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Paulo Freire Este € um dislogo lidico em que eu, Gloria Watkins, converso com bell hooks, minha vor de escritora. Quis falar sobre Paulo e sua obra deste jeito porque ele me pro- potciona uma intimidade ~ uma familiaridade ~ que nao ime parece possvelalcangar na forma de ensaio. E aqui encontrei um modo de partilhar a docura a solidariedade sobrea qual fal. Warkins: Lendo seus livos Aint La Woman: Black Women «and Feminism, Feminist Theory: From Margin 20 Con ter © Talking Back, fica claro que seu desenvolvi- ‘mento como pensadora critica foi imensamente in- fAuenciado pela obra de Paulo Freite. Vocé pode falar de por que a obra dele rocou tio profundamen- tea sua vida? ‘rooks: Anos antes de conhecer Paulo Freire, et ji tinha aprendido muito com 0 trabalho dele, aprendido ‘maneiras novas ¢ libertadoras de pensar sobre a rea- lidade social. Muitas vezes, quando os estudantes € professores universcirios leem Freire, eles abordam a su obra a partir de um ponto de vista voyeuristic. Quando leem, veem duas posigdes na obra: a posi- 6 Ensinando a transgredir «do subjetiva do educador Freire (em quem, muitas ‘Yezes, esto mais interessados do que nas ideas ete mnas de que ele fila) e posigso dos grupos oprimi- ddos/marginalizados de que ele fala. Em relagio a es sas duas poses, cls préprios e posicionam como “bservadores, como quem esté de fora. Quando en- contre a obra de Freire, bem nur momento da mi- nha vida em que estava comesando a questionar profundamente a politica da dominacéo, o impacto do racismo, do sexismo, da exploragio de classe eda colonizagio que ocorte dentro dos préprios Estados Unidos, me senti fortemente identficada com os ‘camponeses marginalizados de que ele fala ¢ com tne ios tas nepos, meus camaradss Guiné Bissau. Veja voct, cu chegava & universidade com a expetiéncia de uma negra da zona rural do Sul ddos Estados Unidos. Tinha vivido a luta pela dess- sgregacio racial c estava na resisgnca sem ter uma Tinguagem politica para formular esse processo, Paulo fom dos peasdores caja bra me de uma ing gem, Ele me fer pensar profundamente sobre a cons- ‘rugio de uma identidade na resistencia, Uma frase isola de Fes oro um mana rlucons tio para mim: "Nao podemos entrar na lure como cbjetos para nos rornarmos sueitos mais tarde.” Real- ‘mente & dificil encontrar palavras adequadas para ex plicar como essa afirmacio era uma porta fechada ~ luted comigo mesma para encontrat a chave~eesst Tura me engajou num processo transformador de pensamento critic, Essa experiéncia posicionow ow bbs Paulo Freire ° Freire, na minka mentee no meu coragio, como um professor desafiador cuja obra alimentou minha pré- pia luta contra 0 processo de colonizagio —a men- talidade colonizadora Na sua obra, vocé evidencia uma preocupacio per ‘manente com o processo de descolonizagao, particu Jarmente na medida em que afeta os afro-americanos ue vivem dentro da culeura da suptemacia branca nos Estados Unidos. Vocé enxerga um elo entre 0 processo de descolonizagio ea insisténcia de Fi na “conscientizagio"? Sem diivida. Peo fato de as forgas colonizadoras se- tem tio poderosas neste patriarcado capitalist de supremacia branca, parece que os negros sempre tém de renovar um compromisso com um processo poli- ‘ico descolonizador que deve ser fundamental para a nossa vida, mas ndo €, E assim a obra de Freite, em seu entendimento global das tas de libertagio,sem- pre enfatiza que este €0 importante estigio inicial da sransformagio ~ aquele momento hist6rico em que comegamos a pensar criticamente sobre nés mesmas © nossa identidade diante das nossas cizcunstincias politicas. Mais uma vez, esse € um dos conceitos da ‘obra de Freire ~e da minha~ que frequensemente & tal compreendido pelos letores nos Estados Uni- dos. Muita gente me diz que pazeco estar afiemando que € suficiente que os individuos mudem sua ma- neira de pensar. E,veja, até uso da palavrasuficiente me diz algo acerca da atiude com que eles encaram «sa questio. Ela tem uma sonoridade paternalisca, Ensinando a transgredie que nao transmite um entendimento profundo de © {quanto uma mudanga de atitude (€ mo somente 0 término de qualquer processo transformador) pode ser signficativa para um povo colonizaoloprimido. Repetidamente, Freire tem de lembrat os leitores de ‘que ele nunca falou da conscientizasio como um fim em si, mas sempre na medida em que se soma a ‘uma prixis significativa. Gosto quando cle fala da necessidade de tornar real na pritica 0 que jf sabe- seo significa, enfatizemas, que 0s seres humanos no sobrepassam a situagio coneree, a condigdo na qual cto, por meio de sua consciéncia apenas ou de suas ineenges, por boas que sejam. A possibilidade que tive de transcender os estrctos limites de uma cela de 1,70 m de comprimento por 60 cencimetros de largu- ra, a qual me achava apds 0 golpe milicar brasileiro de 12 de abril de 1964, nfo era suficente, contudo, para mudar minha condigio de encarcerado. Conti- huava dentro da cela, sem liberdade, apesar de poder Jmaginar 0 mundo ki fora. Mas, por outro lado, a prs- xis nio € a ago cega, desprovida de intengio ou de Finalidade, E ago reflexio, Mulheres © homens si0 seres humanios porque se fizeram historicamente sres dd praise, assim, se tornaram capazes de, transfor mando o mundo, dar significado a ele Creio que tantos movimentos politicos progres- sistas ndo conseguem ter impacto duradouro nos Es- tados Unidos exatamente por nio terem uma com- Gm th: Paulo Frere o preensio suficiente da “prix”. E isso que me toca qsando, em Por wma padaggia da pergunta, Antonio Funder afirma que uma das coisas que aprendemos no Chile, nessa pr -teflexdo sobre a coidianeidade, ers que as afirmagbes abstraus politics, religiosas ou mortis, que eram ex: celents, nio se wansformavam, ni se conereizavam as agbesindividuas. Framos evoluciondtios em abs- ‘rato, nio na vida cotidiana, Creio que a revolugio comega justamente na revolugio da vida cotidiana Sempre me espanto quando as pessoas progressis- tas agem como sea erenca de que nossa vida deve ser uum exemplo vivo de nossa politica fosse, de algum modo, uma posigao moral ingnua. Matas letoras de Freire sentem que a linguagem se- xista da obra dele, que nfo foi modificada nem de- pois de ser questionada pelo movimento feminista contemporineo e pela critica feminist, & um exem- plo negativo. Quando vocé leu Freire pela primeira ‘yet, qual foi sua reagio ao sexismo da linguagem dele? Enquanto lia Freire, em nenhum momento deixei de estar consciente nfo s6 do sexismo da linguagem ‘como também do modo com que ele (e outros lide- res politicos, incelectuais e pensadores eriticos pr sgressstas do Terceito Mundo, como Fanon, Mer tc) constrdi um paradigma falocéncrico da liber «io — onde a lberdade ea expeviéncia da mascli dade pariarcal esto ligadas como se fossem a mesma ow Ensinande a eransgredir: coisa. Iso sempre motivo de angiistia para mim, pois representa tum ponto cego na visio de homens {que tém uma percepgio profunda. Por outco lado, ‘rio quero, em nenhuma hipétese, que a critica desse pponto cego eclipse a capacidade de qualquer pessoa (e particularmente das feministas) de aprender com as percepcdes. E por isso que € dificil para mim falar sobre o sexismo na obra de Freie; € dificil encontrar ‘uma linguagem que permiea eserucarar uma critica € 0 mesmo tempo continue reconhecendo tudo 0 ‘que & valioso e respeitado na obra. Parece-me que @ oposigio bindria tio embutida no pensamento ena Tinguagem ocidentais torna quase impossvel que se projete uma resposta complexa. O sexismo de Freire E indicado pela linguagem de suas primeiras obras, apesar de tantas coisas continuarem libertadoras, [Nao € preciso pedir desculpas pelo sexismo. O pré- prio modelo de pedagogiaeritica de Freire acolhe © ficiente para evocar tudo © que aprendi com Paulo, Nosso encontro teve aquela qualidade de dogura ‘que continu, que perdu por toda a vidas mesmo que ‘ocd nuunea mais fale com a pessoa, nunca mais lhe veja 0 rosto, sempre pode vols fem seu coragio, Aquele momento em que voces estiveram juntos € ser renovada ~€ uma slidariedade profunda. A teoria como pratica libertadora ‘Cheguei & ceoria porque estava machucada ~a dor den- tro de mim era tio intensa que eu nido conseguiria conti- ruar vivendo. Cheguei 3 teoria desesperada, querendo compreender —apreender o que estava acontecendo ao re- dor e dentro de mim, Mais importante, quetia fazer a dor ir embora. Vi na teoria, na época, um local de cura. ‘Cheguci&teoriajovem, quando ainda era crianga. Em The Significance of Theory, Terry Eagleton diz ‘As criangas sio os melhores teéricos, pois nfo receberam a cedueagio que nos leva a aceitar nosss priticassocais roti _nciras como “naturais” e, por iso, insstem em fazer as per- jguntas mais constrangedoramente gers ¢ universais, enca- sando-as com um maravihamento que nés, adultos, hi ‘muito esquecemos. Uma ver que ainda no entendem nos- ‘a priticas sociais como inevitéveis, nfo vem por que niio ppoderfamos fazer a coiss de outra mancira Sempre que, na infincia, eu tentava levar as pessoas 20 ‘meu redor a fazer as coisas de outra mancita, a olhar 0 undo de outra forma, usando a teoria como intervengio, como meio de desafiaro status quo, cu era castgada. Lem. a

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