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O PODER E A SOCIEDADE AO TEMPO DE D. AFONSO IV or Marta Helena da Cruz Cochio Quando, a 7 de Janeiro de 1325, por morte de seu pai D. Dinis, 0 infante Afonso se senta no trono, que tanto cobigara e temera perder, herda um reino j4 perfeitamente consolidado em terra e poder. Mais, herda um reino, onde os reis precedentes tinham lancado os funda mentos de um aparelho administrativo, burocritico e juridien que conduzira a derrocada do velho mundo feudal. Reino este estruturado num corpo social bem definido, com tendéncia mesmo para a cristali- zagio,e vivificado por uma economia plurifacetada e muito dindmica Mas, em alguns aspectos, mormente no tocante & inovadora e progressiva ideologia © praxis da-centralizacao régia, esta obra era ainda bastante recente, datava afinal sobretudo de dois reinados anteriores e necessi- tava de consolidacao. Noutros, desenhados de ha longa data, como as formagées sociais e a hierarquizagio da sociedade, ou a phiridimen. sionalidade das bases econdmicas, estava-se em acentuada evolucio. Afonso IV, podemos dizé-lo, herdava, a partida, um reino em progresso, caminhando na senda da consolidacio politica da soberania régia, € animado por uma notéria dinémica evolutiva tanto social como econémica, De facto a obra de reis anteriores fora imensa. De Afonso Henriques a Afonso II, 6 pequeno condado portucalense confinado ao espaco entre Minho e Mondego fora crescendo, paulatinamente, a custa da ocupagio das terras em mao do infil. Primeiro até ao Tojo, depois avancando, nao sem recuos, pelo Alto e Baixo Alentejo, até a conquists, em definitivo, da faixa meridional algarvia, em 1249. Questdes de soberania se levantam entre Portugal e Castela quanto & posse de ALGarb Al- -Andaluz, resolvidas por fim pelo tratado de Badajoz de 1267. Faltava, enfim, delinear a fronteira leste do terrtério, quer na zona do Guadiana, 35 quer na de Riba Coa, 0 que ficara decidido, entre ambos 0s reinos, no Tratado de Alcanizes de 1297. Este desenvolvimento territorial de Portugal que hoje somos —¢ ja éramos no século XII—s6 foi possivel aliando a reconquista das terras, a no menos fundamental missdo de povoamento. E os nossos primeiros reis, sabendo-o perfeitamente, mobilizaram todas as forcas fem presenca. Apoiavam-se nos seus aliados naturais—a nobreza ¢ 0 clero—nesta dupla vertente de luta armada e luta pecifica de coloni- zagio e arroteamento. Para a jurisdigéo dos privilegiados passavam assim, gracas aos favores régios, grandes dominios terrtoriais ¢ poderes, com 05 quais estes senhores enquadravam ¢ tutelavam os homens, ligando-os a terra e a um poder. Reforvava-se o tradicional senhoria- lismo nortenho, onde imperava uma velha nobreza de limhagem, que se alargava todavia para 0 centro do pais, érea em que corcorrem, a par da expansio de certas casas senhoriais, a implantagao de novas e poderosas casas monésticas como Santa Cruz ou Alcobaca. E a medida aue se avancava para Sul ¢ o século XIII ia entrando, vastos dominios caiam sob a alada das Ordens Militares, dando lugar a senhorios bem definidos e organizados. Perdiam os reis em terras ¢ rendimentos parao erério, ganhavam um pais cultivado e povoado, penhor da sua afirmacéo € autonomia. Tempos viriam para recobrar o perdido... Concomitantemente os soberanos apoiavam ou fomentavam mesmo © desenvolvimento de comunidades rurais, sobretudo em zonas frontel rigas, onde os homens livres procuravam organizar e gerira sua vida de trabalho e de relacio, centrada ¢ hierarquizada a partir da terra. Nasciam os concelhos rurais, concorrentes dos senhorios, na mesma intengdo de povoar e desenvolver o reino. Entretanto, com o crescimento de Portugal para Sul, as velhas estruturas cristas nortenhas, fortemente ruralistas e senhoriais, enfrentavam as novas formagées sociais mogara- bizadas, preferencialmente comerciais e urbanas. Os monarcas soube- ram-nas, entéo, reforyar ¢ aproveitar, sancionando com cartas de forai cesses niicleos urbanos, jé bem detineados administrativamente e pujan- tes na sua economia monetaria de mercado. Completa-se um reino pelo imbricamento de velhas © novas estruturas sociais e econémicas. Anima-se 0 comércio, circula a moeds, revitaliza-se 0 artesanato, povoa-se a costa, dinamiza-se a pesca ¢ salicultura, abrimo-nos ao mar. Em consenténeo a articulacdo social entre senhores © camponeses ¢ questionada pelo desenvolvimento urbano, Uma emergente burguesi 1a, detentore de capitais e de tuma inovadora ideologia de economia reprodutiva de luero, ou mesmo 36 especulagio, langa os seus tentaculos sobre 0 campo. Os homens do dinheiro tornam-se donos ou exploradores da terra. Dai obtém os produtos agricolas que depois escoam para os centros urbanor, quando mais Ihes interessa, controlando 0s pregos ¢ demais mecanismos do tmercado, enquanto internamente dominam o circuito artesanal dos diversos mesteres e mesteirais. A cidade controla o campo. Os citadinos interpoem-se entre os senhores e camponeses, como rendeiros de terras ou arrematadores de rendas, minando as arcaicas estruturas senhoriais, cessencialmente rentistas ¢ armazenadoras {um reino assim contrastado econdmica e socialmente, 0 poder régio poder comecar a actuar com vista a sua consolidagao. Sem precisar, como diz 0 ditado, de edividir para reinar», vai, no entanto, aproveitar as cisdes. Porque menos precisa dos seus aliados t (clero © nobreza) para a guerra ou organizagao do terri comecar a cercear-thes privilégios € a aproveitar as dissengdes entre ‘ambos ou as fracturas internas dentro de cada grupo para melhor se Ihes impor. O apoio do movimento concelhio serve-the, alias, a muitos, titulos, para contrabalancar aqueles poderes. ‘Afonso II langa, em 1220, as primefras Inquirigdes gerais, onde as autoridades, percorrendo o Norte do pais, procuravam averiguar dos bens e rendimentos da Coroa e obstar aos abusos de extensio de terras direitos nas honras e coutos da nobreza e clero. Em simultane este monarca exige que Ihe sejam apresentados os titulos que legalizavam imunidades concelhos para serem confirmados. Eram medidas muito avangadas para a 6poca, as deste rei, que reclamava para si o supremo poder judicial elegislativo; pretendia que a Igreja no aumentasse a sua riqueza fundidria; lancava as bases de uma rede burocritica de corte, ‘apoiando-se em legistas; dava inicio a um registo de chancelaria; tentava criar pelo pais um notariado para escrever e validar os documentos particulares; ¢ finalmente utilizou © portugués no seu testamento (1214), exprimindo a sua ultima vontade, ndo na lingua erudita e hermética da clerezia, mas na linguagem do seu povo, agora clevada dignidade de um cédigo escrito’. A reacgio senhorial de pronto se fez sentire culminara no reinado seguinte com a deposigio do Sobre & acgio global dest rei. veja-se Joné Matteso,«D. Afonso Il 0 Gordos, in Histéria de Portugal, drigida por José Hermano Saraiva, vol. 2. Lisboa. Alfa. 1983 pp. 115-136; e para alguns aspectos diplométicos © de cenralizagio regia 0 estudo de Maria Teresa Nobre Veloso, D. Afonso I. Relazes de Portugal com a Santa Sé durante 0s reinado, 2 vols, Colmbrs, 1988 (ese de doutoramento daetlografad). 37 proprio monarea, D. Sancho II?, Escelhido para governar 0 conde de Bolonha, irmao do rei, com o titulo de Afonso IIT, néo logrou a classe senhorial fazer vingar of cove intentes. Este aoberano, habilmente apoiado numa nobreza de Corte, a quem prodigalizava benesses, ¢ sabendo tirar partido das clivagens e tenses geradas entre 03 nobres, continuou a tarefa de centralizagao régia que s6 a custa da diminuigao do poder senhorial se conseguia’. Em 1258 ordena novas Inquiricées gerais para o Norte do pais e algumas areas a S. do Douro e da Beira Interior. Se os abusos nao sio completamente eliminados, pelo menos 0s privilegiados sabem que nao podem agir em plena liberdade, ao livre arbitrio do seu poder, uma vez que a Coroa esta vigilante. Vigilante esteve também D. Dinis, quanto ao aumento de honras novas que mandou devassar em sucessivas e repetidas inquirigdes de 1284, 1288- -1290, 1301 e 13074. Nao estava, porém, s6 em causa 0 acréscimo do patriménio nobre, mas também do eclesiastico. Por isso D. Dinis decreta varias leis de desamortizacao que vao no sentido de impedir & Igreja a compra de bens de raiz ou a capacidade dos mosteiros herdarem bens dos seus professos. E a nobres e clérigos interdita a posse ou o usufruto de bens reguengos. A terra, ainda o principal sustentéculo da economia, nao podia continuar a cair sob 0 dominio dos privilegiados, fugindo & algada da Coroa vastos poderes ¢ rendimentos para 0 erario. Por 1ss0 as medidas dionisinas que afastavam os senhores do acesso, sobretudo ilegal, a propriedade, dobravam-se de leis que pretendiam coarctar as suas jurisdigées, tantas vezes igualmente abusivas. Exige, pois, em lei de 1317, que as apelagGes ou recursos das sentencas dos juizes das terras imunes sigam directamente para a corte, 4 que, mesmo nas doagdes régias «fica guardado para os reis as apelacdes e a justica maior>5, % Quanto a ambigncia em gue tal acto se produ, consuliose Jost 3 A crise de 1245. n Portugal Medieval. Novas intepretades, Lisboa, prensa Nacional: “Casa da Moeds, 1985, pp. 57-75. 2 Consultese, José Mattoco,Identificacdo de um pats. Ensaio sobre as origans de Portugal. 1086-1325. Vol It — Compose, Lisboa, Estampa, 1985, pp. 136137, 197-188; ¢ esd Hermano Saraiva, «A reorganieagso da monarquine, im storie de Portugal vol. 2, pp. 15: “No que concerne lelslago dlonisina «também de els anteriores sobre bens © ppoderes dos prvilegiados. consultese Hearique da Gama Barros, Histvia da Adminis. {rage Piblica em Portugal nos séculos XIT a XV, 23 ed, dirigida por Torquato de Sousa Soares, tI, Lisboa, Sé da Costa, 1945, pp, 270.274, 424430, 440-457; Marcello Caetano, Historia do. Direto Ponugués. Fontes ~Direto Piblico (1140-1433), 2* od. Lisbos 328, E face ao incurmprimento das suas determinacdes por parte dos privile- giados, que continuavam a criar honras novas ea dificultarajuriscigao real, o monarca, em carta régia de 1321, cam firmera ¢ mesma irritrofo, determina que aqueles que se lhe opuserem «os filhedes pelas gargantas ‘¢08 tenhais hem presos e bem guardados por meu mandado»*. Medidas fortes, sem diivida. Obviamente conducentes a uma reacgao senhorial. Para a qual os poderosos soubéram captar o infante . Afonso, futuro herdeiro do trono. De facto, como jé foi demonstrado? © infante D. Afonso, quando, entre 1319 a 1324, se encontra em conflito ‘com o seu pai por causa do bastardo Afonso Sanches, teria a seu lado um bom nimero de nobres, sobretudo de uma nobreza de corte ou de segunda ¢ terceira categoria, sem contar com filhos segundos © bastardos ou mesmo uns quantos individuos de ascendéncia duvidosa. Nobreza esta que, num primeiro momento, resiste passivamente as medidas dionisinas que Ihe cerceavam privilégios, protestando em Cortes, mas passa depois, pela intriga ¢ mesmo violéncia, a uma luta activa, protagonizada na oposicio do infante ao seu pai. Esperavam conseguir de D. Afonso, que tanto reclamava para sia justica do reino, uma praxis mais conducente aos seus interesses, menos activads por juristas que, em nome da lei geral ¢ da razo, queriam impor uma ordem ‘que nao se comprazia com excepgdes prerrogativas senhoriais. Em contrapartida D. Dini, se bem que também apoiado por alguns nobres — ja que toda esta analise de partidérios no pode ser encarada de forma rigida — tinha sobremaneira a adesio das Ordens Militares e dos concelhas. Dominava pois o sul concelhio ¢ urbano, enquanto 0 infante obtinha éxitos sobretudo no velho Portugal do Norte e Centro, Buscavam uns © apoio régio que, acreditavam, com a sua politica centralizadora e posta aos poderes senhoriais mais Ihes podia servir, pois os concelhos sempre dos poderosos se temiam. Julgavam outros que apotando o infante Afonso defendiam a sua causa, conseguindo do futuro rei um. aliado para readquirir 0 terreno perdido em reinos anteriores. Jogaram bem os contendores? Afonso IV. ji rei, responde aos interesses dos senhores? Ou, como pergunta José Mattoso*, restaura os privilégios senhoriais? Mais, interrompe o percurso da centralizagio regia? Sao ousadas as perguntas. Bem mais modestas as respostas. 0 que Ob. cit, p. 328 7 Leiase José Matioso, «A Guerra Civil de 13191324, in Portigal Medeval pp. 293-308. § cart ctw. 308 39 dissermos deve, queremos claramente afirmé-lo, ser um primeiro cesboco de interpretacdo, baseado em alguns elementos que analisamos ‘mais qualitativa que quantitativamente. F que nim futuro gnstariamos de aprofundar. Comecemos por afirmar que se era seu desejo tomar a justia em suas méos, ele 0 fez. A cada passo, no seu idedrio, se reforga a teoria de ‘que o poder vem directamente de Deus — sem intermediarios ou tutelas Papais externas — para o rei, a fim de encaminhar 9 povo no recto ‘caminho®. A justica é pois o maior bem e ao rei pertence por exceléncia — «sa milhor das vertudes per que ho mundo se sosten ¢ Rege... he a Justiga ..E porque hie das cousas que asijnaadamente que aos Reys pertence sy ¢ de poer antre os da sa terra agecego e concordya com Justica»®. Justamente Ferndo Lopes contrapée os tempos em que Afonso, sendo infante «so favorecya e sustentava com mallfeytores comtra toda ha onestidade, comeyemeya e justica», aqueles em que, sendo rei, «amou muyto seu pouo, € sempre o regeo com ymteyra justica, e 0 emparou i defemdeo com grande esforgo» Abundante legislagao, saida ou néo de Cortes, promailgou Afonso TV, tendo em vista, sobremaneira, uma reestruturacio judicial e adminis- trativa, se bem que também visasse 0 econémico, 0 social ¢ até o moral! Rodeado de juristas ¢ reclamando como seu apanigio a justica, organizou 0 tribunal da corte" e emanou leeislacio sobre aspectos Assim comesa uma lei de Afonso IV: «Todos aqueles que desitamenteentendem, cuydar deuem que 0 Rey. ou prineipe a que per deus regimento Ihe he dado. sempre consiram en comme aquel poboo que reper. viva a seruigo de desss, Livro das Leis € Postura, letura paleografica e transcrigd de Maria Teresa Campo: Rodrigues, Lisboa, Faculdade de Direito, p. 324. Sobreos fundamentos da realeza eos atibutos do rel quanto 4 justiga, como legislador, chefe militar e sarerano feudal ou proiector da economia, fonsultese, Marcello Caetano, Hisdra do Dive. pp. 295-304; © também sobre a concepgdes da fingao régia, José Mattoso, Idetificapn de wm pais, vol. M, pp. 81-98 10 Livro das Leis ePosturas, pp. 283.284, Mt Cranias dos Sere Primeiros Reis de Portugal, e@. critica de Carlos da Silve ‘Tarouca, S.J, vol Tl Lisboa, Academia Portuguesa de Histria, 1982, p. (41 TT Uma panorama gerai do reiaado de D. Afonso TV se enon em Histria de Portugal, dieeocio de Damiéo Peres, vol. H, Barcelos, Portucalewse Editora, 1929 pp. 302-317; José Hermano Saraiva, »0 apogeu dionisinos, ln Hutdria de Portugal vol. 3, Lisboa, Alfa, 1983, pp. 38.57; A. H. de Oliveira Marques, Portugal na cise dos Séculos XIV e XV, Lisboa, Presenca, 1987, pp. 495-508. 1D” Armando Luis de Carvalho Homer, na sus tse de doutoramento, O Desemborgo ‘gio (1320-1433), vol. 1, Porto, 1985 (policoplada), pp. 300-311, chama a atengso para a ‘ava abundant lepislago relerente justia, mas gualronte pare a sua Inowadora prtica na governagio, onde surgem novos cargos no desombargo régio. 40 vrios relacionados com a fungdo judicial desde o modo de proceder nas audiéncias ¢ a intervencdo dos advogados até ao sistema de provas e & execugo das sentengas ¥, Neste afd de firmaro seu poder como supremo juiz, tinha, forgosamente, de embater com 2s prerrogativas dos senhores. Sobremaneira com o poder jurisdicional. Assim, em 1325, exige que todos 0s privilegiados, detentores de imunidades, the apreseniem os respectivos titulos'®. Em 1335, verificando que muitos dos interessados, no tinham vindo as confirmagées gerais, decreta inquirigdes in loco para averiguar a situagdo dos faltosos, as quais se devem tet dirigido ara Trais-os-Montes ¢ Reira, Face & oposicao dos fidalgos, matiza um pouco as decisées anteriores, reconhecendo todas as honras existentes & data das inquirigées de D. Dinis ou feitas 20 anos antes da sua morte, nas quais se sancionava a jurisdigéo civel e criminal que houveste sido provada. E nesse mesmo ano de 1343 manda Estago Lourengo inquirir em Entre Douro ¢ Minho, o qual se fazia acompanhar, nessa diligéncia, das inquiricées de 1258, dando pois continuidade a uma obra que ja vinha de longe. Em consentaneo determina que os fidalgos abdiquem do ancestral uso da vindicta, de defenderem a sua honra por méos préprias, exigindo que se submetessem a justica régia, iualandoos aos demais estratos sociais ¢ derrogando-Ihes um importante privilegio de classe. Se D. Afonso IV assim actuava face aos privilegiados, para cumprir uma politica, de ha longo tragada, de centralizagao régia, dirigits,com 0 mesmo fim, os olhos pare outro poder, © concelhio, Nos séculos anteriores os reis haviam-se preocupado em criar ou reconhecer comunidades concelhias rurais ou urbanas, com objectivos varios que iam desde o povoamento e defesa até & pacificagéo social ou interesses financeiros, assegurando-se igualmente de um novo apoio no enfrentar dos seus tradicionais aliados"*. Essas circunscrigdes administrativas, com leis ¢ oficiais préprios, néo podiam porém fugir & algada do poder central, Em especial quando as rédeas da governanca concelhia se iam Una sintese do direto criminal e processual nos reinados de D. Afor D. Fernando se encontra em Marcello Caetano, Historia do Divi. BP. 18 Sobre esta ordem e subsequentes inqurigdes, consultese Joso Pet Ribeiro, Meméria para a Histéria das nguiredes dos prinwirosreinados de Prtugal, Lisboa, 1815, Dp. 123-124; Henrique da Gamma Bars, ob ct, tl, pp. 436-467; Marello Caetano, Histéria do Dirt, pp. 228329, "© ‘Gonfrontese Maria Helena da Cruz Coelho e Joaquim Romero Magalhies, © poder concethio. Das arigens ds Cortes Constitutes, Coimbra, Centro de Estudos © Formeacio Autarquiea, 1986, pp. 1-7 4 cada vez mais concentrando numa restrita elite dirigente, numa burguesia forte econémica e socialmente, cujo crescente poder era de temer © havia que controlar. D. Afousy IV passa puis a numear corregedores para as comarcas com fungées amplissimas de inspec- cionar a justica e 0 zelo dos magistrados locais e funcionarios régios, de supervisar a eleigao dos oficiais, de conhecer das rendas manicipais ede varios problemas internos das localidades, competéncias essas cons gradas no regimento de 1332 e depois ampliadas no de 1340. Alguns anos mais tarde, a execucdo dos testamentos aquando dz Peste Negra, darlhe a oportunidade de impér, de uma forma sistematica, juizes régios para 0s concelhos, os chamados juizes de fora, que, segundo a stia argumentagao, como conhecedores da ciéncia juridica e estranhos as comunidades, eram penhor de uma maior diligéncia ¢ imparcialidade na execucao da justica. Simultaneamente, a propria edministracio interna dos municipios exige uma especializacao cada ver maior dos governantes © surgem os vereadores que juntamente com os outros oficiais vio formar a camara, o érgio governativo por exceléncia dos concelhos a partir de meados do século XIV" ‘Com estas medidas fechava-se 0 cerco. Os senhores perdiam boa parte da jurisdiglo, ficando em alguns casos com 0 vezes com o crime que se adjudicava aos concelhos. Nestes, os oficiais régios, sobretudo na pessoa dos corregedores ¢ juizes de fora, contro- lavam a justica e a administracdo. Afonso IV havia, em larga medida, logrado o sew intento de ser supremo juiz —exercia a justica na corte através dos seus ouvidores ¢ sobrejuizes e superintendia, através dos seus delegados nos concelhes, ao exercicio da mesma a nivel local Dentro desse idedrio tutelador procurava impor uma nova ordem, moralizar todo 0 corpo social e econémico. ‘Assim promulge, em 1340, uma pragmética onde regulamenta 0 comer ¢ 0 vestir dos mais abastados, Mas curiosamente, como ja foi referido", se era raina dos nobres. nos seus mais variados estratos, que procurava obstar, refreando-thes 0s gastos com o prazzr €o huxo que a ostentaco do seu estado reclamava, tal nao teria sido grandemente conseguido. Toda a lei esta arquitectada sobre os privilégios de sangue ¢, em contrapartida, a ascensio da burguesia era imparavel, mas essa podia gastar na fnsia de se assimilar a0 status superior da nobreza. Igualmente com a sua legislagao sobre a usura, sobretuco dos judeus, Flom, pp. 9:17 e does. 1V eV. 8 AHL de Oliveira Marques. «A Pragmitics de 12400, in Ensaios de Histiria Medieval Portuguesa, 2 ed, Lisbos, Vega, 1980, pp. 93-119. 42 tenta colocar um pouco de moral na actividade emprestadors. Mas, ‘como sabemos, se os judeus continuam a ser os prineipais senhores do capital e ce se mantém a ncecasidade de recorrer a empréstimos, quen detém o capital pode impor as regras, regras forcosamente especul tivas. A nivel mesmo dos costumes proibe o jogo a dinheiro, impde normas sobre o vestuario e viver das prostitutas, estatui sobre 0 casamento ou o relacionamento com mulheres de diferentes estados” Esta era, pois, a ampla ideologia de centralizacio e de reiormas diversas, conducentes & ordem e equilibrio internos, que D. Afonso IV rocurava impor. Em pais que, como bem sabemos, nem sempre se apresentou pacifico a nivel do seu relacionamento externo™. Sera, no entanto, agora de perguntar—a sua praxis esteve de acordo com 0 idedrio imposto? Oual o sucesso da sua legislacio eda sua acgdo? © balanco, como dlissemos, sera provisério. Estamos convicta de que as suas leis que cerceavam a jurisdic dos poderosos, porque estribadas numa acco continua de varios monarcas anteriores, tiveram efeitos reais, Por si s6 uma lei lembra diqueles a quem se dirige que no sao livres de agir a seu gosto. Os privilegiados sabiam pois que Ihes era bastante mais dificil alargar o scu poder a outras terras que nao is suas tradicfonais imunidades. E mesmo em muitas delas os seus direitos foram coarctados. De facto 2 jurisdicao crime, na sua grande maioria, passa para os concelhos, logo, através destes, para os oficiais do rei. Em. varias apelagées chegadas até A Coroa, vemos 0 monarca, depois de abertas inquiricdes, ordenar sentencas pelos seus ouvidores e sobrejuizes ‘que apenas admitiam um juiz com algada sobre ocivel, quer nos coutos, quer em honras. Assim & ¢ para $6 citar alguns exemplos, com 0 mosteiro de Nandim nos seus coutos*, o das donas de Entre 0s Rios no couto do mosteiro”, 0 cendbio de Lorvao em Esgueira, Serpins, © Ar eit, pp. 97-98 2% Vejase a bibliograliacitada ma nots 12¢ ands, sobre este aspect mais espcilico, Maria Margarida de Si Nogueira Lalanda, A politica exema de. Afonso IV (1325-1387), Ponte Delgada, 1987 (dactilografado). Jusismente sludindo =perda e dano que nos recrecera da guerra e queymas que ouvera ante nome senhor el rey © el rey de CCastela» (Afonso XD, concelho de Barroso pediu 20 rel um decréscimo do quantitative & tentregar, © que Ihe fi outorgado (TT — Gav. 13, M4, 3, N18, de Lishoa, 18 de Junho de 1340, em traslado cle 24 de Abril de 1341), 21 TT—Gav. 11, M. 1. N. 12, 0 mosteiro ni teria, porém, quslquer juried {sobre as honras inseridas no cate, 2 TT—Gav. M. 4, N.23, do 1336. As donas ndo detinham, todavia, nenhuma Jurisdigho aa aldeia de Supueiros B ‘Treixedo e Midées, o de Celas em Firas (depois de um longo contencioso em que a instituigdo lutou duramente pelo crime, mas acabou por perder), o de Santa Cruz, nos coutos de Montemor e Cuinibra™, o de §. Martinho de Crasto no seu couto (mas sem nenhuma autoridade sobre as honras que nele se incluem)*, o abade da igreja de Ferreira do bispado do Porto, no couto da igreja"*, ou Rui Goncalves na sua honra de Covelos** (Vouga), Portanto a justica senhorial sobre delitos civeis ou menores é, no geral. confirmada, embora haja, mesmo ai, excepcdes. Justamente o monarca nega qualquer jurisdicéo ao mosteiro de S. Paulo de Almaziva em certas terras, aos mosteiros de Semide ¢ Moreira nos seus coutos””, ao mosteiro de Lorvéo em Gondelim (Penacova), Os ficiais régios mostravam-se prontos, quando nio zelosos de mais, em cumprir as determinagées régias®. De igual forma os acompanhavam nessa tarefa os oficiais concelhios®, na ansia de diminuir poderes a vizinhos temiveis que lhes disputavam as terras de pastagem, a mao-de- Tobra e eximiam os seus homens de contribuir para os encargos & servigos concethios. No entanto Afonso IV, face aos poderosos, sobretudo eclesiésticos, nao consegue impér cabalmente 0 seu ideario de centralizacio. O mos teiro de Alcobaca vera confirmada a jurisdigio civel e crime em alguns dos ‘seus coutos:!, o de Arouca continuara a deté-la nos senhorios de Arouca Sobre Lorvio e Ces, veja-se Maria Helena da Cruz Coslho,0 Baiso Mondego os finals da Idade Media. (Est de Histnia Rural, 22 ed, vo. J, Lisboa, Imprensa No ‘Sonal, 1989, pp. 457-458. 2 ACL. — Ms, 720 (azul, doc, ¢..da Guarda, 28 de Jubo de 135, em cépia de 15 de Junho de 1616, Documento a que tWvemos acesso pelo trabalho, ro pro, de Maria ‘Megria Fernendes Marques, Mosteira de S- Martinho de Crasto. Subsdios para a sua histéra na Tdade Média, doe. 17, que » arora gontilmente nos facut, 3 Henrique da Gama Barros, Histor da Administrardo.. vl Tt, pp. 465-46, 2 TT—Gav. 11, M.6,N.9, de 20 de Abril de 1347 27 Maria Helena da Cruz Coe, ob. et 1 pp. 457, 46 (ubre Almaiva e Semide) Henrique da Gama Barros, ob. cit, I, pp. 464465 (sobre Moreira). erp — Gav. 12, M.2, N-3,de 18 de Abril de 1347 2 Por iso deparamos com D. Afonso a condenar, em certas mulls, um porteiro ‘que havia entrado indevidemente em terras do mosteizo de 8, Romio de Neive (TT — Gav. 1LM-T_N_ 18, de Lisboa, 19 de Julho de 1339, em traslado de Viena, 25 de Julho de 1340. “No que A repo de Coimbra conceme, velase Maria Helena da Cruz Coclho, 0b. cit, 1, pp. 462-465, Sf PE _-Gav. 12,M. 1.N.10,de Lisboa, 10 de Abell de 1337, Notese que aqul ind ‘estio em demands certos couioe, emborn outros ja houvessem etlo entregues pelo 46 Antua* e também a Sé de Coimbra em varias localidades das Briras. ‘Sem divida que as terras ¢ poderes destes privilegiados haviam sido adquiridos muito antes de qualquer lepislagao impeditiva e, na maior parte dos casos, foram mesmo doados ou sancionados pela realeza. Eram pois imunidades legitimas com amplos poderes. E. como intocaveis num periodo em que a tendéncia sera para chamar & Coroa @ jurisdicao crime, as clivagens sociais tornam-se mais acentuadas, Salientando-se bem o alto poderio de uns quantos senhores.E justamente ‘40 mosteiro de Santa Clara que o monarca concede o privilégio de apesar das leis em contrario, herdar os bens das suas professas™. E, 10 que a propriedade dizia respeito, D. Afonso nao a podia, de forma alguma, retirar ao clero. Pretendeu tao-s6 demarcar com preciséo os seus reguengos —o que no poucas veres trouxe contendas com @ igreia, possuidora de terras imitrofes — bem como garantiracobranga dos seus direitos quando o clero detinha bens da Coroa™. O paralelo com a nobreza é-nos di de estabelecer. D. Afcnso IV nndo fez amplas doagées a este estrato social, criardo todavia um senhorio: nobre muito forte, o condado de Barcelos, protagonizado pelo seu irmao D. Pedro, Quantos nobres teriam a dupla jurisdigao nas suas honras? ‘Ainda que sem termos coneluido uma pesquisa sistematica,eremos que talvez nao fossem muitos, embora consideremos este aspecto uma problematica em aberto*. E quando a nobreza, acicatada pelas dificul- ‘onarea, A contenda parece ques se concen reinado de D. Pedro, com a devolusao de todas as imunidades embargades (enrique da Gama Barros, Hiséria da Adminis ‘rag... vol TH, ». 460) 3)” TT —Gav. 3,M.7, N. 8, de Colmbra, 3 de Novembro de 1834, 39 Maris Helena da Cruz Coelho, ob. et, 1 pp. 458-459. Mem, p. 88, 35 No que se relere ®ifo de Coimbra, consulte-se Maria Helena da Cruz Coelho, 0b, cit L pp. 449-45. %6 Henrique da Gama Barros, Histria da Administapao... te pp. 460, 467 defen a idela de qu foi mais Fel cra ajurisdicao em terras de senhorioeeesistico tdo que de senhorio nobre, Hesiarmos em perllhar esta teri, salvo no que conceme sos aspectos priticos—de facto as institledes eclesidcticas em sh mesmas (¢ 280 n0s ‘eferimos is terrassenoreadas) eam bem menos do que # multidio de nobres com a8 ‘as honras, que se cepalhavam pelo pals. ita este autora sentenca favorével a Gongalo Martins da Fonseca, vassalo do infante D. Pedro, que vu relterada a sua jurisdicio no couto de Laymir. 0 que também verficamos para a nobreza€aratificario de jars Civel ow menores, como no esso de Rui Gonealves (nota 26), ou de duas donas no couto de Brandara, julgado de Ponte de Lima (IT —Gay. 13, M. I, N. 24, de Santarém. 5 de Fevereira de 1336). Todavia —e este caso & mullo curios por haver dois poderes erm 465 dades, se intromete em terras da igreja, procurando obter géneros € servigos dos caseiros, sempre 0 monarca se coloca ao laco dos eclesiés- ticos”. Mas claro que aqui se trata, no geral, de uma pequena nobreza de cavaleiros e escudeiros, enquanto os mosteiros ¢ igrejas so poten- tados fortes, perante os quais, jé 0 dissemos, a Coroa tinha de ceder. A politica de centralizacao régia dirigida para os concelhos foi mais coerente na acco. Impusera-se-lhes definitivamente a fisealizacao dos corregedores ¢ a presenca dos juizes de fora, para além d= tantos outros oficiais da Coroa que a titulos varios, sobretudo de cobradores de rendas ¢ direitos, neles pululavam. O rei serd inflexivel, sobretudo quanto aos juizes de fora, mesmo quando os povos contra eles se agravam nas Cortes de 1352, e defende com argumentos varios, a sta presenga”*. Nao pode, todavia, pactuar com os excessos praticados pelos seus oficiais. E eles seriam muitos. Uma das ténicas das queixas dos concelhos, em todas as suas Cortes, seja em capitulos gerais ou especiais, visava os abusos, de variada indole e continuamente repe- tidos, de alcaides, almoxarifes, escrivies, porteiros, mordomos e tantos outros”. Sempre o monarca os condena, pois uma coisa era exercer & autoridade, outra era abusar a coberto dessa mestna autoridade. Mas os ‘tempos de reforgo do poder régio favoreciam o poder destes oficiais que se permitiam tantas vezes usé-lo em seu proveito. Por isso a codificacao, normativa teria, neste particular, um reduzido efeito, se os dirigentes concelhios nao fossem suficientemente fortes, cconémicae socialmente, a ponto de se tornarem temidos por tais homens. confronto—no senhorio de Amarante. enquanto, a partir da inquiricSo de 1342-1343, 08, ‘cavalelros perdem a juredicdoeivel e crime na sua part, a dupla jursdigio mantém-=e nha parte que diz respello & Ordem do Hospital (Vid. Rosa Marvoircs, «© Senhorio da Grdem do Hospitel em Amarante (les. XULXIV). Sua organizagae administrative © judicial, Estudos Medievais, n° 516, Peto, 1988/85, pp. 3:38). Come reerimos, a lang ‘pende para o lado dos mais podeross, aqui, sem dsvida, a Ordem do Hospital 37 Para a ea do Baixo Mondego, vejese Maria Helena da Cruz Coelho, ob i, 1 pp. 544552, 8 Cones portuguesas. Reinado de D. Afonso IV (1325-1357), Lisboa, Instituto Nacional de Investigagéo Cienifica, 1982, p. 128, ar.# 72. 538 Idem, a tiulo 56 de exemplo, pp. 13-14 (Corts de 1325), 230, 36-37, 0.41 (Cartes de 1331), Es capiulos expecinis de Coimbra, Lisboa, Porto, Santarém e Sinta, apresentados 8 Cortes de 1331, surgem igualmente queias contra os ofits réios, Spesar de, como bem o efereo monarca noe capitulos especinis de Bragang, so seat mal generalizado a todos o: concelhos que ele pretende resolver nos artigos gerals «Emandey thes que eles coms todolas outros que ucerom por todos outrres Canclhos do meu ssenborjo E que se Juntasem ¢ vissem ¢ consyrasem doles ngrauamentos que poboos rresebjam tamben daqueles meus olficyases come doutras pesioas queesquer. 46 Também nos concelhos as forgas convergiam para o acentuar das hierarquias sociais criando uma elite dirigente que tenderé a fechar-se ¢ tailre io poder. Elite argamente distanciada do querer do comum dos vizinhos, que procura mesmo subordinar os interesses colectivos aos seus préprios e utilizar a autoridade em seu beneficio Pessoal. Talvez fosse essa, justamente, uma das razées pela qual 0 soberano encurtava o termo de certos concelhos mais fortes para criar pequenos concelhos, com os quais, como diz, a terra se podia melhor Povoar, o que equivaleria a dizer, podia ser gerida com maior equidade" A iltima década do reinado de D. Afonso IV favoreceu, poréim, as pretensées das oligarquias, fossem elas vilis ou nobres, Oligarquias que entre si se chocavam permanentemente, mas ambas, em conjunto, mais nao faziam que oprimir os mais baixos estratos sociais Na verdade D. Afonso IV teve que enfrentar os maléfics efeivos da Peste Negra que nos finais de 1348 devastava Portugal". E 0 monarca {oi pronto na legislacéo com que procurou minorar as consequéncias da alta taxa de mortalidade, da fuga de mao-de-obra do campo para a cidade com o consequente abandono da terra, ox do excessivo acréscimo, por meios legais ¢ ilegais, dos bens da Igreja, instituigéo que véo seu prestigio e poder altamente reforcados, porque a mediadora entre Deus © os homens, a tinica capaz de apaziguar com missas e oragbes a ira divina, & qual o povo atribufa a origem do mal. Legislaglo prorta no sentido de verificar a legalidade dos testamentos ou de impedir o abuso da igreja de se reclamar herdeira dos que morriam eab intestatos, para ‘© que 0 soberano coloca como fiscalizadores os fé aludidos justes de fora‘, Regulamentacio igualmente minuciosa que obrigava as autori- areprodu, ©” Vejace Maria Helena da Cruz Coctho e Joaquim Romero Magalhes, 0 poder concehio.., pp. 21-28 C Perante a queixa, nas Cortes de Santarém de 1381, de que: «a alias vias Foy fihado ds seus terms contra voontade dos Cancels, fszendoen Algins loguares Vlas das sas Aldeyass,responde 0 monarea que tal fez «pera se pobrar potem mio a terrae pera se arromper e aproueytar. Aquelo de que ante nom alam prole (Cortes portuesas . 32). Porexempla o concelho de Montemor retirou D. Afonso IV Busrcos¢ Vila Nova de Ancos para instituir dois novos eoncelhos (Vid. Marin Helena da Cruz Coelho, © Baa Mondego. 1, pp. 473-474). ‘2 Uma bibliografia detalhads eum sintese sobre a epkemia de 1348 em Portugal ‘se encontra om Maria Helena da Criz Coelho, ob. cit, 1. pp. 21-26 3 Sobre os efitos de tal legslagdo,canlrontese Maria Helena da Cruz Coelho, ‘Um testamento redigido em Coimbra no tempo da Poste Negras, sep. da Revista Portuguesa de Historia, « XVI, Coimbra, 1980, pp. 315-520, a dades concelhias @ arrolarem todos os homens que antes da peste trabalhavam na agricultura para os obrigarem a esse mesmo labor e que exigia que aqueles que fossem encontrados sem profissao —- vadios, mendigos, falsos doentes — se dedicassem & urgente tarefa de cultivar (os campos, bem como permitia acs concelhos 0 tabelamento dos salirios. As medidas, logo do ano de 1349*, atestam por um lado os. graves e ripidos efeitos nefastos de pandemia e por outro a vigilante politica do monarea que procurava fazer frente aos problemas. 56 que ‘estes eram demasiado profundos para se debelarem de imediato por normativas. ‘A ambiéncia geral de mal-estar, de dificuldades sociais geradoras de uma conflituosidade, esta hem evidenciada no quadre que as Cortes de 1352 nos retratam®. Velhos e novos problemas af sdo aduzidos desenhando um panorama de crise. Alias, a linguagem régia patente nas respostas aos agravos é, neste particular, significativa. Enquanto em Cortes anteriores Afonso IV manda, em deferimentos curtos, que se guarde o costume ou o ja legislado, quando nao exige, pontualmente, que se facam inquirigées sobre certas queixas, agora as respostas 80 longas (especialmente face as questées originadas mais de perto pela epidemia) e imbuidas de toda uma argumentagdo que as assimila completamente ao preémbulo das leis. 0 monarca procura vencer 0s males e convencer os homens, baseado numa filosofia que tinha por axioma o bem piblico, a ordem e o bem-estar dos cidadaos. E esse cariz explicativo e fundamentador das suas decisées teria sem davida em vista, como fim tiltimo, acalmar a crescente conflituosidade social que 08 agravos, lidos no positive e negativo do registo, nos deixam entrever. ‘Abrem as Cortes, declarando monarca saber «que as gidades e vilas e logares do nosso Senhorio nom eram pobradas como ssuijam ¢ deuijam de seer nem as berdades lauradas nem aproffeijtadas como ‘compria» e simultaneamente, realidade bem antiga, «que os nossos “Sobre data, consultese, Marcello Caetano, Histire do Divito... p.279. AS leis sobre os testamentos © maode-obra encontramse publicadas so Lavo de Leis € Posturas, respectivamente, nas piginas $40 a 482 e448 a 452, “Os eapitulos gerais © eapeciaie de Lamego destas Cortes estio publicados integralmente em Cortes Portugues, pp. 123-149. Uma sintase dos seus artigos gerals presenta José Mattoso, om ePorspectvas econémicas e sociais das cores de 1385s Estudos Medievis, n% 516, pp. 42-43, delendendo que melas a patentiam os Intresses dos proprictariesrurai,o que perfilhamos e por este termo se entender ima burgussia, citadina ou rural com intereses(¢ nem sempre s proprictiria. mas ;ambérn rendelra) sobre o campo. w poboos Recebijam Algtus agrauos dos nossos officiaaes»*, Quanto a ‘estes os concelhas verberam contra os juizes de fora, mas o monarca insiste na sua nomeayay, wuudeita, ny entanto, us excessos dus corregedores exorbitando quanto a justica ou dos almoxarifes, mordomos € outros que ultrapassam a competéncia das suas funcdes". Era este um problema insohivel ¢ sempre repetido em todas as Cortes. Mi candente era o abandono da terra e dai a intencéo régia manifestada, no de tirar a terra a igreja, mas de a obrigar ao seu aproveitamento* bem como 0 clausulado respeitante a mao-de-obra que, uma vez mais Se quer obrigar ao trabalho, sem lhe permitir estratagemas que fecili- 40 sector primitio. Diremos mesmo que a cidade havia ja tutelado o campo e uma certa burguesia urbana e rural visava basicamente uma politica de mercado, se no mesmo de especulacéo. Por isso reclamam—e é a voz dos Brandes que aqui esta representada — contra as determinagdes cama- rérias que impediam a circulacao dos produtos fora do concelho, 0 que 0 rei permite, descle que se comerciassem no reino e, para nao desauto- rizar completamente os governantes rounicipais, sempre que esses decidissem nao haver falta de géneros no lugar®. Queixa velha é a que se dirige os usurstrios judeus, mas agora, curiosamente, sugerem os, povos que o monarca deveria obrigé-los a lavrar vinhas e herdades ou a criar gado ¢ entregando-lhes bens reguengos a Coroa podia mesmo obter bons lucros, no que o rei promete pensar e ordenar em conformi- dade" Os privilegiados si aqui criticados, sobretudo na pessoa dos eclesidsticos, que tém 0 mau hébito de se aposentar em casa alheis, em ver de restaurarem as suas préprias casas na cidade e nelas habitarem=. Comega, a partir de entio, 0 continuo verberar contra © abuso da aposentadoria por parte de clérigas e nobres®. Alids, do mesmo modo a estadia dos reis ¢ infantes era lesiva & pessoa e bens dos vizinhos™ $6 Cores Portuauesas..,B.123 7 Idem, pp. 129-131, entre outros, artigos Idem, pp. 125-126, art 3 Idem, pp. 132-133, art. 17 51 Idem, pp. 126-127, art. 4 = dem, p. 124, a0% | 53 Confronte Maria Helena da Cruz Coslho, O Balzo Mondego... I. pp. 47-498 % Cortes portuguesa... p. 130, artigos 11 12 10, 13.18 49 Em tempos de dificuldades os esbulhos e a pressio dos senhores acentuam-se. Em vez do uso ¢ costume, de um direito costumeiro construido pela convivéncia pacifica de dominantes © dominado: impoe-se o livre arbitrio senhorial, gerador de novos e maus usos que ecaem sobre o campesinato dependente ou mesmo sobre 0s préprios concelhos. A serem extensivos a outros concelhos, sobretudo de indole rural, os artigos especiais de Lamego apresenttados as Cortes de 1352, poderiamos dizer que a arbitrariedade era a regra. Quase todas as ‘queixas se dirigem contra poderosos® — um, irmao do proprio aleaide e ‘outro, o nobre Gil Vasques de Resende — que roubam bens méveis imoveis, exigem tributos e servigos aos homens, violentam mulheres, acoitam malfeitores, impoem a tudo € a todos a sua justiga, melhor dizendo, 0 seu poder exactor®*. Seria sem diivida este um caso extremo, mas bem sabemos que, sobretudo a partir de meados do século XIV, foi porfiada a luta dos concelhos contra 0s abusos dos, privilegiados que redobraram a sua forca senhorial frente as dificul- dades impostas pela crise que entéo s¢ instalou. Os diltimos anos do reinado de D. Afonso IV foram, pois, bastante conturbados social e economicamente. Acentuam-se assim, ainda mais, as clivagens sociais existentes. Nao retrocede a politica centralizadora ja encetada de adjudicaco a Coroa de parte substancial da justica Todavia, se tinhamos verificado que os mais poderesos, sobretudo eclesiasticos, ficaram com parte substancial do poder jucicial, a conjun- tura de crise veio ainda favorecé-los. A Igreja reforsou o seu prestigio espiritual e a sua base fundidria, e em tempos de conflituasidade o seu poder tornou-se mais real e eficaz no dominio dos homens. Tenderia, pois, a substituir-se ao poder régio quando ele tardasse ou néo agisse 0 concreto. Igualmente face 4 nobreza, mesmo nos seus estratos mais, baixos, que cada vez mais extensificava direitos dominiais e senhoriais 1na busca de compensagées para a quebra dos seus rendirientos, a Coroa teria pouca capacidade para a controlar. Em consentaneo a crise e as sucessivas leis régias que obrigavam os homens ao trabalho ou permitiam a taxacdo dos salarios favoreceram as elites municipais. Os interesses da burguesia opdem-se radicalmente aos de um «proletariado» rural e tendem igualmente a dominar os 55 Idem, pp. 140-145, artigos 4.18, 58 Aeresce que a priprio ispo ecabido exorbitavam estondendca sua jurisdic aldela de S, Martinho do Souto dam, pp. 46-147 at. 21), 50 ‘mesteirais, vedando-lhes 0 acesso ao poder. A especulacdo em épocas de crise € para estes homens, que dominam o circuito produtivo ¢ comercial, penhor de lucro chorudo, ainda que a custa do endivida- mento, dependéncia ¢ marginatizagao de muitos vizinhos. E, note-s, nas suas maos se ira cada vez mais concentrar 0 governo dos muni- cipios Que conetuir? D. Afonso IV pretendeu, de facto, controlar os diversos poderes a0 poder régio, Prosseguiu, com éxito, uma politica, desenhada pelos seus maiores, de cerceamento da jurisdicio senhorial. Na sua grande maioria esta passa desde entao a abranger apenas feitos civeis, salvo alguns enclaves com a dupla jurisdicéo, detidos por senhores bem poderosos. Aos concelhos impos um quacro de oficiais régios controla- dores da administrago municipal. Mas nao impediu a formacio de oligarquias que governaram as comunidades tantas vezes em proveito Préprio, ou mesmo a rebelia dos interesses gerais do reino, nem tao Pouco os abusos do seu funcionalismo que agravavam 0 povo. Quando, todavia, sobre o pais se abatem as multiplas e nefastas consequéncias da epidemia de 1348 0 edificio sociopolitico é fortemente abalado, Naturalmente 0 poder senhorial torna-se mais opressivo € exigente € 0 monarca apoia-o nas suas pretenses de mao-de-obra, de ‘compelir os caseiros 20 pagamento de rendas, de penhorar os devedares com 0 concurso das justicas seculares. As malhas do senhorialismo cobrem ainda largas extensdes de terra. A que ndo fogem completa~ mente os concelhos, onde as intromissées dos privilegiados se tomam mais frequentes, Concelhos que, alids, em si mesmos, s4o cada vez mais rotagonizados por uma aristocracia vilé, também ela opressora Toda a evolucéo socio-econémica apontava para um reforco dos poderosos, fossem eles privilegiados ou da burguesia, Nenhuma legis- Jacdo tinha o poder de deter essa linha de forva. Se D, Afonso IV tegislou € agit, na maior parte do seu reinado, com vista a controlar os poderes ao do rei, em especial o dos privilegiados, a sua actuagao foi em grande parte contrariada pela conjuntura dificil que se apresentou nos, finais do seu governo. E 0 prolongamento desse clima de crise ¢ de conflituosidade, agravado ainda pela ambiéncia de guerra vivia 20 tempo de D, Fernando e D. Joao T, resultara num neo-senhorialismo, num reforgo do poder senhorial que os reis terio novamente de combater. Como tantas vezes acontece, e bem 0 sabemos os que historia nos dedicamos, o progresso dos homens constrdi-se num longo ‘caminhar percorrido entre avangos e recuos St

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