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Prazer e Risco: uma discuss4o a respeito dos saberes médicos sobre uso de “drogas” Mauricio Fiore Ha algumas semanas, numa fila de clientes impacientes, a qual eu pertencia, reclamavase da demora no caixa de um supermercado. O motivo do atraso, logo descobri, era uma senhora que havia pedido dois pacotes de cigarros, o que obrigou um dos funcionéirios a ir a outro balc&o. Quando comentei com meu colega de fila logo frente sobre o problema, este respondeu com irritac&o: “Pacotes de cigarros deveriam vir com uma garantia: ‘morra de cancer em dois anos!" Respondi com um timido chacoalhar de cabega para nao alongar a conversa que mal comegava (2 comegava mal). A seguir, fiz um inventario do cesto de compras do cliente radicalmente anti-tabagista que exibia uma barriga protuberante: trés pacotes de salgadinhos, presunto, queijo, dois refrigerantes, um chocolate. Enquanto me vingava silenciosamente pensando na sua contraditéria intolerancia aos fumantes, ele me interrompeu: Vocé pode guardar o meu lugar na fila para que eu pegue mais um pacote de salgadinho?” A descrigao desse episédio prosaico nao tem o objetivo de denunciar a contradigao entre os habitos alimentares do meu interlocutor e a sua avers&o pelo tabaco, ainda que isso tenha ocorrido indiretamente. Pelo contrario, meu olhar de censura para 0 cesto é um indicativo de um confronto entre duas leituras. antagénicas, mas possiveis, da enxurrada diria de prescriges médico-cientificas veiculadas pelos meios de comunicacéo para que se alcance uma vida mais “saudavel". De um lado, alguém que percebe no habito de fumar tabaco o caminho certo para uma morte precoce. Eu, por outto, reflito silenciosamente e relaciono o sobrepeso do meu interlocutor & enorme quantidade de gordura e colesterol de seu cesto de compras (provavelmente associada a uma vida sedentaria - conclui de maneira ainda mais cruel e arbitréria). Duas interpretagdes possiveis mais ou menos informadas pela veiculagao daquilo que se pode chamar, grosso modo, de saberes médicos. A inspiragéo para o uso dessa nocdo vem do sentido dado a ela por Michel Foucault, que entende os saberes ‘como um conjunto muito mais amplo de articulagao entre conhecimento, disciplina e poder. No caso da medicina, Foucault combateu 0 pressuposto de uma espécie de historia natural da disciplina’, ou seja, uma forma de decorréncia historica do conjunto universal de teorias e praticas sobre o corpo humano e os males que o afetam que evoluiu cronologicamente até que, enfim, atingisse 0 estagio contemporaneo definitive = um campo 142 Drogas e cultura: novas perspectivas Do conhecimento pautado pelo método cientifico. Embora essa ultima assertiva ndo seja falsa, esta presa ao pressuposto de que o sujeito ¢ aquele capaz de conhecer a verdade da natureza; para Foucault, essa concepedo ignorou o fato de que 0s saberes classificam, separam e hierarquizam 0 conhecimento sobre 0 mundo; so, enfim, um campo de forgas em perpétua contraposicao.1Os saberes sao regimes de verdade, e os saberes médicos se edificaram sob o terreno movedico das verdades a respeito da vida e da morte, do normal e, principalmente, do patoldgico. Por isso mesmo que, do ponto de vista foucaultiano, nao hé saber que ndo engendre relacses, de poder. No entanto, é bom que fique desde logo claro, nao se compartilha nesse texto de uma perspectiva nilista ou, tomando emprestado os termos de Latour (2001), uma viséo “construtivista” do conhecimento cientifico: todos os saberes so articulados com a realidade em que sao produzidos porque também a produzem; os saberes constroem e explicam o mundo e impem a ele a sua materialidade. Enfim, no se colaca em dvida a eficécia dos saberes justamente porque neles esto contidas suas positividades. wow.neip.info A\idéia de positividade, no entanto, pode ser mal interpretada. Obviamente, se ‘estamos lidando com a obra de Foucault, néio podemos confundi-la com um juizo de valor ou uma propriedade imanente, 0 que seria equivoco capital. Nao se trata de dizer que os saberes médicos so eficazes e, dessa forma, algo positivo para a humanidade. Quando previne, trata e cura, a medicina, ou os saberes médicos, materializam 0 mundo a sua semelhanca. Portanto, néo se trata de negar a existéncia fisica, real, material, enfim, negar a doenga, nem tampouco sua cura ou seu alivio. Elas sao verdades, materializadas por um corpo de discursos e de praticas eficientes na resolucao dos problemas que instituidos pelos préprios saberes (Foucault, 2001). Portanto, a questao estaria em outro nivel: 0 que os saberes médicos problematizam? ‘© que € 0 normal e o que 6 0 patolégico? Resumindo, a perspectiva a que esse pequeno artigo se conecta é baseada muito menos em verificar a eficiéncia ou as maneiras pela qual os saberes médicos resolvem os problemas e muito mais numa discuss a respeito do que é e como se constroem os problemas. Uma das perversidades da legitimacéo da ciéncia como 0 modelo de producéo do conhecimento é obscurecer o fato de que todo saber é também poder. Isso especialmente importante no caso dos saberes médicos, ontologicamente articulados entre a pesquisa e pratica clinica. Articulag&o, nesse caso, no quer dizer uma seqiléncia causal de aplicagao pratica de conhecimentos cientificos: a medicina se constitu num campo de interseceao reciproca, numa rede capilar de saberes-poderes entre a pratica clinica e a producao de saber. Os saberes médicos so, ao mesmo tempo, um discurso uma prdtica. E por isso que dois cuidados metodolégicos fundamentais devem ser tomados quando se pretende tomé-los como objeto de andlise. Primeiro, eles ndo so apenas um conjunto de regras ou presoriges de condutas impostas de cima (ciéncia) para baixo (a sociedade). Firmemente ancorada em resultados empiricos, a medicina, como outros saberes, constitui suas positividades e nelas se realiza. Como ja foi dito, enquanto wwunelp.info 143 Prazer ¢ Risco: uma discussao a respeito dos saberes médicos sobre uso de “drogas” um saber-poder, constréi o mundo ao mesmo tempo em que o explica. Dai decorre uma segunda precaucéo: falar da medicina ou dos saberes médicos enquanto discurso, ou discursos, significa entendé-los a partir de suas capilaridades, de suas contingéncias. Se a medicina pode ser entendida como discurso ~ e é bom que fique bastante claro que essa ¢ apenas uma forma de entendé-la - é porque se tem em conta que, como bem apontou Clavreul (1983), dela néo participam apenas médicos e cientistas, mas todos aqueles que, de alguma forma, tomam como objeto a satide ea vida humana; uma sociedade medicalizada, na falta de um outro termo melhor, ndo & necessariamente aquela em que os médicos e suas prescrigdes impdem seu poder, na condig¢ao de sujeitos, sobre cidadaos leigos sujeitados; trata-se de uma ociabilidade em que os dilemas colocados pelos saberes médicos s4o compartilhados ‘enquanto valores fundamentais e perseguidos continuamente. Buscar a vida saudével, afastar a morte, aliviar 0 sofrimento, identificar as patologias e alcancar a normalidade: dilemas que, sem duivida, balizam a sociedade contemporanea, berco e produto da medicina enquanto conhecimento cientifico legitimado. O objetivo desse pequeno artigo é discutir um dos temas mais complexamente imbricados num continuo que pode ser tracado entre os saberes médicos e as humanidades: 0 consumo de substancias psicoativas, chamadas comumente de “drogas”.2Em trabalhos anteriores (Fiore, 2005, 2007), fiz uma analise mais aprofundada de como se estabelecem as principais controvérsias médicas no debate piiblico sobre uso de “drogas’. A nogo de controvérsia me permitiu analisar os discursos médicos tendo como pressuposto a sua complexidade e, principalmente, sua dindmica, evitando-se, dessa forma, toméd-los como um corpo homogéneo de certezas e prescrigées. A partir dos dados e da experiéncia acumulada nessa pesquisa, buscarei 2 Ficacolocada, de inicio, uma questo: seo prazer & um efeto bioquimicamente expicado, como anlisar 0 desprazor” qué ‘lgumas pessoas sentem quando consomem slgumas substincias especiicas? « Trecho extraido de uma entrevista realzada em 2002 com um dos psiquiatas especialstas em consumo de “droges' Cconhecidos do pais, culo nome, por questdes eicas, ndo sera revelado Para detahes metodologices, ver Fiore, 2007. + Num trabaho anterior (2007), expus as diferentes concepeGes médias sobre uso de “drogas” de manoira mais delalhada @ Cuidadosa.A ctagao deve ser wsta apenas como uma forme mais bem expictada do argumento que estou analsando ento ‘como uma espace de comprovactio da existéncia da discurses médias que compartiham esse tipo da elaboragso, ‘entrevista concedida pelo psiquatia Ronaldo Larenjera (UNIFESPIUNIAD), psiguiatra especiafsta no tema, a0 madico Drauzio Vereta na TV UNIP, 2001. Mais uma vez, oIntuto da cttecao @ apenas uma melhor formalizagzo do argument +s Back (2003), também discute as contracictes que se estabslecom entre o aumento das incertazas numa sociedade quese bbaseta na constante medico de riscos. Para ele, anova etapa da modemidade ¢ equel desenvolvimento, fencadeia rscos, impossibiltando a execuco de seu propio projet ue 0 proprio Referéncias BECK, Ulrich. Risk society: towards a new modemity. Londres: Sage, 2003. CLAVREUL, Jean. Poder e impoténcia no discurso médico. Sao Paulo: Brasiliense, 1983. DOUGLAS, Mary. (Org.). Risk and culture: essays in cultural theory. Londres: Routledge, 1992. vow nelp. info 153 Prazer e Risco: uma discussao a respelto dos saberes médicos sobre uso de “drogas” FIORE, Mauricio. A medicalizagao da questo do uso de “drogas” no Brasil: reflexes acerca de - - debates institucionais e juridicos. In: VENANCIO, R.: CARNEIRO, H. (Org.) Alcool e Drogas na Historia do Brasil. Sao Paulo: Alameda Editorial, 2005, p. 257-290. . 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Entre a extensao e a intensidacie: corporalidade, subjetivacdo uso de “drogas’. 2001. 600 f. Tese (Doutorado em Ciéncias Humanas) ~ Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. UFMG, 2001. VARGAS, Eduardo. Genealogia das drogas: a intrincada constituigao de um dispositivo, In LABATE, Beatriz Caiuby et al (Org.). Drogas e Cultura: novas perspectives. Salvador: EDUFBA, 2008. No prelo. sobre o tema. Nesse artigo, é a vertente medicalizada dos discursos sobre o consumo de “drogas” 0 objeto de reflexao.

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