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AMOR SEM ESCALAS”’: TRABALHO, DESEMPREGO EVIDA PESSOAL™* Giovanni Alves O filme “Amor Sem Escalas”, de Jason Reitman (2008) possui como eixo tematico a problematica da relagio trabalho e vida pessoal, um dos temas candentes que emerge com 0 capitalismo global, tendo em vista que, sob as condigées da crise estructural do capital, tempo de vida tende a estar cada vez mais reduzido a tempo de trabalho. Deste modo, a precarizagio do urabalho oculta outra dimensio da precariza~ 40 labora: a “precarizacéo do homem-que-trabalha’. Neste caso, como iremos tratar adiante, corroem-se os lagos pessoais do homem como ser genético, isto é, a relagio do homem consigo mesmo e do homem com outros homens. O filme é baseado no romance homénimo do escritor Walter Kirn, no- velista estadunidense, critico literdrio ¢ ensaista, nascido em 1961. © romance foi langado nos EUA em 2001. Ele trata de uma temitica candente da época de crises financeiras, quando as grandes empresas tiveram que se reestruturar, enxugando seus quadros de pessoal. Submetidas & légica do capital financeiro, os downsizing torna- ram-se frequentes ante a instabilidade sistémica, Foi neste contexto do capitalismo global que emerge empresas dedicadas tio-somente a mediat 0 processo de demissio em massa nas grandes empresas. Num certo momento do filme, o gerente da empresa diz: “Os varejistas enfrentam um prejuizo de 20%. A indtistria automotiva esta mal. O mereado imobilidrio esté apatico. E um dos piores momentos jé registrados nos EUA. Este é 0 nosso momento.” 23 0 filme “Amor sem esealas” tem como personagem principal Ryan Bingham (George Clooney) e sua fangio consiste em demitir pessoas, Por estar acostumado com o desespero ¢a angiistia alheios, ele mesmo s¢ tornou uma pessoa fra. Além disto, Ryan adora seu trabalho. Fle sempre usa um terno e carrega uma smaleta,viajando para diversos eantos do Pais. Até que seu chef contrata a arrogante Natalie Keener (Anna Kendrick), que desenvolveu um sistema de videoconteréncia onde as pessoas poderao ser demitidas sem que seja necessiio deixar 0 esritério, Este sistema, caso seja implementado, pée em risco o emprego de Ryan, Ele passa entio a tentar convencé-la do erro que é sua implementagio, visjando com Anna para mostrar a tcalidade de seu trabalho, Ditigido por Jason Reitman, Ano: 2008. 24 Este texto ¢ umm extrato da andlite eritica mais desenvolvida do filme “Amor sem escalas” que compée 0 volume 4 do livro “Trabalho e Cinema” (Editora Praxis, no prelo). 81 Ilusionismo ¢ perversidade na arte da demisséo Demitir alguém torna-se arte da manipulagio. E uma forma de perver- sidade social, pois, nesse caso, 0 consultor motivacional deve preparar o empregado para sua “desmontagem” pessoal: o desemprego desmonta a vida pessoal do homem que trabalha, Na verdade, o filme expée o capitalismo global como uma maquina de “desmontar” pessoas humanas. No filme, nio apenas as vitimas de desemprego sio desmontadas, mas o préprio personagem principal — Ryan Bingham - possui uma “vida liquida’ que fui, com muitos poucos lagos humanos e sem compromisso afeti- vo. Bingham € 0 forasteiro pés-moderno, herdi solitario do capitalismo inglério, que, com alta dose de cinismo e técnicas motivacionais, busca legitimar a perversidade da demissio laboral. Ryan Bingham (interpretado pelo ator George Clooney) tem por fungao demitir pessoas. Ele trata em seu cotidiano com o desespero ¢ a angiistia alheios. Ryan naturalizou o ato de demitir ou comunicar a demisséo, buscando reconfortar as pessoas. Faz aquilo com habilidade emocional, possuindo uma psicologia adequada para lidar com o choque da demissio, Ryan parece aceitar seu trabalho como ele é. Ele acata a sua vida como esta ocorre. ‘Talvez Bingham despreze scu trabalho, mas nao o demonstra. Pelo contra: rio, aquilo se tornou uma rotina perversa que ele cumpre com frieza e habilidade pro- fissional. Na verdade, aquele “Mundo do Ar” lhe é acolhedor: 0 deslocamento pelos Estados Unidos da América “nas nuvens’, acumulando pontos no cartio de fidelidade da empresa aérea ¢ buscando bater um recorde extraordinario de pontos por milhas aéreas Ihe dio uma estranha satisfasio pessoal. No filme, Ryan Bingham sempre usa terno e carrega uma maleta, viajando para diversos lugares do Pais. Talvez possamos compara Ryan Bingham com um agen- te funerétio de esperancas ¢ perspectivas de carteiras, que executa seu trabalho com a frieza e habilidade profissional do coveiro; ou ainda comparé-lo com aqueles pisto- leiros solitarios do velho Oeste, “matadores de aluguel” do capitalismo flexivel, isto é, assassinos de sonhos e anseios profissionais, carismaticos exterminadores do futuro. Ryan Bingham, entretanto, é um personagem complexo. Primeito, ele ape- nas cumpre os designios do capital. E um mero executor da lei do valor que se impée, como entidade abstrata, a homens e mulheres que trabalham. Ele se recusa (¢ nao tem 82 a pretensio) de ser um heréi antissistema. Pelo contrario, ele se adaptou ¢ cumpre sua fungio sistémica com disciplina e responsabilidade pessoal: comunicar as pessoas que clas foram demitidas e reconforté-las com o tragico destino. Ele quer fazé-las dar uma resposta individual propositiva a tragédia da demissio. Ante o designio inevitivel do capital concentrado, a tarefa digna de Ryan Bingham é tentar, com sua técnica motivacional, evitar que a demissio e o desem- prego signifiquem a morte cfetiva para aqueles homens ¢ mulheres que trabalham (é interessante observar que, em nenhum momento do filme, aparece o nome da empresa que demite, que parece ser téo abstrata quanto o capital que domina, oprime e explora). Ryan Bingham criou um mote de consolo para dizer aqueles que comuni- cam a demissio. Diz ele: “Quem construitt impérios e mudou 0 mundo passou por isso. E por ter passado por isso obteve sucesso. Essa 6a verdade. Crie uma nova rotina ¢ logo estar de pé de novo.” Esta frase de Bingham é deveras interessante, pois expée a ideologia do convencimento perverso que o capital opera hoje no plano linguistico-locucional: fracasso é sucesso; morte é vida. Softimento é redengdo. Enfim, estamos diante da ideologia da autoflagelagio. Ora, perante o inevitivel, s6 nos resta adaptar-nos ati- vamente, visando a re-inserit-se com atitudes proativas, sempre individualmente, na roda vida do sistema. Ou, melhor ainda: é importante ~ ¢ decisivo - ver o lado posit vo da negatividade do capital. Como tratamos com destinos individuais, 0 consultor motivacional deve ter perspicécia para verificar as possibilidades positivas contidas na tragédia da demissio e do desemprego. Ryan Bingham exerce o papel de ilusionista social. Ele deve ter a habilidade profissional para fazer as pessoas demitidas acreditarem que outra vida € possivel. Ou melhor, fazé-las acreditar na positividade do estranhamento, Por exemplo, numa das suas entrevistas, Ryan Bingham demonstra, com genialidade, a arte de transformacao do fracasso profissional em realizagio pessoal. Um homem demitido esté inquieto: no sabe o que dizer para mulher e filhos. Nese momento, Bingham é acompanhado pela jovem Natalie Keener, colega de trabalho que quer aprender ~ ¢ exercitar ~ a arte de demitir pessoas, reconfortando-as ¢ instigando-as a atitudes proativas na superaéo do desemprego. 83 No primeiro, momento, é a jovem Natalie Keener quem entrevista 0 ho- mem demitido, Ela pergunta: “Subestima o efeito positivo dessa transformacio sobre seus filhos?”. A resposta dele é ironicamente contundente: “Efeito positive? Ganho 90 mil por ano. O seguro-desemprego dé 250 délares por semana. E um efeito positivo? Ficaremos mais aconchegados sem pagar a prestagio da casa, porque nos mudaremos para um apartamento de quarto e sala. E sem os beneficios poderei abragar minha filha, que softe de asma, jé que nio poderei pagar a medicacio.” Indiferente ao drama humano, Natalie utiliza um argumento tipicamente teenocrdtico para legitimar a barbérie social. Diz cla: “Os testes mostram que criancas sob trauma moderada tendem a se empenhar academicamente como forma de colabo- rar” Indignado com a argumentagio dela, o homem demitido exclama: “Vi i merda Eo que meus filhos pensario, Ryan Bingham percebe que a linha “tecnocrética” de argumentagio utiliza- da por Nathalie no funciona. E preciso utilizar outro expediente de convencimento. Ele questiona o homem demitido: “A admiracio de seus filhos é importante? © ponto nevrilgico da estratégia do convencimento a ser utilizada por Ryan. Deve-se manipular a percepgio (e autopercepsio) que o homem demitido tem de seus filhos ¢ da sua familia, Trata-se de elemento importante da constituigéo do self Bingham ob- setva: “Duvido que o admirassem’. © homem demitido fica intrigado com a observa- sf, pois, segundo ele, Ryan devia consolé-lo e nio questioné-lo, “Nao sou terapeuta, 36 vou alerté-lo”, diz Ryan. Aaatitude calculada de Ryan Bingham mais um elemento da estratégia de convencimento: 0 distanciamento desinteressado como meio pata legitimar o argu- mento. Bingham sé quer alerté-lo e nada mais, Ele interroga 0 homem demitido: “Por que criangas amam atletas?”. E ele mesmo responde: “Criancas amam atletas porque perseguem seus sonhos’, Eis a questéo: o homem demitido deve perseguir seus sonhos se quiser que scus filhos o admirem. De modo habil, Ryan sabia que 0 homem demitido tinha sido, hé tempos, especialista em cozinha francesa. Muito provavelmente, 0 sonho dele era ser cozinhei- ro profissional. Em algum momento, entretanto, depois da faculdade, abandonara © sonho, vindo a trabalhar na empresa que hoje o demite. Ryan pergunta: “Quanto pagaram para desistir do seu sonh 2”. E arremata: “E quanto pretendia pagar para fazer 0 que gosta?” 84 © homem demitido, pondera ¢ exclama: “Boa perguntal”, E Ryan Bin- gham conclui com sua licéo de vida: “Vejo pessoas trabalhando na mesma empresa a vida toda, como vocé. Chegando ¢ saindo todo dia. E néo tém um momento de alegria. Entio é a sua oportunidade, Bob! Isto é um renascimento. Se nao fizer por voeé, faca por seus filhos!”, Enfim, eis o sentido magistral da argumentagao de Ryan: 0 desemprego é uma oportunidade de renascimento pessoal. Ao perseguir seus sonhos, Bob, o homem demitido, poderia reconquistar a admiragio dos filhos. Nesta cena, estamos no limiar do filme como representagio ideolégica. A ideologia contida na narrativa filmica de Up in the Air, porém, itd aparecer, em todo seu esplendor, nas tiltimas cenas do filme, com os singelos depoimentos de homens ¢ mulheres demitidos. Como exige a operasio ideolégica que legitima o desemprego como fato natural, expde-se 0 desemprego como tragédia irremediavel do ciclo da vida econémica. Por exemplo, uma mulher demitida — ¢ hi muitos depoimentos de mulheres demitidas no decorrer do filme — diz: “Ha muita gente desempregada. Real mente nao sei quando haverd luz no fim do tinel.”, H4 também, no entanto, muitos depoimentos de homens negros demitidos no filme. £ curioso que é um homem negro demitido que, a seguis, vai expressar a ideologia do filme. Diz ele: “Nao sei dizer do que me orgulho. Me orgulho dos meus filhos!”. Aos poucos, essa linha ideolégica de reconforto pessoal, por meio do reco- nhecimento da vida familiar, se afirma nos depoimentos derradeiros do filme. No pri- meiro momento, temos a autopercepgio da redundancia do trabalho vivo (“hd muita gente desempregada!) ¢ da irremedivel contingéncia da forga de trabalho (“Acho que a raiva vem do fato de que eu nao era mais necessatio!”). Depois, na segunda ocasido, homens e mulheres demitidos sio obrigados a reconhecer o valor da familia ¢ dos ami- gos no reconforto do fracasso profissional. Por exemplo, um homem negto demitido observa: “Diria que sem meus amigos ¢ minha familia, néo teria conseguido”. Ou, ainda, um homem branco observa: “Seria bem mais dificil se eu estivesse sozinho”. A seguir, outro homem demitido diz: “Quando acordo de manha, olho em volta e vejo minha mulher, Af sim, consigo ver sentido nas coisas.” Os dois ultimes depoimentos de demitidos na cena final do filme sio de uma mulher ¢ de um homem negros (os dois maiores contingentes de género ¢ de etnia atingidos pela onda de demissées nos BUA). Diz.a mulher: “O dinheiro mantém vocé quentinho; ele paga a conta da calefacéo; ele compra o cobertor; mas ele néo esquenta como o abrago do meu marido”. E o homem negro conclui, afirmando: “E, © que me permite levantar, sair e procurar alguma coisa: meus filhos sio o sentido da minha vida. Minha familia.” Deste modo, percebemos como opera a ideologia legitimadora do desem- prego. E importante observar que o desemprego em massa tornou-se, sob 0 capita- lismo global, um problema estrutural que desconstitui 0 homem-que-trabalha, Em razio da légica da financerizagio, os downsizing vornaram-se préticas corporativas constantes. © capitalismo global virou uma maquina de destruir carteiras profissio- nais. Por isso, é necessdrio claborar, de forma sofisticada, um memorando intimo capaz de autolegitimar o desmonte pessoal do homem que trabalha. Fenomenologia critica do homem desempregado © filme “Up in the Ait” contém uma série de depoimentos de homens e mulheres demitidos, brancos ¢ negros, a maioria na meia-idade, que ilustram o drama humano exposto no filme. ‘Trata-se de homens ¢ mulheres condenados & exclusio social, pois muitos deles, em razio da idade, terio imensas dificuldades de recolocagio profissional. Eles expem, nas suas falas narrativas, uma deriva pessoal consticuida pela mescla de sentimentos de decepsio, frustragio ¢ injustiga pessoal No seu intimo, os demitidos ou desligados exclamam: “Nao é justo!”, Por exemplo, um deles, o primeiro depoente do filme, um homem negro, diz: “E isso que eu ganho em troca de 30 anos de servigo?”. A seguir, uma mulher branca, observa: “Tem muito peito em demitir a melhor funciondria daqui.”. Outra diz: “E ridicule. ‘Tenho sido uma boa funcionsria ha mais de 10 anos, ¢ é assim que vocé me trata?” Mais adiante, uma mulher demitida assevera: “Nio estava esperando por isso...”. E outra observa: “Estou frustrada. Dediquei a minha vida...”. Ou ainda: “Nao é justo” A deriva pessoal do homem demitido Decepsio Frustragio Tnjustiga pessoal Sensimenco de culpa Perplexidade Invisibilidade pessoal ‘Autoflagelagion Futuridade obliterada 86 Ao lado da mescla de sentimentos de decepsio, frustracao e injustiga pessoal, temos também, ali e acolé, sentimentos de culpa e perplexidade. Um homem branco demitido exclama: “Fiz algo errado? Posso fazer de forma diferente?”. Ryan Bingham tenta consolé-lo com argumentos obviamente inverfdicos. Diz ele: “Nao foi uma avaliagio da sua produtividade. Nao é nada pessoal”. E claro que a demissao nio foi nada pessoal, mas é improvavel que a em- presa nao tenha utilizado uma avaliagio de produtividade como critério de demissio. Talver o conceito de produtividade utilizado tenha sido outro totalmente diverso da- quele convencional. Na época do capitalismo global, 0 conceito de produtividade é téo ficticio, quanto o préprio capitalismo. E produtivo aquilo que é adequado & valo- rizagao do capital ficticio, Isto significa que a produtividade nio se mede pelo esforso ¢ dedicagio pessoal dos empregados e operdtios. Por isso, a indignagio e perplexidade de homens e mulheres demitidos que se dedicaram de corpo e alma 3 empresa ha anos ce que, de repente, si0 demitidos. No primeiro momento, como expressam alguns depoimentos de homens e mulheres demitidos, emerge 0 sentimento de culpa. Afinal a culpabilizagio das viti- mas é um mecanismo ideolégico recorrente no capitalismo global. Ante a perplexida- de intima de deriva pessoal, exclamam: “Por que eu? O que farei agora?”. E expressio suprema de inseguranca pessoal decorrente da situagdo-limite — 0 desemprego — que equivale 4 morte social. Na sociedade capitalista, © homem-que-trabalha s6 possui como meio de subsisténcia pessoal a venda da sua forca de trabalho. E por meio do trabalho assa- lariado que as individualidades pessoais de classe elaboram sua identidade social ¢ pessoal. Como diz.a cangio, “sem o seu trabalho, um homem nio tem honra ¢ sem a sua honra, se morre, se mata’. No caso de sociedades mercantis complexa, o emprego estavel contribui para 0 equilibrio sociometabdlico de homens e mulheres assalariadas. O emprego como atividade profissional ¢ 0 salério como renda monetéria constituem mediagées essenciais para a afirmagio da personalidade social burguesa, principal- mente entre trabalhadores de “colarinho branco”, mais implicados no fetichismo da mercadoria ¢ que constituem a totalidade dos homens ¢ mulheres demitidas do filme Como observou um demitido, o sentiment da demissio ¢ como um sen- timento de morte em familia. Diz ele: “Dizem que perder 0 emprego causa 0 mesmo estresse que morte na familia. Mas, particularmente, sinto que as pessoas com quem 87 trabalhava cram a minha familia, ¢ cu morri.” Morrer significa invisibilizar-se. Na ver- dade, cle se estressa pela morte de si proprio. Deste modo, o desligamento do local de trabalho ~ que aparece como “comunidade salarial” — é 0 desligamento da fonte vital, demonstrado que, mesmo imerso no trabalho estranhado, o homem-que-trabalha en- contra espacos de sociabilidade humana no interior das relagées sociais instrumentais que predominam nos locais de trabalho. Como mediador do processo de desligamentos, Ryan Bingham é alvo ime- diato da firia dos homens e mulheres demitidos. Este é, com certeza, um elemento de insalubridade emocional na profissao de Bingham. Ele executa o trabalho sujo da légi- cada acumulagio capitalista. Talver ele se acha (¢ deve se achat) coautor das demissées em massa. Bingham torna-se, de fato, “testa de ferro” das misérias do capital. Por isso, como persona do capital e sendo, ele mesmo, do mesmo modo, oprimido pelo proprio capital, cle representa, em sie para si, a contradigio viva em pessoa humana. Para quem vive nestas “localizacées contraditérias de classe” (WRIGHT, 1985), os conflitos intimos sio intensos, muitos deles deslocados pelos mecanismos de defesa do ego. Por isso, talvez as atitudes de Ryan Bingham, com respeito a sua vida afetiva ¢ seu radical descompromisso em assumir lacos afetivos, sejam mecanismos de defesa do ego. Na verdade, ele nio quer se comprometer ¢ justifica 0 seu desinteresse em comprometer-se como uma forma de evitar softimento psicolégico em decorrén- cia da fungio profissional que exerce. Ele precisa negar para si aquilo que é intimado a desconstruir nos outros. O curioso, porém, é que, mesmo assim, Bingham reencontra irremediavelmente aquilo que nega para si: os lagos familiares como tiltimo refiigio contra o desmonte pessoal do mundo do capital Em razio do seu papel de “testa de ferro” do capital-em-processo, Ryan Bingham é obrigado a enfrentar cotidianamente édios e rancores voltados contra si. Nio 4 toa que um homem demitido exclama: “Como consegue dormir & noite, cara? Como vai a sua familia? les dormem bem? Sua luz nio foi cortada? ‘Tem calefaséo? ‘A geladeita esti cheia de comida?” Talvez, por isso, Ryan Bingham, homem solitario, que resiste a constituir lagos afetivos, é 0 homem perfeito para a sua profissio, Con- vém que ele néo conceba, nem sequer no plano da idealizacéo possivel, o desmonte de sua vida familiar, Ele precisa estar suficientemente leve para se mover diante das turbuléncias da vida liquida do capitalismo global. Na verdade, Ryan Bingham nasceu literalmente para a sua profissio. 88 As reages das pessoas demitidas ¢ desligadas do emprego no filme expres sam um grau de consciéncia contingente da classe, Ante o desfgnio abstrato da demis- sio injustificivel — provavelmente, todas as demissécs do filme sejam “demisses imo- tivadas” — os homens e mulheres demitidos revoltam-se individualmente, néo contra a empresa, visto que cla aparece téo-somente como ente abstrato ¢ se trata, na verdade, de uma “sociedade anénima’; mas sim, contra o mediador imediato, o profissional que esta diante de si, comunicando a demissio e pior, procurando reconforté-la. Um dos demitidos exclama: “Mandam um idiota como vocé para me dizer que perdi o emprego? Deviam tirar vocé do seu emprego”. Logo a seguir, outra observa: “Vocé vai pra casa com muito mais dinheiro ¢ ett vou sem o meu salério. Vé a merdal”. Ou ainda: “Nao sei como consegue viver consigo mesmo, mas dard um jeito, enquanto nds sofremos” A reagéo de homens ¢ mulheres demitidos ¢ a reagao de espontancidade da consciéncia contingente de classe, que impede a constituigio da consciéncia ne- cesséria de classe na medida em que transfere a indignacéo imediata para uma pessoa: © “bode expiatério”. A massa indignada nao consegue ir além da miséria econdmico- corporativa, descarregando scu ddio ¢ rancor contra uma pessoa imediata ou mesmo uma empresa em particular. Deste modo, tornam-se incapazes de constituit, por si, no plano da percepgio e entendimento, as mediagées ético-politicas do processo de criti- a social capaz de aprender a verdadeira natureza da sua condigio de proletariedade. Ryan Bingham ¢ Natalie Keener, tanto quanto os homens ¢ mulheres de- mitidos, sio vitimas oprimidas pelo sistema sociometabélico do capital. Tanto eles, como 05 outros, estao irremediavelmente subsumidos 4 condigao de proletariedade, isto é, vivem numa situagio de estranhamento social no sentido de terem diante de si, obstaculos sociais (¢ institucionais) ao pleno desenvolvimento pessoal como ser gené- rico (ALVES, 2010). Na verdade, a ideia de “capital” entendida como modo de con- trole estranhado do metabolismo social é uma categoria teérica indispensavel para a constituisio da perspectiva cientifico-radical de critica da condisio de proletariedade. Bertold Brecht (1972) observou: Creio que nao percebe quéo dificil é para os oprimidos torna rem-se unidos. A sua miséria une-os (.) Mas por outro lado a sua miséria é capaz de separi-los uns dos outros, pois sio for. gados a arrancar as pobres migalhas das bocas uns dos outros. 39 Deste modo, ¢ ilusio acreditar que espontancamente os oprimidos diante de sua deriva pessoal possam unit-se ¢ dar uma resposta coletiva as misérias humanas provocadas pelo mundo do capital. Pelo contritio, a miséria do capital é tio contradi- t6ria quanto o proprio capital - aquilo que une os oprimidos, também é capaz de sepa- ré-los na medida em que nao conseguem ir além da consciéncia contingente de classe. ‘Na mesma diregio, o educador Paulo Freire (1994, p. 53) salientou A forga de ouvirem de si préptios que sio indolentes, que sio improdutivos, que nada sabem, os oprimidos se persuadem da inferioridade de sua classe. Nao se estranha, por isso, que os trabalhadores que se tornam capatazes de seus antigos ca- maradas, tomem uma posicio ainda mais opressora do que a que 0 opressor teria, neste sentido: o sonho do oprimido, quando sua educagio politica é muito baixa, néo é libertar, nem mesmo libertar-se: seu sonho, sua utopia necr6fila, é um dia poder oprimir. Significa que a miséria do capital possui a capacidade intrinseca de reiterar, em sie para si, a alienagéo de homens e mulheres oprimidos, na medida em que ela, de modo perversamente pedagégico, desconstitui a autoestima das individualidades pessoais de classe. Deste modo, o proceso de culpabilizaco das vitimas, 0 mais sofis- ticado proceso ideol6gico vigente no capitalismo global, é um modo de desconstituir a capacidade intima das pessoas reagirem, de forma radical, & miséria do capital. Para libertar-se ¢ libertar os outros, é preciso acreditar em si ¢ nao culti- var sentimentos de inferioridade de classe. Caso contrario, os oprimidos encontrarao como resposta contingente a sua opressio, a opressio de si mesmos, cultivando 0 que Freire denominou “utopia necréfila’. E interessante que o psicanalista marxista Erich Fromm salientou, na mesma direséo, que 0 capitalismo tardio tende a disseminar, se- gundo ele, um sentimento de necrofilia, isto é, uma vez na sociedade capitalista aliena- dora, o homem perde o espontineo amor vida que se transforma alternativamente, em terrivel amor 4 morte (FROMM, 1983). Nos depoimentos de homens ¢ mulheres demiidos existe 0 sentimento de preocupagio com o futuro danificado. E uma preocupasio incisiva que paralisa as pessoas demitidas. © homem é um animal utépico, isto é, nossa préxis cotidiana é mediada nao apenas pelas experiéncias vividas no tempo-passado ¢ tempo-presente, mas também pelas experiéncias expectantes, experiéncias do tempo futuro no sentido 90 de expectativas socialmente construidas. A modernidade do capital desligou homens ¢ mulheres dos lacos de comunidade, jogando-os no mercado de trabalho. © capita- lismo histérico, ao destruir os lagos tradicionais da comunidade humana, afirmou o estado de desamparo efetivo de homens ¢ mulheres. O desamparo é um dos tracos da condigio de proletariedade. Os existen- cialistas apreenderam com vigor este trago dessa circunsténcia, mas 0 transformaram numa condigéo metafisica — humana ~e nao numa situagio histérica determinada pe- las relagées sociais do mundo do capital. Para os existencialistas ~ que se mantém, por- tanto, no ponto de vista da Economia Politica, isto é, nao tém uma visdo histérica da miséria social do homem —o homem é um ser jogado no mundo, destinado 4 morte. Sob o capitalismo histérico, o emprego assalariado com beneficios de segu- ridade social ow a carreira profissional fordista-keynesiana — a ideia de carreira vitalicia = formulagio histérica da época do capitalismo ascendente, tornou-se o lago social possivel capaz de garantir as pequenas utopias pessoais na preservagio da familia ¢ no atendimento as necessidades (como pagar a prestaséo de uma casa). Por exemplo, uma mulher negra demitida assevera: “Nao posso ficar desempregada. Tenho prestagdes da casa ¢ filhos,” Um homem exclama: “Como vou explicar & minha mulher que perdi © emprego?”. Enfim, a demissio é a desconstituigio das experiéncias expectantes ¢ a dissolugao dos clos possiveis de identidade pessoal. Significa que, sem a providéncia de seguranca do emprego, néo ha utopia salarial posstvel. Na verdade, a indignagio dos demitidos decorre da captura de suas utopias pessoais vinculadas as suas relagdes humanas essenciais inscritas na familia. Embora a ideologia da narrativa filmica de Up in the Air, como salientado a pouco, apele para a familia como refiigio numa situagio de demissio salarial, numa situagio de desemprego de longa duracio ¢ precarizago do trabalho, é a familia que é mais da- nificada, Ela no escapa intacta da implosio das experiéncias expectantes vinculadas & carreira profissional. Talvez, no primeiro momento, ela constituia efetivamente um lar aconchegante capaz de amortecer a deriva pessoal. Na medida, entreranto, que 0 desemprego se torna de longa duracéo, ocorrem abalos estruturais nos lacos familiares. A forca do mercado se impée com vigor. A maioria dos homens ¢ mulheres demitidos no filme é de meia-idade, significando que devem ter dificuldades de encontrar empregos, pelo menos com © mesmo padrio salarial. O espectro da exclusio social os persegue. Por isso, uma 91 das negras demitidas s6 encontra na perspectiva da morte sua redengéo pessoal. Ela opta pelo suicidio. Em seu depoimento, ela demonstra firmeza de atitude, Age de forma racional. Nada questiona com a jovem Natalie que a interroga. Nao accita ser reconfortada. A demissio é quase um designio inexordvel dos deuses. Diz: “Vou ser demitida, certo?”. E depois exclama: “Nao precisa aliviar. Conheso o procedimento.” Apesar disso, ainda pergunta: “O que me oferecem?”. E no depoimento desta mulher que se conhecem as indenizagées oferecidas aos empregados demitidos. Diz Natalie E muito boa. Trés meses de salario. Seis de A demitida ironiza o servigo de recolocacio oferecido: “Servigo de recolocagio. E bem generoso” Keener, tentando, sem sucesso, alivid-la. assisténcia médica. E um ano de servigos de recolocasio no mercado” Sabe, porém, que as chances de encontrar outro emprego séo diminutas. A mulher, todavia, tem outros planos. Diz ela: “Tem uma bela ponte perto de casa. Vou pular dela’. Trata-se de uma atitude de desespero racionalmente calculada. Natalie transtorna-se com o plano de suicidio da pobre mulher. Nao se sente bem diance de alguém que decidiu renunciar a propria vida. Na verdade, Natalie sente-se coautora da demisséo suicida. Ryan tenta acalenté-la, dizendo: “Eles nunca fazem isso”. Mais adiante, iremos ver que Ryan se enganou ao subestimar o que o desespero provoca em certas personalidades singulares. Um dos recursos psicolégicos de defesa do ego que alguns demitidos mo bilizam para aceitar o inaccitavel é conformar-se salientando que “ct néo sou o tini- co”. E preciso fazé-los se conformar com a demissio como destino. Por isso, um dos homens demitidos observa: “Devia me sentir melhor por nio ser o tinico?”. A ideia de compartilhar um destino coletivo é tranquilizadora, entretanto, os mecanismos de defesa do cgo nao agem de forma perene, como supéc o freudismo. Por exemplo, cles encontram resisténcia interior na pré-consciéncia lastreada em sonhos expectantes que nio deixam de reconhecer a candente injustiga cometida pelo capital em processo. Muitos dos demitidos sabem que nio foram apenas eles a serem demitidos. Embora isto contribua para reduzir o sentimento de culpa, por outro, lado nao rediuz a frustra- a0 ¢ a decepgao com o establishment. Ryan ¢ Natalie tentam convencer homens e mulheres demitidos de que nao existem caminhos de flores para o sucesso. Deste modo, os transtornos do desem- prego devem ser encarados como etapas necessérias pata a realizagio pessoal e profis- sional futura, Diz Natalie, num certo momento, que o trabalho dela ~ e de Bingham = deve ser “um proceso que culmina com vocé se realizando num novo emprego.” Os 92 homens ¢ mulheres de sucesso também passaram por dificuldades. Assim, o discurso ideolégico de Ryan ¢ Natalie expressa um modo de convencimento esptirio utilizado pela ideologia do capital que incorpora o apelo para a autoflagelagio como meio da redengio pessoal. Autoflagelagao ¢ atitude proativa na busca de um novo emprego. £ uma pritica ideoldgica que, a0 lado da inculpacao das vitimas, visa a legitimar, em tiltima instancia, um ilusionismo social. £ uma mera pega ideoldgica que nao visa — ¢ claro — a convencer ninguém, mas apenas afirmar a farsa como modo de metabolismo social do capital. Por exemplo, ao demitir o Sr. Samuels, de 57 anos — demissio a distancia, por meio da tela do computador — Natalie tenta convencé-lo de que melhores opor- tunidades o aguardam. Samuels rabalhou 17 anos para a empresa e agora ~ diz ele —“mandam uma estudante me despedir?”. E exclama: “Que merda é essa?”. Como “testas de ferro” do capital, Natalie e Ryan nada podem dizer a nio ser repetir 0 script do convencimento esptirio: “Quem construiu impérios e mudou 0 mundo passou por isso. E por ter passado por isso, obteve sucesso.” E interessante que a psicologia do convencimento esptirio utilizado pelo capital em sua prética ideoldgica incorpora um conjunto de sentimentos perversos de manipulagio da alma humana, utilizados, em tempos pretéritos, pela religiéo catélica Por exemplo, a exploragio do sentimento de culpa para cercear os carecimentos radi- cais © a autoflagelagao como recurso para obtencio do sucesso como redengao pessoal Na verdade, trata-se de um modo de esmagar a autoestima e paralisar a capacidade humana de dar respostas radicais 4 opressio do capital, © capital mani- pula hoje, de forma intensa, tais sentimentos de medo, culpa ¢ autoflagelagio como recursos de dissuasio dos sujeitos humanos indignados com sua condigio de prole- tariedade. Referéncias ALVES, Giovanni. 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