You are on page 1of 17
IMAGINARIA E DEVOGOES NO CATOLICISMO BRASILEIRO. NOTAS DE UMA PESQUISA Fernando Torres-Londofio” A historiografia brasileira, preocupada desde os anos 80 com uma diversificagao de seus objetos, incluiu também como horizonte de pesquisa a recuperagiio do percurso da Historia da Igreja e das religiosidades no pais.' Nos anos 90, alguns trabalhos rea- s das ul lizados nas pés-graduag6 ersidades trilham as pistas levantadas por Gilberto Freire, Eduardo Hoornaert ¢ Laura Mello de Souza, sobre a presenga estratégica das devogées vindas de Portugal para a introdugao do cristianismo no Brasil? Na PUC-SP, no Ambito do grupo sobre Imaginério Religioso Brasileiro, tem-se adian- tado pesquisas sobre devogdes que cobrem diversas épocas, regides e aspectos. Estas pesquisas tratam das praticas, das crengas e dos significados de devogdes consagradas ¢ reconhecidas nacionalmente, como o Bom Jesus de Matosinhos, o Bom Jesus do Porto das Caixas, Sao Francisco das Chagas no Canindé, Sao Lazaro cm Cuba.’ Também * Doutor em Histéria pela USP. Professor da PUC-SP no Departamento de Histéria no Programa de Pés- graduagao em Ciéncias da Religiao. 1 Com base no levaniamento da produgio de teses & dissertagdes das p6s-graduacdes em Histéria entre 1985 © 1994, realizado por Anphu a Cehila levantou e publicou os resumos de 173 dissertagdes, ver “Selecdo de dissertacoes ¢ teses sobre temas relativos a historia da Igreja no Brasil, na América Latina € no Caribe”, Boletim Cehila, 51-52, encarte. 1996. Ver Gilberto Freire. Casa Grande e Senzala. Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1975. Eduardo Hoornaert, Formacdo do catolicismo Brasileiro, 1550-1800. Petropolis, Vores, 1991. Laura de Mello © Souza, O diaby e a terra de Santa Cruz. S30 Paulo, Companhia das Letras, 1986. 3 Ver, Regina C. Padovan. O Santudrio do Bom Jesus de Matosinhos, 1997. José Carlos Pereira. A eficcicia simbolica do sacrificio: uma abordagem da relagdo sacrificial na devocao ao Bom Jesus do Porto das Caixas, 1999. Ofelia Pérez, La devacisin a San Lazaro como parte de ta religiosidad més extendida en Cuba, 1999. Atwalmente Marcelo de Oliveira adianta, no programa das Ciéncias da Religi dissertagdo sobre gestos € simbolos das romarias de Canindé. Proj. Historia, Sado Paulo, (21), nov. 2000 247 se tem estudado cultos locais que inspiram rituais ¢ atos de vencragio e devogées tanto na Grea urbana como nas grandes cidades.* Estas pesquisas mostram que as devogdes populares no Brasil atravessaram os sé- culos, crescendo e se reinventando. Devogées que vém do periodo colonial, & Nossa Senhora, ao Jesus Crucificado e a santos como Sao Francisco das Chagas, tém-se man- tido © continuam atraindo aos santudrios milhares de pessoas a cada ano. Devogées introduzidas ¢ adaptadas no século XX por diversos motivos, como Siio Judas ¢ Santa Edwiges, tém feito de lugares comuns santudrios ¢ centros de peregrinagdo, introduzindo no calendario religioso novos momentos de festa durante o ano. Ainda, a religiao po- pular no Brasil tem levado ao reconhecimento de santidade em pessoas, como 0 Padre Cicero, Frei Damiao. Porém, as devogdes nao s6 se conservam como se transformam. Acreditamos que elas adaptaram suas praticas ao ritmo veloz e ao anonimato das grandes cidades, onde também a secularizagdo foi muito ampla. Preservando recursos como a veneragao das imagens, elas ganham representacdes, com novos sentidos e praticas, galgando espacos e diversificando seus meios de expressao. Em uma diregao que valoriza a cultura popular € que no caso da religio uma “outra Iégica”S acreditamos que é insuficiente considerar as devogdes em uma sidade popular aponta para 0 que Cristian Parker chamou de relagiio reduzida ao marco de promessa/obtengio graga/pagamento da promessa. Hoje como no passado as devogées constituem um espago de leigos, obviamente nao preser- vado da disputa com os especialistas religiosos. Elas servem para a expressao de iden- tidades ameagadas de dissolugao, ajudam eficazmente na superagao da quotidiana dos pobres ¢ atribulados, recuperando sentido e esperanga, ¢ trazendo a afe- ragmentagao contraponto a catequese catélica do Deus cas- tividade para a experiéncia religiosa faz, tigador ¢ distante.® 4 Nessa linha t8m sido defendidas no Programa das Ciéneias da Religido as dissertagdes de Maria do Carmo Forti, F ela fez milagre, 1997 (publicado, em 1999, peta Anablume, como Maria de Juazeiro). Adilson da Silva Mello. Aspectos da religiasidade popular na cidade de Cunha: estudo do caso de Sa Mariinha das Trés Pontes, 1999. Julio Cesar Moreno. A devocdo a Santo Expedito na cidade de ‘a Paulo, 2000. 5 Sobre a retomada da religiosidade popular vista desde uma “outra Igica”, ver Cristian Parker. Religido popular e modernizacao capitalista: outra logica na América Latina, Petropolis, Vozes. 1995. 6 A respeito, ver Fernando Torres-Londofio. As devogdes e 0 ser religioso do Brasil. Tempo e Presenga, mar Jabr. 2000, pp. 17-21 248 Proj. Histéria, Séo Paulo, (21), nov. 2000 Foi a evidéncia de santinhos de Santo Expedito em So Paulo, a partir da distri- buig&o de milheiros de impressos da imagem do santo, 0 que primeiro nos levou a considerar um aspecto pouco examinado nas devog6es populares: sua imagindria. Tam- bém na localizacéo das representag6es do santo, deparamo-nos com um mestrado ori- entado na USP pelo Dr. José Carlos Sebe Bom Meihy, sobre a iconografia de Nossa Senhora de Aparecida, que apontava para o importante papel cumprido pela imaginaria de Nossa Senhora na construgaio desta devogo como simbolo nacional, Depois, 0 acom- panhamento de uma pesquisa desenvolvida no Vale do Paraiba pelo Dr. José Rogério Lopes, da Universidade de Taubaté, levou-nos a examinar os diversos usos dados aos santinhos em praticas religiosas ainda vigentes nos municipios da regia.’ Ainda, os registros existentes de ex-votos coloniais e dos atuais ex-votos amontoados aos milhares nas salas de milagres dos santudrios nos apontaram para um universo mais amplo de representagGes presente em uma infinidade de objetos. Tal o Ieque de informagdes que constitui a base para a formulagdo das indagacées de nossas pesquisas. Imagindria € devogdes na tradigéo catdlica A auséncia de representagoes divinas foi um trago que diferenciou Israel entre seus vizinhos. O capitulo 14 do livro da Sabedoria descreve diversas praticas de adoragio aelementos da natureza e a objetos fabricados pelo homem ¢ os condena como idolatria. O cristianismo nao teve, pois, heranga de representagdes da divindade e se manteve assim nos primeiros séculos. Por influéncia da tradigéo grega no século IV, comegou-se a decorar com icones os lugares de culto. Mesmo nao sendo consenso entre os primeiros padres, no século VI ja se representava em {cones a natureza humana de Cristo, pratica que se alastrou rapidamente pela parte oriental do Império Bizantino. A reagdo dos que viam nesta adoragdo formas de paganismo, gerou o movimento dos iconoclastas que, de 730 a 840 mais ou menos, colocou em conflitos patriarcas ¢ bispos, 0 papado ¢ o Império, Roma ¢ Constantinopla, levando A convocagao de sfinodos e coneflios e ao surgimento de uma heresia. Condenado 0 iconoclastismo, toda a disputa a que deu origem produziu dezenas 7 Mateus Marcos Ribeiro ¢ Marcelo Henrique Santos Toledo desenvolvem mestrados a este respeito no programa de Ciéncias da Religido da PUC. Proj. Histéria, Stio Paulo, (21), nov. 2000 249 de textos que legitimavam a prdtica j4 muito difundida entre os artistas cristaos, de representar os santos e cenas evangélicas.* Durante a Idade Média 0 culto aos santos, vistos como protetores pelos figis como exemplos pela hierarquia, estendeu-se por toda a cristandade. Festas e ritos de origem no crista, como os praticados no primeiro de maio ou na celebragao de Sao Jodo, também se arraigaram em um universo de predominio agricola. Reliquias dos mais variados tipos proliferaram ¢ lugares associados a Cristo ¢ aos santos se transfor- maram em destino de peregrinagées, compensadas com indulgéncias.’ A Reforma Protestante atacou o culto As imagens ¢ a Reforma Catélica lutou contra as superstigdes e os rituais considerados pagios. O Concilio de Trento, na sessio final, em um decreto pequeno para questio tao ampla e sensivel, entendeu que os santos que reinam justamente com Jesus Cristo, oferecem a Deus pelos homens a suas oracdes; e que & bom e itil invocé-los humildemente ¢ recorrer &s suas oragdes, poder ¢ auxilio para alcangar beneficios de Deus. (Concflio Tridentino, p. 349) Respeito as imagens de Cristo, Nossa Senhora e dos santos, 0 Concflio determinou que dever-se-ia tributar-Ihes devida honra e venere nfio porque se creia que ha nelas alguma divindade, ou virtude, pela qual se hajam de venerar, ou se Ihes deva pedir algum coisa, ou se deva por a confianga nas imagens, como antigamente os gentios punham a sua confianga nos idolos; mas porque a honra, que se Ihes dé, se refere aos originais que elas representam; em forma que mediante as imagens que beijamos, © em cuja presenca descobrimos a cabega, € nos postramos, adoremos a Cristo, veneremos os santos, cuja semelhanga representam. (Concilio Tridentino, p. 351) Assim 0 Concilio de Trento legitimou a veneragao aos santos como intercessores dos homens ante Deus; respondeu & acusagio de idolatria da Reforma, ¢ sem entrar em mais controvérsias, citou o segundo Coneflio de Nicéia que condenou os iconoclastas, definindo as imagens como representagSes. Manteve também a pratica das reliquias ¢ 8 Para a questdo iconoclasta ver o resumo de P. A Yannopoulos, “Do segundo concflio de Constantinopla (553) ao segundo concilio de Nicéia (786-787)". In: G. Alberigo (org.). Histéria dos conctlies ecu- ménicos. Sao Paulo, Paulus, 1990, pp. 134-135. 9 Uma avaliagdo ponderada deste periodo esté em M. Venard. “O Concilio Lateranense V ¢ 0 Tridentin: : G. Alberigo, op. cit, pp. 317- 250 Proj. Historia, Séo Paulo, (21), nov. 2000 a veneracio das imagens, deixando ao bispo do lugar a responsabilidade por evitar exageros. Para Francastel, 0 espirito ponderado do Concilio na questo das imagens foi dei- xado de lado para atender as modalidades de sensibilidade exigidas pelas massas “para as quais os clérigos tiveram de se voltar quando se tratou de reuni-las e de impor 0 novo catolicismo” (Francastel, 1993, p. 403). Ainda, os clérigos e em especial os je- suftas, teriam sido “cada vez mais seduzidos com o tempo, pelos proveitos que podiam Ihes dar o controle ¢ a multiplicag&o das imagens sagradas tio apreciadas pelo povo” (Francastel, 1993, p. 374), 0 que explicaria o surto da iconografia religiosa nos séculos XVII e XVIIL Este contexto da catoli meras devogées marianas. Vérias destas devogdes a Maria surgiram a partir da identi- dade depois de Trento propiciou o aparecimento de ind- ficagio de estétuas miraculosas, afirmando-se ainda mais a tradigdo taumaturga da de- vogdo aos santos. Auspiciadas pelas ordens religi praticas como as do escapuldrio e as medalhas se difundiram adquirindo tragos de talismas. Na colénia portuguesa na América nao foi diferente, as devogdes atravessaram 0 Atlantico trazidas pelos conquistadores e missiondrios e se fizeram presentes tanto no. Ambito privado como no piblico. No infcio do século XVIII, segundo as informagées contidas em Santudrio Mariano de 1723, eram veneradas no Brasil em igrejas e capelas 346 nossas senhoras (Santa Maria, 1723). Algo parecido deveria acontecer com o Bom Jesus e santos de grande popularidade como Sao Francisco ¢ Santo Anténio. No fim do XVIII ¢ no inicio do XIX, santeiros ¢ artesios de diferentes regides produziam ex-votos pintados em madeira, talhas de pequeno porte e os mais diversos objetos religiosos em cera, tecido e madeira. Em 1854, na capela de Nossa Senhora de Aparecida, foram achadas pinturas gra- vadas em papel, que o bispo Dom Anténio Joaquim de Mello mandou queimar (Santos, 2000, p. 69). Em 1884, segundo 0 Correio Paulistano, eram oferecidos em Aparecida aos devotos imagens litografadas, cordéis, cord6es de fitas ¢ “retratos verdadeiros de Nossa Senhora Aparecida” (Santos, 2000, p. 61). Também, nesta época se popularizava entre os catélicos a utilizagio de estampas para marcar a recep¢io de sacramentos como 0 batismo, a primeira comunhao ou as liturgias acostumadas, nos falecimentos e enterros. Com a chegada das imprensas ¢ 0 estabelecimento de grafi nidades religiosas no inicio do século, a produgdo de estampas com imagens dos santos $s por parte de comu- multiplicou-se. As estampas traziam os temas valorizados pelo espirito romanizado como 0 martirio, a piedade, a santidade; utilizavam muitas vezes matrizes européias € Proj. Histéria, Sao Paulo, (21), nov. 2000 251 seguiam a estética dos ilustradores de temas destinados ao consumo do grande publico. Bispos e ordens religiosas passaram a dispor assim de mais um recurso para introduzir novas devogses, oragées e praticas que incentivavam a piedade individual. O que trouxe uma importante vantagem para a pastoral da Igreja em um universo de fiéis no qual predominava o analfabetismo ¢ que tinha feito da relagdo pessoal com o santo um traco fundamental de sua religiosidade. , com forga por meio dos santinhos e se manteve em evidéncia junto com outras praticas religiosas populares até os anos 60 e 70. Depois, declinou, ficando confinada ao universo rural e das pequenas cidades deste encobrimento da ima- A imagindria das devogdes afirmou-se, pi Varios processos podem ser apontados como responsive gindria religiosa: a intensa urbanizag&o vivida nos anos 60 e 70, a liberalizagdo de costumes nas cidades; a secularizagao do cotidiano celebrada pelos meios de comuni- cacao; 0 crescimento de novas igrejas © a evidéncia de outras religides; as mudangas pastorais provocadas com a implantagiio de Vaticano II ¢ os novos padrées estéticos ¢ de status seguidos e pregoados pela classe média. Afinada com uma presenga maior do religioso na sociedade brasileira no final dos anos 90, a imagindria das devogGes comega a ficar mais evidente no universo urbano, ainda que de forma timida ¢ sem que se tenha a certeza de que o retorno seré duradouro. A pesquisa sobre imagindria e devogéo popular: alguns achados Como abordar esta imaginéria? Como se constituiu? Como resgatar alguns dos sentidos que vem adquirindo? Ainda, que caminho percorrer para identificar a histori- cidade que a marca? Sao algumas das indagagdes que aparecem na trilha sinuosa e pouco clara de localizar santinhos e depois se debrugar sobre milhares deles. Entre as hipoteses formuladas para responder As indagagées, destacamos nesta apre- sentacdo a seguinte: a devogao passa pela imagem, as representagdes dos santos, as significagdes atribufdas a elas ¢ os diversos usos das imagens servem eficientemente para colocar as devogées na vida dos fiéis. Na aplicagdo destas hipdteses na pesquisa se tem chegado a conclusGes que nos permitem identificar trés fios condutores que serdo apresentados brevemente. Primeiro, na imagindria das devocdes populares multiplicadas aos milhares, o que interessa ao devoto é sua condigdo de ex-voto, de registro e evocagio. Como ex-voto, a imagem anuncia a existéncia de uma graga. Sua presenga é uma mensagem para quem 252 Proj. Histéria, Sao Paulo, (21), nov. 2000 possa entender que a bondade divina se fez presente através de seu santo. Alids, uma Mensagem com um carater triplice. Assim, a imagem 6 testemunho da intervengao do santo, do reconhecimento do devoto ¢ do desejo deste de comunicar a béngdo recebida Sua mensagem se dirige pois a Deus, ao santo ¢ ao devoto em potencial, que contem- plando 0 ex-voto pode ficar “edificado” com o testemunho. A vontade de afirmar a graga, de reconhecer e anunciar o milagre, a cura extraor- dindria pela intervengio do santo, move ao devoto. Porém essa vontade o leva também a utilizar dentro de sua cultura os recursos plisticos de que dispe para comunicar a graga de que foi objeto. Assim, em determinados ex-votos, evoca-se a memoria do feito miraculoso através de sua representagio. Nos quadrinhos em madeira dos séculos XVIII e XIX, dedicados a agradecer ao Bom Jesus de Matosinhos, os pintores de ex-votos pintaram uma ferida aberta ou os rastros de sangue de um ferimento a bala, em um grande esforgo de reproducio da realidade, dados seus recursos técnicos (ver Figuras 1 ¢ 2), em um canto do quadro reproduziam a imagem do Bom Jesus, assinalando por meio de nuvens ou resplendores sua intervengao milagrosa, Nao ficando contente com isto, o devoto, segundo 0 costume, redigia um texto na parte de baixo do préprio quadro no qual se identificava, mencio- nava O santo e descrevia a graga. O ex-voto, assim denotado, deveria ser eficiente na comunicagao do testemunho que se pretendia. Durante os séculos XIX e XX a madeira, a cera e depois o plastico foram utilizados pelos devotos para fazer pegas que reproduziam partes do corpo humano. Querendo reproduzir dimensées, peso e cor, de 6rgaos e membros, os devotos esticaram os | da representagao. Ainda entupiram salas de milagres de muletas, cadeiras de rodas e tes préteses, que ficaram sem uso e cobriram as paredes de exames clinicos, atestados médicos, fotos ¢ diplomas os mais variados (ver Figura 3). Assim a dimensio de prova do ex-voto passou a ser incontestavel. Porém, mesmo com esse percurso em que o realismo da pintura, a reprodugdo em cera do 6rgao ou a presenga do atestado médico mostram a decidida vontade de anunciar por todos os meios visuais a existéncia do extraordindrio o que interessa no ex-voto € © registro deste antincio ligado 4 intervengao do santo. Assim, mesmo tratando-se das 0 Paulo, 0 ex-voto deve poder ser dade na sua mensagem. Isto exige que exista por parte dos desti- lac6nicas faix de Santo Expedito das ruas de entendido com faci natarios da mensagem um pré-conhecimento da devogdo que Ihes permita entender a que se estao referindo os diversos signos do ex-voto. Proj. Histéria, Sao Paulo, (21), nov. 2000 253 Figura 1 - Quadro de ex-voto n. 15. Sala dos Milagres. Santudrio do Bom Jesus de Matosinhos de Congonhas do Campo. In: Regina C. Padovan, O Santudrio do Bom Jesus de Matosinhos. Dissertagao de Mestrado em Hist6ria, PUC-SP, 1997. p. 144. Figura 2 ~ Quadro de ex-voto n. 69. Sala dos Milagres. Santuério do Bom Jesus de Matosinhos de Congonhas do Campo. In: Regina C. Padovan. O Santudrio do Bom Jesus de Matosinhos. 254 Proj. Hist6ria, Sao Paulo, (21), nov. 2000 Figura 3 — Fotografia de ex-votos, sala dos milagres no Santudrio de Porto das Caixas, tomada de José Carlos Pereira, A eficdcia simbélica do sacrificio: wna abordagem da relagdo sacrificial na devogaio ao Bom Jesus do Porto das Caixas, Dissertagio de mestrado em Ciéncias da Religido, PUC-SP,1999, Anexo 2, foto do autor n. 10. Segundo, na imaginéria das devogGes, particularmente nos santinhos, a figura, os motivos € mesmo os temas a que pode estar associada sio secundarios. ‘As imagens séo esculpidas ou pintadas seguindo padrdes que respondem ao inte- resse de fixar e difundir a devogdo. O que atrai o devoto nao é a qualidade estética da imagem ou mesmo seus tragos. Aos devotos interessa que a representagao corresponda a0 que a tradigdo foi convencionando como referencial e eles esperam do santo. O que importa é manter um referencial da hagiografia definido historicamente, que adotou tragos, signos ou motivos que, pelas suas caraterfsticas, passaram a ser considerados distintivos na biografia do santo, sendo aceitos e consagrados pela tradigao. Proj. Historia, Sao Paulo, (21), nov. 2000 255 Tomemos, por exemplo, 0 levantamento de imagens de Santo Expedito feito por Julio Moreno. A imaginaria mais difundida dos santinhos de Santo Expedito é consti- tufda por uma série de variagdes sobre uma mesma referéncia: um homem no que se convencionou ser a indumentaria de legionario romano, colocado no centro, rodeado por uma paisagem nitida, enfumacada ou por um simples fundo de cor. A atitude do santo também 6 a mesma, com 0 brago direito levanta uma cruz ¢ com a mao esquerda segura a palma do martirio. Quase sempre a perna direita aparece na frente ¢ a esquerda um pouco atras; em algumas imagens, parece estar caminhando. Os signos e os motivos sao: a capa vermelha, uma cruz com a palavra “hoje” em I , a palma do martirio, a auréola da beatitude, 0 elmo, um corvo que com 0 bico segura uma fita com a palavra “ontem”, também em latim. A imaginaria de Santo Expedito parece datar do século XIX e seguiria 0 padrao de muitas representagdes de santos difundidas na América por missionarios ou imigran- tes curopeus. Uma imagem central rodeada por uma série de elementos narrativos de seu contexto cultural, associada a signos ¢ motivos mais ou menos conhecidos que caracterizam as propriedades do santo (ver figuras 4 ¢ 5). Durante anos, a imagem tem sido copiada. Algumas mudangas se produziram, a paisagem e as construgdes, que seriam uma referéncia ao Império Romano, foram substituidas na imaginaria recente pelos templos e lugares de devocdo ao santo (ver figura 6). Algo parecido acontece com 0 rosto, que pode ser jovem ou maduro, ter barba, penteado e tragos distintos. Outros elementos se mantiveram, como a armadura, 0 saiote, as sandalias, que o iden- tificariam como legionério. A capa vermelha também permanece ¢ hoje seria um dis- tintivo do santo, inscrevendo-se em outra simbologia: a das roupas dos super-heréis das histéria em quadrinhos e do cinema. A representagao de Santo Expedito, hoje, est4 sendo atravessada pelo crescimento da devogao e pelas diversas intervengGes dos agentes desta. As estampas esto mudando para responder ao imaginario construido pelos devotos e as associagSes atuais. O santo ja no esté mais referido a seu suposto contexto histérico, a seu martfrio em Arménia por confessar a Jesus, mas as igrejas e templos onde € reverenciado. Na imagindria da devogdo, a figura, os motivos ¢ os temas aos que esta associada, estao sujeitos a variagdes, adequagdes ¢ modas, tributarias da estética determinada pelo projeto de comunicagdo que conduz a devogao. O que é admitido sem muita dificuldade pelos devotos. O que recentemente foi mostrado por estudo realizado sobre os santinhos 256 Proj. Histéria, Sao Paulo, (21), nov. 2000 Figura 4 — Estampa de Santo Expedito, contendo oragiio, Grifica Reymar, Sao Paulo. In: Julio Cesar Moreno. A devogao a Santo Expedito na cidade de Sao Paulo Figura 5 - Estampa de Santo Expedito, contendo oracao, Grafica Santana, Sao Paulo, In: Julio Cesar Moreno. A devogdo a Santo Expedito na cidade de Sao Paulo, Sao Paulo, (21), nov. 2000 257 Cee SANTO EXPEDITO Figura 6 — Estampa de Santo Expedito, contendo oragiio ao poderoso Santo Expedito, Grafica Santo Expedito, Paulo, In: Julio Cesar Moreno. A devogdo a 0 Santo Expediio na cidade de Sao Paulo. de Nossa Senhora Aparecida’® (ver figuras 7- 8). A devogio vai, pois, compondo a representacao, alterando a imagem, aproximando-a do presente e do que faz sentido, carregando-a de simbolos faceis de reconhecer. Terceiro, a imagem religiosa multiplicada, feita santinho de gesso, madeir: papel ino ocupar espagos ou mesmo imagem virtual na tela do computador, tem como des onde seré carregada de sentidos particulares explicitos ou nao, definidos pelas diversas praticas de veneragdo. Nos santuérios, nos oratérios domésticos, na cabina de um ca- minhao, na vitrine de um negécio, na mesa de um escritério, na carteira ou mesmo perdida em um livro de rezas, a imagindria das devog6es cumpre fungdes particulares ¢ expressa significados. Ainda, sendo a reprodugao gréfica ou virtual ilimitada, as pos- 10 Lourival dos Santos. Igreja nacionalismo ¢ devogdo popular: as estampas de Nossa Senhora Aparecida 1854-1978, Departamento de Histéria, USP, 2000, dissertagiio de Mestrado. Este trabalho reine © analisa uma das mais completas colegdes de estampas de Nossa Senhora, apontando para as variagdes € transformagdes, desde a primeira, impressa na Europa sem conhecer a imagem achada no rio até as que trazem a imagem apés a restauragiio de 1978, 258 Proj. Histéria, Sao Paulo, (21), nov. 2000 Figura 7 — Primeira estampa de Nossa Senhora Aparecida, impressa na Franga, em 1854, a pedido de Dom Anténio Joaquim de Melo. In: Lourival dos Santos. Igreja nacionalismo ¢ devogao popular: es esiampas de Nossa Senhora Aparecida 1854-1978. Proj. Histéria, Sao Paulo, (21), nov. 2000 259 260 Figura 8 — Nossa Senhora Aparecida em cartaz de 1972, em comemoracao aos 150 anos da Independéncia. In: Lourival dos Santos. Igreja nacionalismo e devocao popular: es estampas de Nossa Senhora Aparecida 1854-1978. Proj. Histéria, Séo Paulo, (21), nov. 2000 sibilidades de circulagao da imagem e de presenga em muitos lugares também se mul- tiplicam. Independente dos detalhes de sua iconografia, a imagem passa a ser definida pelo seu uso e pelas expectativas depositadas na intervengdo do santo. Ela pode estar signi- ficando protegdo, agradecimento, referencial de identidade, etc. Presente no quotidiano do devoto, a imagem aponta para a existéncia de um vinculo, de uma meméria, que bem pode ser a obtengfio de uma graga ou a lembranga de alguém morto. Estas variadas significagdes exigem muitas vezes que a imagem adquira denotagdo através de um texto, que, no caso dos santinhos de papel, pode ser a oragdo ao santo ou as circunstanci da impressdo, como nas estampas de falecimento. Porém este vinculo da imagem com seus usos pode fazer com que as diversas manipulagées levem a que seja absorvida pela dimensio de objeto de poder. Assim, acreditando-se na sua eficdcia, ela passa a ser utilizada em pequenos rituais que res- pondem a diversos fins. Adquirindo carater magico ela pode terminar se juntando a talismas ou objetos nos que se acredita que protegem e trazem sorte. A pesquisa sobre Santo Expedito, realizada na PUC-SP, nos proporciona ricos ele- mentos na definigéio da imagem do santo e dos seus usos. Como pode ser apreciado na figura 6, a imagem do santo continua trazendo 0 legiondrio romano ¢ os emblemas do santo. A devogao tem enfatizado em Santo Expedito sua capacidade em atender rapidamente, “hoje”, os pedidos solicitados. Assim se denota na frase do santinho ¢ na oragdo no verso, Santo Expedito € o santo das causas ¢ negécios urgentes. Por causas urgentes a pesquisa indicou tratar-se de 44,93% de pedidos de ordem econémica (em- prego, negécios, dividas) e 23,27 de satide e cura (Moreno, 2000, p. 79). Além disso, nos tltimos anos, aquela prontidao do santo tem sido identificada como simbolo de poder, 0 que também fica explicito em uma frase presente nos santinhos “o poderoso Santo Expedito”. Porém niio basta colocar em palavras os poderes do santo, é importante que eles se traduzam na imagem que, de alguma forma, deve remeter aos imagindrios de poder ou de agdes poderosz dos contemporaneos do santo. Para os que observam hoje, em um dos santinhos mais populares (ver figura 6), aquele homem embrulhado em uma capa vermelha, ¢ mais facil lembrar 0 Super-Homem ¢ seus poderes extraordindrios que um legionério romano. Assim, a capa se reveste de novos contetidos de poder facilmente identificdveis. O Super-Homem, guardiio da humanidade, sempre vigilante para aparecer com seu poder aos fracos e necessitados. Isto se aplicaria igualmente ao Proj. Histéria, Sdo Paulo, (21), nov. 2000 261 corpo de proporgées gencrosas, que remete a forca e a aptidao para a luta que devem caracterizar o heréi. Ainda para afirmar o trago guerreiro 0 gesto decidido com a cruz, que evoca uma espada “hoje”, reforgado em alguns santinhos pela frase “o santo das causas urgentes”, assinala com todas as letras as caracteristicas atuais do santo ¢ a fonte de seu poder. Assim, sendo exibida em sinal de adverténcia ou ameaga. Finalmente, a evidéncia do ante emblemas que hoje pouco significam, outros s&o transformados em vefculos da mensagem que se quer dar: Santo Expedito é um refuigio para os desesperados inyo- cé-lo € trazer de novo a de esperanga de solugdo dos problemas urgentes de forma eficaz. Sem importar rosto ou emblemas, o santinho do guerteiro com a capa e empu- nhando a cruz tem-se transformado, em grandes cidades como So Paulo, em onipre- sente. Ele esta em todo lado, exposto em vitrines e paredes ou oculto em carteiras e bolsos. Colocando em evidéncia, pelo uso da imagem, a pratica de uma devocao de grande crescimento. Mais que 0 santo com sua histéria de martirio por causa da fé, é © santinho que se tem ido carregando de contetidos protetores. Ao mesmo tempo, sua presenga em qualquer parte j4 6 mensagem clara para os iniciados e devotos que ali houve ou ha uma grande necessidade. Concluindo, a imaginaria das devogGes, particularmente as estampas ou santinhos, que se multiplicam desde 0 século XIX, apresentam uma série de particularidades ¢ exigén Aparccida, a maioria das imagens dos santinhos se repete, e nao € facil perceber c s para 0 trabalho do historiador. Excetuando casos como os de Nossa Senhora interpretar suas mudangas e nuangas. As estampas adquirem, no ambito da devogio, o cardter de ex-votos e assim aparecem em um universo de comunicagdo triangular entre © santo, os devotos e possfveis interessados que, gragas ao testemunho, podem ser 10 de usos, da ganhos para a devogdo. As imagens também se inscrevem em uma te qual nfo est excluida sua utilizago como objeto de poder. Bibliografia Francastel, P. A realidade figurativa. Sao Paulo, Perspectiva, 1993. Moreno, J. C. A devogio a Santo Expedito na cidade de Sdo Paulo. Dissertagio de Mestrado apresentada ao Programa de P6s-graduagéio em Ciéncias da Religidio da PUC, Sao Paulo, 2000. 262 Proj. Histria, Sao Paulo, (21), nov. 2000 O Sagrado Ecuménico © Geral Coneflio Tridentino cm Latim ¢ Portuguez. Santa Maria, Frei Agostinho de. Santudrio Mariano. Lisboa, Anténio Pedroso Galram, 1707-1723, vols. IX e X . Santos, L. dos. Igreja, nacionalismo e devogdo popular: as estampas de Nossa Senhora Aparecida 1854-1978. Dissertagdo de Mestrado apresentada ao Departamento de Hist6ria, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciéncias Humanas da Universidade de Sao Paulo, 2000. Proj. Histéria, Sao Paulo, (21), nov, 2000 263

You might also like