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Reconstruindo uma hist6ria esquecida: origem e expansio inicial das favelas do Rio de Janeiro* Mauricio de Almeida Abreu A imagem de que o Rio de Janeiro & ‘contrastes tem acompanhado a ‘mpd. OS viajanies dos sécul re XIX. por ‘exemplo, foram undnimes em destatar a diferenca gritante que se verificava, Aqucla época, entre 0 ‘magnifico quadro natural que envolvia 2 cidade e 0 acanha feiura do seu_quadro_constrildo. ‘Rigas cabo pine pro ur aistico da cida va, Por Sila vez, ém 1930, gue aiisde uma opulenta fachada, o que se escon- Sia_mesmo era_uma cidade de provincia.’ Jé uma Publicacio recente, dedicada ao Rio, indica que essa eg reflexes sobre o seu papel no conjunto da esteutura urbana carioca.? A favela se constitu, hoje, a de habitacio popular mais difundida ee cee 1991, existiam, na cidade, 345favelas, que abrigavam cerca de’1-100,000 habitantes.* Trata-se, evidente- mente, de um mtimero considerdvel, que revela bem a importineia dessa solugo habitacional, que ji est completando cem anos de existéncia. ean Apesar de sua longa presenga no cenério Carioca, POU so Sbe, entioats, de argon ete peotee ‘imagem ainda se mantém. Encarmando ad mesmo de_expansio inicial da favela. Esse desconheci- tempo afartura ea calincia, oBeloe ofelo, aalegria meio pode ser aMmbuido a dois Tatores de um ea tristeza, a cidade é vista como refletindo, nada Jado, a dif ficuldade de obtencao de informagses; de ‘Mais nad menos, doque a“beleza do diabo". outro, a grande difusio que tiveram dois importan, indo é falsa, oda ena sua Cultura, a diversidade ¢ as disparid: icteris- ‘Gear di aniadads basil soe a tee Paes ‘Tes hist6ricos e naturals, entretanto, tomam_esses ‘contrastes mais acentuados no Rio, 0 que contribui paca alimeuarr-tmagen ae “tuya exsico"” que a cidade também possi A favela talvez no seja o elemento mais importante lesse quadro de contrastes. Por sér, entretanto, um ‘de seus exemplos mais visiveis, ela vem ocupando, i um lugar de destaque na pauta de debates sobre a cidade. Nao se deve pensar, ‘entretanto, que ela participa dessas discusses de forma consensual. Ao contrario, favela também podem ser associadas vérias imagens contrastantes, que reproduzem, cm escala localizada, a imagem Principal do Rio. Essa imagem d¢{ “terra dos contrastes”) Abrigo da marginalidade urbana, mas também resi- déncia do wabalhiador honesto; “‘chaga’” da cidade, mas igualmente “herco do samba”; solugao urba. nistica desprezada e, a0 mesino tempo, elogiada; as imagens da tavela impuseram-se no decorrer do século XX e ja se incorporaram a0 imaginério cole- tivo da cidade. Deram ensejo, também, a intimeras te5_trabalhos-publicados nos anos sessenta,> e que sustentaram, equivocadamente, qué 56a partir de 1940%¢ que a favetateria passado a “‘chamar a atengio”, isto €, teria se tomado um elemento im- portante da estrutur © caro acima pode ser explicado, Até 1930, a fa- Yela existe de facto mas nao de jure. Est6, portanto, presente no tecido urbano, mas ausente das estatis. ticas ¢ dos mapas da cidade; nao é individualizada pelos recenseamentos. E consi como uma Apeyy v _E_considerada_ como_ut solugdo habitacional provis6ria ¢ ilegal, razio pela ~, al_nio faz sentido descrevé-la, estudé-la, mensuré-Ia.* Para_os poderes piiblicos, 2s favelas Simplesmenté nao existiam A mudanca de regime politico, em 1930, no mu- dou muito essa situagdo. Embora os habitantes das favelas cariocas tenham sido beneficiados pela le- gislagdo trabalhista c social implantada pelo gover- Ro de Getilio Vargas,’ a verdade é que, embora crescentes em ntimero, as favelas continuaram a ser cousideradas como habitat urbano temporirio, razdo pela qual mantiveram-se ausentes das estatis- ticas ¢ dos documentos oficiais da cidade. A partir de 1940, entretanto, essa situacio comera a mudar. Decidido a ‘resolver problemas de higie- * Trabalho realizado com apoio do CNPq e da FINEP. O autor apradece aos participantes do Projets Evolugto Urbane do Rio de Janeiro pela valiosa ajuda que prestaram delabora;do deste artigo, ea Lia Osdio Machsdlo e Roberto Lobato Covréa pelas sugesttescricas, 34 g 2 E 2 s 2 E Reconstruindo uma histérla esquecida: orlgem e expansado inicial das favelas do Rio de Janeiro nizagio”,o governo municipal dé inicio a urna série de Tevantamentos sistematicos das favelas* Com ‘isso, objetivava-se-cadastrar os seus habitantes, vi- sando a transferi-los das dreas valorizadas que ocu- pavam para parques proletérios a serem construidos pelo governo. 22 .© fracasso dessa polftica € bem conhecido? Dela +8 "resullaram, entretanto, as primeiras estatfsticas deta- Ihadas sobre as favelas da cidade, ¢ € esta a razio pela qual os tabalhos que as estudam tendem a concenirar stia atencio no perfodo pés-1940. A. grande acolhida que teve o Parti nas favelas, nas eleigdes livres contribuiu para isso. Preocup. gia comunista’’,° 9 govey zar, logo a seguir, 0 pri favelas, de qualidade ‘com a “‘demago- municipal fez. reali- iro recenseamento das mnhecidamente deficiente, mas que indicou a existéncia no Rio, naquela oca- sido, de 119 favelds, 70.605 casebres ¢ 283.390 moradores, ou sejaf14% da ulagao da cidade." Dai para frente, a favels pasearia tambem a existir de jure, ainda que as estatisticas a seu res- peito sejam falhas até hoje. presente trabalho pretende estudar os primeiros anos da favela no Rio de Janeiro. Concentrara sua atengio no perfodo que se estende do final do sé- culo XIX a 1930, época em que a favela se afirma como solugao habitacional e se difunde pelo cend- Ho urbano. O principal objetivo do trabalho é res- D> gua do eee Log ami sie luca e lo direito & cidade, ocorrida no inicio do século XX, € que_ainda permancee obscura. Na busca dessa histria esquecida, e datas as Caréncias de informagio citadas acima, o trabalho utilizard a Unica fonte que acompanhou, ainda que de forma imperfeita, © processo de expansio da favela pela cidade, imprensa peiécica + Ser prlduws A utilizago da imprensa como fonte principal do estudo traz alguns problemas_Os érgi0s-de-comu- nicagio da época, exaltadores da ordem burguesa “recém-instalada, sempre apresentam uma visio ten- fenciosa da favela, que ; Via deTegra, Como “@ negapo da orden ¢ do progresso. Nao ha, entre- tanto, como fugir deles. A imprenga operdria, em- bora diversificada e combativa durante 0 periodo estudado, nunca dew atengio as favelas. Os regis- tros de histérias orais, por sua vez, ou nao foram feitos ou ndio so conhecidos. Contamos, portanto, com uma nica fonte, que embora problemética em alguns aspectos, é, por outro lado, bastante rica pouco explorada, Na busea de informagics sobre favelas na inmpren- Sa, este trabalho privilegiou a leitura do Correio da fanhi, cujos mimeros foram pesquisados desde 0 Seu surgimento (em 1901) até 31/12/1930. A opgao or este jornal foi determinada por um pré-teste, Ave indicou ser ele 0 periédico que mais ateng3o dava as chamadas ‘“causas populares”.!? Comple- mentando essa investigacao sistemitica, o estudo contou também com informagSes provenientes de Fontes arquivisticas c de outros Grgaos da impreiisa. a1 O Rio de Janeiro no final do século XIX O final_do_século XIX constitui um periodo de ‘transigio i inte na Gistériy) brasileira. Extinta a escravidao em 888 e proclamada a’ Répiiblica “em 1889, 0 pais Vivenciar’, no decorrer da tiltima “déeada do século, uma série de transformacies eco- nOmicas, polfticas € sociais, que embora trauméti- ‘8 en iif Senidos.® viabilizarfo a sua jte- “grag efetiva | nova ordem intemacional-surgida com o-advento da segunda revolucio industrial. Capital do pais e principal ponto de articulagao do tcrrit6rio brasileiro com os centtos nervosos do capitalismo mundial nessa poca, 0 Rio de Janeiro _setd 0 paleo privilegiado onde se matcrializario as ‘press6es que envolviam a Republica nascente. Ci- dade antiga, ela acrescentar4, entretanto, a essas ‘novas tenses, Todo um rol de ComTadIGSes que j4 lhe eram préprias € que vinham se acumulando id bastante tempo. SS = Essas contradigbes ngo eram de pouca monta. Elas ram evidenciadas principalmente pela auséncia de um porto modemo, necessério a agilizacdio de todo © _processo de importacio/exportario de_mercado- ras e pela permanéncia de uma trama urbana ainda remanescente dos tempos coloniais, que dificultava a circulagio interna-e que dava 3 ci indo Apesar de sua importincia populacional, eviden- ciada nos 522,651 habitantes registrados cm 1890, a cidade softia também baixas demograficas consi- derdveis. Epidemias diversas, notadamente de fe- bre-amacla, assolavann-anualimente 6° Rib. E20 ‘ncidirem com maior violencia sobre as habitacdes coletivas, acabavam por matar, a cada _ano, ui matar, a cada_an parcela consideravel da forca de trabalho. Para resolver essas contradig@es, 0 que nio falta- vam cram propostas. Todas apontavam para a ne- Cessidade de intervencio direta sobre 0 meio am- biente, tanto o natural como o consiruido: havia que drenar os pantanos, que arrasar os morros, que elevar o solo, que construir um porto moderno, que ohn alacgar as ruas, que comsinuir casas higinicas. TO- ddas.essas propostas esbarravam, entretafito, 1a falta de capitais ou na auséncia de determinagio politica. CA Wo, J Sc no era possfvel chegar & forma urbana que se desejava, era preciso, entretanto, que se atacasse de frente a questio sanitéria, ¢ disso vinha se incum- bindo a politica higienista do governo central jé ha algum tempo. Tratava-se, com efeito, de uma ques ‘40 nacional. O problema da insalubridade do Rig” 35 Espago & Debates né 97 - 1904 no se restringia & queda da produtividade do tra- balho urbano ou ad comprometimento da imagem dacidade; ele também solapava a politica imigra- A6ria e reduzia o fluxo de capitais para_o pais. @ combate as habitacdes coletivas Apesar dessa campanha contra os cortigns, a forma urbana da cidade permanecia inalterada. As turbu- léncias polfticas e econdmicas vindas com a-Repti- blica inviebilizavam qualquer projeto de reforma urbana. Ademais, para isso seria necesséria a con- corréncia de vultosos capitais externos, que nao se sentiam nada atrafdos pelo ‘lima de instabilidade reinante na capital do pais. No final da década, ificativo da inter do go- ‘Como foi no sopé do morro da Providéncia que os distérbios mais sérios aconteceram, muitos dos que eles participaram acabaram se refugiando no mor- ro, ou moravam mesmo af, contribuindo assim para aumentar a sua m4 fama perante a imprensa. A excegio desses acontecimentos, entretanto, 0 pe- lo del o fO da Favela temporariamente do noticiério. Com tantas modifi- 5 fetando a forma da cidade, havia muitas outras coisas a_informar. No que diz respeito & ‘egora_de chamar a atencao para 0 agravamento do roblema da moradia e para a necessidade urgente & 0 govema. ibtar uiaa polflca-de-coastaus i a3 de Ames ones. [Esta politica nunca surgiu. Conseqiientemente, a solugao habitacional iniciada nos morros de Santo ERP a, _S See seme so amok ments. Espago & Debates n? 37 - 1994 Antonio ¢ da Providencia, como jé visto, espalhou- se pela cidade. Ela nao foi acompanhada, entretan- to, nessa fase inicial, pela difusio do nome genéri- co de favela. Durante toda a década de 1910, 2 imprensa utiliza essa palavra sempre com F maitis- culo, indicando tratar-se de nome proprio, de um lugar especifico da cidade. Isto nio impede que as descrigdes do morro da Favela sejam sempre car- regadas de significados negativos ¢ de alusdes pe- jorativas, tais como ‘‘o fantSsticomorro da Favela”, 5” “a terrivel Favela”, a “jé tristemente famosa Fayela’’.° 0 “‘célebre morro da Favela’’.® Embora ainda no chamadas de favelas, era inevi- tavel, entretanto, que as aglomeragbes de barracos jue surgiam em outros morros da cidade > sassem a ser Comparadas ao “modelo original”, de Fmaitisculo. Ao comentar o surgimento de barra- ‘cos no Andarai, por exemplo, 0 Correio da Manha reclamava que “‘esse bairro, outrora tao pacato, vai > transformando em morro da Favela’? § Outra reportagem, sobre crimes que vinham ocorrendo no morro da Mangueira, permitia 20 repérter con- cluir que ‘'jé no temos diividas em afirmar que se trata mesmo de uma Favela’’. A partir da década de 1920, e em fungio da sua en se generalizou. E adotando uma nova form: IS ee comm tedas a5 aglomeraguex de abtagoes-toscas que surgiam na cidade, geralmente nos morros, ¢ que “cram comsiridas om terenos de fercelros‘¢ som ‘aprovacao do poder piiblico Teme Rela. As imagens da fayela Jomo vistd, a imagem de “terra scm lei”, atri- bufda ao moro da Favela no inicio do séulo, logo acabou englobando também as outras favelas que se formavam. Numa sociedade recém-saida da escravidio, era inevitivel, entretanto, que as favelas,_¢ sua maioria de populapao negra, fossem & tamblm identificadas como simbolos de “atrso''- feferéncias a “‘persisténcia da Africa no mcio da civilizagdo™” ¢ 8 “ralé de cor pret” S40 constan- tes nessa Epoca, Principal respons4vel pela difu- & sio dessa imagem negativa, a imprensa da época presenta também, contraditoriamente, uma série de evidéncias que mostram que a favela - 20 con- tratio do que se queria difundir - também tinha faces bastante positivas. Backheuser, por exemplo, embora assombrado com a precariedade das habitagéies encontradas no mor- ro da Favela, jé informava, em 1905, que ‘‘ali no moram_apenas os desordeiros ¢ os facinoras .. “Tmoram também operdrios laborioses, que a falfa ou ‘a carestia dos cOmodos atiram para esses lugares altos onde se goza de uma barateza relativa e de 40 uma suave Virago que sopra continuamente dulci- ficando aiden eakibiegio" = Liigar de criminosos, mas também lugar de traba- insdoresy lugar ‘onde se mora mal, mas onde se mora barato; lugar insalubre, mas que € mais sau dave do que as opgGes que se oferecem aos pobres ‘LEGA Tegal, 6 tvers-var-ssumindo son a¢ fas imagens contadtérias, val permanscendo na paisagem Carioca, A manifestago dessa dualidade de imagens na im- prensa 6 constante. Em artigo do 1909, a Carcta revela 0 “Rio desconhecido” ¢ informa que as casas exisientes na Favela, “laboriosamente cons- traidas sobre rocha ... abrigam numerosas familias, ‘operétios, lavadeiras e até facfnoras’”. Conclui, en~ tretanto, que “‘apesar de possuir elementos hones- tos, a Favela € um antro de facinoras ¢ deve ser arrasado paradecéncia higiene da Capital Federal." No mesmo ano, © Correio da Manhi descreve 0 morro da Favela como ‘‘o lugar onde reside a maior parte dos valentes da nossa terra... 0 escon- derijo da gente disposta a matar por qualquer mo- tivo, ou até mesmo sem motivo algum... Dois anos depois, entretanto, quando scus habitantes so- friam_ameaca de remocio por ordem da Saide bic jomal assim se posicionava: Tanto na Favela como no morro de Santo Asténib” rmoram ceatenas de tabalhiadores, gate honest, dig- na de consideragao dos poderes pablices, © que 86 se fei moter nos tio malsinados easebres porque nfo encontrou oatras habitagSes... Cuidado, Clma, Prue éncia sio de bom conselho nessas conjunturas aper- tadas, em que o pobre tem o direito de exigit que to le respeite a prépria miséria, cada principalmente peta inciria dos poderosos.* vo. Essa duplicidade de imagens € compreensfvel. Con- forme indicou N. Seveenko, a linha que separava 0 Jegal do ilegal era extomamsnuiSiue West perfo- do. Por um lado, a lei mandava considerar vaga- bundo todo individuo que ndo tvesse domicilio Certo, sem considerar se efe tinha ou nao a proba- bilidade de arranjar qualquer domicilio. Por outro, “quent asse_deveria ser considerado v: gabundo, mas o alto indice de desemprego estrutt~ * cal existe na cidade sedvzia grande pare da po pulagao a condigao de “‘vadios compulsérios™, 0 squc_os obrigava, para Sobreviver, a revezarem-se manentemente entre o subemprego, os expedien- ‘EGevenuntre meerosr monksioels, ome mcr ‘mo a criminalidades*=——— Ora, era nas favelas que todos esses processos se faziam sentir com Mais h At estavam 0 u lor honesto (ainda que subempregado), « biscateiro, o mendigo, 0 vagabando, Todds, emt tanto, moravam emt hatitagoes que ho eram con- sideradas pela lei como permanentes, nio fazendo jus, portanto, ao status de term ‘‘domictlio cer Reconstruindo uma hist6ria esquecida: origem e expansao inicial das favelas do Rio de Janeiro to". Por essa razio, ¢ em fungao de alegados inte- resses da seguranca piiblica, eram os habitantes das fayelas periodicamente importunados pela policia, que no raro alegava raz0es de vadiagem para lé- viclos presos, mesmo que nao houvesse prova disso. A “danga’” das favelas No relat6rio que escreveu no auge da “‘era das de- moligdes”, Backheuser afirmava que a politica de habitagdo popular a ser adotada pelo governo deve- ria dar resposta imediata a trés quest6es: asalubrida- de, a barateza e a proximidade do trabalho. Em nao ~“fazendo isso, nao haveria outra saida senwo “jugular uma rebeliao francaniente popular, causadapela ca- “Weuicia € carestia das casas“; Ao encerrar orelatério, 9 autor afirmava que jf havia percebido, inclusive, “os primeiros mgidos da tempestade proxima’’.© “Escrito logo apés a Revolta da Vacina: esse relaté- rio apenas alertava para uma provavel ¢ ampliada repeticao da crise de 1904, que havia sido estanca- da por meio de brutal repressio policial. Apesar dessas advertncias, as trés questdes cita- das no relatério foram ignoradas: 0 govemo nao adoton ‘qualquer politica de construgio de casas populares, alegando ver nisso uma “perigosa in- vestida do socialismo"’ e a iniciativa privada ja- mais demonstrou interesse em pasticipar desse mer- cado, ainda que alguns incentivos tenhamsido apro- vados para atraf-la.” E embora a populagio cario- ca tenha crescido rapidamente no inicio do século, atingindo 811.443 habitantes em 1906 e 1.157.873 em 1920, as previsdes sombrias de grandes revol- tas sociais também nao se confirmaram. Para explicar esse aparente paradoxo, algumas ra- es tém sido ultimamente encaminhadase apontam para_a_permanéncia da favela no_cenério_urbano Como um fator de estabilidade importante, Segundo ‘Gisas interpretacoes, apds a reforma urbana, ¢ atin- gida a meta de controle das epidemias, 0 governo transferiu a forga de trabalho grande parte dos cus- tos da sua reprodugao, mas foi obrigado aaceitar, ainda que jamais tenha admitido i850 ‘ieva pormanencia di favela lana assim 0 minimo de estabilidade social necessirio ao processo de acumulaciio.”" Ade que a permanéncia das favelas ni interesses do capital. Este, ao contrério, delas podia _se beneficiar, j4 que representay: rt Embora coerentes teoricamente, essas interpreta- goes nao _devemtevar-a crer que a permanéncia & Qs io da favela constituiirse @ sSo-tran- qiilo. Ao contrdtio, a afirmagio da favela na.pai- ‘Sagem carioca foi pontilhada par imtimeras ¥itorias g-derrotas, que revelam que as tensOes criadas pela ‘sua presenga eram muitas. Bom, exemplo disso é sem diivida, a hist6ria da favela do morro de Santo Anténio. Primeira favela da cidade, ela foi removida ainda em 1901, mas Tetomou oseuantigo lugar durante areforma urbana. Em 1910, muitos barracos foram novamente remo- Yidos, consentindo entretanio 0 governo que seus moradores construiss O-MhOMT do Tele grafo, afasta a ential.” Pouco tempo de- pois, j4 estavam novamente os barracos de volta Aquela colina, para serem novamente ameagados de despejo em abril de 1916.” Tendo os moradores conseguido, em maio, um ediamento da cxecugdo da cordem judicial,”* foram todos eles surpreendidos no més seguinte por violento incEndio, certamente de natureza criminosa, que destruiu grande parte dos casebres ali existentes.”” Qual fénix renascida, en- trotanto, jé ocupava a favela novamente 0 seu artigo lugar em 1919, para horror da imprensa burguesa.’® Alegados interesses de seguranga militar exigiram, por seu lado, em 1917, a remogo (ao que parece, parcial) da favela existente no morro da Babilonia.” Jé a programagio de passeios planejada para a visita do rei da Bélgica, em 1920, determinou a erradica- ¢dode uma favela que vinha se formando na encosta do morro Dois Irmios, no Lebion.*° Vérias familias que habitavam 0 morro do Telégrafo foram, por sua vez, violentamente expulsas daf em 1926, em cum- primento de ordem judicial dereintegragao de posse. Cada revés, entretanto, resultava numa reagio ne- cesséria. Expulsos de um local, os fayelados logo dirigiam-se_a outro Tugar e, ali, davam inicio a uuma nova favela. Essa “‘nigragio"” ou “‘danga’’ <> ‘das favelas € claramente apontada por Mattos Pi “> menta que, a partir de 1926, escreveu uma série de anigos Sob as Tavelas do Rio, Liderand una io" ou “‘danca’® campanha iniciada pelo Rotary Club, Mattos Pi- meata visava, com seus artigos, sensibilizar as au- toridades federais paraa necessidade de_construir habitagdes proletdrias.*? Segundo ele, destruir bar- Faces nao resolveria nada: 0 problema seria ape- nas transferido de lugar.® A verdade & que a situagio havia se tornado in- controlével. Segundo Mattos Pimenta, j4 habita- vam as favelas, em meados da década de 1920, mais de 100.000 pessoas.“ O crescimento econd- mico da cidade, por seu lao, continuavarw-atrair _Imigrantes, e esses davam origem a novas faVelas, ‘sempre situadas nas proximidades das fontes de ‘emprego. A inevitivel invasio de terrenos de ter- eciros dava enscjo, por sua vez, a iniimeros pro- cessos de despejo, alimentando a ‘“danga das fa- velas”” pelo espaco urbano. Iniciada a década de 1930, a situag3o em nada havia_se_modificado. Conforme registrou a imprensa: 4 Espago & Debates n? 37 - 1994 © teapo ¢ 9 inten descnvolvinento da cidade de monstraram que mesmo os morros, depois de benefi- ciados, eram um excelente negécio para a venda de terenoe om lotee tangas pele inion de mee dangas cutcoas ¢ coMenis UF CHAU ep Unleo mal € Serem pobres na cidade mais linda do mundo, (( \P) vio sendo periodicamenté privadar do teto misérrimo (OEY que a forga do hii as Tevara' considera. camo Sel ‘Uns se dispersam; outros vio formar novos ‘iicleos em terras de outros donos - casos futuros de tuido ¢ de esciindalo.® Os exemplos acima sao significativos. Eles indi- cam que, mais do que um processo que se explica apenas Slos interses do Estado ou do capita, a permanenci e difusao da favela no cendrio carioca deve ser entendida também como a materializagio, “deuma verdadeira luta que os grupos mais pobres do_Rio de Janeiro travaram no inicio do século -pelo direito a cidade, uma luta que, na realidade, As novas faces da favela A década de 1920 pode ser considerada como a década da afirmagao definitiva das favelas na pai- sagem carioca. Apesar da instabilidade que ainda rondava essas aglomeragées, constantemente sujci- tas a despejos coletivos, o fato € que, estimuladas Belo crescimento demogrifico da cidade € pela’au- séncia de uma politica habitacional oficial, as fave~ Tas nao 86 se multiplicaram como adensarant-se. “a0 Tazerem isso, tomarimmeada vez maisdificil a “Sula enradicagao. indo igualmente nessa diregio, as mudangas cul- rais que sacudiram o pais nessa década, eviden- ‘STadas pela eclosao déamovimento modemista, tam £m contribufram para a permanéneia da favela. Ao _promover a experimentacao artistica ¢ a0 pre- “Zar_a busca de novas possibilidades culturais, 0 nodernismo nio apenas defendia a adogo de uma estética nova, que affontava os patroes-culturais enfatizava a necessidade de liberta- go da dominagao cultural esirangeira. Resultado ‘desse movimento, as “tematicasmativas"”, as ‘“es- téticas brasileiras” passaram a ser valorizadas © é esse contexto que a imagem da favela passa ento por um processo de transformagio. Onde antes s6 ia feiura © pobreza, passa-se agora a ver tam- Bim beleza_e Tineno. Onde ales sé Tabitavam marginais c proletérios, descobre-se agora que tam- ‘bem havia_poetas e musas. E descobre-se também ‘que essas categorias ndio cram mutuamente exclu- sivas! De antitese do moderno, a favela, enquanto imagem global, passa entio a ser uma das suas, expressdes, confirmando a afirmagio de Dumont de que uma das capacidades da modernidade &.a de integrar 0 seu contririo,% 42 ‘Um marco importante dessa mudanga no tratamen- to da favela € uma reportagem publicada em 1923, um ano depois da realizayZo da Semana de Arte Modema em Sao Paulo ¢ que descreve, de forma totalmente nova, uma das favelas da cidade: Os subirbios tiveram em Lima Barreto o intérprete ficl de sua monétona existéncia. Os nostos momros, porém, ainda nfo encontraram quem the: sentisse « nude € brutal poesia, em cuja beleza selvagem se misturam os refrOes nostdlgicos dos ‘sambzs’ ¢ 0 rama sangrento dos ‘bam-bam-bans’ 5” E quem eram os personagens que davam contetido a essa rude ¢ brutal poesia dos morros? Descreven- do 0s “‘tipos”” que podiam ser encontrados na fa- vela e que eram agora devidamente apresentados aos leitores a partir da pena do pintor modemista Di Cavalcanti, prosseguia entio o repérter: © ‘bamba’ ... é uma reprodugo mais original, mais perfeita e mais interessante do famoso “iita’ argenti- no, .. & um misto do valentio e do malandro. E negaceador, & sestroso € herdou, ao mesmo tempo, todas as belas qualidades do capocira, corajoso e des. temido, ¢ todos 0s graves defeitos do “tungador’, tra- pacista'e ladrai A dangadeira de ‘sambas’, .. aSalomé crioula .. temo seuencanto perfumado ¢ sua graca inebriamte e seduto- 1a. O5 seus olhos sio quebrados ... 08 seus seios slo bamboleantes; 0 seu colo momo; a sua boca é lasciva Ela simboliza a perdigo daquele mundo infecto, onde ‘os homens se esfaqueiam com a calma e a simplicidade ‘com que nés, do lado decé, nos abracamos.# Lugar de homens valentes, de mulheres sensuais ¢ da melodia incbriante dos violoes, a favela, ainda que. Sem perder a caracteristica de ‘‘mundo infec- {0"" e de “Tocatde-assassinos”, passa agora a Ser ‘exaltada por_poetas, a ser reiratada por pintores. mini pé- “Seas personagens, que s6 alingiam 6 blico a partir da crOnica policial, invadem agora 0 Tepertério dos sambas que exaltam a ‘“cabrocha”, a “‘easinha pequenina’”, o “‘rualandro", sambas esses que se popularizam rapidamente, atingindo todas as camadas socizis, Tendo assumido cssa nova imagem, a favela inse- re-se entio de forma diferente no imagindrio cario- ca,_Deixa de ser apenas sindnimo de desordem € (Se clint © PUSS a 2 a assumir também o papel de “‘criadora de_sonhos”, imagen es6a que sé crista- Jlizari_definitivaments em_mead0s~da década de 1930 através da musica ‘Chao de estrelas’, de Ores- tes Barbosa, que retrata, de Forma idilica, 0 cotidia- ‘no da favela.®? A eleicao da favela como“coisa nossa’ logo atrai também a atengdo de pers estrangeiras que visitam a cidade. Foi o que aconteceu. por exemplo, em 1926. Em visita ao Rio, 0 escritor fascista Filippo Marinetti - 0 “papa do futurismo” 35 Reconstruindo uma hist6ria esquecida: origem @ expansao inicial das favelas do Rio de Janciro segundo a imprensa - acolheu conselhos de intelec- tuais cariocas ¢ resolveu fazer uma ‘‘visita noturna”” aomorroda Favela, para buscaraf‘emnoges fortes”. O relato dessa excursdo € de grande i hist6rica. E isto se deve nao tanto pela vi mas pela descrig&io detalhada que o reporter faz da nova relagio que se estabelecera entre a policia e os habitantes da Favela, uma relagdo que era agora intermediada por dois chefves locais, que haviam dividido 0 morro em 4reas de influéncia distintes. Vivendo do aluguel de barracos e dos ganhos obti- dos na exploragao de botequins, esses individuos chegaram mesmo a enviar representantes & Delega- cia Policial mais préxima, para ali receberem Mati netti € sua entourage e guid-los, por volta da meia- noite, pelos caminhos ingremes da Favela, Sobre essa novarelagiode poder informayaentioo jomalista: A policia nao poderia permanecer em peloties no morro. Veio uma perfeita situaco de entente-cordiale ‘com 05 mais prestigiosos dunges. As autoridades da zona tacitamente delegavam poderes a esses obedeci- dos homens fortes, que passaram oficiosamente a agie ‘como representantes do comissirio. S6 assim se re- solvea o problema da pacificagio lenta da Favela. Dentro em pouco, com tais ‘chs’ de autoridade, foram as providéncias preventivas seado adotadas. Os botequins, as bodegas foram sendo fechados cedo. As pendengas foram sendo resolvidas com 0 prestigio dos chefes amigos das autoridades. Hoje a Favela, jé as 8 horas, quase toda dorme... Essa nova face da Favela, de espago tomado terri- t6rio, era também exaltada por um dos guias da excursi ‘Se os senhores pensam que vém buscar aqui sensa. Bes novas para descrigdes de fatos. onde aparecem ‘oF nossos homens como elementos perigosos, terri- veis facfnoras escorragados pela policia, e aqui abri- gados & sombra da nossa protecio, iludem-se. Vé-se aqui a pobreza da cidade, a miséria mesmo, mas de gente que trabalha... Aqui hé disciplina, hié ordem..2" Nao se pense, entretanto, que essas novas imagens da Favela, retratadas por artistas ¢ chefées locais, haviam feito desaparecer 0 preconceito generaliza- ¢o contra elas. Inconformado com 0 que julgava ser uma total inversdo de valores, assim se indig- tava Mattos Pimenta: Senhores, deplordvel ¢ incompreensivel, nefasto e pe- rigoso, € 0 vezo que adquiriram alguns de nossos clectuais, de glorificarem as favelas, descodrindo Poesia ¢ beleza. por uma inominivel perversio do gosto, nestés aglomerados triplamente abjetos como antiestéticos, anti-sociais ¢ anti-higiénicos. Ridicula ¢ revoltante é a tendéncia que se vai acentuando entre 16s, 20 bafejo de certos espititos botmios, de accitar a5 favclas como uma caracterfstica nossa, uma insti- twigdo feliz ¢ interessante, digna de ser legada 20s ossos pésteros como tradigo nacional. Nao. Aos intelectuais extravagantes que fazem a apo- logia da malandragem ¢ da sujidade, que exaltam 0 capadécio a sordideza, que celebram as senzalas ¢ as Fedeatinas, e proclamam que isto € brasileiro, que isto € carioca, oporemes n6s a vor do bom senso, as regras incormuptiveis da verdadcira Arte, 08 pre- ceitos legitimos da verdadeira Ciéncia, salvando do desmamtelo futurista esta obra prima da Natureza que € 0 Rio de Janeiro.” © final da década de 1920 mantem aceso um gran- de debate sobre a favela. Se a glorificagao do sam- ba e de seus personagens, que cntdo tomava {mpe- Yo, contiibuia para dar as favelas um status poético “que Se fornaria definitivo logo depois, os debates Urbanisticos sobre“s inconveniéncia de Sua presen- _Satambém mantiveram-se fortes. Por um lado, Mat- tos Pimenta dé continuidade & sua campanha de erradicago das favelas, mas nao consegue conven- cet 0 govemo a adotar uma politica habitacional. Alfred Agache, por outro lado, que agora coorde- nava a elaboracao do Plano da Cidade, tenta impor no espago urbano todos os ideais estéticos ¢ fun- cionais pelos quais batalhava Mattos Pimenta, mas reconhece que, sem a construcio d= novos “bair- 1os_operdrios”” nos_sublirbios, niio_ser4_posstvel -xtirpar as favelas da cidade. A Revolugiio de 1930 acabaré por redefinir 0 pa- pel da favela no cenfrio da cidade. Tendo no_ur- _bano um de seus maiores focos de sustentacao, 0 novo regime, embora no justificando a sua pre- senga na cidade, vai deixar a favela relativamente emo_paz. Em algumas instancias, vai até mesmo Socorrer os seus habitantes, defenderido-os contra a agio dos proprietirios de terras, contribuindo assim pata forjar © imagem de Getilio Vargas como &*‘pai dos pobres””.” Bssa situagdio perma- necerd relativamente estavel até a década de 1960, quando 0 jogo de forcas sera entio mudado. For- talecidos agora pela mudanga do regime politico, dccorrente do_golpe militar de 1964,-0s interesses imobilidrios da cidade acabario por impor uma mudanga radical ‘no comportamento do governo, que_patrocinaré_entio uma _campanha macica de erradicacao de diversas favelas da cidade, notada- mente daguelas gue se Tocalizavam em suas zonas mais_privilegiadas Para concluir A favela est fazendo cem anos. Seu aparecimento na cidade, ocorrido em 1893/1894, esté intima- mente ligado & crise habitacional que afctava o Rio de Janeiro aquela época. Sua expansio pelo tecido “airkano carioca, enttelanto, 86 comogou na década Seguinte, ¢ pode ser explicada pela nio_resolucao _das contradigGes engendradas pela reforma urbana gue transformou a cidade no inicio do século XX. an Espago & Debates n® 37 - 1994 ‘Com efeito, a répida expansdo horizontal e 9 incie- mento das atividades econdmicas do Rio de Janeiro, ; Fesullaram nifo ape- has num aumento substarcial daolena de emprégo urbano, como também na sua desceniralizagio. Em decorténcia disso, intensificaram-se os fluxos mi- ‘gratOrios para a cidade, o que nzofoi contrabalanca- de itica de construgdo de casas.operdrias. Agravou-se, portan- “Yo. odéfick Rahtactonal da ctisae rebasten eran prometdo pela pollica de desminie dar tne “Thabitagbes coletivas. Estept 7 in da mais pela adogiio de uma rigida Tegislagao euili- ‘Cia que, aplicando-se a toda a cidade ¢ exigindo a Conjunturas recentes, entretanto, tém alterado bas- tante essa situagio. Se os ganhos politicos dos mo- radores das favelas tém sido os maiores de todos os tempos (adogao de programas de. melhoramen- tos pelo Estado; conquista do dieito de proprieda- de em muitas favelas etc), por outro lado a longa Tecessdo que atinge 0 pais desde 0 infcio da década de 1980 tem resultado numa nova onda de faveli- zacio do Rio, que reproduz, no final do século XX, muitas das situagdes aqui estudadas. A transforma. $40 de muitas das favelas da cidade em verdadeiro s do crime organizado € do wafico de drogas, ‘Por sua vez, tem despertado reaches as mais diver. Sas, revelando que a insergao da favela no cendtio entes utilizagio de materiais de con: ta quali- urban ainda continua a ser um processo complexo dade, inviabi Zo dos subtrbios pela © controvertido, \dor de opini i Populacdo mais pobre. Some-seaeste quadro, firal- e, muitas vezes, irrcconcilidveis. mente, a n&io adog&o de qualquer politica de trans- (porte -destinada a facilitar-o-destocamento-fécil e rapido da forga de tr: HOVOS Tocais de “mprego € estar completo 0 conj imagdes iMe tomo ireversivel.o proceso de permanéncia -2xpansiio da favela no cenétio carioca. ‘Como bem disseram outros autores que estudaram © assunto, $6 a partir dos anos 1940 & que a favela “comega achamar_a_atengi0”Hi que Se exptici- tar bem, na que quer dizer esta frase. Pelo que péde ser reconstrufdo da histéria da fave- la neste trabalho, é/possivel afirmar que nao foi a partir dessa data que a favela se tornou Visivel ou incomodativa para 6 governo. Isto aconteccu muito antes. 5 a partir de 1940, neta, que 0s pote- Tes piblicos parecem reconhecer que a favela che- ‘Bou pare ear ow sefa, que uma wova geopoltica urbana havia s¢'instaurado de facto na cidade. Nao de surpreender, portanto, que 6 a partir de entao _€ que a favela tenha sido ““oficializada’”, passando fazer parte dos planos ¢ preocupagses oficiais. também a partir desse momento que tem inicio um processo que se prolonga’até hoje, e que vin- cula o poder de barganha dos moradores de favelas ao gran de liberdade politica existente no pais. Com efeito, a hist6ria recente das favelas demons- ‘tra. que, nos itimos cinqiienta amos; estabelecense uma nitida comelaga ¢ ‘democratico € a aceitagio da permanéncia da fave- Ja nas éreas valorizadas da cidade, Em tempos de fechamento politico”, como ocofren, por exem- plo, em alguns momentos da ditadura de Getilio Vargas (1937-1945) © no perfodo de vigéncia dos governos militares (1964-1985), o combate as fa- velas mostrou-se bastante forte, resultando, daf, a erradicagao forgzda de muitas delas, O advento das fases de liberdade politica (1946-1964 ¢ 1985 até — hoje) deram ensejo, entretanto, as lutas ‘éncia melhoria d -aram a principal arma com que contam os favela- dos para melhorar a sua sorte: 0 voto. 44 Como sempre foi! Mauricio de Almeida Abreu € professor adjunto do Departamento de Geografia da UFRU. Notas LPDF (Prefeitura do Distrito Federal). Cidade do Rio de Janeiro. Remodelagao, extensio, embelezamento, Pasis, Foyer Brésiliea, 1930, 2. Graciela Schneier ¢ Ana Maria Montenegro (organi- zadoras). “Rio de Janeiro. La beauté du diable’’. Autrement REvue, Série Monde HS n? 42, janvier 1990. 3. Ver, por exemplo, Janice Perlman, O mito da margi- nnalidade, Rio de Janeiro, Paz. e Tetra, 1977; Anthony Leeds e Elizabeth Leeds, A sociologia do Brasil ur bano, Rio de Janeiro, Zahar, 1978; Carlos Neison F. dos Santos, Movimeatos urbanos no Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Zahar, 1981. 4.1 Plantio, Cadastro de favelas, 1991. 5. Sagmacs (Sociedade de Anilises Grificas © Mecano- srificas Aplicadas acs Complexos Sociais). ““Aspec- ‘os humanes da favela carioca’’. Suplemento especial do Estado de Sao Paulo, 13 e 15 de abril de 1960; Lucien Parisse. Favelas do Rio de Janeiro - evolugéo, seatido. Rio de Janeiro, CENPHA, 1969. 6. A excegio a regra é dada pelo Plano Agache, que prope eatretanto a sua erradicagio. Ver PDR, op. cit. 7. H, Dias da Cruz, Os morros cariocas no novo regime. Rio de Janeiro, sied., 1941. 8. Lucien Parisse, op. cit. p. 68. 9. Ver Lucien Patisse, op. cit, capttalo 2, 10. Idem. p. 88. LL. Idem, p. 97. Note-se que as primeiras estatisticas oficiais da favela no coincidem. Outro censo reali- zado nas favelas, em 1948, assim como o Recensea- mento Geral de 1950, a0 definirem favela de maneira diversa, chegario a resultados diferentes, inferiores Aqueles que so aqui apresentados. Cf. Lucien Paris: ©, 0p. city pp. T-L12. 12. 0 pré-teste incluiu a leitura do Correio da Manhi, do Jomal do Brasil, de O Pais, do Jomal do Comércioe éa Gazeta de Noucias. Reconstruindo uma hist6ria esquecida: origem e expansao iricial das favelas do Rio de Janeiro 13. Ver Nicolau Sevcenko, Literatura como misao. Ten oes sociais e criag4o cultural na Primeira Repdblica. ‘Sio Paulo, Brasiliense, 1985, capitulo 1. 14, A diferenga entre cortigo ¢ estalagem & sutil. A esta- Jagem era um imével que tinha, nos fundos do terre- no, uma sucessio de quartos ow casinhas de porta ¢ janela. As instalagSes sanitérias, quando existiam,eram poucas © coletivas. Quando as condigics ‘gerais de moradia da estalagem deterioravam, chamavam-ta de cottico, que era, pois, uma estalagem de qualidade inferior. Ver Lilian Vaz, Contriburigzo 20 estudo da produgio ¢ transformagio do espago dz habitagao ‘popular: as habitagdes cotetivas no Rio antigo. Rio de Janeiro, UFRJ, Dissertacio de mestrado, cap. 4. 15, Ver Mauricio A. Abreu, “Da habitagio 20 habitat: a questo da habitar3o popular no Rio de Janeiro ¢ sua evolugao””. Revista do Riode Jeneiro.2, 1986, pp.47-58 16. Luiz Cesar Q Ribeiro. ““Fommagio do capital imobilié rioe a produgiodo espagoconstrufdono Rio de Janeiro- 1870/1930". Espago & Debates, 5 (15). 1985, pp.5-32. 17, Relat6rio dos tabalhos da Inspetoria Geral de Higie- ne, 1892, Apud Jaime Benchimol, Pereira Passos, um Haussmann tropical. Rio de Janeiro, Secretaria Muni~ cipal de Cultura, 1990, p. 181. 18. Ver Lilian F. Vaz, “‘Notas sobre 0 Cabeca de Por- co". Revista do Rio de Janeiro, 2, 1986, pp. 29-35. 19, Sobre a reforma urbana, ver Jaime Benchimol, op. cit Mauricio A. Abreu, Evolugio urbana do Rio de Janei- 10.Rio de Janeiro, I Plansio/ Jorge Zahar Editor, 1987. 20. Canudos foi um movimento de caréter religioso, ocor- rido no interior do Estado da Bahia na tiltima década do século XIX e liderado por um penitente fanstico. Considerado pelo recém-implantado governo republi- cano, infundadamente, como um movimento d res- tauragio moniequica, para li foram deslocadas ind meras tropas, que acabaram por arrasar 0 pooado em outubro de 1897, matando mithares de pessoas. 21. Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro (AGCRD), Célice 46-3-55. 22. AGCRI, Cédice 67-1-25, 23, idem, 24. Lilian Vaz, “‘Notas...”", op. cit, p. 35. 25. Favela € um arbusto tfpico da caatinga nordestina muito abundante no sertio de Canudos. [4 havia in- clusive um morro com esse nome. Seja porque 0 morro da Providéncia se assemelhava a0 morro exis- tente em Canudlos, seja porque 0s soldados ali encon- traram (ou construiramn) algo que Thes recordava Ca- nudos, a verdede é que o morro da Providéncia logo pessou a ser comhecido nacidade como morro da Favela. 26. AGCRI, Cédive 32-4-6. 27. Jornal do Comércio (IC), 14/10/1901. 28. E 6 interessante notar que foi novamente a partir do Motro de Santo AntOnio, ¢ n30 do Morro da Provi- déncia - que & normalmeate citado como a “favela original’’ - que isto aconteceu. 29. Correio da Minha (CM), 17/10/1901. 30. Eder. 31. A constatagio de que havia um mercado imotiliério bastante eruel nas favelas, explorado por alguns dos seus moradores ou por “‘proprictdrios absenteistas””, € uma consiante em todo 0 perfodo estudado, esten- dendo-se, na realidade, até hoje. 32. CM, 22/1 1/1901. 33. Backheuser, recém-formado, pertencia ento 20.qua- dro técnico da Prefeitura. Mais tarde, acabaria so. interessando por questdes de geologia, de geografia humana € de geopolitica, produzindo’ uma extensa obra, nem sempre to bem acolhida quanto dé a en- tender umn seu bidgrafo recente. Ver Sydney Santos, A cultura opulenta de Everardo Backheuser. Rio de Janeiro, Ed. Carioca de Engenharia, 1989. 34. Ministério da Justiga © Negécios Interiores (MIND). Relatdrio aprescatado ao Presidente da Republica dos Estados Unides do Brasil pelo dr. J.J. Seabra, Minis- tro de Estado da Justica e Negécios Inteciores, om marzo de 1906. Rio de Taneiro, Imprensa Nacional, 1906, volume I, p. 308. 35. Ver Mauricio A. Abreu, ‘A periferia de ontem: 0 processo de construgio do espago suburbano no Rio de Janeiro, 1870-1930". Espapo & Debates, Ano 7, n° 21, 1987, p. 12-38. 36. MINI, op. cit, p. 300. 37. Um artigo, provavelmente de autoria de Ferreira da Rosa, dé, eatretinto, algumas pistas iniciais sobre a vinculagio da arela do Morro de Santo AntOaio com as demoligdes entéo sendo realizadas na cidade. Ver O Commeniario, Série 3, n° 8, dezembro de 1905. 38. Idem, p. 304. 39. CM, 2/6/1907 40. Idem. 41. CM, 2/6/1907. 42. CM, 30/3/19. Tudo indica que essa favela jé vinha se formando bi algum tempo. Ver Lilian Vaz, “Con- teibuigao..", op. cit. 43. AGCRI, Cédice 25-3-33. 44.0M, 29/4/1912. 45. 0 Copacabam, ano VI. n° 75, 2177/1912. 46.CM, 3/3/1912. 47.M, 1SANIB. 48.5C, L129. 49. CM, 19/12/1915; Revista da Semana, ano XVIL,n° 49, IS/I/1916. 50. CM, 23/7/192. 51. 3B, 12/8/1920. Ver também CM, 15/12/1926. 52. CM, 7/1/1916, 53. Mauricio A. Abreu ¢ Lilian F. Vaz. “‘Sobre 2s ori- gens da favel”. In Anais do IV Encontro Nacional ds Anpur. Salvador, ANPUR, 1993, p. 481-492. 54.M, 4/1/1902, 55.CM, 17/9/1902. 56. Ver Nicolau Sevcenko, A Revolia da Vacina. Sio Paulo, Brasilienre, 1984. 57.CM, 15/1/1909. 58. CM, 7/6/1908. 59. CM, 23/1/1911. 60. CM, 20/6/1911. 61. CM, 29/4/1912. 62. CM, 3/6/1914. 63. Indicagio de que o nome j& havia se generalizado é ‘eacontrada, por exemplo, no Jomual do Comércio de (2/5/1926: “Estas povoagdes que por af jé foram batizadas de favelas constituem além de grave ameaca 45 Espago & Debates n®37 - 1994 a salubridade pablica .. um elemento extremamente antiestético que mais se realga na moldura das bele- zas naturais desta capital”. E interessante notar, por ‘outro lado, que 0 termo favelado, de natureza clara~ mente pejorativa, nio era utilizado nessa epoca. Re~ portagem do Comeio da Manha, de 16/11/1922, faz alusdes ao ‘‘meio favelano™. Por sua vez, falando sobre sua administragio, © prefeito Henrique Dods- worth declarava, no final de sua gestio, que havia ajudado a “'milhares de faveleiros"” '(A_ Noite, 17/10/1945. Apud Parise, op. cit. p. 82). 0 termo favelense também aparece nos jomais. (64, Everardo Backheuser. “Onde moram os pobres’”. Re- nascenca, 2 (13). 1905, p. 94. 5. Careta, n° 79, 4/12/1909, p. 23. cM, 5/7/1909. CM, 23/1/1911. . Nicolau Seveenko, op. cit, p. 59. 69. MINI, op. cit, pp. 210, 315. CM, 23/1191. 1. Mauricio A. Abreu, “Da habitagéo ..”, op. cit. + Centro de Meméria Social (CMS). Assistéacia médi- ca no Rio de Janeiro: uma contribuipao para a sua hiist6ria no periodo 1870-1945. Relatério de pesquisa no publicado, 1980; Mauricio A. Abreu, Evolugo urbana... op. cit. A contribui¢do da teforma urbana para o aumento de barracdes neste iltimo morro foi assim descrita al- guns anos depois: “O desenvolvimento das constiu- es no morro de Santo AntOnio acentuou-se no go- ‘eno passado, durante as demoligdes para a abertura da avenida Central. A noite, desciam as ingremes ‘eredas, para a cidade, bandos de homens, criangas ¢ mulheres, insinuando-se pelos escombros, pelas mi- nas das velhas nias que desabavam par nascer a avenida, e ali, com cautela, deseutranhavam paus, vigotes, tdbuas, velhas folhas de zinco, tudo quanto mais a mao demorava, para vollar, 2 horas mortas, organizando a triste caravana da miséria, No dia ime- ito, ao romper o sol, jf mourejavam no desbasta- mento do terreno, para assentar 0s alicerces de uma nova habitagao"’. 0 morro de Santo AntGnio, Leitura para todas, ano 4, n° 40, junho de 1999, p. 26. 74, AGRI, Céslice 25-3-33. 2B. 15, 16. 7. 8. 19. 80. 81. 82. 83, 84, 85. 86. 87. 88. 39. 90. on 92. EM, 20/4/1916, CM, 9/5/1916. CM, 26/5/1916. E interessante notar que, apés 0 in- céndio, os moradores do Morro de Santo. Anténio tiveram novamente permissio para se tcansferir para ‘© Morro do Telégrafo, 0 que faz com que a Favela da ‘Mangueira seja, talvez, a unica das favelas cariocas ‘que contou com a aprovacio do poder piblico. Ver Correio da Menhd, 1W9/1916, ¢ Henrique Dias da Cruz, op. cit, p. 57. Revists da Semana, 5/4/1919. Esta favela sé desapa- recetia do cendrio carioca na década de 1950, quando © morro foi. finalmente arrasado. CM, 17/5/1917; 22/4/1918. JB, 1218/1920. cM, 1714/1926. Tudo indica que essa campanha n3o se fazia por desejos puramente humanitérios ou estéticos. Em 1940, ‘Mattos Pimenta jé era presidente da Bolsa de Iméveis do Rio de Janciro. Ver Rio ilustrado, seterubro de 1940, p. 151. Ver, por exemplo, Jornal do Comércio, 12/3/1926; O Globo, 11/3/1927; A Notfcia, 11/3/1927; A Era Fer- ragista, abril 1927; O Globo, 15/8/1927. 0 Globo, 15/8/1927. Revista da Semana, ano 37. n° 36, 15/8/1936, p. 36 Louis Dumont, Ensaios sobre 0 individualismo. Uma erspectiva antropologica sobre a ideologia modems. Lisboa, Ed. D. Quixote, 1992 (original de 1983). CM, 22/1/1923. A imprensa da €poca usa o termo ‘bam-bam-bam para designar o valentio. Idem. Publicagio recente sobre 0 Morro da Favela, & qual 86 tivemos acesso quando este trabalho j& extava ter- minado, aponta também para essa esteita comrclagio centre a popularizagtio do samba no Rio de Janeiro & @ mudanga da imagem da favela nos anos 20. Ver Sonia Zylberberg (Coord.), Morro da Frovidéacia: Memérias da Favella. Rio de Janciso, Secretaria Mu- nicipal de Cultura, 1992. CM, 19/5/1926. Idem. CM, 18/11/1926.

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