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A casa kabyle ou o mundo as avessas* Pierre Bourdieu Traducéo de Claude G. Papavero Mestranda em Antropologia Social pela USP Bolsista da CAPES Com a colaboragdo de Sueli G. Monteiro. Reviséio de Kabengele Munanga Docente do departamento de Antropologia/USP O interior da casa kabyle tem a forma de um retangulo que uma pequena parede com uma abertura elevando-se a meia-altura divide, no tergo do seu comprimento, em duas partes: a maior, soerguida em cerca de 50 cm, coberta com uma camada de argila pretae de estrume de vaca lustrada com seixo pelas mulheres, é reservada para uso humano; a mais estreita, pavimentada com lajes, sendo ocupada pelos animais. Uma porta de duas folhas dé acesso aos dois aposentos. Sobre a mureta de separaciio guar- dam-se, de um lado, as jarrinhas de terracota ou as cestas de fibra de alfa nos quais conservam 0 aprovisionamento destinado ao consumo imediato — figos, farinhas, * A presente tradugio refere-se ao texto "La maison Kabyle ou le monde renversé”. In: POUILLON, Jean & MARANDA, P. Echanges et communications - mélanges offerts (Claude Lévi-Strauss a loccasion de son 60° anniversaire. Paris: Haye Mouton, 1970, p. 739-758, 147 Pierre Bourdieu TRADUCAO AnoIK-n8- 1999 CADERNOS DE CAMPO Jeguminosas —e do outro, perto da porta, as jarras de gua. Acima do estabulo, ha um sétiio onde armazenam, junto a diversos tipos de utensflios, a palha eo feno destinados Aalimentagdo dos animais, e onde dormem geralmente as mulheres e as criangas, so- bretudo durante o invemno. Diante da construgdo de alvenaria atravessada por nichos buracos, encostada ao muro de oittio, que chamam de muro (ou mais exatamente “lado”) do alto ou de kanun, que serve para guardar os utensflios da cozinha (concha, panela, prato para assar bolos achatados e outros objetos de terracota escurecidos pelo fogo), enquadrada de ambos os lados por grandes jarras cheias de gro, se encontra 0 fogao, uma cavidade circular de alguns centimetros de profundidade em seu centro, em volta da qual trés grandes pedras dispostas em trifingulo destinam-se ao apoio das vasilhas de cozinha. Em frente & parede, diante da porta chamada, muitas vezes, pelo mesmo nome que o muro exterior da fachada sobre o patio ( tasga ) ou que é chamado ainda muro do tear ou muro oposto ( é visto de frente quando se entra) ergue-se 0 tear. Do lado oposto, o muro da porta é chamado de muro da escuridio, ou do sono, ou da moga, ou do ttimulo; uma bancada larga o suficiente para receber uma esteira estendida, est encostada nele ¢ acolhe o bezerro ou o carneiro da festa, as vezes lenha ou uma jarra ’4gua. As roupas, as esteiras ¢ os cobertores estiio pendurados, durante o dia, num pino ou numa viga de madeira, junto ao muro da escuridao ou entéio so colocados debaixo do banco de separagio. Assim, podemos vé-lo, o muro do kanun se ope ao estabulo como 0 alto se opée ao baixo (adaynin, estabulo, decorre da raiz ada, baixo) €.0 muro do tear ao muro da porta como a luz as trevas: poderfamos ceder & tentagdo de atribuir a essas oposigdes uma explicagio estritamente técnica, j4 que o muro do tear, colocado frente A porta, ela propria virada para leste, é o mais fortemente ilumi- nado, sendo que o estabulo encontra-se, de fato, situado em desnivel num plano infe- rior ( pois, no mais das vezes, a casa é construfda perpendicularmente as curvas de nivel do terreno, para facilitar o escoamento dos liquidos que se desprendem do estru- mee das aguas usadas), caso numerosos indicios nao viessem a sugerir que essas opo- sigdes constituem 0 centro de feixes de oposigées paralelas que niio devem jamais toda sua necessidade aos imperativos técnicos ¢ as necessidades funcionais. A parte baixa, escura e noturna da casa, lugar dos objetos timidos, verdes ou crus — jarras de gua colocadas sobre bancos na entrada do estabulo de ambos os Iados ou contra o muro da escuridao, lenha, forragem verde — lugar também dos seres naturais — bois e vacas, burros e mulas — das atividades naturais — sono, ato sexual, parto—e também da morte, se opde como a natureza a cultura, a parte alta, luminosa, nobre, lugar dos humanos ¢ em particular do héspede, do fogo e dos objetos fabrica- dos pelo fogo, lampada, utensflios da cozinha, fuzil — simbolo da honra viril (ennif) que protege a honra feminina ( horma) —, tear, simbolo de toda protegiio, lugar ainda das duas atividades especificamente culturais que tém lugar no espago da casa: a cozi- nhae a tecelagem. Essas relagées de oposigao se expressam através de todo um con- junto de indicios convergentes que Ihes dao fundamento e, ao mesmo tempo, delas recebem o seu sentido. E diante do tear que o héspede que desejam honrar é convi- 148 dado a sentar, qabel, verbo que significa também se defrontar com ou estar frente ao este. Quando alguém foi mal recebido, é costume que diga : “Ele me fez sentar diante de seu muro da escuridao como num timulo”- ou ainda - “ele tem um muro da escuri- dao tao sombrio quanto um timulo”. O muro da escuridao também é chamado muro do doente; a expresso “segurar o muro” significa estar doente e, por extensio, estar ocioso: com efeito, armam ali o leito do doente, sobretudo durante o inverno. O vincu- lo entre a parte obscura da casa e a morte se revela ainda pelo fato de que é na entrada do estabulo que procedem & lavagem do morto. Costumam dizer que 0 s6tAo, inteira- mente construfdo em madeira é carregado pelo estbulo como o cadaver pelos carre- gadores, tha’richth designando ao mesmo tempo 0 sétiio e a maca que serve para transportar os mortos. De modo que é compreensivel que no se possa oferecer a um héspede, sem ofendé-lo, dormir no sétdo, que mantém com o muro do timulo a mes- ‘ma oposigdio que o muro do tear. E também diante do muro do tear, em frente a porta, em plena luz, que sentam, ou melhor, que expdem, a maneira dos pratos decorados suspensos na pare- de, a recém-casada no dia das nuipcias. Quando se sabe que 0 cordio umbilical da menina € enterrado atrs do tear e que, para proteger a virgindade de uma moga, obri- gam-na a passar entre os fios da urdidura, indo da porta em dirego ao muro, perce- be-se a funciio de protegio magica atribufda ao tear. E de fato, do ponto de vista de seus parentes masculinos, toda a vida da menina se resume de certo modo nas posi- des sucessivas que cla ocupa simbolicamente em relagiio ao tear, simbolo da pro- tegao viril : antes do casamento ela se situa atrds do tear, em sua sombra, debaixo de sua protegiio, da mesma forma que est colocada debaixo da protegdo de seu pai e de seus irmios; no dia do casamento ela estd sentada na frente do tear, dando- Ihe as costas, em plena luz; a seguir ela se sentard para tecer com as costas para 0 muro da luz, atrés do instrumento, “A vergonha, dizem, é a moga” e chamam o genro de 0 “véu das vergonhas”, o ponto de honra do homem sendo a “barreira” protetora da honra feminina. A parte baixa e obscura se opée também a parte alta, como o masculino ao feminino: além do que, a divisao do trabalho entre os sexos ( fundamentada sobre 0 mesmo principio de divisdo que a organizagiio do espago) confia 4 mulher o encargo da maioria dos objetos que pertence a parte escura da casa, o transporte da gua, da Ienha e do estrume, por exemplo, a oposi¢aio entre a parte alta e a parte baixa repro- duz, no ambito do espago da casa, aquela estabelecida entre dentro e fora, entre 0 espago feminino, a casa e seu jardim, lugar do haram por exceléncia, isto é, do sagra- do e do proibido, espago fechado secreto, protegido, ao abrigo das intrusées e dos olhares, e 0 espago masculino thajma’th, o lugar da assembléia, a mesquita, o café, os campos ou o mercado; de um lado o segredo da intimidade, do outro, o espago aberto dos relacionamentos sociais; de um lado a vida dos sentidos e dos sentiments, do outro, a vida dos relacionamentos de homem para homem, do didlogo e das trocas. A parte baixa da casa € 0 lugar do segredo mais intimo, no seio do mundo da intimidade, isto é, de tudo o que diz respeito & sexualidade e A procriagiio. Quase vazia de dia, quando as 149 TRADUGAO Pierre Bourdieu

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