You are on page 1of 18
DA MODULARIDADE LINGUISTICA: a propdésito do advérbio de modo em Viagens na Minha Terra! Olivia Figueiredo Facukade de Leas da Universidade do Porto CGemtro de Linguetiea da Universidade do Porto olviagigusredo@elixt 1. A ideia de gramatica modular tem a sua origem a partir de reflexdes sobre a linguagem no quadro das gramiticas generativas. A concepcio modu- lar parte da hipétese de que o sistema de andlise dos estimulos linguisticos comporta uma gramética universal composta de subsistemas contendo cada um deles um elemento de base e regras préprias. Estes subsistemas, chamados médulos, entram em interac¢4o entre si para permitir a descricéo do dado lin- guistico, em quaisquer dos scus aspectos (fonoldgicos, lexicais, sintacticos, semanticos, pragmaticos...), e a explicagio desse dado, por meio da sua gene- ralizagdo ou particularizagao. O modelo modular, uma vez que os diferentes médulos esto ligados entre si por meio de um sistema de regras - as metar- regras ~, possibilitardo ao investigador nao perder de vista a concepgao global do fenémeno a analisar, ao mesmo tempo que o decompde em médulos autd- nomos ¢ complementares passiveis de serem estudados em rigor ¢ em porme- nor. Gracas as diversas conexdes entre os médulos, pode-se ter um ponto de vista limitado sobre o fenémeno a descrever ¢ ao mesmo tempo apreeender-se a articulagdo de conjunto do fenémeno em questo de forma a gerir-se a sua multidimensionalidade. Como instrumento heuristico, a modularidade permite uma grande preci- sio na descrigéo do trabalho efectuado, além de abrir a via a um nivel expli- cativo susceptivel de dar conta das relagdes sistemdticas entre os fenémenos examinados e definidos independentemente uns dos outros. Delimitada a extensio do objecto a estudar, 0 exercicio consistirA entao, com a ajuda da teoria, descrever os dados (atribuigio de uma estrurura e de ' Indicaremos V.M.T. em substituigiio de Viagens na Minha Terra. As paginas indicadas so as da seguinte edi¢do: ALMEIDA GARRETT, Viagens na Minha Terra (Realizagao didéctica de Luis Amaro de Oliveira, Porto, Porto Editora, 1974). 38 LINGUA PORTUGUESA: ESTRUTURAS, USOS E CONTRASTES uma interpretacdo) e explicd-los (por meio de um subsistema de hipéteses inde- pendentes dos factos observados). O valor explicativo seré tanto mais preciso quanto mais simples for o sistema de regras e quanto mais o sistema de regras for estabelecido independentemente dos dados. Além disso, o sistema explica- tivo sera dotado de uma capacidade de previsdo, no sentido de prever quais sao os enunciados possiveis e quais sdo as suas interpretag6es virtuais. Deste ponto de vista, a adopgdo de um quadro modular apresenta a van- tagem de permitir aprofundar o estudo sistematico das diferentes dimensées do objecto a estudar sem perder de vista a organizacao complexa do conjunto € evitar, assim, a multiplicagao de soluges ad hoc. 1.1, Pode-se conceber o surgimento de teorias modulares como uma espé- cie de reacgio ao desenvolvimento disciplinar isolado no seu proprio dominio (socio-linguistica, linguistica textual, linguistica cognitiva...). Uma teoria modular apresenta vantagens a ndo desprezar em relagao as teorias unitarias: as teorias unitdrias exprimem-se em linguagens (tedricas) diferentes e falam mundos diferentes; as teorias modulares, baseadas numa concep¢4o metodo- légica da modularidade, estabelecem como ponto de partida uma relagao dia- léctica entre teoria e empiria de forma a constantemente cada teoria modular precisar a extensio do seu dominio. Neste sentido, a modularidade elege como principio metodoldgico a delimitagao do campo de pesquisa de forma a des- crever a forma da lingua (dar conta do que é possivel e do que nao é) e expli- car as relagdes que se podem observar entre as diferentes formas linguisticas ¢ 08 seus sentidos (valor dos seus empregos). Para relacionar a forma com o sentido, 0 linguista tem a possibilidade de o fazer partindo, por exemplo, da unidade formal frase, ou da sua ocorréncia 0 enunciado. O campo de pesquisas seré ou a estrutura do discurso ideal, defi- nido como o discurso construido pela lingua ou, em oposicao, o discurso «auténtico» que releva da fala. De qualquer forma, no discurso dito auténtico, todos os encadeamentos entre palavras e enunciados obedecem as condigdes impostas pela lingua. Neste caso, como 0 sentido depende intrinsecamente das interpretagdes que os sujeitos fazem das falas que eles ouvem ou léem, haverd a necessidade de uma teoria, ou mais precisamente, de um modelo de inter- pretacao. O fundamental a reter é que a lingua produz instrugdes para a sua interpretagdo e esta s6 é acessivel pelo contexto que permite a sua saturagao. Interpretar é atribuir um sentido ao enunciado por cada locutor. Nesta perspectiva, o sentido é um termo estético, enquanto a interpretacdéo € um termo dindmico. Cada receptor faz do enunciado a sua prépria interpretaco nos limites postos pela significagao, De facto, a interpretagao consiste na satu- ragdo, governada pelas leis do discurso, das varidveis dadas pela significagao. DA MODULARIDADE LINGUISTICA: A PROPOSITO DO ADVERBIO DE MODO. 339 A fim de ilustrar 0 funcionamento de um sistema modular que observe 0 principio da relagao dialéctica entre teoria (sistema modular) e empiria (dado linguistico), esbocaremos um modelo modular que se aplique & andlise da posigao do advérbio em -mente em Viagens na Minha Terra. A delimitacao do campo de pesquisa tem influéncia sobre os tipos de méto- dos aceites no sistema: dever-se-4 assegurar a independéncia mitua dos médu- los e estabelecer um aparelho notacional homogéneo que permita o estabele- cimento de lagos precisos entre os médulos de forma a que todo o médulo tenha um papel no sistema. Este principio esclarece que o estabelecimento dos médulos no é derivacional, porque nada é dito que a via modular é orientada e hierarquizada. Qualquer que seja a estruturagdo que se imponha ao sistema, o essencial é assegurar-se sempre que haja relagées sistematicas, precisas ¢ explicitas entre os médulos. Neste sentido, nada impede que o sistema modu- lar se aproprie € explore os resultados adquiridos por outros métodos, em dominios vizinhos. O importante é reinterpretar tais resultados de forma a fazé-los operar no quadro do sistema criado. 1,2. A arquitectura do modelo a desenvolver no estudo da posigao do adverbial em -mente, na ocorréncia os advérbios de modo em V.M.T., nao é um modelo universal, mas somente um modelo desenvolvido com a finalidade de uma pesquisa particular. Se, para esta ilustracdo, escolhemos a posicao do advérbio de modo na frase, é porque a ordem das palavras é um fenomeno que pde em jogo numerosos pardmetros. Para a realizagdo desta pesquisa propo- mos estabelecer trés componentes de médulos: um médulo sintdctico, um médulo légico-semantico e um médulo pragmatico-semantico. A adopgio deste modelo «tricot6mico» nao implica nenhum postulado de relacdo orien- tada e derivacional; traduz apenas uma certa comodidade e define uma possi- bilidade ao nivel tedrico, de uma descrigéo da significagao do advérbio de modo e do grau de accitabilidade do seu enunciado. Notaremos que estes médulos so teorias j4 existentes mas reinterpretadas e adaptadas ao sistema modular encetado. A sua produtividade advira das metarregras desencadeadas que, por um lado, assegurarao a articulago global do quadro explicativo, ¢ que, por outro, pelo seu poder adaptativo, poderiio ser sempre modificadas desenvolvidas aquando das andlises empiricas. Residir4 aqui o principio da relagdo dialéctica entre teoria e empiria. Destacaremos, do médulo sintactico, a estrutura sintagmatica, do médulo légico-semantico2, as restrices seleccio- nais e do médulo pragmatico-seméntico, a focalizacao. ? Consideramos que a forma légica é uma componente de interpretagéo semantica. 340 LINGUA PORTUGUESA: ESTRUTURAS, USOS E CONTRASTES 1.2.1. A estrutura sintagmética cria uma estrutura hierdrquica da frase?, no sentido de estabelecer uma demarcagio dos seus constituintes imediatos e dos constituintes de que estes se compdem. No quadro modular, o analisador sin- t4ctico — a subcomponente do sistema de tratamento da linguagem — ocupa-se por atribuir uma estrutura sintagmdtica a uma sequéncia de elementos lexi- cais. Com efeito, a estrutura sintagmatica explora as informagdes sobre as categorias gramaticais contidas no léxico. Como uma consequéncia do contributo modular, as restrigées seleccionais, que figuram muitas vezes nas teorias sintdcticas, serio consideradas aqui com sendo de natureza semantica, porque dependentes directamente do seman- tismo dos lexemas. Também os fenédmenos prosédicos estio directamente ligados 4 estruturagao sintagmatica o que, na pratica, permite distinguir ele- mentos linguisticos em posicées integradas e em posicées destacadas. © des- taque, sendo feito por rupturas (cesuras) ligadas 4 entoagao*, permite diferen- ciar, no caso do adverbial em —mente, quais os advérbios integrados, isto é, quais os advérbios dos sintagamas verbal e adjectival ¢ os advérbios do enun- ciado’ e da enunciagdo. No primeiro caso, o advérbio faz parte do sintagma verbal ou adjectival e, no segundo caso, ele tem a capacidade de deslocagao por contraste de entoacado dentro do enunciado, modalizando-o, ou tem a capacidade de formar o seu proprio sintagma, especificando-o. A estrutura sintagmatica (médulo sintactico) induz assim uma estrutura especifica & frase albergando no seu seio as rupturas de intonaco como um fendmeno sintactico, e as estruturas [égico-semanticas como a correspondén- cia entre uma unidade sintagmética e uma unidade semantica. E neste princi- pio de composicionalidade que reside o seu valor explicativo. 1.2.2. As restrigdes seleccionais so atinentes 20 modulo légico-linguistico. Apoiam-se a0 mesmo tempo om fendmenos sintacticos, 0 que mais uma vez ilustra a interacco entre as componentes. Este médulo permitiré detectar os desvios gerados pelas incompatibilidades légicas. i o caso de certos advérbios de enunciaco, como francamente, que nao accitam compatibilizar-se com qualquer tipo de sintagma: 5 A frase, tal como € definida, geralmente pela presenga de um ponto, corresponde muitas vezes, nao a uma estrucura sintéctiea, masa uma estrutura textual, formada de varias proposicées maximas (cf. Rouler, 1994}, 4 A intonagio é a resultante da combinagao das regras aplicadas aos diferentes aiveis: uma cadeia segmental € a resuleante da combinagio das regras de cada nivel (morfoldgico, sintdctico, forma Igica...). § Aqui faz-se coreesponder e sobre o «dito» e os advérbios de emunciacio, que recaem sobre 0 «dizer». Por outro lado, a distingao feita sobre o eixo pro- s6dico, permite distinguir entre posigdes integradas e posigdes destacadas. Comecemos pela estrutura sintagmatica. Regra geral, os advérbios de modo de frase colocam-se em todas as cesuras maiores da frase, Assim: (17) Reahnente o século estava muito atrasado: (...). (p. 34). 1.0 século 2, estava 3. muito atrasado 4. (18) Entra em ti, Carlos, e discorramos pausadamente sobre a nossa situagio, (.. Entra em ti, Carlos, e 1. discorramos 2. sobre a nossa situacao 3 (19) 0 rosto oval e perfeitamente simétrico, palidos (...). (p. 250). |. (p. 188). No exemplo (17), nao ha restrigdes prosédicas. O advérbio de frase real- mente, sendo de natureza destacada, pode ocupar qualquer posicao na frase (1, 2., 3., ou 4.), JA no exemplo (18), as posigdes 1. ¢ 3. so destacadas, enquanto a posigao 2. seria integrada. De facto, s6 a posigo 2. exprime o modo como se deve efectuar a accio de «discorrer». As posigdes 1. ¢ 3. deno- tam a atitude do locutor perante uma determinada situagao, que ele ordena e deseja que scja calma. No primeiro caso, 0 advérbio de modo cai no escopo do SV; no segundo caso, o advérbio tem como dominio todo 0 segento fra- sico. No exemplo (19), 0 advérbio de modo perfeitamente s6 pode ocupar a posico imediatamente anterior ao adjectivo, que ele intensifica. Também aqui, a posi¢ao do advérbio de modo é integrado. De tudo isto se podem extrair as seguintes regras sintagmaticas: 0 advérbio de modo de enunciado pode colocar-se em posi¢o destacada em todas as cesuras entre constituintes maiores da frase; 0 advérbio de sintagma coloca-se junto do verbo ou do adjectivo. O advérbio de modo de enunciacao, uma vez que recai sobre o préprio acto de enunciacdo, s6 pode aceitar a posicio des- tacada. Este facto explica-se pela perspectiva do seu dominio: (20) Bu, que nem morrer jé posso, que vejo terminar desgracadamente esta guerra no tinico momento em que a podia abengoar (...). (p. 269). (21) Jé agora rasgo o véu, e declaro abertamente ao benévolo leitor a profunda ideia (...). {p. 12). 7.0 terme «advérbio» parece pouce apropriado paca dar conta de todas as ocorréncias desta classe. Com efeito, seria mais coerente o emprego de eadfrase», para os advérbios de modo de frase, & seme- Ihanga dos termos em inglés «adsentence» ¢ do francés «adphrase». DA MODULARIDADE LINGUISTICA: A PROPOSITO DO ADVERBIO DE MODO. 347 Como os advérbios de enunciacio sé entram em accgao depois da realiza- do deste acto, acontece que eles nao podem fazer parte integrante dos mate- riais linguisticos enunciados. Daj a sua capacidade em veicular um ponto de vista que vai para além do que € «mostrado> na frase. Analisadas as diferentes posigées do advérbio de modo da frase, feito o seu enquadramento e definidas as suas regras, passo seguinte seria verificar 0 jogo da combinatéria dos varios adverbiais em presenga na mesma frase. A presenga de dois advérbios de modo de frase ou de um adverbial de modo de frase ¢ qualquer outro advérbio também de frase, num s6 enunciado exige compatibilidade seméntica entre eles, como se viu no exemplo (4). Também os dois grandes tipos de advérbios de modo se comportam diferentemente con- soante os actos ilocutérios em que estiio inseridos. Assim, os advérbios de modo de enunciado aceitam somente serem integrados em actos de fala asser- tivos, enquanto os adverbiais de enunciago aceitam serem integrados em actos de fala interrogativos ou exclamativos: (22) Infelizmente o sactificio nao foi de todo incruento. (p. 42) 2nfelizmente o sacrificio nao foi de todo incruentot(?) ? O sacrificio nao foi infelizmente incruento! (?) ? O sacrificio nao foi incruento infelizmente ! (2) (23) Felizmente que nao estava s6; ¢ escapei de mais essa caturrice. (p. 46). Felizmente que nao estava sot (?)® £ interessante notar que, pelo critério do operador exclamativo ou interro- gativo, se pode aferir se um advérbio de modo, embora pertencendo ao mesmo campo semantico {como é 0 caso de infelizmente/felizmenie), € um adverbial de enunciado ou de enunciagao. No caso de (22) trata-se de um adverbial de enunciado modal porque a frase em que «infelizmente» esté inserida s6 aceita um acto ilocutério assertivo. No caso de (23), «felizmente» é um adverbial de enunciagao com valor de intensidade. Com efeito, a frase em que 0 adverbial est inserido realiza-se ilocutoriamente num acto de fala exclamativo ou inter- rogativo. Numa situaco concreta ver-se-ia melhor qual 0 papel da focalizagao na escolha de posigio dos advébios de modo na frase. De qualquer forma, parece certo que ha uma relagio exacta entre o advérbio de modo e¢ 0 escopo, 0 que faz prever qual o tipo de advérbio: se de enunciado, se de enunciagio. © p 8 £ natural pensar que apresenga de «que» na frase bloqueia o acesso ao escopo. Dai «felizmenter formar o seu proprio sintagma e tornar-se um advérbio de enunciagao. 348. LINGUA PORTUGUESA: ESTRUTURAS, USOS E CONTRASTES meiro recai sobre 0 enunciado compreendido como o resultado do acto de enunciagao. E assim que os advérbios de enunciado tém acesso quer ao acto de fala quer ao contetido proposicional, que eles s4o susceptiveis de comentar: (24) (...) ambos pereceram desastradamente num dia cruzando © Tejo (...)- (p. 93). 25} Abragaram-se, e desta ver frouxamente; (...). (p- 150). Os adverbiais modais desastradamente e frouxamente ttazem um comen- tario ao valor de verdade (cles modalizam as condigdes de verdade) transmi- tido pela frase. Vejamos ainda a frase seguinte: (26) O frade contemplava o enfermo e a enfermeira, Mas visivelmente nfio queria ser visto nessa ocupagio, porque ao menor estremecimento do doente recuava apressado € como assustado para 0 interior da sua aleova. (p. 183). O comentario de visivelmente s6 diz respeito 4 forma escolhida ou a sua fungao, € esta relag&o tem pouca importincia sobre a escolha de posicéo. Além disso, a curva entoativa que incide sobre «visivelmente» s6 é possivel num contexto em que a acco denotada pelo verbo («nao queria ser visto») é contrastada com uma outra accdo («recuava apressado»}. O comentario incide sobre o verbo. «Visivelmente» n§o teria 0 mesmo valor de contraste, e logo a mesma intengao, se a sequéncia da frase fosse outra: (27) 0 frade contemplava o enfermo ¢ a enfermeira, mas visivelmente nao queria ser visto nessa ocupagio, mas certamente noutra. Aqui o comentario incide sobre o nome {«ocupagdo») e nao sobre o verbo. A anilise focalizadora permite detectar qual a intengdo de o adverbial ocupar uma ow outra posigao na frase. Esta estratégia de natureza pragmatico-seman- tica alimenta-se em consideragdes sintdcticas para tornar acessivel uma posi- a0 do adverbial nao prevista pela sintaxe. Pelo contratio, os adverbiais de enunciagao sé recaem sobre o acto de fala e néo tém nenhum acesso ao con- tetido proposicional. 4. Estudado o advérbio de modo em V.M.T. pelo viés de uma andlise modu- lar, interessante seria sistematizar e precisar as relagdes entre os diferentes médulos. Na impossibilidade de o fazer nesta andlise répida, limitar-nos-emos a mostrar que existe uma relacdo estreita entre os meios postos 2 disposicdo pelo médulo da estrutura sintagmética e pelas regras de focalizacao, por um lado e, por outro, pelo médulo légico-semantico que indica os valores seman- DA MODULARIDADE LINGUISTICA: A PROPOSITO DO ADVERBIO DE MODO 49 ticos ¢ funcionais ligados as diversas posigdes dos advérbios. Com efeito, 0 modelo sintagmético integra regras que poem a prosédia em relacao precisa com a estrutura sintagmatica. As relagdes particulares que existem entre os advérbios de modo e a focalizagio fazem prever certas possi- bilidades de posigdo em relagdo aos seus dominios ¢ escopo. Assim um advér- bio de modo do SV ou do Sadi. (cuja posicao é integrada) nunca pode ocupar a tiltima posicio dum grupo ritmico porque ele no suporta a focalizacao: (27) ~ «Bem, camaradas!» bradou Carlos caminhando rapidamente para cles (...).(p. 123} (28) (...) se encontram aonde esta toda a fé e toda a crenga...nuns olhos sincera ¢ lealmente pretos. (p. 70). Pelo contrario, as posigdes destacadas dos advérbios de modo focalizam automaticamente o elemento que os precede na estrutura sintagmatica. Sdo os advérbios de modo do enunciado. (29) Bifurquei-me resignadamente sobre o cilicio do esfarrapado albardio (...). (p. 29). Quanto aos advérbios de modo de enunciacao, eles entram também numa estrutura focalizadora, mas o seu escopo nao é o enunciado, a estrutura pro- posicional, o que é dito, mas uma justificagao do dizer, dos termos do dizer, ou um juizo sobre a adequacao do dizer ao pensamento: (30) «Gil Vicente» tem outro ~ isto é, verdadeiramente néo tem sendo meio frade, que € André Resende (...). (p. 77). £ combinando todas estas regras (metarregras) que se chega a previsdo das posigdes abertas aos advérbios e 4 indicacdo dos valores seméntico e funcio- nal ligados as diversas posigdes. Parece que os advérbios de modo da frase se podem colocar em todas as cesuras maiores e s6 nestas, isto é, entre os micleos-sintagmas da frase. 4.1, Numa sintese breve, e necessariamante proviséria, concluiremos que 0 recurso a aplicagdo de um modelo modular para a andlise do facto lingufstico tem a vantagem de se estar perante um modelo em construgaéo permanente. Isto pelo facto de que, 3 medida que as anélises vao progredindo, novos médulos se poderao ir acrescentando enquanto outros se vio dissipando ao mesmo tempo que sc gcram novas metarregras ligando 0s novos médulos entre si. Além disso, como 0 modelo nao é derivacional, o ponto de partida pode ser a componente sintdctica ou pragmatica, ou outra, Destes principios 350. LINGUA PORTUGUESA: ESTRUTURAS, USOS E CONTRASTES se conclui que a ideia modular permite distinguir rigorosamente as estratégias do trabalho a empreender assim como 0 estabelecimento do modelo explica- tivo. A solidariedade e a colaboracao entre deras e investigagSes afins permi- tem chegar ao ideal cientifico de aliar a empiria, os niveis de andlise ¢ a modu- laridade. 4.2. Aplicado o modelo modular ao estudo do advérbio de modo em V.M.T., do qual se destacaram trés médulos — sintdtico, ldgico-semantico e pragmatico-semantico —, verificamos os seus valores através das suas diversas ocorréncias. Em V. M. T., 0 advérbio de modo surge numa média de uma ocorréncia por pagina, ou seja 4 volta de 250 na sua totalidade, sendo que alguns sao retomados embora em contextas diferentes e, por vezes, com valor diferente. De notar que os advérbios mais repetidos ao longo da obra sio advérbios de enunciado (voluntariamente, 7 vezes; verdadeiramente, 6 vezes) ede enunciagao (realmente, 7 vezes ¢ sinceramente, 5 vezes). Assim, a distri- buigio dos adverbiais de modo exprime-se como a efectivagdo de uma acco, da atitude do locutor ou de uma modalidade. 4.2.1. Como expressio de uma acgio, 0 advérbio de modo surge como fazendo parte do SV e sujeito ao seu dominio. Neste sentido, a sua posigio é integrada sendo a sua situacdo reduzida a de satélite do verbo. Tendo o SV sob © seu escopo, natural ser4 que se crie uma solidariedade seméntica e lexical entre as duas categorias de palavras. O verbo ¢ 0 advérbio de modo: (31) Foi rapidamente postar, a alguma distancia dali, duas sentinelas que the faltavam (...). (p. 114). (32) Carlos acordou de todo, abriu os olhos ¢ cravou-os fixamente no rosto angélico dessa mulher, (p. 184). A densidade de emprego do advérbio de modo do verbo é muito baixa (a volta de 35 ocorréncias) em compara¢do com o niimero total de emprego do advérbios de modo em toda a obra (mais ou menos 250). Quanto ao advérbio de modo sob o dominio do SAdj., ele é bastante constrangido posicional- mente, quer 0 adjectivo seja qualificativo (verdadeiramente belas, p. 51; olhos sincera ¢ lealmente pretos, p. 70), quer seja um adjectivo verbal (laboriosa- mente arrendadas, p. 403 habilmente esbocados, p. 50s friamente decisivo, p. 1085 tranquilamente sentados, p. 156). Os seus valores variam entre transmi- tir um valor de intensidade (gravemente ferido, p. 152) e expressar uma moda- lidade (clegantemente cingida, p. 117). O nlimero de ocorréncias so aproxi- madamente as mesmas do advérbio de modo do verbo. A volta de 35 também. DA MODULARIDADE LINGUISTICA: A PROPOSITO DO ADVERBIO DE MODO. a Esta situacdo nio é de estranhar se tivermos em consideragao 0 caracter da obra. E uma obra de cariz romantico com uma textualizagao fortemente modalizadora. Dai o seu recurso ao uso de advérbios de modo de frase que, como se mostrou acima e se sintetiza a seguir, tém a capacidade de modalizar 0 discurso (advérbio de modo do enunciado) ou de expressar a atitude do locutor (advérbio de modo da enunciagio). 4.2.2. Como expresso modalizadora, 0 advérbio de modo é engendrado na frase ao nivel do enunciado e pode expeessar ou um valor de verdade (incertamente, provavelmente, inquestionavelmente): (33) (...) ¢ revolvia incertamente no animo 2 poderosa diivida: (...). (p. 14). (34) (...) niio me lembra de que santo, dizendo o seu dominus vobiscum provavelmente a algum acélito bacante ou coribante (...). (p- 31). (35) (...) um figurdo esquisitissimo que tinka inquestionavelmente o instinto de descobrit assuntos draméticos nacionais (...). (p- 49). ou um valor de subjectividade (felizmente, inutilmente, extremosamente): (36) (...) e realidade do sistema constitucional que felizmente nos rege. (p. 32). (37) A velha chorou, pediu, rogou...inutilmente, em vao. (p. 97). (38) Namorou-se dela extremosamente 0 jovem Britaldo (...). (p- 171). O contributo do advérbio de modo do enunciado para a saturagao inter- pretativa da frase advém no s6 do seu contetido lexical proprio, mas também do dominio sintactico sob o seu escopo ¢ da identificagao do constituinte focus da frase. A considerac3o de todo este conjunto é que permite avaliar a frase no seu contexto discursivo ou pragmtico e apreender 0 seu campo de inci- déncia. O advérbio de modo do enunciado é 0 que apresenta, em V.M.T., a maior densidade percentual. 4.3.3. Quando o advérbio de modo se apresenta como um elemento gera- dor enunciativo é um advérbio de enunciagao. Neste caso, o advérbio de modo engendra o seu proprio sintagma e pode apresentar ou uma justificagéo do dizer (0 facto de dizer ou os termos do dizer) ou um juizo sobre a adequagéo do dizer ao pensamento. No primeiro caso, pode representar a justificagao pelo proprio facto de dizer, (39) (...) Ea reflexdo com que um dos nossos companheiros de viagem acudiu ao principio de ponderagao que eu ia involuntariamente fazendo a respeito de Vila Franca. (p. 8). —_3a2 __ | LINGUA PORTUGUESA: ou uma justificagdo dos termos do dizer, {40) (...) e onde, aqui ¢ ali, algumas raras feigGes se percebem, ou mais exactamerte se adi- vinham, da nossa velha e boa Lisboa das crdnicas. (p. 7). No segundo caso ~ emissdo de um juizo sobre a adequagao do dizer ao pen- samento, (41) Eu creio firmemente que nao. (p. 102) (42) O aspecto e hébito da planta é realmente africano e oriental (..,). (p- 177). {43) Detesto a filosofia, detesto a razio; ¢ sinceramente creio que num mundo to descon- chavado como este (...).(p. 219). A classificagao dos advérbios de modo aqui esbocada deveria poder ser apoiada em outras andlises mais detalhadas onde se privilegiasse a sua dis- tribuigdo e a sua combinatéria, em relagao com a distingao asserco/pressu- posig&o ¢ uma reparticio dos modos verbais indicativo/conjuntivo, por exemplo, 4 qual se ligaria a nocao de valor de verdade. De qualquer forma, a andlise encetada permitiu-nos chegar a uma pequena conclusdo: 0 advér- bio de modo, sobretudo de frase, permite, por meios poderosamente econd- micos, estabelecer uma espécie de comentirio, um juizo de valor sobre os dados, os dizeres, os ditos, os factos enunciados. O advérbio de modo em geral ou segue e reforga o sentido do verbo ou do adjectivo saturando-os interpretativamente ou acrescenta novos sentidos, novas modalizacées ao conjunto da frase. O vigor expressivo de V.M.T. comprova isso mesmo. Efectivamente, 0 ntimero e emprego criterioso de advérbios de modo dimen- sionam a narragao e o narrado numa atmosfera humana onde se vive em cada pagina diferentes modos de agir ...que limpou minuciosamente, p-181), de sentir (...ondulando Jascivamente com a brisa temperada da Primavera, p.45), de pensar (A sociedade é materialista; a literatura, que é a expressio da sociedade, é toda excessivamente e abundantemente e despro- positadamente espiritualista, p. 19), de acordo com ambientes onde o narra- dor € as personagens se inserem. Em definitivo, o advérbio de modo na frase, pelo seu poder modal, pelo seu grau de intensidade que imprime a frase, pelo laco que estabelece entre a entoacao e 0 discurso, permite dar conta das intuigdes e das intengdes que Lhe subjazem, O seu poder manipulatério é grande ¢ a sua proeminéncia maxima como € evidente, ainda, nesta frase de V.M.T. (44) O bardo é pois usurariamente revolucionario, e revolucionariamente usurdtio. (p. 74). DA MODULARIDADE LINGUISTICA: A PROPOSITO DO ADVERBIO DE MODO. 35 Bibliografia BURGER, M. (1997) ~ «Positions d'interaction: une approche modulaire», in Cabiers de Linguistic frangaise 17, pp. 11-46, DUCROT, O. et al. (1980) ~ Les Mots du Discours, Paris, Minuit, NOLKE, H. (1994) - Linguistique Modulaire: de la Forme aut Sens, Louvain/Patis, Peeters. NOLKE, H. (1998) - «L’adverbe de phrase: focalisation, position ct cohérence rextuelle», in PATRICK, D. e WALTER, M. (eds), Hommage a Liliane Tasmowki-De Ryck. RONAT, M. € COUQUAUX, D. (1986) - La Grammaire Modulaire, Pais, Minuit. ROULET, E, (1991a) ~ «Vers un approche modulaire de l'analyse du discours», in Cahiers de Linguistique Francaise, 12, pp. 53-81. ROULET, E. (1994) ~ «La phrase: unité de langue ow unité de discours?», in Mélanges de philo- logie et de littérature médievales offerts & Michel Burger, Geneve, Droz, pp. 101-110. ROULET, E. (1997a) ~ «A modular approach to discourse strutures», in Pragmatics 7, pp. 125- “146. WALTHER, C. (1998) ~ Modularity and Natural Langage Parsing, Geneve, Systémes et Information.

You might also like