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ALVARO CARLINI CacHIMBo E Maracd: o Catimso pa Missao (1938) CENTENARIO DE NASCIMENTO DE MARIO DE ANDRADE ACERVO HISTORICO DiscoTEcA ONEYDA ALVARENGA CENTRO CULTURAL SAo PAULO 1993 Ua. Sai o Tivo? Nio acredito! Afinal, editar tres por intermiio da initia palin nio 16 tala ‘uo Fe. Esta epopsiaenvolve definiées © recursos _Sgfcativs, com diversas iplicages, tas com: deve ‘ou roa mit pica edit lives? Deve fn por meio de co-edigdes? Qual deve sera tage, a quem se dove doar lias? Doves coloea 0s los i venda, 2 ae rego? |S sei que pesuis como ext, sore to importante ‘spect do flor msl brad, merece nse tl “etpenbo para toms lx pies confome appa en. um excelente momento pars dvlgarmos a Miso de Pesquisas Foleliica,oganicada plo proprio Mévo de Andrade © Onexda Alvarengs em 1938, exjo acervo cencontrase muito bem conservado na Discotses ner Alvareng. (0 Centra Cultural So Paulo, gio da Secretaria Municipal de Catura, por interméato da Diseoteca (Oneyda Alvarena,apresinla est lio come o print de uma sére do publiagbese eventos, que vam, em titima insti, recuperar 0 atraso de mais de meio séeulo, na divulgacao dos resultados da Missio de Pesquisas Folds, Desde que assumimos a diesio deste Centro Cuitaral, em jane de 1983, estabelecemes como p0- ridade homenagear o grande pensador da cultura Dasa da primeira metale deste seul, o ado do Departamento de Cultura da cidade de Sao Paulo, hose ‘Secretaria Municipal de Cultura, enfin, 0 primsiro ‘rane sgtador cultural de Sin Paulo, 0 309, 350 de oss clara ‘Mais ands: a Discoteca Onenda Atareng, erada por Métio de Andrade em 1935, de onde partiu a Miso, e que foi digits por esta brava mulher, que hho the empresta © nome, € a maior discoteca do Bras, com um acer de 70,00 dscns, 40.000 art furaseliosespelalizades, A nossa homenagem n3o termina aqui Pretendenos moderizar & Discoesa Onejda Abarends ‘A meta é em dois anos, invesir em novos eaunamen tos, enriquever 0 acero fonogréfieo, informatzat a Mtn Braurrieser — "Rochedo Siahi", com modi enhida no Rio Grande do Norte, EMB 1.120 — Disco ME 10 — lade ‘Os outros discos da série ME, gavads entre 19961945, correspondem & = ME 1 a 3 — Carlos Gomes — “Sonata para quinteto de cordas — O Burrico de Pau”. Quarteto Haydn do Departament de Cltura de SP. ME I1-ME 18 — Francisco Mignone —“Mlaracatu de Chico Ret, Kurzwellersender Orchester ‘Berl, sb arencia do compositor. “ME 19-ME 22A — Camargo Guarnieri — “Treze CangSes de Amor". Camargo Cuamiert (nano), Cristina Maistany (cant) PME 228 — Camargo Guarnieri — “Cantign de Nina Camargo Guarnie(piano), Eunice de Conte (tino. = ME 23 a ME 25 — Seis Vals para Pano, de autora de Camargo Guarnieri Dinorah de CCanatho, Arthur Pereira, Francisco Mignone, Clorinda Resalo e Souza Lins. Ao piano, Amaldo Este 4 osigdes registradas nesses discos serviriam também de material divulgador da miisica produzida no Brasil em pases do exterior. " Sobre o resgate do folclore musical brasileiro, continuava 0 Deputado Paulo Duarte: “(u) Os registros cientificos do folclore musical brasileiro foram iniciados em maio de 1937. Contam com vinte e oito fonogramas, sendo que a Discoteca principiaré ainda no corrente ano uma viagem de cinco meses ao nordeste, a zona musical folclérica mais importante do pafs, a fim de colher material para o seu arquivo etnogréfico Os fonogramas incluem: uma congada mineira completa, a Danga de Santa Cruz realizada em Itaquaquecetuba em maio de 1937 varias dancas e cantigas mineiras. Suponho nao ser preciso insis- tir sobre a importincia da colheita urgente dessas manifestagdes ‘ue, infelizmente, tendem a desaparecer. (..)” ® Os registros fonogréficos musicais, uma vez coletados por especialistas, seriam “(...) destinados nao sé & documentagdo folelérica como para servir os estudos dos musicistas necessitados de uma fonte segura de expresso da miisica nacional. (..)" " Os registros de miisica folclérica realizados até aquela data foram con- sumados nos Estados de So Paulo e Minas Gerais, Sao eles, mais especifica- mente: Danga de Santa Cruz (em Itaquaquecetuba-SP, a 2 e 3 de maio de 1937, 4 fonogramas ); Congada (em Lambari-MG, 10 fonogramas); Embolada Mineira (em Lambari-MG, 1 fonograma); Cana-Verde (em Lambari- MG, 1 fonograma); Taquaral (em Lambari-MG, 1 fonograma); Modinha (em LambarieMG, 1 fonograma); Catereté (em Lambari-MG, 1 fonograma); Folia de Reis (em Lambari-MG, 9 fonogramas), totalizando os vinte e oito fonogramas anunciados pelo Deputado Paulo Duarte em seu discurso. * Esses fonogramas iniciaram a série F da Discoteca Piblica Municipal, destinada ao registro de folclore musical brasileiro. Os fonogramas acima relacionados correspondem a: F1-F4 — Danca de Santa Cruz; F5-F6 — Congada de Lambari; F7A/B — Embolada, Canaverde, Taquaral, Modinha, Catereté; F7B-F10 — Folia de Reis. 0 intuito de fornecer material musical folcl6rico para o aproveitamento tematico pelos compositores eruditos era uma preocupacdo constante no tra- 11 ~ef. CONTIER, AD. ~ “Bras Nove, Misca, Ngo e Modemidade” — Tese de Line Doctncia, ‘Sho Paulo, PPCLIILUSP, 1988, 12 — “Contra o Vandalsmo e o Extermini." 0 Esta de S, Paulo, 7 de outubro de 1987.1 13 — idem biden, p11. 14 — Cada fonograma correspond a uma fava de disco, e pode contr ras melodia reistradas fine terupiamente, 35 —ALVARENGA, 0. — opt 1942, ppl0-11, 18 balho e no pensamento gle Mario de Andrade. A inexisténcia de documen- taco musical publicada em forma de coleténea, fruto da imegularidade de expedigdes de caréter etnogrdfico para a coleta de material folclérico brasileiro, que possibilitara o aproveitamento artistico, além da realizagao de estudos comparativos com rigor cientifico, levou Mario de Andrade a apre- sentar na segunda parte do Ensaio sobre a Musica Brasileira (1928) um conjunto de 122 melodias de varias regides do Brasil, coletado em parte dire- tamente da fonte popular. Poi no Ensaio sobre a Mdsica Brasileira, considerada a primeira obra que direcionou os estudos de folclore musical em uma orientaco cientifica, que Mério de Andrade sistematizou seu projeto para a nacionalizagao da mési- ca brasileira, Esse projeto de nacionalizacio, fundamentado na mésica pura em oposi¢do & misica descrtiva ou programatica do século XIX, na técnica contrapontistica de composicio e, em especial, no aproveitamento de temas do folclore musical, foi apresentado no Ensaio sobre a Mtisica Brasileira onde Mério de Andrade estudou também algumas das constancias ritmicas, tonais- harménicas e formais de cantos folcléricos por ele recolhidos. * Annecessidade e “(..) @ émportincia da colheita urgente dessas mani- festagées populares que, infelizmente, tendem a desaparecer(..)", apon- tadas no discurso de Paulo Duarte & Assembléia Legislativa, refletem uma questo problemética que ganha proporgdes nas primeiras décadas do século XX: a dualidade erescente entre a misica folclérica rural, anénima, funcional, espontinea, salvaguarda dos valores ocultos e puros da nacionalidade brasileira vista como um todo homogéneo versus misica popular urbana emer- gente nos grandes centros como Sao Paulo ¢ Rio de Janeiro, “influéncia deletéria” " no dizer de Mario de Andrade, fruto das camadas subalternas influenciadas pelos imigrantes, impura, desorganizadora da visdo centralizada e tinica da cultura nacional, preconizada pelos modernistas da década de 20. Essa miisica popular brasileira, subsidiéria da can¢o e das dancas de sala européias, como 0 schottisch, a polca, a mazurca, comecou a fixar seus elementos préprios por volta de 1870. Sua evolucao, primeiramente nas formas da modinha e lundu, e posteriormente com a seresta e 0 choro, exe~ cutados pelos pianeiros e chordes do Rio de Janeiro (Chiquinha Gonzaga, ‘Sétiro Bilhar, Anacleto de Medeiros, entre varios outros), acabou por influen- ciar compositores com formaco erudita como Alexandre Levy, Ernesto Nazareth, Heitor Villa-Lobos, provocando uma dicotomia na questio nacional, desde entéo apoiada ma producio musical folclérica e rural. A situagio recrudesceu na medida em que o desenvolvimento dos meios de comunicagao de massa, em particular o ridio, em franca fase de implemen- 15 —cf CONTIER, A.D. op. cit 1988 17 —ANDRADE, N. de—op.ct 1972 18 —CONTIER, AD. opt 1988. 16 taco no Brasil, avancou, modificando e influen dos grandes centros urbanos, ® ‘Com formaco em mtisica completada no Consenat6rio Dramético e Musical de Sao Paulo, ministrando posteriormente aulas de Histéria da ‘Misica e piano nesta mesma instituico, Mario de Andrade j& havia, em anos imediatamente apés a realizacio da Semana de Arte Moderna, realizado vi gens de cunho etnogréfico por regides afastadas dos grandes centros urbanos como Rio de Janeiro e So Paulo. Assim, data de 1924, a visita de Mirio de Andrade a Minas Gerais, realizada conjuntamente por um grupo modernista de Sao Paulo (Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, Paulo Duarte, entre outros), acompanhado do poeta francés Blaise Cendrars. Essa viagem, denominada pelo grupo de Viagem da Descoberta do Brasil, acom- panhou em Minas Gerais um momento tradicionalmente importante na regio: a quaresma e a Semana Santa, ” Modificando 0 projeto nacionalista modernista esbocado durante a Semana de 1922, que a principio teve énfase no dado estético e que progres- sivamente adquiriu um teor ideolégico *, a Viagem da Descoberta do Brasil nao resultou em uma coleta de documentos musicais. As observagdes rea- lizadas por Mario de Andrade foram aproveitadas em seu ciclo poético Clan do Jaboti, de 1924, em que 0 autor estlizou as solucdes técnico-iterarias populares, dedicando esses poemas a Carlos Drumond de Andrade, Manuel Bandeira, entre outros: indo a populagao habitante “| Enganada pelo escuro Camalalé fala pro homem: Ariti, me dé uma fruta Que eu estou com foe. ~Ah, Estava com fome... 0 homem rindo secundou: -Zuimaaliiti se engana, Pensa que sou arti? Eu sou Pai-do-Mato. Era 0 Pai-do-Mato.” * illa.Lobos, 0 Choro e os Cros’, Musica SIA Cultura Nuscal, So Paulo, 20 —ef LOPEZ, TPA. in ANDRADE, M. de — “0 Turis Aprendis” — exabeecimento de testo, introdug3oe notas de Telé Porto Ancona Lopez. Sio Paulo, Ed. Duas Claes, 1976. 21 ~ CONTIBR, AD. opt 1988, 22 — ANDRADE, M, de “Poesias Completss", Cicuo do Lio, 1976. 165-167. YW Foi também por essa época que Mario de Andrade iniciou seu trabalho de coleta de documentaco musical folclérica, ampliando suas leituras especificas sobre esta area. Entendendo as regides Norte e Nordeste do Brasil como ricos reposit6rios de tradigao e cultura popular, Mario de Andrade planeja, em 1926, uma viagem etnografica para coletas de docu- mentos musicais. Seria a segunda Viagem da Descoberta do Brasil, a ser realizada pelo mesmo grupo que empreendeu a visita a Minas Gerais, com excegio do poeta Blaise Cendrars, e com uma postura de distanciamento favoravel a uma pesquisa mais sistemética. Por varios motivos, esta viagem foi adiada para o ano seguinte, 1927, com o roteiro agora se estendendo para a regio Amazénica, numa época do ano importante, pois Mario de Andrade e o grupo ld chegariam em meados de julho, periodo em que se realizam as principais dancas draméticas desta regiao, ‘A viagem & Amazénia acabou nao se transformando no que foi planeja- do, O grupo que acompanharia este trajeto, entre eles Paulo Duarte, ficou reduzido & presenca de Dona Olivia Guedes Penteado, mecenas das artes em So Paulo, e por sua sobrinha. Mario de Andrade nao péde desenvolver a contento seu projeto etnogrifico devido a este fato. Ficou atrelado, na maio- ria das vezes, a recepcGes oficias e as relages de respeito e cordialidade que envolviam homem e mulher: * “17 de julho — Vida de bordo. Amanhecemos em Trés Casas, mas nao desci, por ter safdo da cabina (sic), depois da partida do ote. (...) Estou meio amolado... Paradinhas sem descer. Com mil bombas! de-repente pus reparos que nesta historia de viagem com mulher, afinal as coisas mais titeis que eu poderia ver, nao vejo, nesta pajeacdo sem conta...Por exemplo, ainda nio visitei, de-fato, um seringal! (...)"* Realizada no perfodo de maio a agosto de 1927, essa viagem foi marca- da pela preocupacio etnografica, mostrando a Mario de Andrade a necessi- dade de colocar em andamento uma pesquisa mais sistematica nesta regio que se oferecia rica em tradic&o musical folclérica. Voltando a Séo Paulo, Mario de Andrade publicou suas notas de pesquisa e observacdes no recém- criado Diario Nacional, érgao do também recente Partido Democratico, sob o titulo de O Turista Aprendiz. ‘A viagem de maior interesse etnografico musical foi aquela realizada ao nordeste durante o perfodo de dezembro de 1928 a fevereiro de 1929. Desta vez sozinho, na qualidade de correspondente do Diario Nacional, Mario de Andrade visitou Pernambuco, Rio Grande do Norte e Parafba. Convivendo com seus amigos nordestinos (Camara Cascudo, Ascenso Ferreira, Ademar Vidal), Mario de Andrade trabalhou sobretudo na Paraiba e Rio Grande do 23 — ef. LOPEZ, TPA op ct 1976. 24 — idem idem, 1976 25 — idem ibidem, 1976. 8 Norte, recolhendo grande documentacao musical de cantadores convocados pelos amigos folcloristas. Assistiu ensaios e representagies de dancas draméti- cas, estucdou a religiosidade e a mtisica de feiticaria do Catimbé, passou o car- naval no Recife, conheceu 0 coqueito Chico Ant6nio ficando impressionado por sua capacidade de improvisagio. Além da pesquisa musical, registrou em seu diario de viagem seu interesse pela arquitetura, suas preocupacdes pelas condigdes de vida e trabalho do homem nordestino. (0s resultados etnogréficos musicais desta viagem de Mario de Andrade no foram publicados de imediato. Aproveitando muitos elementos dessa pesquisa em suas conferéncias, artigos e ensaios, a inteng’o de Mario de Andrade era a edicZo total dos dados numa obra de estudo e divulgacZo que se denominaria Na Pancada do Ganzé, numa referéncia a este instrumento de percussao extremamente popularizado na regiao do Nordeste brasileiro. ‘Trabalhando intensamente desde seu retorno em 1929 até 1933 na ordenacio dos resultados das pesquisas, com cerca de 900 melodias de ma- nifestagdes musicais populares e, munindo-se de leitura sistematica para estudé-los, Mario de Andrade nao chegou a publicar 0 Na Pancada do Ganzi. Falecendo antes da conclusio dos originais, esta obra foi organizada e publicada, ainda que em partes, por sua amiga e colaboradora Onevda Alvarenga: Miisica de Peiticaria no Brasil, Os Cocos, Dancas Dramaticas do Brasil (3 vol.), As Melodias do Boi e Outras Pecas. projeto de Na Pancada do Ganzé, se editadlo em um tinico volume, conforme os planos originais de Mario de Andrade, constituiria a maior coletinea de miisica folclérica brasileira até entao reunida. *” Este perfodo também marcou uma intensa atividade de Mario de Andrade, editando diversas obras no campo musical. Em 1929, publicou a coletinea Modinhas Impetiais; em 1931, elaborou, juntamente com Luciano Gallet e Anténio de $4 Pereira, a proposta de reestruturacao de Instituto Nacional de Mésica; em 1932, publicou a segunda edicdo do Compéndio de Histéria da Musica; em 1934, editou uma série de artigos seus, redigidos para a imprensa, reunidos sob o titulo Mitsica, doce Musica; em 1935, jé proximo de assumir a direcao do Departamento de Cultura, um estudo sobre Reis de Congo foi publicado no Boletin Latino Americano de Musica, coor denado pelo musicélogo Curt Lang Ciente que a questo da nacionalizacdo da misica brasileira nao se restringia somente neste aspecto etnogréfico, e que, pelo contrario, o aban- dono deste era reflexo de dificuldades em planos bem mais abrangentes (politico-ideolégicos, tais como a falta de uma politica oficial de apoio & pesquisa e as artes; a0 congelamento da estética do Romantismo aos pro- blemas decorrentes desse fator — a pianolatria, o desinteresse geral da bur- suesia pela temética nacional, a questo do ensino musical), * Mario de 26 — cf LOPEZ, TP.A.-op. cit 1976. 27 — ALVARENGS, 0. in ANDRADE, M. de ~ “Os Cocos” — Preficio,intreducio enotas de Oneyda ‘Alvareng, Séo Paul, Ed. Duns Cidade, 1984, 28 — cf CONTIER, AD. op. ct. 1988. st Andrade depositard suas energias no projeto de criacio do Departamento de Cultura de Sao Paulo. Em 1936, ja entao empossado no cargo de Diretor do Departamento de Cultura, Mario de Andrade manifestar-se-ia através de artigo para imprensa, lamentando-se sobre a precéria situagao da etnografia cientifica no Brasil, 0 que prejudicava os estudos especificos do folclore brasileiro, fundamental na construgo do conceito de brasilidade segundo os pressupostos modernistas: “(.) Faz-se necessério e cada vez mais que conhecamos 0 Brasil. Que sobretudo conhecamos a gente do Brasil. E entio, si recomemos aos livros dos que colheram as tradicées orais, e os costumes da nossa gente, desespera a falta de valor cientifico dessas colheitas. Sao descricdes imperfeitissimas, incompletas, a que muitas vezes fal- tam dados absolulamente essenciais. Séo selvas de quadrinhas bem vestidas, numa lingua muito correta, em que é manifesta a colabo- racdo do recolhedor. Sao miisicas reduzidas a ritmos simpl6rios, nao se sabe como recolhidas, a maior parte das vezes guardadas na meméria, e nao colhidas ditetamente do cantador popular © que vale tudo isso? Além de ser pouco em comparacéo com a riqueza absurda dos nossos costumes € do nosso folelore, além de ser pouco, vale pouco. E uma documentacao mal colhida, anticien- tifica, deficiente. H4 momentos em que o estudioso do assunto desanima ante esse montio de livros mal feitos e tem a impressao desesperada de que tudo deve ser repudiado, e nada pode servir como documentacio. ( A Etnografia brasileira vai mal. Faz-se necessario que ela tome imediatamente uma orientaco pritica haseada em normas se~ veramente cientificas. Nés nao precisamos de te6ricos, os tebricos virdo a seu tempo. Nés precisamos de mocos pesquisadores, que vio & casa do povo recolher com seriedade e de maneira completa 10 que esse povo guarda e rapidamente esquece, desnorteado pelo progresso invasor,(..)” \Varias foram as iniciativas do Departamento de Cultura no sentido de minimizar e tenlar solucionar esta situacdo dos estudos etnogrétficos no Brasil descrita por Mario de Andrade, Além da criacdo da Discoteca Publica Municipal, em 1935, e da realizacdo do I Congreso da Lingua Nacional Cantada, em 1937, trés outras atividades de importancia para o incremento do acervo documental destinado aos artistas ¢ estudiosos, e na orientacéo cientifica desta investigacio, ocorreram, sempre patrocinadas pelo Departamento de Cultura, em particular, pela Divisio de Expansao Cultural: 29 —"A Situagio Etnogytica do Bra”, Jornal Sintese, Belo Horizonte, n 1, outubro de 1985. 20 a fundacSo da Sociedade de Etnografia ¢ Folclore, em 1936; 0 envio do com- positor Camargo Guarnieri ao II Congresso Afobrasileiro, ocorrido em Salvador (BA), em 1937; e a realizacio da Missao de Pesquisas Folcléricas (MPF), expedicao de carater etnografico que percorreu as regides Norte ¢ Nordeste do Brasil no primeiro semestre de 1938. Uma das intengdes da Sociedade de Etnografia e Folclore, criada em 4 de novembro de 1936, fruto final de curso ministrado pela Sra. Dina Lévi- Strauss, antropéloga e esposa do também antropélogo Claude Lévi-Strauss, era exalamente fornecer uma orientacZo metodoldgica e cientifica aos estu- dos especfficas da érea no Brasil.” curso ministrado pela Sra. Dina Lévi-Strauss, patrocinado pelo Departamento de Cultura, foi estruturado em 21 aulas, sendo a tematica abordada subdividida em Antropologia Fisica e Folclore (Definicao, Cultura Espiritual — misica, danca, dramas, contos, provérbios — e Cultura Material = arquitetura, objetos). Desse curso participaram, entre varios outros, Luiz, Saia, responsdvel pela Missdo de Pesquisas Folcléricas que realizar-se-ia em 1938; e Oneyda Alvarenga, chefe da ja constituida Discoteca Publica Municipal. Ao término do curso, por sugestao de Mario de Andrade, foi cria- daa Sociedade de Etnografia e Folclore. * Em 2 de abril de 1937, em uma de suas reunides, foram discutidos aprovados os Estatutos da Sociedade, sendo eleita sua primeira Diretoria composta por, entre outros, Mario de Andrade (Presidente) e Dina Lévi Strauss (Primeira-Secretéria). Entre os sdcios fundadores encontram-se Claude Lévi-Strauss, Eméni Bruno, Mario de Andrade, Luiz. Saia, Camargo Guarnieri, Oneyda’Alvarenga, Plinio Ayrosa, Rubens Borba de Moraes, ‘Sérgio Millet. * Os dados obtidos com o primeiro trabalho de pesquisa realizado pela Sociedade de Etnografia e Folclore foram utilizados para a elaboragio de cartas geogrificas posteriormente enviadas ao Congresso Internacional de Folclore, ocorrido em Paris, em 25 de junho de 1937. Essa pesquisa teve como objetivo a verificaco das proibicées alimentares, das dancas populares e dos métodos de cura observados no Estado de Sio Paulo. Para sua exe- cucdo, foi enviado um questiondrio sobre os trés assuntos as instituicdes pablicas de todo estado e aos especialistas na érea do folclore. Mario de Andrade, na apresentacao deste questionario afirmava ser “(...) inuitil enca- recer a necessidade desta colaboracio ao Congreso Internacional de Folclore. (..)", ¢ continuava: “(..) So Paulo e o Brasil serdo assim repre- sentados dignamente pelas cartas geogrdficas paulistas, realizadas com ‘30 — Boletim da Sociedade de Etnograiae Folelore, Revita do Arquivo Municipal de SS0 Paulo, Departamento de Cultura, Anon. 1 1997 S31 — A documeniagio da Sociedade de Btnogafia¢ Folelore incusive 0 esumo das aulas do curso ministrado por Dina LéviStauss, se enconirano Contr Cultural So Paulo, aria TX, esta. tinhos 32.50, da Discotea Oneyda Aarne, 132 — “Esautos da Sociedade de Etnograi Folciore" — Revista do Arcuivo Municipal, Departamento de Cultura, So Paulo, n°49, 1987 a @ cooperacéo fraternal e altamente culta de todos. (...)” *. Cabe notar que, ainda em 1936, 0 Departamento de Cultura ja havia participado do Congresso Internacional de Folclore anterior, enviando relat6rios € mapas ‘geogréficos de manifestagdes populares observadas no Estado de Sao Paulo, sendo apresentados por Nicanor Miranda (Chefe da Diviséo de Parques Infantis), e que foram “..) alvas de expressivas felicitagoes por parte dos organizadores do Congresso realizado em Paris As atividades da Sociedade de Etnografia e Folclore reduziram-se ao minimo com a safda de Mério de Andrade da direcio do Departamento de Cultura em 1938. Apesar de ter sido extinta em 1941, quando era seu diretor Nicanor Miranda, a Sociedade de Etnografia ¢ Polclore promoveu, durante (0s anos de maior atividade, intimeras reunides abertas a0 piblico, em que eram apresentadas comunicagdes cientfficas sobre as atividades de pesquisa em folclore realizadas pelos seus sécios. Além disso, editou um Boletim, pu- blicado pela Revista do Arquivo Municipal, que informava as atividades ilti- mas da Sociedade e que contava com uma série de instrucées metodolégicas e sistematizantes para a coleta de dados folcl6ricos, efetuada pelos seus colaboradores voluntérios espalhados pelo Estado de So Paulo. ® No entanto, a instituicao responsivel pela coleta, estudo e divulgacio da parte musical era a Discoteca Publica, ligada & Divisio de Expansao Cultural, dirigida por Oneyda Alvarenga. Além das atividades j& men- cionadas, como o registro dos discos que compoem as séries do Arquivo da Palavra (AP), Musica Erudita Paulista (ME) e as primeiras gravagdes de folelore, a Discoteca também manteve um acervo de documentos musicais coletados por estudiosos e grafados, sem o registro mecénico, diretamente da fonte popular. Esses documentos, como jé afirmara 0 Deputado Paulo Duarte em seu discurso & Assembléia Legislativa de Sio Paulo, seriam uti- lizados para “(...) servir os estudos dos musicistas necessitados de uma fonte segura de expressdo da muisica nacional. (..)” *. Para suprir parte deste acervo da Discoteca Ptiblica Municipal foi enviado a Salvador (BA), em 1937, o compositor Camargo Guarnieri ‘Camargo Guarnieri, juntamente com o pianista Fructuoso Viana, acom- panhou as atividades do Il Congresso Afrobrasileiro, reunido na Bahia em janeiro de 1937. 0 resultado da viagem foi expressivo: além de registrar dangas e grafar em notaco musical cantos varios, Camargo Guarnieri trouxe consigo uma importante colec&o com cerca de 200 melodias de candomblés baianos. Paralelamente a isso, Camargo Guarnieri fotografou o samba, a capoeira e os préprios candombiés pesquisados. A colegio de melodias ¢ dados complementares recolhida por Camargo Guarnieri fi incorporada a0 133 — Questiondro da Sociedade de Exowafae Folclore, apresentado por Mésio de Andrade, datado de de abil de 1987 etm da Sociedade de Btnogafia eFoelore, Ano Ln. 3, 1937 am etados no toa sete Boletins da Sociedade de Enograa Foor, datadosde- outubro, ‘povembro edezembro de 1997; janeiro, fevereroe marco de 1998; janeiro de 1699, ‘36 — "Conta o Vandalism eo Extermina."O Estado de S. Pao, 7 de outubro de 1937.1. a Bo 2 acervo folclérico de registros nao mecnicos (anotacao musical direta) da Discoteca Péblica Municipal. No entanto, a necessidade de suprir o acervo de registros musicais efetuados por meias mecénicos (registros fonogréficos), principalmente das regides do norte e nordeste brasileiros, consideradas as regides mais ricas em tradigbes folcl6rico- musicais do Pais, levou a Discoteca Péblica Municipal, a patrocinar no ano de 1938, a realizacdo da Misso de Pesquisas Folcléricas (MPF), enviada a essas regides com o objetivo de documentar em discos o maior nimero possivel de mani- festagdes musicais, além de coletar dados complementares &s gravagbes efetuadas. B A Misso de Pesquisas Folcléricas “Gund Vamu dancé minha gente Com toda sastisfacao Pra mandé nossa cantiga Lé pra civilizagao. So Paulo vae uvi Coisa qui nunca uviu 0 céco da nossa terra Qui daqui nunca saiu, (.) Seus dotd, homé do Sul Nosso adeus vamu the dé E leve nossa cantiga LA pro vosso lug.” No discurso & Assembléia Legislativa, em outubro de 1937, o Deputado Paulo Duarte jé anunciava a realizagio da Missio de Pesquisas Folcldricas (MPF): “(.) sendo que a Discoteca principiara ainda no corrente ano uma viagem de cinco meses ao Nordeste, a zona musical mais importante do pais, a fim de colher material para seu fim etnogré- fico. (..)”* A realizacao da MPF, segundo 0 Deputado Paulo Duarte, atenderia “(o) indiretamente ao apelo lancado pelo Congreso Internacional das Artes Populares, reunido em Praga (1936), sob os ausptcios do Instituto Internacional de Cooperacéo Intelectual (...)”. Na seqiiéncia de seu discur- so, Paulo Duarte justificava: “(..) A maioria dos cantos ¢ melodias populares esto prestes a desaparecer. Sua conservacio é de uma grande importancia para a ciéncia e para a Arte. O Congresso (Internacional das Artes Populares) recomendou o seu registro fonogréfico no mais curto razo possivel. As notagées, por mais perfeitas que sejam, no substituirao o registro fonogritico, (.)" ® 837 — Textos originas da Misséo de Pesquisas Foleévcas (MPF) — Letra de um ceo caetado em ‘Tseaatu, Pemambuco, em 10 de margo de 1938, no gravado, nots de La Sin. Teno 1d Pasta 2 das transerigdesrealizadas por Oneyda Aharengs,armirio IX, escaninho 15, da Discotecs ‘Oneyda Aharenga do Centro Cufural So Paul (DOAICCSP), £38 ~ “Contra o Vandalisno © 0 Extermiio” 0 Estado de S. Paulo, 7 de outubro de 1987, . 11 39 — idem idem, p.11 ‘Apesar de anunciada para aquele ano de 1937, a MPF somente foi rea- lizada no primeiro semestre de 1938. As mudancas politicas ocorridas em rnovembro de 1937, com a decretaco do Estado Novo de Geto Vangas — ue colaborariam indiretamente para o afastamento de Mario de Andrade da diregao do Departamento de Cultura — provocaram um adiamento no in dda expedicio. Afinal, com verba ja reservada pela CAmara Municipal, os inte- grantes da MPF partem com destino ao Recife (PE) em fevereiro de 1938, para somente retornarem em julho desse mesmo ano. Para a realizac3o da MPR, Mério de Andrade redigiu diversas cartas de recomendacao destinadas aos seus amigos folcloristas (Camara Cascudo, Ademar Vidal, Ascenso Ferreira, entre outros), que foram entregues aos compo- nentes desta expedicao com intuito de facilitar a pesquisa e a coleta musical de rmanifestagdes fole6ricas j& conhecidas desses estudiosos. Além disso, Mario de ‘Andrade colaborou na eiaboracao do roteiro da viagem, na escolha dos mem- bros da equipe e no estabelecimento dos métodos para coleta. Em uma de suas cartas de recomendacio, datada de 21 de janeiro de 1938, sem destinatario definido, Mario de Andrade assinalou os objetivos fais da tealizagio da MPF: ata Toda a documentacao recolhida pela Missio, sera publicada para estudo e uso nacional. 0 Departamento de Cultura solicita de quantos brasileiros este documento lerem, a assisténcia, 0 conse~ Iho, e a acolhida jamais recusada pela generosidade nacional, certo de que sera por todos reconhecida a benemeréncia do tra- balho que se propés e que esta Missio realiza. Mario de Andrade. Diretor” ® No entanto, o vasto documental coletado por esta expedicao per- manece, ainda hoje, praticamente inédito. A situacao pouco fayoravel enfrentada pela Discoteca Pablica Municipal apds a saida de Mario de Andrade da direc3o do Departamento de Cultura, fez com que apenas uma parte nfima do acervo fosse publicada, ainda assim, somente oito anos apés 0 término da MPF, a partir de 1946, com os dois volumes da colecio do Arquivo Folclérico * e as publicagdes que subsidiariam as audicies dos dis- cos coletados por esta expedicao, a colecao Registros Sonoros de Folclore ‘Musical Brasileiro (RSFMB), com 5 volumes. * ‘A Missdo de Pesquisas Folel6ricas percorreu de fevereiro a julho de 1938, seis estados brasileiros (Pernambuco, Paraiba, Ceara, Piaul, Maranhlo “40 — Documentos orginal da MPF — “Carta de Recomendac.", Doc. n.o 128, rméio IX esani sho, da DOAICCS, 41 — ALVARENGA, O. org) — “Arquivo Follrico." @ vol: Melodias Regiradas Por Mies Nio- ‘Mecdnieos, 1946; CalogoTstado do Museu Pocirco da Dscoteca Pblica Municipal, 1950), ‘So Paulo, Discoteca Publi Municipal 42 —ALVARENGA, 0. (erg) — “Registos Sonoros do Folclore Musial Brasit.*(S vol: Xan, 4948, Tanborde-Mina ¢ Tamborde Crioulo, 1948; Catimbé, 1949; abussue, 1950; Cheganga de Maries, 1950), Sio Palo, Discotca Pblia Municipal. 26

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