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TEXTOS DE ERUDIGAO & PRAZER A Morte dos Deuses, Michel Henry A Morte nos Othos, Jean-Pierre Vernant Dioniso a Cau Aberto, Marcel Derienne Maneiras Tiésicas de Matar uma Mulher, Nicole Loraucc | Nicole Loraux MANEIRAS TRAGICAS DE MATAR UMA MULHER Imaginario da Grécia Antiga Traduzido por MARIO DA GAMA KuRY ‘SBD-FFLCH-USP AUN Jorge Zahar Editor Rio de Janeiro es C04ges s- DEDALUS - Acervo - FFLCH-FIL 21000048613 ete, etree Tne SB Copies tate Capit 188 aro ater: Jorge Zahir Eior Lada. ito Spat catia peoe as | Sumario Prologo Distribuigao Maneiras tragicas de matar uma muther A Corda eo Glidio Um suicidio de mulher por uma morte de homem 27. ‘Uma morte desprovida de andreia 29 A ineisio no corpo viril 33 Enforcamento ou sphagé 36 Acesposa que se langa 42 Osiléncio eo segredo 48 No thalamos: morte e casamento 51 Morror com 53 Acgloria das mulheres 56 sangue puro das virgens Sacrificios em que é bom pensar 64 Novilha, poldra: domadas 63 Da exectgdo como casamento 72 Liberdades virginais 60 Aegloria das mogas 88 91 Lugares do corpo O ponto fraco das mulheres 92 Enumeragdo do corpo viril 97 Aalternativa de Polixena 101 116 Notas 139 Sobre a autora Prélogo “Mortes representadas em cena, grandes dores, ferimentos”: acontecimentos da tragéatia, espe- téculos para os olhos. Considerando os exem- plos dados por Aristételes para ilustrar sua definigio do pathos trégico como “agda causa dora de destruigao ou dor” !, quem poderia duvidar um instante sequer de que, no teatro ateniense, a morte nao tenha sido realmente exposta a visto do espectador? Thanatdi en t61 hanerdi: agonias em ptblico, assassinios ante dos olhos de todos... Lendo mais uma vez com perplexidade a frase de Aristételes, tomo at decisio de advertiro leitor de que, nas pégi has seguintes, o ouvinte da wagédia leva vantagem sobre o espectador: tudo passa pelas palavras, porque tudo se passa nas palaveas, principalmente a morte, Investigando as mo- dalidades trégicas da morte dus mulheres, nada encontrei que seja visto ou que seja primeiro 7 visto. Tudo comegou por ser dito, por ser ou- vido, por ser imaginado — visio nascida das palavras e presa a elas. Assim, ao empenhar-me €m um longo exercicio de leitura, tentei captar, pura e simplesmente, aquilo que dava de ime- Giato a0 puiblico antigo 0 gozo intenso do pra- zer de ouvir. Palavras lidas para substituir ou mesmo para reencontrar as palavras ouvidas, aquelas que a representagio trégica oferecia 2 escuta ativa do piblico ateniense, Palavras de duplo ou miiltiplo sentido, Em sintese, texto, nada mais {que texto, Pode ser que contar “muito mais com ‘a imaginacio que com a vista, mais com 0 ouvido que com 0 olho” * seja uma escolha minha, mas que importa? Na Atenas do séoulo V a.C, essa foi a escolha do género trigico. Nio tentarei prové-lo, Precisaria para tanto de ‘mais que um prélogo, e somente por prazer, ou de meméria, evocarei algumas das razdes que Jevam a colocar a tragédia sob o signo da es- cut. "Hi inicialmente, as razies do historiador, Seria necessétio evocar o apego decicidamen- te etimoldgico dos gregos a sua lingua eo amor que eles demonstram por suas palavras (que eles chamam de ‘“‘nomes”). Conviria lembrar até que ponto, no século V ateniense, as regras da escuta dominam esses discursos cfvicos que denominamos um pouco impropriamente g¢- neros literdrios. Ouso mesmo formular a hip. tese de que, no teatro de Atenas, a escuta era, para o piiblico da representagio trigica, como que uma leitura muito refinada, & altura da “profundidade” do texto’. Se o espectador anti> go, tal como gostamos de imagins-lo depois de ler Jean-Pierre Vernant, tiver sido esse espec- tador de ouvido apurado para quem a “lingua- gem do texto pode ser transparente em todos os niveis, em sua polivaléncia e em suas ambigitidades” + entio temos de atribuir a esse ouvinte onipotente uma atengio da qual o mf imo que se pode dizer € que ela quase no tinha flutuagdes, uma meméria por nés total- mente esquecida e a capacidade espantosa de realizar o longo trabalho sobre o significante durante 0 curto tempo da representagao teatral. o, talvez, mas ficgao necessaria. Podemos entio formular a hipétese de que, arrebatado pela profundidade polissémica do texto, 0 leitor se empenha na intermindvel busca das palavras em eco. © historiador if se afastou na ponta dos és. Resta 6 texto e, diante do texto, seus usu- {irios muito contemporaneos. Na primeira linha destes esto 0 diretor e os atores. Nao espere- mos, entretanto, que eles tomem a dar um cor- po 2 idéia de espetdoulo®. Por pouco que seja > interrogado, o dietor confessaré a dificuldade ‘que enfrenta para convencer os atores a dizerem —a.somente dizerem e sobretudo a nfo repre sentarem — as grandes unidades textuais com- ponentes de uma tragédia: 0 coro co Agamém- ‘non sobre 0 sacrificio de Ifigénia, a narragao da morte de Dejanira nas Traquinias ou a imola- giio de Polixena na Hécubet, Resta 20 leitor, enti, accitar até o fim a aposta no texto, Leitora de tragédias, nfo tive alids escotha. Fui constrangida a isso desde que, procurando tragar as vias trigicas da morte das ‘mulheres, tive de admitir que essas vias eram textuais. Nada encontrei além da natragio, Como se 86 se pudesse confiar a morte das mulheres as palavras, como se apenas as pal yas soubessem leva-la a temo, Para isso hi seguramente razées hist6ricas, razdes de civ lizago: uma mulher grega vivia sua existéncia de moga, de esposa e de mie no lugar mais recOndito da casa; ela também devia partir desta vida de sua casa bem fechada, ao abrigo dos olhos, longe de todo o piblico, Mas, seja como for, a decéncia, ainda que sociolégica, nunca bastou para explicar tudo. Nao ¢ dificil admitir que os sactificios das virgens — este puro desvio — s6 possam rea lizat-se no terreno da narragio; a tragédia co- loca as mogas em cena apenas para dela tiré-las 0 f-tas, long degolador: execueao escandalosa, ficgao satis- fatéria narrada passo a passo pelos mensagciros em linguagem técnica cujas palavras carregam © impensdvel com todo © peso do real. Faz bem matar as mogas em pensamento, em narragio, Mas hi também o suicidio das esposas, que vem complicar tudo, porque € revelado também pela narragio, © nao pela visio. Estardo essas desesperadas realmente cometendo uma espé- cie de transgressio, para terem de voltara ocu par precipitadamente seu lugar — sombrio, oculto, fantasmiético — para entiio encontrarem 4 morte cuja narrago ao piblico dependeri de uma ama ou de um servidor? E nessa reticéncia em mostrar a morte que a invenci feminilidade encontra, sem divida alguma, seu limite, com essa maneira que as esposas perdi- das tém de voliar ao seu lugar para rematar uma ortodoxia. Mas isso ndo € tudo: recorter & or- dem da linguagem* para matar Pedra ou Deja- nira talvez seja uma das dimensdes constituti- vas do trigico em sua definigiio grega, Ao menos no se deve subestimar o beneficio imagindrio muito real que essas mortes apenas ditas deviam trazer a um ptblico de cidadios, Dessas mortes postas em palavras direi sem hesitar o que Baudelaire dizia do belo, definido como “prestando-se a conjecturas”: a morte- u narragio presta-se infinitamente mais a con- Jecturas que as violéncias exibidas diante dos olhos. Para o cidadio de Atenas, a apresentagao teatral das mulheres ja é, em si mesma, uma ccasido admirdvel para pensar a diferenga dos sexos: mostrd-la para confundi-la e depois re- encontré-la, mais rica apés haver sido confun- dida, mas ainda assim consolidada ao ser rea- firmada no iiltimo instante, Pelo fato de nela se dramatizarem e se condensarem todos os momentos dessa histéria, a morte de uma mu- Iher € a ocasido por exceléncia para essa ope- ragdo imaginéria, ainda mais porque a tragédia usa para dizé-Ia palavras de miltiplos sentidos que, de certo modo, “sabem’” *, Palayras precisas, como aiora e diresthai, dotadas de sentido técnico na linguagem reli- giosa ou sacrificial’; palavras muito gerais como bdinein, designagio neutra da agao de marchar (“ela partiu, a esposa...”); nomes de lugares do corpo — a garganta, por exemplo. A tragédia usa todas essas palavras da lingua e as transforma para fazer delas a trama de um discurso bem audivel que, sob a narracao, fala ainda e sempre da diferenga dos sexos. Foi na tradugdo liveral dos textos que procurei aquilo que, no seio da representagiio trégica, se passa 0 nivel das palavras quando um mensageiro conta a morte de uma mulher, Mas passemos a0 texto, n gostaria, entretanto, de iniciar essa leitura prolongada sem antes agradecer, por suas su- gestdes € observacées, todos aqueles a quem expus a totalidade ou parte destas pesquisas em meus semindrios na E.H.ES.S., nas universi- dades de Toulouse ¢ de Trieste, na Cornell University, em Princeton e em Harvard. Agra- ego principalimiente Aqueles que, convidando- me a falar da morte trégica das mulheres, de- ram-me a oportunidade de escrever estas pai- nas: Gregory Nagy em primeiro lugar, e Clau- dine Leduc! Agradeco finalmente a Maurice Olender por acolher-me na colegio “Textes du XX" Sitcle”, por ele dirigida. Nota do tradutor: Em relagio aos nomes préprios gregos, a auto- Ta.usa geralmente a forma tradicional francesa, B como Achille, Ajax. As vezes, entretanto, opta pela tansliteragio (preferida pelo tradutot e adotada em seus trabalhos anteriores: Heraclés, Técmessa, Teucros, Macaria). Respeitando 0 critério usado predominantemente pela autora, € com vistas & uniformidade dentro de uma mesma obra, seguimos a forma tradicional portuguesa, dando entre purénteses, na Distri- buigto anteposta & obra, a transliterago dos nomes gregos: pot exemplo, Aquiles (Aqui- leus), Ajax (Aias). 1“ Distribuigéo* Apwesro: (Adietos) Maid de Als, Ver Eades, Aleste, ‘AGAMIPMNON: Rei do Argos e comandante da expedigao src Tin Scie ss fa gS 8 ¢ mono por us mnie Ccmnea Ver Atandnaon Cars uy Migénia ein Audis. 3 a cos (0) Ramin, Reaper aso Spies cam eu gl. Ver Sooctan fi, Avera (Recs A tor sues sea de Adnan Testi acta porte Ing do seu maa a poe Macs 2 i dvd nfo dais dei a ci Tate Nowe, Ver Eri, et AANTICONK: —___(Aign) Pba apo 6 oa, Por Senior de ott, core ‘oma deste Jn aera coiled ‘oman, cra Pls contains * Osperiongens, sm hia trigia ea megio is poses das quis Ao protagonistas e que serio chtadas, ee 15 apés a batalha 0 espartano Arist6damo foi pri- vedo por seus concidadios da gléria péstuma de uma citagio por ato de bravura. Espartano ‘ou ndo, um guerreiro suicida-se apenas sob os golpes da desonra — este é 0 caso de Otriadas no livro I de Herédoto, e de Pantites no livro VIL Essas constatagbes sio ecoadas pelo Plato. das Leis, pensador normativo mas fiel A conve- nigneia civica, que inflige ao suicida, por “fal- ta absoluta de virilidade”, a sangio institucional de uma sepultura tio solitéria quanto esquecida, a margem da cidade € na noite do anonimato (IX, 873 c-d), Acrescentar-se-4 —o que nio é indiferente — que falta de um nome especi- fico para o suicidio, a ling usa para designar esse ato as proprias palavras referen- tes a0 assassinio dos pais, esse ciimulo de ignomfnia® ! O suicidio, entio: morte trigica, talvez, escolhida sob © peso da pressiio por aqueles sobre 0s quais se abate “a dor excessiva de um infortGnio sem saida”®, Na travédia, sobretudo morte de mulher. Mas hd uma modalidade dessa morte, jd depreciada em si mesma, mais que as outras marcada pela infémia e mais que ais outras associada a uma desonra sem remé- dio: refiro-me ao enforeamento, morte hedion- da ou, falando com maior propriedade, morte “informe” (dskkemon), mécula méxima que 30 uma pessoa se inflige sob golpe da vergo- nha’, Considera-se também — mas seré isso verdadeiramente um acaso? — que o enforea- mento € morte de mulher: morte de Jocasta, de Fedra.e de Leda, morte de Antigona (e, fora da ‘ragédia, morte de intimeras mogas que se en- forcam para dar a um culto sua origem ou para ilustrar os enigmas da fisiologia feminina)}, Oenforcamento, morte feminina, Ousatia mesmo dizer que nele a expresso da feminili- dade pode desdobrar-se infinitamente: as nu- heres eas mogas sabem que a corda — instru- mento usual do enforcamento — pode ser substituida, como em Antigona estrangulada no lao feito de seu véu, pelos adomos com que se Cobrem e que siio emblemas de seu sexo. Véus, cintos, faixas: esses instrumentos de sedu constituem virtualmente armadilhas de morte Para aquelas que os usatn, como as Danaides uplicantes explicam ao rei Pelasgo" em suma, proveitando a expressiio vigorosa de Esquilo, hii nisso uma bela astiicia, mekhané kalé, em que a peiths (@ persuasio) erdtica se poe a ser- vico da mais sinistra das ameagas. Nio insistirei aqui na convivéncia da mulher com o campo da métis, essa inteligéncia ‘ustuciosa caracteristicamente grega. Todavia, milo se deve esquecer que toda ago realizada por una mulher, esteja ela armada com o glédio at tirado do né fatal para ser estendido na terra como convém, esse corpo que ela quis usar como prova contra Hipélito € que, mudo para sempre, leva todavia a mensagem da ausente”, Essa € sem divida uma maneira bem feminina de apresentar a propria morte, De fato, com Ajax, cujo cadaver € um elemento dramatico pelo menos tio importante quanto o de Fedra, ts coisas se passam de maneira diferente, ¢ & distribuicto do ver e do ocultar é decididamente outra: se Ajax € 0 paradigma viril do suicidio, ‘conseqiientemente um homem tem o direito de suicidar-se diante dos espectadores®. Mas, pela rounstancia de sua morte ser apenas uma jmitagdo canhestra da morte gloriosa do guer- reito, o interdito de ver aplica-se a seu corpo. iAntes de comegar entre os chefes do exército 0 debate sobre a conveniéncia de “oculté-lo” em yma tumba, Téemessa € depois Teucro, cada um a sua maneira, esforgam-se por dissimular 6 espetielo tio doloroso quanto inconve- niente®. Deve-se enfim mencionar 0 vaivém entre over € 0 ocultar que se instaura a propdsito de ‘Aloeste, morta em substituiggo a um homem. ‘Aleeste que morre em cena € cujo corpo, inici- ‘almente levado ao interior do palicio, ser4 no teatro objeto de uma longa préthesis (expos! Gfio) antes de 0 cortejo funebre (ekphord) retic Fy ré-lo da vista — definitivamente, acredita 0 coro, ¢ & verdade que, sem a intervengdo de Heracles, Alceste teria desaparecido para sem- pre®. Mas Alceste, a nica a nfo ir para o Hades, é uma excegio; sto intimeras as mu- Iheres trégicas que partem para ld sem retorno. No thdlamos: morte e casamento Voltando sobre nossos passos, detenhamo-nos por um instante na porta desse lugar bem fe- chado onde uma mulher se refugia para morrer Tonge dos olhares. Com seus sélidos ferrolhos, que tém de ser forgados para se poder chegar até a morta, ou melhor, ao corpo de que ela ja escapou, esse lugar indica o pequeno espago da autonomia coneedido as mulheres pela tragé- dia, Sempre suficientemente livres para matar- se, elas no o so para escapar a seu enraiza- mento espacial: o retiro recdndito onde elus se matam é também o simbolo de sua vida, vida {que tira sen sentido fora de si, que sé se realiza nas instituig6es — easamento, maternidade — que ligam as mulheres ao mundo e & vida dos homens, E € pelos homens que as mulheres imorrem, € pelos homens que elas se matam com maior fregiiéncia®, Por um homem, para um homem: distingio ausente em muitos tex- st tos, mas que Séfocles sublinhia com uma aten- ao especial, na Antfgona, onde Euridice mor- re por seus filhios mas por causa de Creonte, nas Traquénias, onde Dejanira morre por causa de Hilo, por amor de Héracles, Assim a morte das mulheres confirma ou restabelece sua relacdo com 9 casamento e com a maternidade. E tempo de denominar o lugar onde elas se matam: trata-se precisamente do aposento conjugal, ozhdlamos. Dejanira se precipita nele como faz Jocasta, Aleeste derrama nele suas {ltimas légrimas antes de enfrentar TAnatos e, saindo do palicio para morrer, é ainda para esse lugar que ela voltard seus pensamentos e seus queixumes. Quanto A pira de Capaneu, onde Evadne se langa para reencontrar nela a ut eamal com 0 marido, ela é chamada de thala- ‘mai (cimata fiinebre), Essa patavra condensa as miltiplas afinidades de sua morte com as nip- class, Entretanto, se 0 thdlamos € a parte mais rec@ndita da casa, hi ainda no interior do thala- ‘mos 0 leito, lekhos, lugar de um prazer tolera- do pela instituigo do casamento se for bastan- te moderado, lugar sobretudo da procriagio. Nao hé morte de mulher que no passe pelo leito: € 14, e somente 14, que Dejanira e Jocasta podem, antes de matar-se, reiterar para si mes- mas sua identidade®, B14 também que morre 2 Dejanira, na cama que ela havia associado demasiadamente aos prazeres da nymphe: ma- tando-se como um homem, niio se morre menos por isso em seu leito quando se é mulher, Enfim, prendendo sua corda 20 teto do aposento conjugal, Jocasia e Fedra atraem a atengao para o madeiramento simbélico da casa, Essa viga da cumeeira, conhecida na Odisséia como mélathron, 6 chamada de 42ramna por Euripides; ela pode designar meio- nimicamente o palécio pensado em sua dimen- sao de verticalidade. Mais ainda: de Safo can- tando 0 epitalamio (umes, espintiros,levanai wiga dott (ativan), Hime ol saga entando a easa mapa om novo igual « Ares) até Euripides, parece realmente que essa viga tem muito a ver com o marido, cuja alta estatura cla domina e protege, Ocasiao talvez de re- lembrar que, em seu discurso mentiroso, Cli- temnestra chamava Agamémnon de “coluna que €o sustenticulo do alto teto” (Agamemnon, 897-898). No momento de saltar no vécuo, 6 a presenga ausente do homem que a mulher en- contra pela tiltima vez em cada ponto do thd- laos. 3 esposas por falta ou excesso, Fedra, Dejanira, Aleeste ou Evadne ngo deixam de morrer sob 0 signo do casamento, Sem diivida € preciso aczitar que constantemente a tragédia se afasta da norma em proveito do desvio, sem que nun- ca se tenha certeza de que, sob o desvio, a nor- ma nio esteja silenciosamente presente. Tam ‘bém tentamos simultaneamente as dues leituras possfveis: aquela que faz 0 inventério de todas as distorgdes que, do seio de um sistema de valores, € possivel aduzir a esses valores, € aquela que dé ouvidos a uma voz as vezes dis- sonante no conjunto grego dos /dgoi sobre as mulheres. Sangue Puro das Virgens Entre as mogas em floré o sacrificio e 0 sangue derramado que dominam, Por terem menos autonomia que as esposas, mesmo no universo trigico, as virgens nao se matam; so mortas. Generalizando dessa maneira, ndio esque- ‘go que existe ao menos uma virgem que forne- ce um desmentido categérico-a tal proposigiio: refiro-me certamente a Antigona que, nao se contentando com matar-se, mata-se como as esposas lacrimosas, buscando no enforcamen- to um iiltimo recurso, A dificuldade € real, € seria inditil tentar atenué-la, No mfnimo convém proceder a uma andlise meticulosa das condi- GOes inerentes A consumagao da morte de An- tigona, onde se misturam inextricavelmente um suicidio bem feminino e algo como um sacrifi- cio fora das normas, Embora tena tido, em sua opinido, o cuidado de nao comprometer nem sua responsabilidade pessoal nem a da cidade, 6 Creonte condenou inapelavelmente Antigona 20 Hades, vitima humana oferecida aos deuses infernais para que eles se apoderassem de sua jovem vidas; sepultada viva, a filha de Edipo estava condenada a morrer asfixiada e, no lago feito com seu véu de virgem, ela anteciparé a asfixia por outra via. Seu proveito com isso inventar sua propria morte e condenar Creonte & mécula que ele queria evitar. Mas o sentido desse enforcamento niio se esgota no gesto pelo qual Antigona, fiel & légica das heroinas de Séfocles, escolhe morrer por suas préprias milos e converte em suicidio 0 que seria uma execugiio: matando-se como as mulheres bem femininas, a moga reencontra na morte tanto uma feminilidade que enquanto viva renegara com todo o seu ser, como um tipo de nips Voltarei a essa questo, Mas, nessa morte ex- cepcional, 0 importante era acentuar antes de mais nada o aspecto de excecdo € a estranha norma que determina que se executem as vir- gens na tragédia, n Essa € realmente a norma, ou aquilo que parece ocupar o seu lugar no universo tragico: um sacrificio, geralmente sanguinolento, cuja vitima é uma moga. o Sacrificios em que é bom pensar Examinemos a morte de Iigénia sob 0 cutclo do sacrificador, morte paradigmética que nenhum dos trés grandes trigicos deixou de evocar, ¢ mais de uma vez, A morte de Ifigénia: lum sacrificio, mas cuja vitima é uma moga, nao um animal. Simples detalhe? Poder-se-ia crer que sim, observando que, para dizer a morte de Tfigénia, a tragédia recotre de bom grado aos verbos sphazo e thyo, normalmente usados para significar 0 degolamento eo ato do sacrificio, Mas hi textos que nos levam aver nesse det: The uma monstruosidade e nos fazem pensar essa morte sob a categoria do assassfnio (Phonos)*. Sacrificar uma virgem: numa palavra, valer-se do jogo teatral para pensar o impens&- vel, plantar-se no ctimulo da alienag#o para interrogar ali a norma a partir do desvio —direi eu: sob a protegio de um desvio que se mostra muito evidentemente como tal? Atenta em mascarar 0 assassinio oculto no sactificio, a pritica religiosa das cidades esforgava-se para que o degolamento do animal fosse submetio & uma encenagao rigida®, Pulverizando essas piedosas precaugdes, 0 género trégico, & escu- {a do mito, entrega as mogas ao cutelo do de- Golador. E o impensdvel torna-se narragio (pois “ porque nenhuma substituigdo deve suavizar in exiremis scu destino, a jovem recebe um trata- mento principalmente metaférico: ela é a novi- Thade Hécuba, mas também é sua “poldra’” (po- Jos)”, Detenhamo-nos um instante nesta tltima palavra, ainda que seja para evocar outras situ- agées muito semelhantes onde ela é usada igualmente para caracterizar uma vitima jovem: trata-se do filho de Creonte, Meneceu, candi- dato 20 sacrificio e, também ele, identificado ‘com um potro (Fenicias, 947); mas também ocorre uma inversio da metéfora, transportada um universo — como o da historiografia — onde a parte do real é mais compulsiva: jé n 6 amoga que € uma poldra, e sim a poldra que € uma virgem, como compreenderd Pelépidas ‘que, convidado a sacrificar uma “virgem lou- ra”, saber decifrar o orfculo imolando uma poldra ruca (Plutarco, Peldpidas, 20-22). Da mesma forma que 05 animais selva- gens ou asselvajados, 0 cavalo no é uma viti- ma ordinéria de sacrificios — ele tem seu lugar nos sacrificios militares, um lugar incontesta- velmente mais ambiguo que o da cabra. Trata- remos todavia de polos e das conotagées espe- cificas dessa palavra, que niio cobrem necessa- riamente o campo das representagdes associa- das ao cavalo. De fato, se nos interrogarmos sobre aquilo que faz de Polixena e de Meneceu 0 y uma ou um polos, deveremos deslocar a tonica, da polaridade do selvagem edo doméstico para a oposi¢Zo entre o que ja est4 domesticado e 0 que ainda ndo esta, Polixena é poldra indo- mada, Meneceu € potro nfo preparado; essas ‘metéforas nao indicam somente que ambos so vitimas designadas para um sacrificio anémalo; sugerem também que estiio como se fosse na expectativa do casamento, Em suma, para eles como para Ifigénia em Aulis, hé uma estreita interago entre o casamento € 0 sacrificio. A espera dessa domesticago que é 0 casamento, a moga assimila-se naturalmente a uma égua indomada, a uma novilha ainda desconhecedo- ra do jugo”; mas, por definicao, a vitima do sacrificio deve ser também livre do jugo, ¢ é naturalmente — cingindo-nos ao menos A tra- ma metaférica do texto — que, prometidos & decapitagio, péloi e maskhoi trocardo 0 casa- mento pelo sacrificio®. Nao devemos entretanto enganar-nos: se, para Ifigénia e para Polixena, o casamento in- tervém no sacrificio, convém ver nisso mais que um jogo de poeta sobre uma metifora sig nificante, De fato, se o tema do sacrificio se ordena em tomo de uma metéfora ligada a ani- mais, € porque, como a vitima, a moga é sub- missa, passiva, dada, conduzida. Digamos com maior precisio que os sacrificios tragicos es- a clarecem o ritmo muito cotidiano do casamen- to, pelo qual a virgem passa de um kyFios (tu- tor) a outro, do pai que a “da” ao marido que a “conduz™, Ironia trégica dos cortejos ftinebres que deviam ter sido nupciais— o de Ifigénia, 0 de Polixena, também o de Antfgona® —, casa- mentos ao inverso por levarem a um sacrifica- dor que é freqiientemente o prdprio pai — ¢, ver-se-4 mais tarde, para a casa de um marido chamado Hades. Ironia trégica 0 gesto do filho de Aquiles, “tomando pela mao” Polixena para pé-la no alto do sepulcro de seu pai, Quando a vitima € uma virgem, o sactificio € tragic: mente irdnico, por assemelhar-se demais a0 casamento, Da execuco como easamento Para esclarecer essa semelhanga, nao nos apres- saremos a relaciond-la com qualquer sistema geral em que Eros se comunicaria com Ta tos, Com efeito, se generalizarmos muito depressa, se nos contentarmos com a satisfagio que experimentamos com a descoberta da “evi- déneia de algumas grandes leis universais”, ar- riscar-nos-emos pura e simplesmente a esque- cera lingua — grega, mas sobretudo trigica — onde se enuneia a equivaléncia da execugio & n do casamento, Ao fmpeto interpretativo prefe- rir-se-4, entio, uma vez mais, a lenta caminhada na literalidade do significante trégico, Uma primeira figura impée-se imediata- mente: as virgens conduzidas & morte so es- pposas para Hades. Nas representacdes partilha- das da vida social, cabe morte ser metéfora do casamento porque, durante todo 0 cortejo nup- cial, a moga morre por si mesma: tanto é assim gue em Loeris as noivas deviam imitar Persé- fone raptada pelo esposo vindo do mundo subterraneo®, Beneficio incompardvel da fic- 40: consagrando as mogas & morte, a tragédia inverte a ordem usual do discurso; indo contra a metéfora, as virgens trdgicas chegam 8 mo- tada dos mortos como se trocassem a casa pa- terna pela do marido®, quer soja seu destino encontrar, sem maior precisio, 0 “casamento no Hades” (Eurfpides, Trotanas, 445), quer seja encontré-lo na unifio com Hade: Casamento no Hades, unio com Hades: no fimago do sacrificio ou da execucaio, o des- tino tigico das pdrthenot inscreve-se no fundo dessa tensiio do no ¢ do com e, como se toda virgem devesse inclutavelmente realizar-se como esposa, nio existe aparentemente tercei- ro termo para essa alternativa entre uma versio “fraca”” ¢ uma versio “forte” da morte como casamento™, Assim, & no respasse que Ant{- B gona, morta por haver preferido um irmao morto a uma vida de esposa, teri diante de uum casamento, quer se imagine que ela v: “encontrar um marido no Hades”, como sugere Creonte, quer ela esteja destinada sem mais odeios a casar-se com 0 senhor dos mortos: antes de morrer ela dera ao esposo infernal o nome de Aqueronte, nas no discurso do men- sageiro a moga (kore) encontrou 0 proprio Hades em “seu aposento nupeial cavado na rocha”™. Além disso, corpo jé inerte abragado por Hémon, Antigona escapa a0 noivo que entretanto se matard para juntar-se a ela, movido pelo desejo desesperado de desposé-la “na morada de Hades” (S6foctes, Antigona, 1240-1241), Seja ainda Iigénia, vinda a Aulis para casar-se com o melhor dos aqueus, mas que afinal verifica que seu esposo é “Hades ¢ ndio Aquiles™, Mas, com Ifigénia, comega um percurso através das figuras mais secretas, prprias para enunciarem a equago mortal das nfipcias e do degolamento. Um lamento de Agamémnon, suspirando em vao a propésito do destino de sua filha, prenderé especialmente a nossa aien- 80, pois 0 que ele exprime é talvez mais que uma evocagiio dos esponsais infernais de Ifi- génia. Quando o rei brad i Quant dssvenarada vigem — quo digo vrgom (pthenas)? — ales, segundo parece, caare-& com ela dare de pouro tempo” (Gigants em Aut, 450-461, deve-se ouvir nessa exelamagio uma simples variagfio em torno das mépcias de Hades? Ou deve-se dar sentido a reticéncia de Agamémnon e entender que a virgem perde sua virgindade no sacrificio? Esses dois versos da Ifigénia em Aulis nao bastariam por si mesmos para con- firmar a segunda hip6tese. H4, porém, duas outras passagens de Euripides onde uma vir- gem sacrificada, sem ser entretanto declarada esposa de Hades, sofre a perda da virgindade. E © que ocorre com Polixena que, em Euripides, ndo se casa com Aquiles na moste. Polixena, até entéo nymphe prometida a reis © que, em sua altivez, pretende entregar a Hades apenas seu corpo (demas), de forma nenhuma sua pessoa; Polixena que, no instante da morte, di somente que vai “para debaixo da terra, sem esposo, sem himeneu” Ora: uma vez imolada, esta mesma Polixena serd quallificada por sua mie lacrimosa de “esposa sem esposo, virgem que nfo € mais virgem” (nymphe dnymphos, parthenos aparthenos)?, Com Polixena, certamente 0 comentador pouco preocupado em deter-se numa expresso delicada, pode ainda descartar-se desta proje- tando sobre 0 texto de Euripides 0 romance 18 seu epfteto de Lukleia; ela é a gloriosa. Mas, que dizer da gléria das mogas bem mortais (e {que morrem por isso) senfio que ela € como se fosse roubada aos guetreiros que no morrerio, porque o sangue virginal correu por eles? Com efeito, no Aimago do imagingrio trégico resta uma impossibilidade por onde o real retoma seus direitos: a prop6sito da morte das mogas, como pouco antes a propésito da morte das esposas, nfo hé palavras para pensar uma gl6- ria feminina que nfo existam na Kingua da fama viril!”, E semprea gléria faz correr o sangue das mulheres, 0 Lugares do Corpo Beneficios do imagingrio, todavia: melhor ser- vida que a esposa cotidiana ou a moga prema- turamente desaparecida mencionadas nos epi gramas funerdtios — pdlidos fantasmas de dis ‘cursos, cuja beleza jamais é evocada —, a mu- Jher trégica conquista um corpo no jogo da gl6- ria e da morte. Um corpo por onde com certeza yer 2 morte, Mas esta é a regra dos jogos do imaginério: perde-se neles aquilo qué ao mes mo tempo se conquista, Um corpo, nto. Mas um corpo mal ¢o- thecido: em geral mais preocupada com pr ticas institucionais que com esquemas corpo- rais, a reflexio antropoldgica sobre a tragédia nem sempre tem prestado atengo suficiente a esse t6pico do corpo trégico que, de Esquilo a Euripides, se desenha em tomo dos lugares da morte, Para terminer, proponho um levanta- ‘mento desses lugares por onde a morte vem is, on mulheres, descobrindo-os na literalidade dos textos. Com efeito, para realizar um Ievanta- mento semelhante a tinica via é confiar, mais uma vez, na preciso do significante trigico. Precisfo propositalmente clinica; assim, con- irariamente ao que poderiam sugerir traducdes mais desejosas de transpor os textos que de deixé-los 2 sua especificidade grega, o “figa- do”, na tragédia, & sempre exatamente o figado, endo algo parecido com 0 coragio™, e no é indiferente que a morte advenha a Dejanira, ferida no figado, por onde elt vem aos hamens. Mas njio antecipemos. é (© ponto fraco das mulheres ‘Ags olhos horrorizados de Creonte e de seu séquito aparece subitamente — visio brutal, figura do irremediivel — 0 corpo morto de Antfgona “suspensa pelo pescogo”, kremastén Gukhenos (Sofocles, Antigona, 1221). Mas, para evocar as tristes enforcadas, o pescogo no Jago, Euripides recorre mais freqiientemente & palavra dere™, Palayra mais rica, sem dtivida, por ser dotada de uma carga afetiva mais forte: no silencio do abandono, o que a filha de Edi- po prendeu no n6 de seu véu, aukhén, foi 0 pescogo visto pelo lado da nuca; ao contrétio, Dy dere é “a parte da frente do pescogo, a gargan- ta, ponto forte da beleza das mulheres — pense-se na “garganta espléndida” de Afrodite, pela qual, no canto III da Ilfada, Helena re- conhece a deusa, na “garganta delicada” que a amada de Safo gosta de enfeitar de flores, ou no “pescogo deslumbrante de alvura” que, sob 0 olhar da ama, Medéia desvia para chorar — mas é também aquilo mesmo que, na volup- tuosidade do luto, as virgens ¢ as mulheres se comprazem em ferir, unha aguda sobre gar- ganta delicada!™, Dere & tudo isso, ¢ € para a mulher prin, cipalmente o ponto de sua maior fragilidade. E pela dere que se enforea, é também por ela que Yem a morte para as mogas imoladas, Com efeito, nas narragdes de sacrificios dere desig- nna com precisio a parte do corpo onde os ofi- ciantes aplicam o cutelo no instante de matar!, Recordagio da figénia em Tauris: “Ah! Quan- do meu pai infeliz aproximou seu glidio de minha garganta...” Adverténeia de Aquiles & filha de Agamémnon: “Quando vires 0 glédio bem perto de tua garganta...” Garganta de I génia, garganta coberta de ouro de Polixena que ‘ sangue vai logo avermelhar: de nada serviria, multiplicar os exemplos ¢ enumerar infinita- mente as ocorréncias de dere num contexto sacrificial!®, No maximo se assinalaré que, do 98 citamente acerca desse imaginério ginecols- gico, Baste-me entao constatar esse silencio sem forgé-lo, ¢ sugerir que, no corpo tigico, nada é deixado ao acaso da livre associagio porque todos os lugares da morte estao nele em seu lugar certo. Invengio, ortodoxia; liberdade, compulsio: sobre o fundo dessa tensiio inscreve-se 0 des- tino das mulheres na tragédia, como, sem di- vida, em muitos niveis da experiéneia civica ateniense. Com a ressalva de que, como a tra- gédia exalta singularmente o lado da liberdade, ‘a compulsio, por sutil que seja — insidiosa- mente presente em tal ou qual significante — revela-se af, uma vez descoberta, mais forte nas palavras que nas instituigGes. Com a ressalva, ‘também, de que a invengiio se opera no terreno totalmente discursive da ficgio, ¢ de que sua estrada real é a da morte'™! Interessat-nos pelo que se diz.da morte das mulheres na tragédia 6 dar-nos desde o prinef- pio a satisfagaio de nos instalarmos em um posto de observagio privilegiado. Se € verdade que, 110 ogo depois de estabelecida a fronteira intrans- ponivel que separa o masculino do feminino, 0 imagindrio grego compraz-se em confundi-la, para tentar determinar os procedimentos ¢ 08 limites de tal jogo nao teremos de nos situar no Tugar institucional dessa confusio, isto é, no proprio cerne da interferéncia trégica?!® Esse era efetivamente 0 meu projeto: de- terminar como e até que ponto valores vitis € atributos femininos agem uns sobre os outros na encenagao trégica das mulheres pois, tra- tando-se dessa problemética “metade da cida- de”, credita-se pressurosamente & tragédia uma audiicia notavel nesse século V ateniense. Nada tem em side consternador que a auddcia pare- ‘ga menor do que se poderia supor: toda inves- tigagdo corre orisco de recusar ou de modificar stias hipdteses de partida ao longo do caminho, principalmente quando elas foram adotadas com uma reserva — no caso, a convicgiio de que € necessfrio evitar a todo custo o dilema indtil do feminismo e da misoginia, Procurou- se simplesmente trilhar as vias indiretas da muito singular ortodoxia tragica, nfio sem pra- zet —o prazer que se pode tirar desse jogo de desvios — e talvez nfo sem ganho. Nesse per- ‘curso sinuoso tem-se ao menos o ganho da in= (errogacio licida sobre a possibilidade de des- vios significativos no seio de um género civico. a Com efeito, 0 paradoxo da morte gloriosa das mulheres € que a Gnica morte bela 6 a viril; também, para conquistar a inatingivel keos ‘gynaikon, esposas © mogas exercitam-se na andreia, ora, € precisamente aqui que a femi- nilidade as espreita e, sem que elas o saibam_ mas para maior edificago dos espectadores, as domina num instante, o momento de uma pa- lavra, de uma escolha muito significativa do texto trégico. A esse respeito Euripides, cantor ‘ou inimigo das mulheres (nunca a tadigio soube pronunciar-se verdadeiramente sobre esse ponto), nada tem a invejar a Séfocles, esse mestre da ambigiiidade, o que implica verificar algo parecido com uma constfincia da tragédia ~em pensar a feminilidade nos mesmas termos, Conclusio certamente geral no fim de um longo exercicio de leitura que buscou seguir atentamente a literalidade dos textos, Mas, nessa generalidade, apraz-me encontrar o be- neficio essencial de tal investi gagio, Falando da “morte das mulheres na tragédia”, pretendia-se tentar uma generalizaco confiando no género trdgico como tal. Confiar no género era postu- Jar-ihe a unidade, ou no mfaimo tentar distin- guir-lhe as constantes, passiveis de serem de- signadas como representagoes partilhadas do discurso tragico — partilhadas, ainda que, de um autor a outro, elas sejam asperamente dis- an cutidas. Tal designio implicava certamente recusar de inicio maneiras firmemente estabe-~ lecidas de ler os trégicos: uma, baseada no dogma sacrossanto da evolugio, que pretende que, de Esquilo a Séfoctes e de Séfocles a Euripides — sendo esses dois tiltimos autores praticamente contempordneos —, as nogdes ¢ as escolhas intelectuais “mudam” (evoluem, diz-se); a outra, desejosa de isolar cada obra em sua especificidade, e que se empenha em dis- tinguir a predilego de determinado trégico por determinado motivo — assim, Esquilo se inte~ ressa muito pela violéneia do assassinio, S6fo- cles pela vontade desesperada que anima 0 suicida, e Euripides pela imotagio de tenras vir- gens!®, Sem ignorar caminhos muito balizados, desejou-se fazer outro percurso, E para mim é importante que, no fim, ele tenha se revelado legitimo; que, de um trégico a outro, a interro- gaco sobre a feminilidade tenha sido bem- sucedida, mesmo havendo diferengas quanto a0 uso de termos, como esse verbo airo, a0 qual foi necessério voltar mais de uma vez apesar de 6s limites serem os mesmos (assim, a garganta das mulheres tende a envolver sua morte). Para proceder a um levantamento desses pontos do discurso influenciados por varios fatores, a via agora estd bem tragada, Consiste em submeter o§ textos trdgicos as interrogagoes 113 de uma antropologia da Antiguidade. Esforgo frutuoso — sua demonstragio jé niio precisa ser feita—, com a condigiio todavia de que cle se Gesdobre numa atengio sem falhas & especifi- cidade do género. Procurou-se também sub- meter as questoes da antropologia a um inter- rogat6rio mais centrado nos caminhos © nas modalidades gregas do imaginério, para tentar compreender a natureza do ganho contabiliza~ do pela cidade por ocasidio desse paréntese ins- titueional que € a representagio dramética, Em outras palavras: em que a figura do oxymoron, cata aos textos trigicos, é essencial a represen- tagdio dramitica que a cidade oferece a si mes- ma? Ou ainda: qual o ganho dos espectadores dg teatro a0 pensar em termos de ficgio aquilo que, na vida civica, nfo pode nem deve ser pensado? Ocasifio de refletir sobre 0 objetivo dessa “purificagdo” trégica™, que sem daivida purga menos o homem em seu caréter privado que 0 cidadao, porque purga afetos que o bom uso do estatuto de cidadio deve ignorar. E sa- crificam-se virgens no teatro de Dioniso.. Em busca das modalidades dessa operaco de pensamento cfvico, concentrou-se a atengio no significante e mesmo naquilo que, no texto das tragédias, 6 algo como ui subtexto, talvez identificével somente pela leitura, Isso levou a que, muito aquém do efeito trigico, se 114 Temontasse ao horizonte da inteligibilidade do género. Sendo assim, voluntariamente foi as sumida a posig&o pouco lirica de leitor, Mas € necessario tomar essa resolugo: jamais ocu- paremos o lugar dos espectadores atenienses do século V. Ao menos, com essa perceptibilidade, aposto que chegamos a compreender aquilo que, na morte de Dejanira ou no sacrificio de Polixena, proporcionava ao espectador ateni- ‘ense 0 prazer contido que € facultado pela frui- io do desvio representado, pensado, domado. us 10. 15, 16, 1 Recordar 52-4 que Ant 6, a tradigS,o nico hea rascali- no air ato extoro de um sso. A interpreta propos 1a ago reepeito da esol de Srcls pea 4 do de Romilly (Le Refs da suche dans VWleractied'Eilde”, Artiograsia 1, 1980p 1-10), wma dissncaimensa ene 0 quse sain ete) 20 de Inchnago (boidomar ver. Lorain, Lenton d'thnas, Pisa, 1981, pp, 99-104, sobre Arinama (Herat, 1x, 71), "La Reistno epanie”,Kidma, 2 (1072), pp 10. 20. Notre queen Le Suicide (edi, Pai, 198, 374), B, Doren teeta como un sido « mone de ‘AsitGdsoro, Oriadats Hert, J, 82; Pants, ide, Vil, 22 Por exenpl,auiphono © ada. sobedcteminago sists en combats famine € pia. ‘onions no combs singhar eno hor Bio: ver Ergo, Sete conra ebay, 850; Sots, Aaigong, 2, ups, Penta, 80. Otros exe: Egil Aga ‘non, Dis arpes, Oreste, S47.¢ Slots, Antgon, 1175, tem cco coment dL Game 0 veo IX das Leis (an B17), p12 BIS e8- ss ¢ wma da cosine stenuuces considerate por Plato cm sn condo do ust (Ll 1X, 873.65), Very: Pl Leis 1X, $13 «6; Redon do efor seta Epes, len, 288-90; mde Secs, no a, 5 lob, bem como Esq, Supine, 47 (nia ‘an sits de sudo or vinganga) dso api, elena, 19136, 20202, 696687 (nome do Laie) Tacha defer coo mio abo ds naires 6 enforcer & por asim de nsnta mise fm ing ver N. Lem, “Le Cons etang, an. Thoms (eto, Le Chinato Pt, 84 7p. 185 218 Seek, Atisony, 120-122 aqui, Supa 155-465, 0 vena: Agantinnon, 1260-1263; 0 wéwannas: 1382 135, 1652, 1580, 16; Coda, 981582, 98-1104 Bu resides, 460, 634-685, Doni: Sfose, Tru, 83 54 (ominro} 908 eidnomenar. ria "in dea a gl com aml hepa 40 spe ma Medi: 984-409 6 1218 onde eda 1). 118 19, 20, at 2, O coforesmarta en vox do macho: fsa, Splicantes787- 789; a proipagsa em vez do dite, ibiem, 194199 Aproximarte4 itor do gros ditt, Sele conra Tele, 516; solo dlacrant, lato gemente en xe dlsera so ‘oepo dmsgem daquce dos mones, nese eas ofillos de ‘Bip, eles mesmes auto idem, 735, Nout 36 en gus no ors 680 da Silanes 0 verb dao (tern faz tna primeira apcgio para earaceizara gua civ como dilecradora da eidade, Nao hi portan rar alguna para tafomismo de transfonmar"diesraon” en "spt" Furies, Mest, 14-76, ous metiforas da more como cocante ou sangrenta: idem 118 ¢ 225. A propio de Tinatos eno monte no masculve, ver J: . Vom, Figucs femininss de 1a mon”, 4 aparecor numa ealetines colts ‘Marcatn ennin ok Grice alone, Borges, andramaco, 616: oudé oikee, © exon em ‘azo (conta Mériier o tadatord colegio "Les Bla Let= ire": Mencia fet eamente ergo dene no eat TV da irda peta och do Pander, mse venir fern ie fot Infligid de pono, pelo lidio‘oa pel nga, cere 6 sin do sa brava dvi, Exper, gems om Tris, 621-622; wb oagar reserva doo degelor na consuagiodo prio see Tenia tno, ver M. Danae, "Vilenes Eugnies"em M. Deteme © J:P. Vemant (ito), La Chine du sacrifice en pays sre, Pacis, 1999p 208, Sobre ea ies, qu someatel em “Blessed vii (Le Genre human) 10,1984, 9p. 38-55), ver Pindar, 8 New, ‘veies 38 esoguintes (ben exo 7 Nem, 25 segues, 2. Frimica, 35 e sepuntes) Ter sed em mes qe, na a sade Stoces,«espadapanencene a Het 6 um presen 1 do ninigo: guano a Ajay ele more como “tba 0 ‘guereito (pp: Aja, 828, 841, 1033), ‘iat, 15, con xu o comers de I, Casaboa, Re

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