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Gennaro Chierchia SEMANTICA Tradugdo Tuis Arthur Pagani Ligia Negri Rodolfo Hari Revistio técnica Rodolfo Lari eduel Sratannics & Gaawnica UNIVERSAL 1. A hipotese gerativa: Gramética Universal e pardmetros de variacdo Nesta obra, trataremos de linguas naturais, sistemas de signos, como o portugués ¢ o inglés, usados pela espécie humana para co- municar. A referéncia a outros sistemas de signos acontecera ovasio- nalmente ¢ tera por objetivo a compreensio da estrutura das linguas naturais, Exemplificaremos a nossa abordagem predominantemente com © portugués, mas, como se vera, desenvolveremos conceitos que se aplicam a muitas linguas naturais, talvez a todas elas. Comece- mos por introduzir alguns termos clementares, mas, por isso mesmo, sujeitos a muita variacdo de uso. Esses termos sio introduzidos a titulo preliminar para permitir o inicio da discussao, e sero substi- tuidos na seqiiéncia por conceitos mais explicitos. Por simbolo ou expressdo, entendemos qualquer objeto fisico (uma seqiiéncia de sons, sinais graficos, ou qualquer outra coisa) que, na consciéncia da comunidade que a utiliza, esta associado, ou “esta por”, alguma outra coisa. Ja um signo é a associacao convencional de um simbolo ou expressio com alguma outra coisa. Por exemplo, a seqiiéncia de letras que formam o nome proprio Luciano Pavarotti é uma ex- Presso; essa expresso junto com o célebre tenor que ela nomeia constituem um signo. As palavras eas sentengas das linguas séo exatamen- te isto, signos. Muito aproximadamente, podemos dizer que as palavras sao signos simples, enquanto que as sentengas sdo signos complexos.? Um signo é empregado por um usuario (0 falante) para se comunicar com um interlocutor (o ouvinte). Freqiientemente referimo-nos co- letivamente ao falante e ao ouvinte como agentes ilocutivos. Qual- quer ato Hingilistico (ou seja, qualquer processo de emissio de um signo ou seqiiéncia de signos) particular de que os agentes ilocutivos so protagonistas ocorre em uma situac3o particular. Tal situag3o no seu todo constitui o contexto do ato lingitistico. O contexto pode ser subdividido em contexto lingitistico (o discurso no qual o ato lingitistico esta inserido) ¢ contexto extralingilistico (os fatos nao- lingiiisticos que caracterizam o ambiente no qual a comunicacao acon- tece). Uma lingua fundamenta-se numa gramatica, o sistema de regras e/ou principios que governam o uso dos signos da lingua. Os principais 25 Seycinrica componentes da gramatica mais diretamente relacionados ao assunto deste livro sio: (i) 0 vocabulario ou léxico (0 conjunto de palavras de uma lingua); (ii) 0 aparato combinatério que permite combinar os elementos do léxico em segiiéncias bem formadas; ¢ (iii) 0 aparato interpretativo mediante o qual as combinagSes produzidas sao interpretadas. Por linguagem entende-se o uso de uma lingua e o emprego de sua gramatica na vida de uma comunidade de falantes. Asintaxe estuda o aparato combinatério de uma lingua; a semantica, seu aparato interpretativo. A pragmatica trata da maneira pela qual a gramatica como um todo pode ser usada em situagdes comunica- tivas concretas. O paradigma de pesquisa conhecido como gramitica gerativa constituiu-se a partir do fim dos anos 1950, gracas, sobretudo, ao trabalho do lingiiista americano Noam Chomsky. Esse paradigma mostrou ser extremamente vital ¢ teve um impacto fundamental nao apenas na lingiiistica, mas em todas as disciplinas que estudam. a cognicio humana. Uma das idéias essenciais que estio em sua base & que os aparatos combinatério e interpretativo de uma gramatica consistem em uma série de principios e regras, inconscientes, mas passiveis de serem analisados com rigor por meios que sdo, em certo sentido, andlogos a operagées matematicas, Para usar uma metafora antiga, mas sempre eficaz: na mente hd como que uma m4quina, corporificada pela nossa estrutura biolégica, que nos permite falar. Veremos nos capitulos seguintes como essa hipdtese se configura. Neste capitulo, limitar-me-ei a discutir algumas idéias fundamentais, em que essa hipdtese se baseia. A maioria das pessoas interessadas na linguagem normaimente tém, a esse respeito, as seguintes idéias: (i) as linguas podem variar indefinidamente; (ii) elas sio convengdes sociais, um produto central da cultura de uma sociedade; e (iii) sto adquiridas através de capacidades imitativas gerais, de que a crianga é dotada. Estas idéias tiveram muita importancia nas ciéncias sociais do século XX, a ponto de terem se tornado parte integrante de uma cultura bastante difundida, inclusive entre ndo-especialistas. Segundo o paradigma gerativo, essas idéias sao, em boa medida, cquivocadas. 26 Seacintics 7 Grawatica UNIVERSAL Em primeiro lugar, o Aambito em que as linguas variam uma em relacdo a outra é bastante limitado. Ha caracteristicas que apro- ximam todas as cerca de 6 mil maiores linguas hoje atestadas.’ Toda lingua tende, por exemplo, a fazer uma difcrenca entre verbos ¢ nomes (ou substantivos); toda lingua exprime através dos chamados auxiliares uma seric limitada de nogdes modais (tais como a possibili- dade e a necessidade), temporais (tais como passado, presente e futuro) ¢ aspectuais (tais como pontual e continuativo); toda lingua possui formas de modificagio dos nomes como as scntengas relativas; ¢ assim por diante. Existem muitos estudos tipoldgicos envolvendo um yasto ntimero de linguas, que revelaram a existéncia de numerosos universais lingilisticos. Numa das primeiras pesquisas deste tipo, Greenberg (1963), a partir de uma amostragem de 30 linguas genetica- mente independentes (ou seja, linguas que nao derivaram de uma mesma lingua-mac por mutagdes sucessivas), chegou a propor 45 universais (cf. Sintaxe, cap. 6 item 2). Muitos dos universais de Greenberg dizem respeito 4 ordem das palavras. Por exemplo, as or- dens mais difundidas sio SVO (sujeito-verbo-objeto) e SOV (sujeito- objeto-verbo). Ordens nas quais 0 objeto precede o sujeito sio muito raras (cerca de 1%) e provavelmente alguns casos inexistem (como a ordem OSV). Outros universais dizem respeito 4 cortelacdo entre as estruturas gramaticais. Se, por exemplo, uma lingua tem a ordem de base VO (como ¢ 0 caso do portugués), ela também terd a ordem preposigdo-nome (em portugués diz-se para Lisboa ou no barco}; por outro lado, nas linguas em que a ordem de base é OV (como no japonés), ocorre a ordem nome-posposi¢ao (ou seja, diz-se nessas linguas: Lisboa para ou barco no). Um dos objetivos da lingiiistica é identificar e explicar esses universais. Segundo o modelo gerativo, existe uma Gramatica Universal comum a todas as linguas. A Gramatica Universal oferece um esquema geral, um sistema de cate- gorias, regras e principios que governam o comportamento de qual- quer lingua e permitem produzi-la ou “geré-la”. As linguas diferem substancialmente no léxico* (no qual se acumulam os aportes hist6ri- cos de uma comunidade) e ao longo de uma série limitada de dimensdes Srvianicn (por exemplo, aspectos da ordem de palavras ou se 0 sujeito precisa ser obrigatoriamente expresso — como em francés — ou se pode ficar implicito — como em portugués). Estas dimensdes de variabilidade so controladas por um certo niimero de pardmetros, que também fazem parte da Gramatica Universal. Uma metafora freqiientemente usada a essc propésito é a de um sistema de circuitos elétricos dotado de interruptores, que podem ficar ligados ou desligados. Cada interruptor controla um feixe* de propriedades gramaticais. Por exemplo, um interruptor determinara a ordem do objeto em relag3o ao verbo e do nome em relagio 4 preposig4o (que, como vimos, sio correlacionadas em todas as linguas). Segundo esta metafora, uma lingua corresponde aum determinado modo de dispor os interruptores (e assim de ativar ou desativar componentes do circuito). Todas as linguas existentes sao obtidas a partir do mesmo sistema, estabelecendo uma determi- nada configuracdo para os interruptores.disponiveis. Chomsky usa freqiientemente a metafora de um extraterrestre que veio do espaco com a tarefa de estudar a nossa linguagem. Segundo Chomsky, esse explorador espacial concluiria que as linguas terrestres diferem bem pouco, exceto em relagdo aos seus léxicos. A Gramiatica Universal nao é, segundo Chomsky, uma conven- ¢4o social, mas sim um componente bioldgico da especie humana, realizado na mente ¢ codificado no patriménio genético dos mem- bros da espécie. O psicdlogo Steven Pinker (1994, p. 18) apresentou uma formulagao bastante vivida desta idéia na seguinte passagem: A linguagem nao é um artefato cultural que aprendemos da mesma forma que se aprende a dizer que horas séo ou como funciona o governo federal. Ela é, a0 contrario, uma parte especifica da estrutura biolégica dos nossos cérebros. A linguagem é uma habilidade com- plexa e especializada, que se desenvolve espontaneamente na crianga, sem nenhum esforgo consciente ou qualquer instru¢do formal, e que empregamos sem tomar conhecimento de sua légica subjacente; ela é * © tetmo usado no original & grappolo, isto € “cacho” [p.ex. de uva}. (N. do T) 28 SeMayeren + GraMsrics UNIVERSAL qualitativamente a mesma em todos os individuos, e é distinta de habilidades mais gerais tais como processar informac6es ou compor- tar-se de mancira intcligente. [...} as pessoas sabem falar mais ou me- nos da mesma maneira como as aranhas sabem tecer teias. A atividade de tecer teias nao foi inventada por nenhum génio-aranha desco- nhecido e nao depende de uma educago adequada nem de aptidio para a arquitetura ou para a construgao civil. As aranhas tecem teias de aranha porque tém cérebros de aranha, que lhes dao impulso ¢ competéncia para tecé-las, A crianga comega a dizer suas primeiras palavras isoladas com mais ou menos um ano de idade. Excluido o caso de condigées pato- légicas particulares, entre os trés e quatro anos, ela sabe usar com grande competéncia todas as construgdes gramaticais fundamentais e uma rica amostra do léxico da lingua (ou, no caso de criangas poliglotas, das linguas) a que foi exposta. Assim, no espaco de pouco mais de dois anos ¢ com uma facilidade evidente, a crianga chega a compreender ca saber usar a gramatica de qualquer lingua. Um lingiiista experiente que precise reconstruir a gramatica de uma lingua desconhecida, nio consegue sair-se melhor, ou da conta dessa tarefa com grande esforco. Ao contrario, a linguagem parece nascer e se desenvolver na crianga com grande naturalidade, de modo muito semelhante, por exemplo, 4 denti¢ao. Que convengées sociais ou produtos culturais de igual complexidade podem ser aprendidos sem instrugao formal e com facilidade andloga? A hipétese de uma Gramatica Universal para- metrizada que constitui o patriménio bioldgico da nossa espécie é uma hipdtese forte que nos ajuda a compreender por que as coisas acontecem desta maneira. A crianca, num certo sentido, sabe o que procurar. As propriedades fundamentais da gramatica ja estdo a sua disposigao como parte de suas faculdades mentais. Trata-se apenas de fixar um certo numero de pardmetros, o que pode ser conseguido examinando uma porgio limitada dos dados aos quais a crianca tem acesso. Para ilustrar como isso acontece, pode ser util dar um exem- plo.’ Em portugués, assim como em muitas outras linguas, o verbo 29 SewisTica precisa ser flexionado. Por exemplo, um verbo da primeira conjuga- cio como falar no presente do indicativo se flexiona assim: a oi sing. falo u sing. falas mt sing. fala I plur. falamos a plur. falais m plur. falam A forma do verbo depende do sujeito: por exemple, se © sujeito for de 34 pessoa do singular, dever-se-& escolher a forma correspon- dente do verbo (como de costume, o asterisco indica uma sentenga ou uma expresso mal-formada): 2) . A crianga fala. a b. As criangas falam. “A crianga falam. d. |. “As criangas fala. As sentencas em (2c) ¢ (2d) sio agramaticais* porque a forma do verbo nao concorda com a do nome. Para se falar o portugués, € preciso entio, por um lado, aprender as desinéncias de (1) e por outro, aprender com que elas concordam. A primeira forma em (1), por exemplo, exige que 0 nome que acompanha o verbo denote o falante ¢ seja singular; a segunda forma, que o nome denote o ouvinte ¢ seja singular; e assim por diante. Ha uma complicagao suplementar que advém do fato de que em portugués 0 sujeito nao precisa ser expresso (ou seja, um enunciado como “lam pode constituir uma + Esta exemplificagio referese, cvidentemente, a uma variedade de portugués padrio nais facilmente encontrada em Portugal do que no Brasil. No portugues do Brasil, sio raras as variedades lingiiisticas em que o paradigma verbal se mantém completo; para as-variedades em que 0 paradigmaa verbal esta reduzido a um nimero menor de formas, seria necessarias modificagdes na exposi¢io. Nada disto invalida o argumento: lem brese que Chomsky argumenta a propésito do inglés, em que a variagio de formas verbais ¢ ainda menor (N. do T). 30 Sewinrics £ Grawarice Uvsensat sentenga completa) e de que ele pode ocorrer em posi¢io pés-verbal (como agora falam as criangas). Perguntemaos, entio, qual pode ser a forma geral da regra de concordancia. Uma primeira formulacio, a0 menos para as sentencas simples, poderia ser a seguinte: (3) O verbo deve concordar em pessoa ¢ nfimero com a palavra a sua esquerda, Esta regta poderia parecer suficiente para explicar o acontece cm (2). A palavra crianga, em (2), por exemplo, nao denota nem o falante nem o ouvinte, ¢ é singular, por isso a forma verbal deve ser fala. Porém, é facil ver que a tegra (3) no funciona se as sentengas forem apenas um pouco mais complexas do que em (2): (4) Accrianca com os olhos castanhos fala. A primeira palavra 4 esquerda do verbo é castanhos. Assim, atendo-nos cegamente a regra (3), deveriamos escolher a forma plural do verbo, &/am, o que daria um resultado incorreto. Observe-se, alm disto, que nao bastaria reformular a regra (3) como: (5) O verbo deve concordar com o primeiro nome a sua esquerda. Também esta regra daria um resultado errado, porque o pri- meiro nome a esquerda do verbo em (4) é offos, que estA no plural. Desta forma, a regra (5) produziria a sentenga agramatical A crianga com os olhos castanhos filam. A questio é que a seqiténcia de palavras 4 crianga com os olhos castanhos forma uma unidade cujo elemento central ¢ a palavra crianga. Este ¢ 0 elemento que determina a forma do verbo. Uma saida possivel seria apelar para o significado. Quando se emprega uma sentenga como (4), entendemos o significado do gru- po nominal] a esquerda do verbo, Baseando-nos no que este grupo de palavras significa, podemos formular a regra de concordancia mais Ou menos assim: 31 Seaivtics (6) Procure saber o que denota o grupo nominal a esquerda do verbo: a. se denotar o falante e for singular, a forma verbal devera ser 2/0; b. se denotar o ouvinte ¢ for singular, a forma verbal deverd ser falas etc. Esta regra pareceria dar os resultados desejados para 0 exemplo (4). © grupo nominal 4 esquerda do verbo denota uma tinica entida- de que nao é o falante nem 0 ouvinte; entdo, a forma do verbo deve ser fala, Porém, sempre nos limitando a sentencas muito simples, a regra (6) ainda esbarra em uma grande dificuldade. Suponham que eu diga a vocés: (7) Aqui se fala demais. O elemento nominal a esquerda do verbo na sentenga declarati- va (7) ¢ 0 pronome “impessoal” se. O que denota esse pronome? Na hipdtese de ter sido eu quem dissera vocés a frase (7), esse pronome presumivelmente denotara o grupo de pessoas que contém a mim (ou seja, 0 falante) ¢ a voces (ou seja, os ouvintes). S6 que a forma correta do verbo @ fla, a mesma que normalmente acompanha um grupo nominal que nao inclui nem o falante nem o ouvinte e que, ademais, denota uma unica entidade. Portanto, uma regra como (6), bascada no significado do elemento ou do grupo nominal a esquerda do verbo, claramente nao serve. © se impessoal exige a 3* pessoa singular do verbo, ainda que signifique algo como “nés” ou “a gente”. Uma regra que chega bem mais perto de uma caracterizagio dos fatos é a seguinte: (8) O verbo concorda em pessoa ¢ niimero com os tragos de pessoa e nttinero do sujeito. Esta regra pressupée, antes de mais nada, que se saiba o que é 0 sujeito de uma sentenga. O sujeito nao é necessariamente uma tinica palavra; ao contririo, pode ser um grupo de palavras com um. clemento Seuixzica £ Geawinica DstytRsat “central” (o nome crianga em (4)) e pode ocupar certas posigdes (a serem determinadas) na sentenca. Além disto, a regra (8) pressupde que os sujeitos apresentem tracos de pessoa e nitmero que, muitas vezes, mas nem sempre, se correlacionam com algumas de suas pro- priedades semanticas (no caso do pronome se, por exemplo, 0 traco que se manifesta na concordancia é o singular, mesmo que se denote tipicamente um grupo de pessoas), Qual é a moral deste exemplo? Estivemos considerando uma regra muito simples e basica do portugués, a regra de concordancia verbal. E vimos que essa regra ndo pode ser formulada apenas consi- derando uma a uma as palavras de uma sentenga. Também nao é possivel chegar a uma formulagio em termos somente seménticos. E preciso considerar unidades constituidas por mais de uma palavra (como aquelas que se podem caracterizar através do conceito de sujeito) ¢ unidades abstratas (tais como os tragos de concordancia), relacionadas apenas parcialmente a nogées semAnticas gerais. Em outros termos, € preciso recorrer a propriedades estruturais especificas das linguagens humanas. f claro, com efeito, que estas propriedades nao sao proprias de todos os sistemas de comunicagao, Se tomarmos, por exemplo, “linguagens” como o codigo dos sinais de transito, a notago musical ou as linguagens de programacao (como o Pascal e o Lisp), veremos que elas apresentam uma estrutura na qual nogdes como “sujeito” ou “tragos de concordincia” nado desempenham papel algum. Com- preender bem o que é um sujeito ¢ como se pode defini-lo de maneira valida para todas as linguas naturais nao é um empreendimento pequeno. Com efeito, a lingitistica, como um todo, pode ser vista como a tentativa de caracterizar de maneira rigorosa relagdes grama- ticais como a de sujeito. O fato sobre o qual precisamos refletir neste ponto @ que a crianga que aprende uma lingua em que o verbo concorda com o sujeito nio apresenta dificuldades especiais para aprender a regra de concordincia verbal. Alguns pesquisadores do Instituto Stella Maris di Calambrone (Cipriani et al., 1993) registraram, dia apés dia, amos- tras de discursos espontaneos de grupos de criangas, enquanto acom- 33 ‘Semantics panhavam seu desenvolvimento desde a idade de cerca de um ano e meio até a idade de mais ou menos trés anos. Isto é, as mesmas criangas foram observadas no desenvolvimento de suas capacidades verbais por cerca de um ano e meio, Os dados assim colhidos foram transcritos e incluidos numa base de dados informatizada que contém dados andlogos de criangas de outras nacionalidades. Esta base de da- dos chamase Childes (cf. McWhinney e Snow, 1985) ¢ € uma fonte muito util na pesquisa do desenvolvimento da lingua materna na ctianga. Num trabalho recente sobre a aquisi¢Zo da lingua por crian- gas italianas, Maria Teresa Guasti (1993) fez um levantamento da- queles dados ¢ contou, um a um, 0s casos de concordancia verbal na linguagem de trés criangas tomadas ao acaso. © que emergiu desta amostragem foi que, na jdade de dois anos ¢ sete meses, as criangas estudadas cometiam erros de concordancia numa proporcao que varia- va de 1 a 3% dos casos. Portanto, em 97 a 99% dos casos, as criancas abaixo dos trés anos de idade ja assimilaram a regra (8) e aplicam-na em seu discurso espontineo: elas se comportam como se soubessem 0 que € um sujeito ¢ como os sujeitos se realizam em. italiano, Particular- mente significativo é 0 caso do seimpessoal. Bis alguns exemplos de sentencas faladas pela pequena Diana, uma das criangas estudadas, registrados por Guasti juntamente com a idade (em anos ¢ meses) na qual foram proferidas: (9) sistira™ (2,0) si sciacqua i piatti (2,1) si prende quetto (2,5] ndo’ si mette i piatti (2.7) As criancas, mesmo percebendo, ao que tudo indica, que 0 referente de s/é plural, fazem a concordancia no singular desde a + Se passa (roupa)”, “se enxigua os pratos", “se pega isto”, “onde se poe os pratos”, Notese que na variedade de italiano falada pela erianya a regra € usar 0 verbo 0 singular junto com o “si” dito impessoal (N. do T). 34 Ssmanrics & Grawarica Universal idade de dois anos. Elas nao parecem sequer considerar a possibilidade de que a concordancia entre o sujeito e o verbo possa tomar por base a semantica. Para entender o que estes dados demonstram, tentem se imaginar num lugar onde se fafa uma linguagem totalmente desconhecida. Voces precisam, antes de mais nada, saber se nela existe uma distingdo entre sujeito e objeto ou se € uma linguagem como o Pascal, na qual tal distingao nao existe; vocés devem, em seguida, entender como 0 sujeito ¢ o objeto se realizam, se existe concordancia, como ela é feita, ¢ assim por diante. Esta é bem a situacdo na qual a crianca se encontra. A taxa de acerto e a rapidez de seu sucesso serao, evidentemente, muito dificeis de explicar se nao assumirmos que as criancas sabem, de alguma maneira, o que procurar. E dificil, por exemplo, imaginar como uma crianca normal, falante de uma lingua em que existe a concordancia entre o verbo e o sujeito chega, antes dos trés anos, a exibir um compor- tamento verbal de acordo com a regra (8) se, num certo sentido, ela nao estiver pré-programada para procurar sujeitos, de preferéncia a qualquer outra regularidade, em cadeias de palavras, Este é exatamente 0 tipo de conhecimento que a Gramatica Universal proporciona, se- gundo Chomsky. O argumento que acabei de apresentar é conhecido na litera- tura como “argumento da pobreza do estimulo” porque ressalta a escassez de dados lingiiisticos que bastam 4 crianga para formular hipéteses completas, algo que seria dificil de explicar caso a crianga ndo dispusesse, como parte do seu patriménio bioldgico, de estrutu- ras altamente especializadas para este fim. Resumindo, a hipdtese fundamental do paradigma gerativo ¢ que na mente humana existe um esquematismo altamente estruturado e especializado para a lin- guagem. Tal esquematismo constitui a Gramatica Universal (GU), comum a todas as Jinguas, ¢ € 0 que guia a aquisicao da linguagem na crianga. A GU contém pardmetros aos quais podem ser atribuidas configuracdes de valores restritas que resultam nas diferentes linguas. A lingiiistica procura determinar a natureza da GU e dos parametros a ela relacionados através do estudo empirico das diversas linguas 35 Snake, atestadas, da maneira como a linguagem se desenvolve nas criangas, da maneira como as sentengas si0 formuladas e compreendidas, e assim por diante. O estudo da linguagem humana (ou seja, na hipd- tese de Chomsky, 0 estudo da GU) articula-se, como ja notamos, em varios componentes. A disciplina lingiiistica da qual trataremos neste livro — a semantica — estuda como se interpretam os sintagmas bem-formados de uma lingua. Nés nos comunicamos porque as expressdes da nossa lingua tém um significado, O nosso objetivo sera 6 de apresentar uma resposta explicita 4 pergunta “o que €0 signi ficado”. Essa resposta sera formulada no quadro do paradigma de pesquisa que acabamos de esbogar. Tentemos, entio, estabelecer em que consiste 0 componente semintico da GU.

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