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Guia Tematico para Professores ee % f ejm--t Wiha -viagemm introducao Escavaco arqueolégica em ‘cemitério indigena Kaingahg sitio Areia Branca 6 (Itapeva, SP) Ft Eelsaro Ges tevee ao passado pre-colonial A exposicao Brasil50 mil anos é uma mostra que conta 2 respeito das diversas culturas humanas que aconteceram no Brasil antes do Brasil ser o Brasil. Assim, antes de falar sobre elas, falaremos um pouco sobre a Arqueologia, a ciéncia que nos permite saber como viveram estes povos que, muito-tempo antes de Cabral, ja haviam descaberto o Bras A maioria das pessoas tem uma idéia do que seja Arqueologia, e se imagina viajando para regiées distantes ¢ remotas, vivendo aventuras incriveis e inesqueciveis. Esta é uma a romantica de Arqueologia, da caga.a tesoures e abjetos ex6ticos em paises longinquos. Como seria de se esperar, o cotidiano do trabalho do arqueélogo € bastante diferente destes estereétipos. Voltada para a compreensao dos estilos de vida ¢ da evolucao do género. humano através dos aspectos materials de sua cultura (ou seja, aquilo qué chamamos de cu/tura materfal, 0s objetos que os povos antigos abandonaram onde viveram), a Arqueologia busca entender as sociedades humanas, especialmente aquelas do passado mais remoto, anteriores ao advento da escrita (por volta de 5.000 anos atrés no Velho Mundo), a partir de quando os homens comesaram a deixar relatos dos acontecimentos e de sua vida cotidiana, As culturas humanas anteriores & introdugao da escrita s6 podem ser acessadas através dos vestigios materials ‘que detxararn nos locais em que viviam (chamados sitios arqueolégicos), isto é, 0 que restou das coisas que as pessoas fabricaram ¢ usaram ae longo de suavida. Assim, o que a Arqueologia faz é estudar sistematicamente estes remanescentes materiais de antigas sociedades (os quais chamamos de registro arqueolégico) de modo a compreender como viviam ¢ se organizavam, quantos eram (dernografia), de cofide vieram (migrasées), como ¢e relacionavam com meio- ambiente onde habitavam (adaptagio), suas bases econdmicas o tecnolégicas, porque desapareceram, e assim por diante. E claro que; quanto mais antigos forem estes vestigios de antigas culturas, menos os encontraremos bem preservadios e mais sera compreender o modo de vida daquelas sociedades. Por Muse. Univer ial exemplo, hi muito mais restos da época dos remanos na Europa a (por volta de 2.000 anos atrés), ou dos Incas na América (apenas 500 anos atras) do que da época em que apareciam os primeiros individuos do género homo na Africa (digamos, em torno de dois milhdes de anos atras), ou da entrada do homem na América (“apenas” uns 40 mil anos atras), Assim, a Arqueologia procura entender estas sociedades antigas relacionando os objetos que fabricavam (industrias) 20s, locais em que viviam, e também com as paisagens das regides em que habitavam, as quais também vao mudando com o tempo. Desta forma, os arquedlogos procuram entender a adaptasao destes povos antigos, ou seja, como se organizavam socialmente € que tecnologia dispunham para sobreviver ese desenvolver em um determinado ambiente. 56 de dizer que a Arqueologia estuda as formas de organizagao social das sociedades antigas jé ¢ suficiente para perceber que a Arqueologia é uma ciéncia social, um ramo da Antropologia. Mas os. arquedlogos tem também de estudar as rupturas ou mudancas das sociedades através do tempo, como se transformam e porque. Por esta razdo a Arqueologia desenvolveu diversos métodos de datagdo dos achados arqueolégicos, de modo a poder estabelecer que culturas sio mais antigas, e quais so mais recentes. Ao fazer das transformagées sociais e culturais da Humanidade seu foco de interesse, a Arqueologia & também portanto uma ciéncia histérica, a Arqucologia ¢ Histéria em um sentido amplo, indo muito além no passado do que permitem os decumentes escritos, através dos métodos de estudo dos remanescentes materiais. Outra coisa que faz da Arqueologia uma cién icamente interdisciplinar é 0 fato de que os vestigios arqueolégicos, principalmente os mais antigos, encontram-se enterrados muitas veres em grande profundidade, e é preciso entender como aquele local em estudo se transformou ao longo do tempo, e como o registro arquealagico foi afetado por essa transformacio. Aimportancia crucial de entender estes fendmenos, e como. afetam os restos das atividades humanas, aproxima a Arqueologia das ciéncias da terra, a Geografia e a Geologia. A necessidade de datar certos restos orginicos, ou examinar nas ossadas 0 que ‘comiam 0s povos antigos faz com que os arquedlogos recorram Fisica € 4 Quimica, e assim o arqueélogo atua no meio de uma varledade de disciplinas que contribuern para a compreensao das sociedades humanas do passado. 0s primeiros povoadores do continente americano A historia da chegada dos primeiros séres humanos ne continente americano ainda permanece bastante misteriosa Apesar do grande interesse que esta questio desperta entre os pesquisadores © as pessoas em geral, arquedlogos e geneticistas ainda sabem pouca a respeita deste tera. Vamos examinar aqui, de maneira sintética,as principais ideias que os estudiosos tém acerca de quando,e como, os homens chegaram a América, - Em primetro lugar, quem chegou a América? Apesar de pouquissimas vozes discordantes, ha um consenso geral entre os pesquisadores que © género humane ingressou neste continente ji com as caractaristicas genéticas e fisioldgicas que até hoje guardamos,a espécie denominada Homo sepiens sapiens. Ou seja, ainda que do ponto de vista cultural, inguistico ou social os primeiros habitantas deste continente fossem muito diferentes dos habitantes attais, do ponto de vista biolégico nio haveriam diferencas notaveis (figura 1). zl Pinomneieneecucs eons Eee lekss oe aneaet 0 eee 1H. sopiens sapiens sapiens aay Cae footer (ava) — (China) oe A. sc (Arcaico) eel al, L E | aden a | Nis” : eT | 8 es H. eredtus erect rf 12 Dhabas avsrlopitecinens Habits Avstrlpteineos A ee ‘Austrolopitecneos cca {@) modelo unilinear simples; (b) opiniao cléssica que situa OSineandertais en um fame secur (2) Daseado em Andes, 19844 ‘, copa oe: fo, Robe pon as una epee pale sesh exotatann ap Pao EOIN pT Pale a E quando os homens chegaram a América? Como vietam? Que tipo de ee tecnologia dispunham quando aqui chegaram? A partir deste ponto todo 0 consenso desaparece; e muitas divergenclas marcam as opiniées dos arquedlogos e outros pesquisadores. Na yerdade esta polemica & mals ou menos recente.Até bem pouco ‘tempo atras havia um consenso entra os arquedlogos. sobretudo os norte-americanos, de que a chegada do jo homem na América erairela jente recente, nao sendo anterior auns 12 ou 13 mil anos. oe é ii io; / Didsdo Centiea MAES Cert rome Geol stcleivede-] aes ‘ou ambas as faces. Ne variante Pench ecn cad eter Eola eet) Ieee sD PucreK¢ Diet soa ete ‘Abu: Meaaers, | América Pré-istrica Ro de Jansio, Ed. Paz e Terra, 1972, 9.92 Esta antiguidade remete a uma época,o final da Pleistoceno, em que os climas eam mais frios € secos, cam grandes geleiras que se expandiram nas regides polares e nas altitudes das grandes cordilheiras. As areas florestadas eram bem, menores, os ambientes em geral mais abertos € escampados, muicas vezes coberzos por vegetacdo rasteira ou florestas mais abertas. Nestes campos viviam manadas de animais herbivoros de grande porte, coma o cavalo americano e 0 mezatério, assim como seus predadores (como 0 tigre dentes-de- sabre, ¢ © homem, hloma sapiens), muitos dos quais se extinguiram quando os climas se aqueceram e as florestas se expandiram, por volta de 10 mil anos atras Os mares, cujas aguas se concentraram em geleiras nos pélos do planeta, se encontravam afastadas varios quilémetros das atuais linhas da costa, expondo extensas planicies litorneas hoje submersas, © proporcionando aos continentes formatos bem diferentes dos atuais. Desta forma, mais ou menos entre 18 e 13 mil anos atras as extremidades da Asia (Sibéria) e da América do Norte (Alaska), onde hoje se situa o Estreito de Bering, se juntaram, formando uma regio (chamada Beringia) que incerligava os dois continentes, formando entre eles uma “ponte”, uma passagem (figura 2).Através deste caminho as manadas de grandes animais passaram para as Américas e,atras delas, seus predadores, inclusive os primeiros grupos humanos, em pequenos bandos. Este cenario reforcado por um Conjunto de sitios arqueologicos existentes no sul dos Estados Unidos e norte do Mexico que exibem vestigios bastante 4 eu Indastriaslticas com pontas projéteis semelhantes 2 estas, tio antigas. quanto; fo descobertas em varios outros lecais do continente amaricana, inclusive em sua extra mmateriais lascados encontrados no extremo leste da Asia (Siberia), de chats argumel ns terem vindo os primeiros homens a chegar neste continente. ee A partir destas evidéncias os arquedlogos criaram a imagem do homem pleistocénico (também chamado de paleoindio) 0 primeiro a entrar na América, como a de um cagador ind6mito, nomade, que venceu o clima frio e outras dificuldades que foi encontrande pele caminho e assim conquistou 0 novo continente, de norte a sul.Alguns estudiosos chegaram mesmo a sugerir que estes bravos cacadores teriam sido os responsiveis pela extingao dos grandes animais que viviam nas Américas até por volta de 10 mil anos atras, quando desapareceram. De fato, em vitios sitios dessa época séo encontradas ossadas desses animais associadas a artefatos humanos. Desta forma, grupos humanos provavelmente organizades em bandos ¢ tridos, grupos enfin onde predominava a igualdade social, espalharam-se e ocuparam as diversas regides & ambientes das Américas, adaptando-se a estes diferentes ambientes que, a partir de 10 mil anos atras, vao também se transformando, se aquecendo e se tropicalizando. Nos ditimos anos diversos arquedlogos comecaram a discordar deste modelo. Alguns sitios arqueoldgicos em varios paises exibem datas bem mais antigas que 12 mil anos, chegando eventualmente a quase 50 mil anos, como € © caso do Boqueirio da Pedra Furada, na serra da Capivara (Piaui). Como seria de se esperar, estes sitios mais antigos so muito raros ~ pois havia bem poucos habitantes em epocas mais recuadas — e foram, quase sempre, muito modificados por movimentagio de terra, deslizamentos, erosao, tatus, formigas, raizes profundas e outras coisas mais, principalmence nos ambientes tropicais como o Brasil. Pouquissimos sitios muito antigos foram estudados, e a verdade é que as evidéncias apresentadas até o momento a favor da grande antiguidade do homem na América sio extremamente frageis. Os arquedlogos contrarios a esta posigéo questionam a autenticidade das industrias de pedra lascada mais antigas, sempre muito risticas, sugerindo de que se trata de lascamento natural, casual, e nao instrumencos intencionalmente fabricados. Questionam também as datacdes em si mesmas, que estariar datando fenémenos naturais como queimadas espontaneas em periodos de muita seca, ¢ nio fogueiras feitas pelo homem. Apesar da escasser e fragilidade das evidéncias disponiveis, um crescente ntimero de estudiosos comeca a aceitar a idéia de que o homem teria penetrado na América bem antes ido diferentes momentos em que, a0 longo destes ltimos Beringia teria sido formada, possibilitando a passagem esforcos de in pio dos estudos de genética de populacSes, ante se tem despertado, no s6 nos meios nos tempos da caca Como foi dito, por volta de 10 mil anos atris jA existe registro arquecl6gico ca presenca humana por todo 0 continente americana. No Brasil, sitios dessa @poca podem ser encontrados ‘em codas as regides, da Amazonia a0 Rio Grande do Sul. Nessa época, de maneira paulatina. os ccimas e 2 configuracio das formacées vegetais — floresta amazonica, os cerrados do planalto central,a mata atlantica, etc—vao se tornando como se encontram hoje. Com 0 aquecimento geral do planeta grandes massas liquidas se desprendem dos pélos eo nivel dos mares sobe, dando 20s poucos ao litoral 0 formato acual. ‘Assim, também de maneira gradual, os pequenos grupos humanos dispersos pelo vasto territorio brasileiro vio-se adaptando aos diversos ambientes em que vivian e criando cada vez mais caracteristicas lingifticas culturais que 0 diferenciavam uns dos outros. Este € 0 perfodo que os arquedlogos chamam de Arcaico, quando sociedades humanas astante discintas culturalmente vao se formando (chamadas de tradigées arqueologicas), € 0 nlimero de sitios arqueolégicos aumentando, reflexo da expansio demografica que vai ‘ocorrendo ao longo dos milénios, Os povos deste periodo séo cagadores- coletores como seus antecessores pleiseocénicos, ou seja, tinham uma economia baseada na caga © na obten¢io de produtos vegetais do cerrado ¢ das florestas. Diferentomente dos cagadores de época mais fria,no entanto, estes povos aproveitaram a grande diversidade de recursos disponiveis nos novos ambientes tropicais, cagando animais menores - frequentemente com armadilhas, ¢ nfo com armas afiadas - aprofundando sous conhecimentos das comunidades vegetais de onde viviam. e da coleta HEB cup cs cio Parato Centro-Oriental HIB Gcu005 do Plarato mericional (moa) II Grup do Litovel (Gambaquis) TEI 1100 dl Floresta Sub-Tropicel (Humes) HEEB Aces ce trarsicao 1. Pedra Pintada (12.000 AP) 2 Mina (5.175 A) 3. Angico (8.000 AP.) {Casa do Cabocio (10.000 AP) 5, $80 raimundo Nonato (10,000 AP.) 6. Lapa do Sol (12.000..P) T Santa Elina (10.0004?) 8. Serrenopolis (11.000 AP) 9. Caiaponia (11.000 AP) 10. Unai (9.000 4.0.) 11. Janyaria (11.000 A. 4 Lagoa Santa (90.000 AP) 13. Serra Azul (2.000 AP) 14, Rio Claro. (12.000 AP) 15, Piru (7.000. AP) 16. Guatel (5.500 AP.) 17. José Vieira (6.000 AP) 48 Vinitu (7.000 AR) 19. tapirange (7.000 AP) 20. equi (3.000 A.P.) 21. Rio Pardinho (1.000 A.A.) 99. Umbxi (5.0004. 23. Laguna (3.000 AP.) 4, Joinville (5.000 AP.) 95, Baixads Cananéiallguape (5.000 A.P) 26. Baixada Santsia (6.000 AP) 97, Literal Fluminense (4.000 A.B.) Areas Arqueolégicas Desta forma,ac longo dos milénios, vao se tornando grandes conhecedores dos habitos dos ‘animais ¢ das plantas, aprendendo aos poucos a manejar esses recursos em seu préprio interesse, O sucesso adaptative dessas populacées faz com que cresgam ¢ s¢ modifiquem, expandindo-se por todos os cantos do territério brasileiro. De fato, por volta de 4 mil anos atrés ro hd rinedo que jd nfo tenha sido ‘ocupado por estas sociedades de cacadores-coletores. Na exposicio Brasil 50 mil optamos por mostrar quatro exemples de sociedades de cacadores- coletores, adaptadas a diferentes ambientes tipicamente brasileiros. Sao elas a Tradi¢io Umbu, nas, florastas e planaltos do sul do Brasil, a Tradicio Itaparics, que caracteriza os cagadares-coletores do planalto central, Tradicio dos Cagadores de Dunas ¢ 2 Tradigéo dos Sambaquis. que é definida pelos remanescentes de culturas muito bem adaptadas 208 ambientes litoraneos.Veja na figura 4 a distribuigio aproximada destas culturas no territorio brasileiro, Nas florestas do sul (Mata Atlantica) @ nas areas abertas dos planaltos de araucirias predominaram os cacadores de Tradico Umbu, que continuaram a fazer pontas de flecha de pedra lascada, sendo por isso considerados herdeiros diretos daqueles cacadores do periodo pleistocénico. No encanto, varias outras ferramentas (figura 5) liticas eram tambéin fabricadas, mostrando aos arquedlogos que estes grupos de cacadores-coletores também praticavam uma grande variedade de atividades arvesanzis envolvendo 0 uso de madeira, fibras e ossos. No final do periodoArcaico, por volta de 2,5 mil anos atrés, muitas destas sociedades com tecnologia de lascamento Umbu nao eram mais némades e stas aldeias ocupavam territérios extensos, interligados.A riqueza de recursos que c ambiente oferecia, técnicas de estocagem « sistemas de circulagao de mercadorias (e informagio) possibilitaram a estes grupos uma grande expanséo territorial e demnografica 20 final deste periodo. Se aliarmos o fato de que suas aldeias eram estiveis ¢ mais ou menos populosas ao profundo conhecimente que certamente tinham dos animais © plantas das ragides de floresta e campo aberto em que viviam, pedemos pensar que estas comunidades, provavalmente j dispunham de conhecimento 5. Pontes de projétil e ferramentas Umou (Acervo MAE/USP) suficiente para manejar algumas espécies de plantas € animals, por exemplo pegar mudas de ervas € plantas comestiveis na floresta e as trazerem para © quintal de suas casas, ou ence por exemple capturar vivos alguns filhotes de passaros como papageios e araras. Isso parece pouco,mes nao :trazer mudas de plantas para © quintal significa dispar dessas ervas para chas muito mais facilmente,ou mesiro frutos ou palimito.Ao observar estas plantas crescerem esta dado primeiro passo para o que chamamos de domesticacio, ou seja, quando o homem aprende a cultivar as plantas das quais se alimenta.O mesmno ocorre com os animais,sendo muito mais simples por exemplo obter plumas de arara para seus adornios com animais disponiveis no quintal do que soltos nas forestas. Assim, embora a arte de cultivar alimentos de maneira regular (ou seja, as rogas) seja justamente © que vai caracterizar © periodo seguinte, quando as sociedades ind'genas tornam-se plenamente agricultoras, 0s arquedlogos estio convencides de que a tecnologia de cultivar alimentos é resultado de um longo periodo de manejo ¢ manipulagao das espécies vegetais nativas, que nfo ecorrau do dia para a noite e que se desenrolou ao longo do Arcaico, quando 03 grupos de cagadores vio experimentando com seus ambientes de exiséncia. Desta forma,€ interessante observar que os arqueslogos encontram alguns objetos lascados, ¢ até mesmo laminas de machado lascadas com apenas o gume polide, que reforgam este ponto de vista. Quando se pensa em cultivo, os machados sio ferramentas fundamentais, uma vez que permitem a abertura de claros na mata para semear 05 cultivos, as rosa. Os cendrios para os cagadores-coletores do cerrado exibem uma evolugio semelhance. As seqiéncias conhecidas, que remontam a cerca de I mil anos em Golds e Tocantins, sugeram que a tecnologia do lascamento da pedra evoluiu de uma economia mais centrada na caga de alguns animais maiores, para a caga ¢ coleta generalizadas, ou seja, procurando aproveitar a crescents disponibilidade dos recursos animais de pequeno e médio porte, e também vegetais, propiciada pela progressiva tropicalizagao dos ambientes de cerrado € florasta mista do planalto central brasileiro. ‘Acui, também, as sociedades de cagadores-colatores parecem tar aos poucos aprendido 2 “admiristrar” as espécies animais e vegetais disporineis — por exemplo,o pequi ¢ 0 babacu~e a corstrulr conirios cada yez mais propicios para sua propria adaptacio a estes mesmos ambientes, E curioso ‘obsorvar que, ein divarsos locais do planalto,a cerdmicajuma caracteristica teenologica tipica das sociadades agricolas, vai aparecendo de maneira discrata no registro arqueologico. nao alterando as demals caracteristicas tecnolégicas relacionadas as induistrias lascadas @ ao padrdo de assentamento destes grupos Ou saja.os arquedlogos tém, nestes casas (refiro-me 4 Tradicio Una) a nitida impressio que Sio grupos! ~queyvia, paulatina mente, incorporando as técnicas de clio @ de producdo ceramica 20s ip ‘habitos: =. econdmicos ais tradicionas,rlicionados a caa.a pesca’ coer geraatas a §)~-Assimeste mesmo tipo de evolucao econdmica ¢ demogt sca parece ocorter em toda a parte Ty “ho Brasil entre 7 mile 2,5-milanos-atras, periodo 20 longo do qual’6s grupos humanos, cuja conomia basea WWa-S€ sobretudo na caga aos animais de grande porte, vai aos poucos diversificando '\ sua base de cd alimentares, incorporando uma grande variedade de animais de paces poreeé ~ \aspéties vegetais, os quais\yaecno devide tempo, aprender a domesticar” \ \ Hi indlicios de qué, na Amazonia, toda este processo.ocorreu muito-ahtes do que no planaleo centrale talvez 0s paleo~ amaz nesses | ‘estivessem comesando a preparar suas'rogas ~ previvelmente de mandioca ~ murito ances ~<“ralyez mesmo pi epee 7 mi] anodavrés)Infelizmence ainda saberiio3 pouco sobre isso, mas os proc rarer proyocaiea. linhas de praia e bafas se estabilizaram de maneira aproximadamente igual a come hoje-as conhecemos, e nao foram achados sitios litoraneosimals® antigos do que 5 mil anos, cue sio relativamente raros, sendo a maior parse deles datados entre 4 € mil anos atrés. Os sitios arqueclégicos litoraneos rrais comuns, encontradigos por toda a costa brasileira, so os scrnbaquis;palavra da lingua Tupi que significa "monte de conchas", Quando as, numerosas tribos falantes dos varios dialetos Tupi thegaram ao A ltoral por voka de 2 mil aos atrds,estes grandes montes de ‘conchas € seus construtores ja Id se encontravain, eesta & » certamente uma des principais razes que expligm © deseparecimento das sociedades sambequieiras. Fotos: PauinDe Blase Qs sambaquis sao amontoados de conchas de diversos moluscos — berbigdes, ostras € ‘mariscos, principalmente — cujo tamanho varia desde pequenos monticulos de dois metros de altura e dez de comprimento, até verdadeiras, montanhas de 500 metros de excensio e mais de 60 metros de altura (figura 6). Encontram-se em. diversos ambientes costeiros, mas concentram-se principalmente nos ambientes ricos € diversificados das enseadas e dos grandes lagos. ‘Assim, so encontrados em quantidade nas areas ‘marcadas no mapa da figura 7. © {ato de serem formados principalmente por conchas fez com que, desde © perfodo colonial, fossem explorados como jazidas de calcario {figura 8), sendo muito utilicados na construgao das cidades antigas como Santos, Rio de Janeiro ou Salvador. Por esta razio, os sambaquis que existiam na Baixada Santista, na baia de Guanabara e na Bala de Todos os Santos foram quase que totalmente destruidos,o que ‘correu também, com menor intensidade, por todo o litoral brasileiro, A destruicao intensiva destes sitios 56 cessou nes anos 80, quando a legislagao de protecio aos monumentos arqueclégicos, existente desde 196|, passou a ser aplicada com maior rigor. Mesmo assim, hoje em dia ainda ocorrem atos de vandalismo (figura 9), ¢ é dificil encontrar um sambaqui intacto. Olhando por dentro, percebe-se que a composigio de um sambaqui nio homogénea, Sua estratigratia ou seja, a seqiiéncia de camadas que o compaem, formando um desenho lenticular quando ‘obsetvada de perfil (figura 10) ~ mostra que ele & formado por uma série de epis6dios eposicionais, em sequiéncias que podem ‘Gurar as vazes mais de mil anos.As camadas sfo bastante diferentes umas das outras em tamanho e composicao, sendo comum que em algumas predomine uma espécie de concha, enquanto em outras a concha é diferente, ea espessura ca camada menor. 7. Mapa da costa brasileira com as reas de concentracio de sambaquis f » Salgado stay Sue remain sone BROASIL references fo" the ‘kcussion o1 conplesity amon he samba moundbules om the southem shores / ‘of Bac 9 Revite cearqueoiogis Americana, 15 1998, p78. ‘Rio-de Janeiro ‘Cananéialjoinville imarui/Camacho Foto: Faulo buare 8. Destruicéo de sambaqui por exploragéo comercial Além disso, em algumas camadas encontra-se grande quancidade de restos (0550s, principalmente) de peixe, em outras nao. Algumas contém fogueiras & sepultamentos (quase todos os sambaquis contém sepulturas), outras apenas conchas. Em algunas camadas restos de atividades humanas — objecos de pedra ou osso, restos de ossos de caga — sd comuns, enquanto que em outras ndo se encontra absolutamente nada além de conchas e mais conchas, Apesar destas diferengas, que reflecem diferentes razées para o 9. Motocross em sambaqui (Garopaba — SC) Foto: Pauta De leis actmulo de conchas e outras coisas, estas atividades sao reiteradamente produzidas nos mesmos locais,o que explica © crescimento paulatine dos sambaquis ao longo do tempo, ¢ parecem mesmo representar mesmo a incengao das sociedades sambaquiciras em construir esses grandes monumentos, em dar-Ihes visibilidade E interessante notar que os sambaquis se encontram, geralmente, em regides planas © com grande visibilidade, canto da terra quante do mar, ou dos lagos. Assim, os sambaquis crescem contra estes 10. Detalhe ca estratigrafia de um sambaqui cenrios de espagos amplos @ abertos, adquirindo grande monumentalidade, sendo vistos 4 distincia e, do topo de um deles pode-se sempre observar varios outros. Como & evidente, 08 sambaquieiros eram um povo afeto aos ambientes aquaticos ¢ excelentes canociros ¢ navegadores, muito bem adaptados as regides de mangues ¢ ilhas, baias largas © grandes lagos. Em Santa Catarina aleangaram ilhas bem distances do litoral, 0 que mostra sua capacidade de rravegar.Tiravam principalmente do mar ¢ dos lagos a base da sua subsisténcia, @ cram excelentes pescadores, como mostram as enormes quantidades de restos de peixe presentes em algurnas das camadas que formam os sambaquis. ‘Até bom pouco tempo atrés 0s arquadlogos pensavam que os sambaquis fossem 0 produto de bandos némades que viviam principalmente da coleta de moluscos, mudando-se sempre que © estoque de ostras ¢ mexilhdes do local onde se encontravam se esgotasse. Sé mais tarde, por volta de 2 mil anos atrés, teriam feito da pesca sua principal fonte de alimentacio. De fato, quando olhamos pars as camadas de um sambaqui,sio as conchas que chamam 2 atencio pois, presantas em quantidades assombrosas, sfo elas que conferem 20s sambaquis 0 volume e as dimensées, monumentais que estes sitios exibem. 11 12. Agulha éssea utilizede pelos grupos sambaquieiros (Acervo MAE/USP) 11. Composigao de um sambaqui (detalhe) ‘Como estes sitios exibem numerosas camadas de conchas superpostas, entremeadas de camadas de areia ou terra preta, os arquediogos formularam a leicura de que estas camadas seriam diferentes momentos de ocupasio (onde se privilegiava a espécie de molusco! alimento mais disporivel no momento), entremeadas de momentos de abandono. Esta leitura os levou, portanto, a crer que se tratava de bandos némades, pequenos, com uma tecnologia pouco desenvolvida e extremamente dependentes das vicissitudes do ambiente em que viviam, por exemplo a escassez de moluscos (figura |). Estudos recentes, realizados nesta iiltima década, estiio mostrando um cenirio interpretative bastante diferente para as populagdes sambaquiziras. Em primeiro lugar, estudos zooarqueolégicos (ou seja, o estudo dos restos de fauna presentes no registro arqueolégico) tm mostrado que os sambaquieiras sio principalmente pescadores e no coletores de moluscos, 0 que significa que os peixes sempre foram o prato principal da dicta daquelas populagdes. Apesar das canchas formarem um volume muito maior. 2 andlise meticulosa dos restos presentes nas camadas dos sambaquis mostra que os restos de peixe, bem mais discretos e menos visiveis, representam, entretanto, uma proporsio de carne muito mais significativa ~ é da pesca nas baias e lagoas, portanto, @ mesmo nos sitios mais antigos, que os sambaquieiros tiravam a base de seu sustento. Por outro lado, o estudo mais cuidadoso da inddstria 6ssea (figura 12) mostra que eles dispunham de uma tecnologia pesqueira sojisticada, com redes, cercos, anzois, etc. Os artefatos de pedra,lascados € polidos, por sua vez, mostram que também processavam grande quantidade de alimentos de origem vegetal, provavelmente misturando- os com os peixes € moluscos. Estudos detalhados em alguns sambaquis trazern novas revelagSes. Enquanto alguns parecem configurar reas residenciais pequenas, outros sio grandes cemitérios, Em um destes, localizado no sul do Estado de Santa Catarina, foram enterradas dezenas de milhares de pessoas ac longo de 500 anos de forma ininterrupta. Estes dados apontam 13. Zodlito (Acetvo MAE/USP) para populagdes bastante grandes ¢ estiveis em uma mesma regio, pescando em ambientes muito produtivos como as lagoas e as baias (até hoje muita gente vive s6 de pesca e coleta de moluscos nessas regides), um estilo de vida totalmente diferente daquela idéia que se tinha antes, de que eram pequenos grupos nomades atras de bancos de moluscos. ‘Ao contrario, os sambaquieiros viviam em comunidades estaveis e bastante densas, uma Inverpretacto que € reforcada também pelo estudo dos restos esqueletais encontrados nestes grandes cemieérios, que aparencemente recebiam pessoas vindas de diversas aldelas. © esiudo culdadoso dos esqueletos dos sambaquieiros mostra que sofriam de doengas epidémicas que sé existem em grandes adensamentos populacionats, que ngo se encontram entre pequenos bandos de cacadores coletores, Enguanto a maior parte dos sepultamentes, que envolvem uma complicada sequiéncia de rituais, sao bastante simples, alguns vém acompanhados de diversos objetos magnificamente esculpidos, que chamamos zoélitos (figura 13),s vezes mesmo recobertos por uma camada de argila ricarmente piincada, quase como um sareéfago.A partir destas © outras evidéncias, os pescuisadores consideram provavel a existéncia de diferenciagdo social entre os sambaquisiros, o que significa que estavam passando da organizagao tribal igualitéria, comum entre as sociedades nativas americanas desta época, para formas de organizagio mais elaboradas. Mas... s¢ 05 montas de conchas que formam os sambaquis nio sio simplesmente restos de comida, jd que eles comiam principalmente pelxes, como se explicam asses formidaveis actmulos? Estudos recentes mostram claramente que os sambaquis foram construidos a partir de uma intengio explicita de obter estruturas monumentais, provavelmente marcos terricoriais e simbélicos, de grande visibilidade. Esta explicagio envolve também a idéia da que seria necessirio, para construi-los — os maiores, pelo menos — uma organizagio da forga de trabalho camunal em escala ample, supra-tribal, reforcando a idéia de lacos politicos ou raligiosos e liderancas que v4o alérn da mera comunidade local, integrando grandes populacoes em escala regional A partir destes dados os arquedlogos criaram uma nova leitura e interpretacio destes grandes sitios, considerando-os restos de populacdes que dispunham jé de um consideravel grau de complexidade em termos de demografia e organizacao social e territorial, com uma cultura extremamente bem adaptada @ um ambiente de abundancia, ca qual infelizmente muito, pouca colsa restou e cuja riquoza e sofisticacao apenas “yy somegamos a vislumbrar, i Quando os portugueses e outros europeus comesaram a chegar ao litoral do Brasil, por volta de 500 anos atrés, nfo encontraram aquelas sociedades que construiram os grandes sambaquis, mas sociedades bastante diferences dos grupos sambaquisiros. Os povos indigenas que Pero Vaz de Caminha e, depois dele, varios outros viajantes europeus descrevem, viviam em grandes aldeias, as vezes com até 2 mil habitantes, ¢ tinham na agricultura sua principal base de sustentagio (figura 14) De fato, os primeiros exploradores € colonos portugueses logo comegaram a trocar suas coisas por alimentos produzides pelos indios,¢ pouco tempo depois comecaram também a cultiva-los, juntamente com alimentos que trouxeram da Europa. E foi assim que © milho,a mandioca,o amendoim,o carda abébora, 0 feijdo e varios outros produtes nativos da América tropical passaram a fazer parte do cardipio dos recém chegados e,nos séculos seguintes, da nova gente que se foi formando e que viria a se chamar brasileira (figura 15) Estes povos que viviam no litoral tinham um jeito de cultivar seus alimentos que continuou a ser usado durante toda 0 periodo de formacio da Brasil, e na verdade ainda € praticado até hoje. em regides mais afastadas e ainda nao industrializadas Este sistema chamado coivara, que ficou popularizado com o nome de roca e ainda & muito comum, funciona mais ou menos assim: prmeiro, derruba-se um trecho de mato (nao muito grande), sendo comum, que seja mato secundirio, ou seja. um lugar onde, dois ‘ou trés anos atrds, jd havia sido feita uma roca. Depois de deixar'o mato derrubado secar por um tempo, acela-se fogo, que limpa 2 area ea recobre de cinzas. Em seguida, com as primeiras chuvas, semeia-se 0 terreno, tendo o cuidado de plantar espécies variadas & invercaladas, por exemplo, milho € feijic. Depols & so deixar brotar e crescer, ¢ mais tarde colher, procurando manter a roca limpa de outras ervas e mates que eresgam casualmente junto. ] | : | i i | i 14. Gravura de Hans Staden retratendo o contato entre indigenes € europeus 15. Alimentos domesticados pelos indigenas. 15 Trata-se de uma cécnica de cultivo agricola criada em (e para) ambientes tropicais. quentes € Umides, as chamadas terras baixas da América,o que inclui a Amazénia,a depressdo pantaneira e as bacias fluviais e costelras do litoral oriental (Antico). Nao precisa de irrigaco e, como € formada por areas de dimensées geralmence nao muito excensas (que possam ser mantidas em. bases familiares), tm um impacto pequeno nas florestas circundances, que reocupam rapidamente a area cultivada, abandonada depois da colheita.Apés um ou dois anos, os habicantes de uma aldeia vao fazendo rodizio com as terras préprias para cultivo que existern nas redondezas, de modo que em pouco tempo mate reconquista as antigas rogas. Na medida em que penetraram no territorio que seria 0 Brasil, os portugueses logo perceberam que este estilo de agricultura, combinado com um estilo de organizagao tribal das sociedades indigenas, era comum por quase toda a parte das terras baixas das bacias dos grandes rios como o Paraguai (Pantanal) ¢ 0 Parand, e também naqueles vales dos rios que correm diretamente para o mar, como o Paraiba, 1 Doce, o Ribeira de Iguape e © Jacui, Foto: Wagre: Souza e Sk 6. Lamina de machado litico (Acerve MAEJUSP) Além disso, era comum que suas linguas fossem também semelhantes: de fato, um europeu que aprendesse a falar 0 dialeto dos indios do litoral de Santa Ca conseguiria se entender com tribes do Nordeste ou do Pantanal. Foi por conta deste fato, uma grande homogeneidade linguistica e cultural de carater continental, que os Jesuitas, 0s primeiros a estucar as linguas indigenas. logo criaram uma espécie de Jingua geral. que Ihes permitiu acessar grupos indigenas nas mais variadas partes do Brasil e terras baixas proximas, hoje em territorio do Paraguai e da Bolivia. rina Atualmente os lingliistes que estudam estas falas mostram que elas pertencem a uma grande familia de idiomas aparencados, chamada Tupi- Guarani, concentrando-se os grupos que falam Guarani mais a0 sul, na bacia do rio Parana até Sio Paulo, ¢ 0s falantes dos dialetos Tupi se espalham mais para © norte, por tedo ¢ litoral ¢ partes da Amazénia, ¢ também nas planicies do Pantanal (figura 17) Niio 6 toa que estas sociedades, espalhadas por uma érea tio grande, tivessem tanto em comum, desde a lingua e os costumes, a base da economia agricola de rogas tropicals, e também virios mitos e lendas samelhantes. Os estudas lingilisticos e arquealégicos indicam que todas estas tribos Tupi tiveram uma origem comum, um mesmo grupo original que, a partir de algum panto que parece estar situado entre o baixo ¢.0 medio ‘Amazonas, teve um extraordingrio proceso de expansao que os levou, a partir de cerca de 4 ou 5 mil anos atras, a conquistar e colonizar a maior parte do que hoje é o Brasil 18. Aspectos da cerémica Tupi-Guarani Esta expansio foi paulatina ¢ se dou através de uma migragio ao longo dos grandes ros, pois se tratava de um povo que, mantendo-se fiel as suas origens amazénicas, tinha um estilo de vida ribeirinho, viajando ¢ pescando ‘em canoas e fazendo suas rogas nas varzeas férteis, baixas @ quentes, tal como faziam na Amazénia, onde alids varios grupos permaneceram. Quando os europeus chegaram, eles js haviarn contornado todo 0 tarritério mais alto e seco do planalta central brasileiro (onde pouco penetraram) © contato destes grupos com os europeus nos deixau relatos bastante interessantes (como por exemplo a célebre narrativa de Hans Staden), em que se pode perceber estas sociedades Tupi bastante organizadas em seus territorios, com uma impressionante densidade demografica, algumas vezes mesmo com chefes regionals, em um exemplo de organizagdo além do nivel tribal, onde a guerra tem uma funcio Importance para regular as relagoes entre os grupos, com uma pujante economia agricola (e também muita pesca, principalmente no litoral) que os sustentava, Considerando que eram sociedades agricolas, nao é de surpreender que a ceramica seja sua caracteristica arqueolégica mais marcante, uma vez que potes € tigelas de barro faziam parte de seu cotidiano, tanto quanto das ocasiées cerimoniosas. Estes potes de barro cozido deixam, quando quebrados, cencenas de fragmentos (cacos) nos locais onde se localizavam suas aldeias (sitios arqueolégicos). Como esses materiais resistem bem ao tempo so, hoje, estudados pelos arquedlogos (figura 18) A cerimica dos povos Tupi tern padrdes decorativos préprios e marcantes, que se encontram ern sitios arqueologicos por todo 0 Brasil, com excecio do miolo do planalto central brasileiro. Apesar de algumas variacoes regionals de formas ¢ estilos de decoragio, € uma ceramica bastante homogénea em toda essa area, reforcando a mesma nocao fornecida pelo estudo das linguas. Hoje os arquedlogos sabern que havia uma integragio muito grande regides distances, talvez mesmo redes de comeércio entre algumas delas. De fato, um local como Sao Paulo possuia uma ampla area de conexdes,¢ foi seguindo pelos caminhos dos Guarani (para o sul) € Tupi (para o oeste seguindo pelo rio Tieté,€ depois par @ também para o leste no vale do Paraiba) que 08 bandeirantes pauliscas rasgaram fronteiras € integraram a maior parce das terras baixas & nere estas norte, coroa portuguesa. Ficou conhecido um caminho que integrava a regido de Piratininga com as provincias guaraniticas do sul ¢ do este, até onde hoje é o Paraguai,com ramificagGes regionais conexées até os Andes, chamado Peabiru (figura 19). Essa enorme expansao ¢ a considervel homogeneidade cultural dos Tupi pode ser também compreendida quando observamos a toponimia, isto é, 05 nomes dos lugares por todo © Brasil. £ muito interessante perceber que Araraquara, nome de importante cidade no interior paulista, também designa um pequeno rio no extreme norte do Estado do Amazonas. Se hoje 0 Brasil tem as dimensdes @ a conformagie fisica que tem, isso se deve sem divida 20 fato de os colonizadores portugueses terem aprendido a fala e caminhado sobre os passos dos povos Tupi enquanto isso, no planalto central... Enquanto 0s povos Tupi se expandiam pelas cerras baixas em torno do planalco central brasileiro, ali, no coracao da América, oucras sociedades também floresceram, com estilos de vida bem diferentes dos Tupi, a comecar pelas linguas, pois os habitantes das chapadas e serras de Brasil central falavam predominantemente dialetos de ‘outra familia linguistica, chamada Je. Os povos de lingua Jé, assim como os Tupi, também tinham uma economia agricola, fazendo rogas mais ou menos no mesmo estilo dos cultivadores da virzea, mas adaptando-se aos solos menos férteis e os climas mais frios e secos da regido planditica do centro do Brasil (figura 20). Nesta drea as florestas tropicais quentes ¢ limidas, tio do agrado dos cultivadores de varzea, nfo se desenvolvern muito, apenas 20 longo dos rios e trechos mais rebaixados do terreno. vegetagio predominante & © cerrado, plantas que sobrevivem, muito bem em lugares mais secos,e formam uma paisagem mais aberta que as selvas. Nas partes que sio mesmo muito secas, como no Nordeste do pais esta vagetacao se torna quase um deserto, bem rala @ com muitos cactos e arvores espinhentas, e chamada de caatinga. No entanto,a0 contrario do que se possa imaginar, este tipo de vegetario nfo & mais pobre do que a fioresta, bem o inverso. Trata-se de uma regiao muito rica de plantas comestiveis e caca,e nestes amplos espacos planalticos do Brasil central desde 0 final do Pleistoceno (ou seja. uns 11 mil anos atras), se desenvolveram cuituras baseadas na caca € na coleta que, como vimos. os arquedlogos reconhecem principalmente atraves das industrias de pedra lascada (figura 2!) Estas culturas adaptaram-se bastante bem aos ambientes ricos do cerrado e parecem ter durado uns bons 10 mil anos sem grandes modificagdes tecrolégicas,o que demonstra a capacidade de 90. Distribuigéo do tronco lingilistico Macro-Jé Fete! Wigner Scuke @ Sie (AACUSP) suporte nada desprezivel destas Areas onde as florestas nfo crescem, mas a Yariedade de vegetais ¢ animais comestiveis é ainda maior que nas matas. De fato,a partir de uns 2 mil anos atrés, essa gente parece ter comegado a adotar algumas técnicas ainda incipientes de cultivo e uma ceramica de formas arredondadas e bem simples, que comega a aparecer de maneira discreta no registro arqueolégico, dando bem a idéia de que sio (05 mesmos povos de antes que, sempre vivendo em aldeias no muito grandes, comecam a adotar novas formas de subsisténcia, Neo entanto, a partir de mais cu menos 1.400 anos atras, grandes mudangas vo tendo lugar no Brasil central. Grandes aldeias em forma de anel, as vezes chegando a 00 metros ‘ou mais de diametro, com dezenas de cabanas em torno de uma drea central vazia (ou pouco i as m e PPC Ree) ‘ocupada}, comegam a Ye iba ipie Se area. aparacer e se espalhar por todo o planalto, processo que ocorre até © presente (figura 22). Estes sitios arqueolégicos aparecem ja com esta forma definida e estilos de fazer ceramica bem caracteristicos, diferentes das formas simples que ocorriam antes, mas vasilhames grandes e grossos,e em grande quantidade, formando as vezes depésitos com milhares de cacos, como acontece nas aldeias também grandes dos Tupi nas cerras mais baixas que circundam o planalto central brasileiro (figura 23). So estas caracteristicas arqueoldgicas que fazem os pesquisadores pensarem que estes povos, falantes de linguas |é, vieram para o planalto |é com estas caracteristicas, talvez da Amaz6nia central, em um processo de expansio demografica ¢ de adaptagdo aos arnbientes de cerrado, No entanto, as datagdes arqueoligicas mais antigas parecem se encontrar no beste paulista sul de Minas, o que aponta para estas areas como a regio nuclear de onde os poves Jé teriam se originado e expandide, ja no proprio planalto central. Esta € uma questdo que as pesquisas arqueologicas, que infelizmente continuam poucas no Brasil, ainda nao conseguiu resolver, PEM Tracy orcas} sepultamento primario Neri ie Pré-Historia de area CH} Foto: Mirco A No entanto,a arqueologia ji demonstrou daramente que a visio wadicional que os antropéiogos tinham dos grupos do Brasil central, descrites como “sociedades marginais e pequenas de cagadores-coletores ndmmades”, é inteiramente equivocada. Na época da chegeda dos europeus os g-upos do planalto central viviam em aldeias bastante estdveis com centenas de pessoas em uma economia solidamente agricola, que envolvia inclusive técnicas de manejo. paraa fertiizagio des solos,¢ padrées de organizagio social muitissimo sofisticados, dos quais um foi escolhido para ilustrar esta exposicao. De onde quer que tenham vindo, estes grupos se expandiram muito rapidamente pelas dreas de cerrado e, alguns poucos séculos depois, j se encontravam por quase todo © planalto, quando outros estilos cerimicos, quem sabe derivados daquale estilo inicial (que os arquedlogos chamam de Tradicio Aratu), vao despontanda e diversificando © registro arqueolégico. No entanto, aquele padrao inicial de aldeia circular perdurou como um formato tipico de sitio do planalto central, refletindo um sistema de organizacdo social que, originado em algum momento ha mais de mil anos atras, & encontrado ainda hoje entre os descendentes, daqueles conquistadores que continuamn habitando os planaltos brasileiros, como os Xavante, Timbira e Kayapo. Assim, para enriquecer esta exposicao, escolhemos 0 modelo de organizacao social, da grupo indigena Bororo, que vive hoje nas escarpas ocidentais do planalto central brasileiro, no Estado de Mato Grosso, que consideramos adequado para ilustrar um sistema de organizagie social ern que 0 universo social espelha o universo natural (aldeia = mundo),¢ 05 individuos se organizam em clas“*tutelados” por animais ancestrais miticos como © jebuti,a onga, a cobra, ete. A ideia é que o modelo de organiza¢io social Bororo, tal como se encontra representado na arte pluméria em exibi¢ao, é o desenvolvimento de uma estrutura basica de organizagio e visio de mundo que comega a tomar forma na mesma época em que aparecem as aldcias anelares no plenalto central brasileiro. Desta forma, os grupos indigenas atuais falantes das linguas Jé podem ser considerados como legitimos herdeiros de uma cultura e tradigao — que envolve economia, adaptacao, mitos ¢ organizacio clanica das aldeias — que tem uma longs histéria, toda ela vivida e revivida no coracio do Brasil ao longo de pelo menos 1.400 anos. esplandor amazénico 21 22 o esplendor amazonico ages Emjquase todos os capitulos anteriores falamos de transformagées do olhar da Arqueologia sobre os povos que no passado viveram no territério onde hoje é o Brasil. No entanto, em nenhum outro lugar 0 olhar arqueolégico se transformou tanto, nos iiltimos anos, quanto na Amazénia, que realmente é um mundo @ parte, com intensas conexdes com outras areas da América tropical como 0s Andes e a regio do Caribe, além do Brasil Central (figura 24) A Amazénia sempre foi considerada, tanto pelos antropdlagos como pelas arquedlogos que la trabalnaram, como uma area que apenas recentemente fora conquistada pelas sociedades humanas, quando jé dispunham de técricas agricolas. Mesmo assim, as, sociedades humanas ali jamais teriam tido 2 chance de desenvolver sistemas de organizacao social ¢ politica mais complexes, en fungao da inadequagao do ambiente equatorial quente © imide, aliado a solos improdutivos e florestas com recursos escassos e disperses para a caca € a coleta As sociedades indigenas amazénicas estaciam assim condenadas a viver ecernamente em pequenos bandos némades, sempre em busca de novas reas para suas modestas rogas. Na yerdade, falta de pesquisas por uma érea tio ampla, associada 4 nogao (false) de “inferno verde”, um territério indspico onde of seres humanos & duras penas poderiam sobreviver, acabaram gerando esta perspectiva inteiraments equivocada sobFe a natureza das ocupagdes humanas na Afmaz6nia OcRaNO Tank aaGveanivn Pacieico ENO ODON TsO) 2.600 im AMERICA no SUT ea Peon) ener sar PCTs a Pesquisas arqueologicas recentes literalmence puseram esta visio do passado amazonico de “pernas para o are alguns pesquisadores sugerem na yerdade exatamence 0 contrério, ou seja, de que a Amazonia seria na verdade uma espécie de “Mesopotimia tropical”, uma area de origem © expansio cultural. Isto significa que, nao apenas as varzeas quentes e Gimidas dos grandes tios amazénicos nao foram as tiltimas fronteiras dos antigos americanos, como parece mesmo que,ao contrario, teriam sido 0 bergo de um conjunto de caracteristicas culturais que viriam a se tornar um padre predominante por toda a América oriental, tendo inclusive influenciado as grandes civilizagoes andinas como a dos Incas. De fato,as datagdes mais antigas para vestigios de vasilhames ceramicos que, como jé foi dito, geralmente encontram-se associados a0 cultivo de alimentos vegetais, vém da regio de baixo Amazonas, e aleancam quase 8.000 anes, sendo pelo menes 3.000 anos mais antigas que todas 2s outras, que aparecem no litoral do Paré e nos pampas do sul do Brasil, e também no Equador e na Venezuela. Estas evidencias apontam para a existencia, nas varzeas férteis da calha do Amazonas e seus afluentes. de um estilo de vida adaptado 20 ambiente fluvial extremamente rico para a pesca e outros produtos naturais, que parece ter suas origens mesmo com a tropicalizacao global da regio, a partir do final do Pleistoceno e inicios do Holoceno. 25, Aspecto de. cultivo em uma varzea do Rio Solimées (AM) Doe lM Lao Kola cocoa Mes MoM ered ote Foto: wagner s multiplicagao as aldelas na calha do Amazonas, No entanto, infelzmente os dados disponiveis ainda sao muito escassos, e estas idéies ainda vao ter de esperar confirmacio através de novas pesquisa Seja ld como for, fato € que, por volta de mil anos acras, culeuras excremamence sofisticadas se desenvolveram ao longo de todo o ric Amazonas, desde a ilha do Marajé até onde hoje se encontra Manaus, ¢ mesmo além, em directo ao Peru € ao longo de alguns afluentes como 0 Tapajés. Os arquedlogos antes pensavam que se trarava de grupos que teriam vindo dos Andes € trazido de ia sua culcura sofisticada, “decaindo” entio na planicie tropical, onde nko teriam se adaptado © conseguido manter sua culeura, Hoje jd se sabe que essas culturas, como a Marajoara ¢ a Tapajénica, sio nativas da Amazénia ¢, a0 contrério, muitas 27. Uma funerdria Marajoara com representegao humana (Acervo MAE) caracteristicas das culturas andinas, em especial as mais antigas, parecem ter origens amazénicas. Os enormes sitios arqueolégicos —alguns com até 4 Km de extensao! - e os estilos de confeccio e decoracao dos vasilhames ceramics destes povos, que sia praticamente a tinica coisa que os arquedlogos dispdem para estuda-los, sugerem culturas sedentarias e muito complexas e sofisticadas, populacdes enormes vivendo de agricultura intensiva na varzea, e também da pesca abundante (Figuras 28 e 27) A elegincia e sofisticacao estética de suas ceramicas @ adornes nos falam do grande esplendor e ca riqueza de sua cultura material © 0S mitos que ainda hoje estruturam a visto de mundo de inimeras sociedades indigenas que ali seguem vivendo reforcam a idéia de que as culturas amaz6nicas tém origem autoctone,e deste grande berco surgiram varios povos que, nos milénios seguintes, se expandiram e conguistaram grande parte do que hoje é o Brasil, e mesmo além, para os confins da Bolivia, Paraguai e Peru. Tel erste] FAUSTO, Carlos. 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Jacques Marcovitch Vice-Reitor: Adolpho José Melfi Did-Reitor dle Culture e Excenséo: Adilson Avansi de Abreu Museu de Arqueologia ¢ Etnologia Diretcre: Paula Montero Divisao Cientifica: Maria Isabel D'Agostino Fleming Divisao de Difusdo Cultural: Maria Christina de Souza Lima Rizzi Texto Centifico: Paulo Antonio Dantas De Blasis Editor resporisével: Camilo de Mello Vasconcelos Pigjeto Pedagégico. Maria Christina de Souza Lima Rizzi (Coordenacéo), Camilo de Mello Vasconcelos, Carla Gibertoni Cameiro, Judith Mader Elazari Colaboreceres: Eduardo Gées Neves, Marlia Xavier Cury, Denise Maria Cavalcante Gomes, Miguel Pacheco @ Chaves Estagiatios. Giselle Tomazella, Carolina Tonioli de Vasconcelos, Livia Lara da Cruz, ‘Ana Carla Alonso, Aureli Alves de Alcantara fa Mauricio Candido da Silva, Maria Aparecida Alves iblioteca: Eleuza Gouveia, Eliana Rotolo : Wagner Souza ¢ Silva (Acervo MAE/USP) Cessao de imagens: Paulo A. D. 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