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O PARASITA DA FAMILIA! (sobre "A Metamorfose" de Kafka) Modesto Carone Instituto de Estudos da Linguagem — UNICAMP Contra as interpretagées psicanalitica, teoldgica e existencialista de “A Metamorfose" de Kafka, o autor 1éa narrativa como uma trégica historia de familia num ambiente social de classe média, Descritores: Familia, Literatura, Kafka, F 1] Metamorfose" foi escrita no outuno de 1912, quando Kafka tinha 29 anos de idade, mas 6 foi publicada em novembro de 1915. Foi uma das poucas coisas que ele publicou em vida e talvez isso tenha contribufdo para que a estranha histéria do homem metamor- foseado em inseto se transformasse numa das principais marcas registradas da ficgio kafkiana. Mas 0 seu extraordinario poder de atragio —e de repulsio — nao se limita a este acidente de ordem bibliogrifica. Esse fascinio se deve antes ao efeito de choque que desde a primeira frase a novela provoca na mente do leitor. Pois j nas primeiras linhas do texto se manifesta a colisao entre a linguagem tipicamente cartorial, de protocolo, e 0 pressuposto inverossimil da coisa narrada. O espanto do leitor, alias, ¢ confirmado pelo niimero crescente de andlises ¢ interpretagdes de "A Metamorfose": basta referir que uma bibliografia ndo muito recente sobre Kafka registra nada menos que 128 titulos dedicados exclusivamente a exegese desta novela. As andlises vaio desde as de natureza teolégica e sociolégica até as hist6ricas ¢ estilisticas, passando pelas filos6ficas (principal- mente existencialistas) e por outras que se podem considerar psica- naliticas de destinagio biografica. 1, Conferéncia pronunciada na Sociedade Brasileira de Psicanilise de Sto Paulo em 1983, por ocasido do centenério de nascimento de Franz Kafka, Psicologia USP, S. Paulo, 3(1/2), p.131 - 141, 1992 131 Modesto Carone Seria impossivel, aqui, jo (mesmo panoramica) desses trabalhos, todos eles seguramente empenhados na coeréncia interna dos seus termos e no esforgo para extrair da obra o maior volume possivel de significado. Mas de uma maneira geral esas interpretagdes esbarram na dificuldade material de explicar a cir- cunstincia embaragosa —e no entanto decisiva — da transformagao do herdi em inseto, Isso porque a metamorfose de Gregor Samsa, que € 0 acontecimento determinante da histéria, no admite, do modo peculiar como cla se impée 4 leitura, ser captada linearmente, seja como uma alegoria acessivel a todos, seja como uma alegoria particular de Kafka, seja como um simbolo veiculado pela tradicao. Sendo assim, resta ao leitor 0 desconforto de se deparar com uma narragio transhicida, mas cujo ponto de partida permanece opaco. Noutras palavras a novela deslancha a partir de um dado fundamental para a economia do texto sem que o seu sentido seja claramente formulado pelo autor. Acresce que as causas da metamorfose em inseto sio um enigma no so para quem Ié, como também para o proprio herdi. Tanto & assim que, j4 no segundo pardgrafo, depois de ter feito uma répida inspegao na parte vistvel do seu corpo —onde sobressaem as saliéncias do ventre marrom e a fragilidade das inimeras perninhas que se mexem — Gregor Samsa pergunta: "O que aconteceu comigo?". Eo narrador acrescenta, de uma forma suficientemente categérica para no alimentar falsas esperangas em ninguém: "Nao era um sonho". Dito de outro ra0do, a metamorfose em inseto & postulada pela novela como algo definitivo: ela no é um pesadelo do qual se pudesse acordar. Pelo contririo, no registro costumeiro das inversdes kafkianas, € 0 proprio metamorfoseado quem desperta para este pesadelo, Portanto, a metamorfose nao esti af como um disparate, mas como uma licenga poética transformada em fato —com o qual, aliés, tanto 0 herdi como o leitor tém que se conformar. Nesse sentido, narrador nfo procura nem esclarecer, nem ironizar a metamorfose, limitando-se (digamos assim) a constaté-la com a maior cara-de-pau, Para ele, ela tem o carter impositivo de um sucesso natural contra 0 qual nao ha como protestar. Mesmo a comparacdo com uma catdstrofe natural sé tem valor relativo, porque esta de alguma maneira se encaixa num contexto inteligivel do mund Isto é: mesmo quando a catastrofe natural ocorre de um modo irregular, nao previsto, pode-se indagar sem constrangimentos pelas suas origens. A metamorfose de um tinico homem num inseto monstruoso é, nessa diregao, algo incomparavel, é um caso singular — ainda que se conceda que uma transfiguragio similar pudesse 132 Parasita da Familia acontecer a outra pessoa. Por sinal que essa possibilidade é aventada pelo préprio Gregor em relagao ao gerente da firma que o vem buscar em casa. "Gregor procurou imaginar se nfo poderia acontecer ao gerente algo semelhante ao que hoje se passara com ele: sem divida era preciso admitir essa possibilidade". Pondo de lado a malicia narrativa que neste trecho procura neutralizar, com uma naturalidade sinistra, a metamorfose antinatu- ral da figura central em inseto, o fato é que a novela nao pretende tornd-la nem imediatamente acessivel ao entendimento, nem muito menos universal. Ao contrério, & visivel que o narrador se esforga 0 tempo todo —e com uma agilidade admirével — para que o leitor acabe se esquecendo até do cardter ilusionista da prépria ficgao, compensando o abalo inicial da histéria com a notagao minuciosa ¢ quase naturalista dos seus desdobramentos. Entretanto é evidente que o tema da metamorfose nao & novo em literatura: os mitos clissicos e as fabulas, as narrativas dos povos primitivos e os contos-de-fadas so ricos em acontecimentos como este, Mas nenhum leitor esclarecido fica perturbado com eles, nio 86 porque essas metamorfoses em geral so reversiveis, mas também porque podem ser logo percebidas como manifestagdes de um esi de consciéncia ingénuo, pré-cientifico, que exime o leitor de julgé- Jos segundo os padrdes da sua propria experiéncia. Assim é que nds aceitamos que Circe, na Odisséia, metamorfoseie os companheiros de Ulisses em porcos, ou que, num conto de Grimm, o filho do rei vire sapo até que uma princesa o devolva & sua condigao natural — justamente porque nestes casos vigora o principio da diferenca entre ‘© mundo empirico conhecido e 0 mundo magico, fanta irénico da poesia — o que nos coloca na postura certa enquanto leitores. E este principio que parece faltar na "A Metamorfose", talvez seja por isso que dela se desprenda uma sensagdo extraordinaria- mente perturbadora e penosa que nos pée numa atitude de defesa, F claro que para esta impressio penosa contribui também um recurso téenico eficaz, que & 0 foco narrativo escolhido por Kafka. Sua peculiaridade consiste no fato de que no é o inseto-personagem quem conta a histéria, nfo obstante ela seja narrada da perspectiva do herdi, Essa manobra é possivel, aqui, gragas & existéncia de um narrador desprovido de qualquer marca pessoal que 0 autorizasse, por exemplo, a fazer reflexdes ou comentérios esclarecedores sobre a histéria que estd relatando, Em outros termos, esse narrador se comporta como uma cdmera cinematogrdfica na cabega do pro- tagonista —e nesse caso 0 relato objetivo, através do discurso direto e indireto, se entrelaca com a proximidade daquilo que é experimen- 133

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