao deve influir sobre a defi- nigao da faculdade de desejar considerada objetivamente, ou seja, 0 que ela é em si, antes de, seja pelo que for, ser desvyiada de sua determinagao/destinagao (Bestimmung). Assim, independentemente desse importante fendmeno psicolégico, ou mesmo do dado antropo- légico mencionado logo a seguir (o fato de que “‘a natureza tenha colocado em nés a disposi¢ao para tal infrutifera despesa de forgas’’), continua a ser “util” tentar uma defini¢ao transcendental, pelas cate- gorias do entendimento puro, na medida em que estas ja forem sufi- cientemente distintivas do conceito em questao. Isso consiste apenas em seguir 0 exemplo do matematico, ‘que facilita muito a solucao de seu‘problema deixando indeterminados os dados empiricos do mesmo e trazendo a mera sintese deles sob as expressdes da aritmética pura”. Ou, na outra versdo: *‘que com isso universaliza a solugao dele’. Dessa maneira, tem-se 0 conceito, nado em sua generalidade abstrata, mas em sua exemplaridade transcendental. Se a definigao inicial do conceito de Ilustrag4o, no nosso caso, puder ser interpretada da mesma maneira, conterA também esse con- ceito “‘considerado objetivamente’’, isto é: 0 que a Ilustracdo *‘é em si, antes de, seja pelo que for, ser desviada de sua destinagdo”. E nao é dificil, a partir dos conceitos da razao pratica estabelecidos pela Cri- tica, traduzi-la nos termos de seu niicleo puramente racional: a Ilus- tragao é a passagem da heteronomia 4 autonomia, obtida através da propria autonomia. E 0 ato de “‘servir-se de seu préprio entendimento” 108 o tinico capaz de fazer com que o ser humano saia daquele estado de minoridade no qual se encontra por sua prdpria culpa (A 481). Teria- mos assim, em lugar de uma definigado excessivamente ampla, guarne- cida logo a seguir de toda sorte de restrigdes, uma definicdo-guia, pela qual o autor, como os matematicos, “facilita muito a solugao de seu problema” pondo de lado as determinagdes empiricas de seu conceito. O fato de ser mais cémodo permanecer na minoridade, o fato de haver tutores que trabalham no sentido de perpetuar essa minoridade enfa- tizando os imagin4rios perigos do pensamento livre, o fato de que a Ilustrag4o, assim definida, se torna dificil para 0 individuo isolado, que se afeicoou a sua minoridade como a uma segunda natureza, embora seja ‘‘quase inevitavel” para um piblico, através dos exemplos de alguns de seus tutores que a tenham conquistado para si mesmos (A 483/484), j4 que a suposigao de tutores que sejam por sua vez menores seria “um disparate, que concorre para a eternizagao dos disparates” (A 487) — sdo notas pertinentes para a discussfo da questao, mas, em relagao 4 definigao, caracterizam apenas dados psicolégicos ou antro- polégicos. Nao ha nada, no exame dessas determinacGes empiricas, que possa influir sobre a definigao e levar a modifica-la. Compreende-se, entéo, que mesmo dentro dessas determinagdes capazes de restringi-la de fato, a Ilustrag4o se afirme plenamente de direito. Compreende-se que, independentemente dessas determina- ges, aquela conquista da autonomia pela prépria autonomia nao ira requerer, para realizar-se, nenhuma condig¢4o exterior, a nio ser mera- mente negativa: a liberdade de fazer uso ptiblico da raz&o. Se o dispositivo anti-Ilustrador, a palavra de ordem pela qual os tutores mantinham e procuram continuar mantendo seus tutelados na mino- ridade era: “Nao raciocineis, mas obedecei!”, € apenas a primeira parte dessa voz de comando que precisara ser revogada agora, para que possa ser ouvida a voz do: ‘‘Ousai saber!"’. Uma distingao precisa entre © conceito transcendental da Ilustrago, de um lado, e suas determi- nag6es empiricas, de outro, ira permitir a Kant romper com o pressu posto: “‘Quem raciocina por si mesmo nao obedecera", que estava implicito na indagacio de Zéllner e dava sentido a sua carga de inquietacao. Zéllner indagava: Até que ponto é permitido ilustrar, sem perigo para a ordem instituida? Kant responder: E licito — e é dever! — ilustrar irrestritamente, porém a Ilustracao se decide em outro territério, onde nao se pe a questao da obediéncia civil. E neste ponto que se insere a tao conhecida distingao estabelecida por Kant entre o uso ptiblico e 0 uso privado do entendimento — que ira servir de eixo para toda a sua argumentacdo. O mesmo individuo 109 que, no exercicio de uma fungdo privada (como sacerdote ou educador, por exemplo), tem o dever de funcionar como parte da engrenagem e desempenhar © papel de tutor, tera também o direito imprescritivel, quando fora de servigo, de usar sua prépria razio em seu préprio nome. Este uso ptiblico que fara de sua liberdade de pensamento, nao mais como funcionario, mas como cientista (Gelehrte), nao mais perante uma comunidade que lhe foi confiada, mas perante “‘a tota- lidade do ptiblico do mundo leitor" (A 485) ou, como esta dito mais adiante, “‘perante o publico propriamente dito, isto é, 0 mundo” (A 487), nao devera sofrer restricao alguma. Nesse momento, ele deixa de ser cidadao privado, que fala em nome alheio no desempenho de um oficio, para falar em sua prépria pessoa, como membro da sociedade cosmopolitica, a um publico de direito — diriamos, a um ptblico transcendental. Nesse momento, vale ent&o o “‘raciocinais quanto qui- serdes e sobre 0 que quiserdes”’, sem prejuizo para a plena vigéncia do “obedecei”, que se mantém, na ordem privada, fora de questao. De fato, tomada a Ilustracgao no rigor de sua definicao transcen- dental — ter a decisio e a coragem de servir-se de seu proprio enten- dimento sem a condugao de outrem — nao cabe impor-lhe restri¢ao alguma. Ela é um fim em si mesma. Nao est4 a servigo de nenhum outro interesse em nome do qual pudesse ser desviada de sua desti- nag&o propria. E a causa comum da humanidade no seu todo. Se Zollner e outros amigos da Ilustracio, temendo seu desvirtuamento, colocam a questao de restringi-la, € por ndo terem consciéncia do rigoroso limite entre ela, assim entendida, e o uso privado da razao, sujeito a todas as injungdes do imperativo hipotético. Mais uma vez, Kant ira resolver um problema corrigindo os termos em que foi pro- posto: substitui a nogao empirica de restrigdo, sempre discutivel e incerta, pela nog&o transcendental de limite. O que parecia inicial- mente ser uma questo de diferenga de grau — até onde pode avancar 0 livre exame — encontra sua verdade na diferenca de natureza entre dois usos da raz4o que sao, de direito, incomparaveis. Limite, circuns- crigao de territério, Resultado: duas jurisdigdes que — como entre o sensivel e 0 supra-sensivel — poder&o incidir sobre 0 mesmo sujeito, sem entrar em conflito entre si. Limite que permite pronunciar, sem paradoxo ou cinismo, a yoz de comando: “‘Raciocinai livremente, mas obedecei!"’. E certo que, para garantir esse limite, para fazer respeitar de fato essa distingao puramente racional entre a liberdade de espirito e a liberdade civil, falta ainda uma mediagdo: 0 “tinico senhor” capaz de pronunciar aquela voz de comando (A 484) teria de ser um principe 110 que, “ele proprio ilustrado, nao tenha medo de sombras, mas ao mesmo tempo tenha 4 m&o um exército mumeroso e bem disciplinado para garantir a tranqiiilidade publica” (A 493). Sua existéncia hist6- rica, no momento em que 0 artigo de Kant esta sendo escrito, é 0 que permite dar resposta a terceira pergunta que aparece no texto: Sim, o campo esta aberto para a saida dos homens de sua minoridade auto- inculpavel, os obstaculos para conquista da autonomia de pensamento diminuem. “Sob esse aspecto podemos dizer que esta época é a época da Ilustrag&o ou o Século de Frederico” (A 491). Eis, pois, 0 no- me que se pronuncia, se se trata de saber, a respeito da Ilustracdo, quem ela é. Cinismo kantiano? “‘Estranha", “‘inesperada” e ‘paradoxal" marcha das coisas humanas, que acabara fazendo do despotismo ilus- trado a condi¢ao da Ilustragao? Talvez, antes de responder, valha a pena voltar a examinar a relagdo que se estabelece, segundo Kant, entre a definica’o transcen- dental de um conceito e suas determinacées psicolégicas ou antropo- Idgicas. Voltemos aquela nota, em que Kant defende a definicao da faculdade de desejar como ‘“‘faculdade de, por suas representacdes, ser causa da realidade efetiva dos objetos dessas representagdes”’. Ali, na parte final, depois de assegurada a validade de se tomar a definigao em sua pureza transcendental, a atengao de Kant vai voltar-se para o que ha de problematico nessa relago. E ali pode-se ler: “Para a antropo- logia é também uma tarefa n&o desprovida de importancia a inyes- tigacdo: por que a natureza colocou em nds a disposicio para tal infrutifero dispéndio de forcas, como sao os desejos e aspiracdes vazios. (...) Parece-me aqui, como em todas as outras partes, ter achado sabia sua providéncia. Pois se, enquanto nao estivéssemos seguros da sufi- ciéncia de nosso poder para a producdo do objeto, nado fossemos determinados pela representacao dele a aplicago da forca, esta perma- heceria em grande parte sem uso. Pois comumente sé aprendemos a conhecer nossas forcas experimentando-as. A natureza, pois, vinculou a determinagao da forga com a representagao do objeto ainda antes do conhecimento de nosso poder, que muitas vezes s6 6 produzido por esse esforgo que, 4 prépria mente, parecia inicialmente um desejo yazio”. Uma sabia disposigao da natureza, portanto, esta operando sur- damente para favorecer a passagem entre o conceito transcenden- talmente definido e sua tortuosa realizacdo; por uma espécie de bene- voléncia natural — atuando pelo ayesso — determinacdes empiricas que 4 primeira vista o contradizem estao ardilosamente trabalhando Para a marcha em diregdo a ele — e isso s6 se torna claro para quem 111 toma sua defini¢do, nao como descrigao de um fato, mas como formu- lacdio — normativa — de uma tendéncia racional. Mas seria o mesmo caso fazer do despotismo a condicéo da Ilustracdo, de uma severa restrigao da liberdade civil a condicao para a liberdade de espirito de um povo e, finalmente, para sua emancipagao? Leiamos 0 iiltimo par4grafo do artigo de Kant sobre a Ilustra¢ao: “Quando entio a natureza, sob esse duro envdlucro, tiver desenvolvido © germe pelo qual ela cuida com a maior das ternuras, ou seja, 0 pendor e a vocagao para o pensamento livre, ent&o este pendor retroa- gird gradativamente sobre a maneira de sentir do povo (que desse modo se tornaré pouco a pouco apto a liberdade de agir), € acabara retroa- gindo até mesmo sobre os principios do governo, que acha proyeitoso para si mesmo tratar o homem, que ent&o é mais que maquina, em conformidade com sua dignidade” (A 493/494). Um dia, portanto, liberdade civil e liberdade de pensar chegarao acoincidir, um puiblico real poderd chegar A perfeita autonomia que sé exprime no conceito de Ilustragao. Mas compreende-se também por- que € desejavel — e nao apenas inevitével, como parecia no inicio — que isso ocorra “apenas lentamente”’ através de uma “‘verdadeira reforma da maneira de pensar’, nunca através de uma revolugdo, que se limitaria a substituir preconceitos antigos por novos preconceitos, reimplantando, sob feigdes novas, a velha heteronomia (A 484). Por- tanto, prezado Sr. Zéllner, nao ha mesmo nada a temer. 112

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