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NEWTON BIGNOTTO GERD.BORNHEIM ANTONIO CANDIDO MARILENA CHAU! JORGECOLI JURANDIR FREIRE COSTA CATHERINE DARBO-PESCHANSKI JOSE ARTHUR GIANOTTI. MARIA RITA KEHL CELSO LAFER NELSON LEVY NICOLE LORAUX SCARLETT MARTON ADAUTO. NOVAES AICIR PECORA NELSON .BRISSAC PEIXOTO. JOSE AMERICO MOTIA PESSANHA PAULO SERGIO PINHEIRO RENATO JANINE RIBEIRO SERGIO PAULO ROUANET JOSE MIGUEL WISNIK , eal :- : a te eS Ed ~ : a Reece rs as TDNIVERSIOADE FEDERAL DA PARAIBA BIBLIOTECA VANILDO BRITO CCHLA NEWTON BIGNOTIO GERD BORNHEIM ANTONIO CANDIDO MARILENACHAUI JORGE COLI JURANDIR FREIRE COSTA CATHERINE DARBO-PESCHANSKI JOSE ARTHUR GIANOTTI MARIA RITA KEHL CELSO LAFER NELSON LEVY NICOLE LORAUX SCARLETT MARTON ADAUTO NOVAES AICIRPECORA NELSON BRISSAC PEINOTO JOSE AMERICO MOTTA PESSANHA PAULO SERGIO PINHEIRO RENATO JANINE RIBEIRO. SERGIO PAULO ROUANET JOSE MIGUEL WISNIK PFE TICA Organizacio: ADAUTO NOVAES 38 reimpressio Secremis Muvicie. De CULTRA ——— CompaNuia Das LETRAS INDICE Cenarios — Adauto Novaes 7 A oy dia grega € 0 humano — Nicole Loraux ... 17 Humfanidade e justica na historiografia grega, v4 a.C, — Catherine Darbo- Peschanski 35 As delicias do jardim — José Américo Motta Pessanha. ..... 37 A culpa dos reis: mando e transgressao no Ricardo Il — Antonio Candido 87 © retorno do bom governo — Renato Janine Ribeiro .... 101 “Nas fronteiras da ética: Maquiavel — Newton Bignotto 113 Politica do céu (anti-Maquiavel) — Antonio Aicir Berndrdez Pécora ...... 127 Dilemas da moral iluminista — Sergio Paulo Rowanet ere, HO. Uma reinvengio da ética socialista — Nelson Levy oo... ae 163 Estado e Terror — Paulo Sérgio Pinbeiro ... 191 O eterno retorno do mesmo: tese cosmolégica ou imperativo ético? — Scar- Lett Marton occ . 205 ‘A mentira: um capitulo das relagGes entre a ética ¢ a politica — Celso Lager 225 . 239 247 . 261 Moralidade piiblica ¢ moralidade privada — José Arthur Gianotti .. O sujeito ¢ a norma — Gerd Bornbeim .. ‘A mulher ¢ a lei — Maria Rita Kebl ....... Impasses da ética naturalista: Gide e o homoerctismo —Jurandir Freire Costa 275 Bom dia, senhor Courbet! — Jorge Coli . 289 Ver 0 invisivel: a ética das imagens — Nelson Brissac PeixOtO 20... 301 Husdes perdidas — José Miguel Wisnik . . 321 Publico, privado, despotismo — Marilena Chaui 345 CENARIOS Adauto Novaes Diterentes nogoes éticas estio éxpostas neste livro. Elas se apresentam sob a forma daquilo a que os gregos chamatam didlogo, estrutura original do curso “Etica”, realizado pela Secretaria Municipal de Cultura em abril de 1991: cada autor interroga o outro, uma reflexdo remete a outra, procura-se entender as ra: z5es de cada pensamento, ¢ mesmo sabendo que io havia nenhuma intengao pratica imediata, apesar da crise moral, todos esto convencidos de que alguma coisa de novo pode surgir dessa fala comum. A primeira delas, a mais importan- te talvez, €a experiéncia traduzida neste livro: a pratica da democracia dos espi- ritos, ponto de partida da liberdade e crepdsculo das tiranias. Na ética do pensa~ “mento, observa Valéry, a existéncia dos outros é sempre inquietante para 0 €5- pléndido egoismo de um pensador: nao compreender isso equivale, pois, a pensar cm se construir uma ciéncia dos valo- res da acdo € uma ciéncia dos valores da expresso ou da criagio das emogdes —uma Erica e uma Estética — como se 0 Palicio do seu pensamento parecesse impetfeito sem essas duas alas simétricas nas quais seu Eu todo-poderoso € abs- trato pudesse maniter cativas a paixdo, a a¢do, a emocio e a invengao.! Estas diferengas permitem, pois, ao leitor atento aos pensadores aqui en- volvidos ter uma visdo mais clara das proprias teorias_A palavra ética, por exem- plo, nao tem o mesmo sentido para todos. Se comparamos as definicdes que os antigos ¢ os modernos dao a nocio de ética, percebemos que sao t4o radical- mente diferentes que se cria em torno delas um verdadeiro campo de contradi- ‘$e8__s filsofos gregos sempre subordinaram a ética as idéias de felicidade da vida presente ¢ de soberano bem: ainda que os comentadores tenham mostrado uma infinidade de distingdes sutis na moral antiga, € certo que 0 que esté sem- pre em jogo € 0 desejo do homem de realizar_o soberano bem, isto é, a vida feliz; ou melhor, 0 objetivo supremo da moral é “encontrar uma definicao de soberano bem de tal maneira que 0 sabio se baste a si mesmo, isto é, que depen- da dele mesmo para ser feliz, ou que a Felicidade esteja a0 aleance de todo ho- mem racional”. Victor Brochard anota que © que todos combatem, em parti- 7 €a doutrina da felicidade tal como a entendiam Platao € Aristote- “subordinavam o bem de certa maneira as circunstancias exteriores ou ina”’.? Livrar-se do fatalismo, dominar as paixées, eis os postulados do- minantes. “Dizer que 0 homem € livre, quando € um fildsofo grego que fala, ‘equivale a reconhecer que a felicidade esta ao alcance de cada um.” Hoje, a fe- icidade nao € pensada mais nos termos da moral antiga, mas em termos de efica- cia técnica, de consumo. Mais ainda, ela depende cada vez mais da roda da For- tuna, das forgas externas que tudo controlam € dominam, o que por si s6 de- monstra qué entre a5 duas concepGbes existe muito mais que simples diferencar ha uma verdadeira ruptura, uma contradigao, Este € 0 ponto mais critico da mo- ral moderna. E como se houvesse um [ento enfraquecimento da nogio de ética € das conquistas do espirito com o avango da técnica, Ou melhor, a moral passa a ter uma importancia quase convencional. nS) Este livro foi pensado, pois, a partir de uma cisio radical, a partir de dois CE fromenps da historia do pensamento: se comecamos com os gregos — volta- mos sempre a eles, em. particular nos momentos de crise —, nao € porque eles Sejam uma realidade dada para todo o sempre, um modelo a ser seguido, mas porque a propria maneira de narrar a sua hist6ria ¢ de pensar o politico leva a diferentes origens e diferentes interpretagées. Permite situar, também, 0 momento © a origem de uma perda irrepardvel, a idéia de felicidade, ¢ a sua substituigao . pelas nogées de obrigagio, dever, obediéncia; o desaparecimento do modelo ideal de virtude, que poderia ser seguido optativamente,! € o surgimento das normas éticas € dos preceitos a que se deve obedecer. “As duas idéias de obrigacio preceito s6 teriam razao de ser em uma moral em que 0 bem se diferencia da felicidade”’,* disting4o que os gregos jamais fizeram. Da mesma maneira, a idéia de vittude é definida de forma inteiramente diferente: se, do ponto de vista mo- demo, virtude € o “habito'de obedecer a uma lei nitidamente definida e de ori- gem supra-sensivel”, para o pensamento antigo € a posse de uma qualidade na- tural. Mas € na idéia de origem supra-sensivel quis se situa a grande transformagio. Lemos no Livro u da tica a mice, de Aristételes: [...] este estudo no € tedrico como os outros (pois estudamos nao para saber © que €a virtude, mas para sermos bons, ja que de outra maneira nfo tirarfamos nenhum béneficio dela). Devemos examinar 0 que € relativo as agdes, como tealizé-las, pois elas so as principais causas da formagio dos diversos modos de ser. - Ao definir a natureza das agdes de acordo com a virtude, Aristételes con- cluiu que as agGes so chamadas de justas ¢ moderadas quando concebidas de tal maneira que um homem justo ¢ moderado poderia realizé-las: € justo e moderado nao 0 que as faz, mas o que as faz como as fazem os justos emoderados. £ correto, pois, dizer que realizando ages justas e moderadas faz-se, é respectivamente, um justo e moderado. Sem fazé-las, ninguém poderia chegar a ser bom. Mas a maioria no faz coisas, a ndo ser que, refugiando-se na teoria, acreditam filosofar € poder, assim, ser homens virtuosos. A virtude tem, portanto, por origem 0 exercicio pratico, a acdo; € é a acao que da sentido politico a moral. © Bem é o ato proprio de cada ser, € a felicidade esta na ativiciade, em ‘fazer, em se construir uma ciéncia dos valores da acao, co- mo disse Valéry, ¢ ndo na potencialidade. Pierre Aubenque comenta uma segun- da idéia contida nesta parte do Livro 1 da Etica a Nicémaco: 0 ato proprio de cada ser € aquilo que esta mais de acordo com sua esséncia, com a parte essen- cial do homem, que é 2 alma. Ora, como existem duas partes da alma, a racional € a irracional, existirao, segundo a ética de Aristoteles, duas espécies de virtu- des: as virtudes intelectuais ¢ as virtudes éticas, A$ virtudes intelectuais originam-se € se desenvolvem principalmemte através do ensino e, por isso, diz Aristoteles, “requerem experiencia ¢ tempo”; as virtudes éticas procedem dos costumes, € exprimem a exceléncia (areté) daquilo que “na parte irracional € acess{vel aos apelos da razao”. A virtude moral é, pois, “uma disposigao adquirida da vontade, consistindo em um justo meio relative a nés, que € determinado pela justa regra, tal como © determina o homem prudente”’. Dizer que a virtude € uma disposicao adquiri- da da vontade, isto é, um habito, conclui Aubenque, € negar que ela seja um dom da natureza (0 que suprimiria o mérito), mas negar também que cla seja uma ciéncia, como afirmavam os socriticos. Como Aristételes reafirma tantas vezes, nao basta conhecer o bem para fazé-lo, porque a paix4o pode se misturar entre 0 saber do bem e sua realizacio: “A moralidade nao est4 apenas na ordem do logos, mas também no péthos [paix4o] € no éthos [os costumes, de onde vem a palavra ética]"”. Dirlamos, em termos modernos, que a educa¢do moral deve esforcat-se para introduzir de forma duradoura a razio nos costumes, por inter- médio da afetividade, gracas 4 constituicZo de habitos... A virtude, mesmo se ela deve penetrar na parte irracional da alma, é racional no seu principio, como © atesia, na sua definicao, a referéncia a “regra justa”’.” ‘A parte racional e a parte irracional da alma esto em permanente conflito e contradicdo uma com a outra. Se a virtude nao pertence apenas a0 mundo da razio € no é, portanto, uma ciéncia una, invaridvel, absoluta, ela pode ser muil- tipla, mutante ¢ até mesmo falsa. Mais ainda: se as virtudes estao relacionadas com as acdes € as paixdes, como afirma Aristoteles, estes movimentos ¢ estas paix6es sao um dado da natureza humana. Como define Gérard Lebrun, nao é em razio dos pathé que sentimos que somos julgados bons ou maus: 1380 setia um absurdo, pois eles esto inscritos em nosso aparelho psiquico, € nao podemos deixar de senti-los. Ninguém se encoleriza intencionalmente. Ora, 2 qualificaco bom/mau supde que aquele que assim julga escolheu agir assim. ‘Um homem nfo escolhe as paixdes. Ele nao é entao responsavel por elas, mas somente pelo modo como faz com que elas se submetam 4 sua agao. £ deste modo que os outros 0 julgam sob 0 aspecto ético, isto é, apreciando seu caré- a 'S6 pode, alis, ser desta forma, Pois um juizo ético seria simplesmente im- ___ possivel se nZo houvesse como regular as paixdes. A exceléncia ética (areté) — que traduzimos muito imperfeitamente por virtude — s6 pode ser determinada pelo modo de reagir as paixdes, ¢ mais precisamente como o homem pode temperé-las. Sempre que eu ajo de modo a revelar meu carter, meu comporta- mento emotivo entra em jogo, pois os outros no dispoem de outro critério pa- Ta me julgar. Sem as paixdes também nao haveria uma escala de valores éticos. Sem as paixdes, ou antes, sem a possibilidade que n6s temos de dosé-las, Pots as paixdes ¢ as acdes s4o movimentos, e, como tais, continuas, isto é, grandezas que podem scr divididas sempre em partes menores e em graus menores, de tal forma que, quando ajo, me € sempre possivel fixar a intensidade passional exata apropriada a situacao (...] 0 homem virtuoso nao € aquele que renunciou as suas paixdes (como scria possivel?), nem o que conseguiu abrandé-las ao mi- ximo. O homem virtuoso ou “bom” € 0 que aprimora a sua conduta de modo a medir da methor maneira possivel e em todas as circunstancias 0 quanto de paixdo seus atos comportam inevitavelmente.® Ora, 0 que se quer dizer, em Ultima anilise, é que a alma nao € um ser que subsista por si mesmo, Isto esta dito no primeiro capitulo do Livro 1 do tratado Sobre a alma, quando Arist6teles responde de maneira negativa a propria per- gunta: “‘A alma tem atributos préprios?””. Como a substancia nao € apenas alma, mas 0 composto de corpo ¢ alma, o ser por inteiro — corpo ¢ alma — é afetado pelas paixdes (ira, medo, coragem, inveja, alegria, amor, ddio, desejo, citimes , em geral, tudo 0 que vem acompanhado de prazer ¢ dor). E por isso que Aris- t6teles afirma na Etica a Nicémaco que as paixdes so a matéria da virtude, isto €, 0. uso mesurado das paixOes torna o homem virtuoso. E por isso também que ele diz que a ética nao € ciéncia, e, portanto, ndo pode ser ensinada: nao pode haver um sistema moral. £ 0 que ele afirma no Livro u da Erica: Se as virtudes esto relacionadas com as agdes € as paixdes, ¢ 0 prazer ea dor acompanham toda paixdo, por esta razao a virtude estara relacionada com os prazeres ¢ as dorcs [...] todo modo de ser da alma tem uma natureza que esta implicada e ligada as coisas pelas quais se faz naturalmente pior ou melhor; € ‘os homens tornam-se maus por causa dos prazeres e dores, por procur4108 ou evité-los [...] € por isso que alguns definem também a virtude como umh estado de impossibilidade e serenidade; mas nao a definem bem, porque se fala de um. modo absoluto.? Resta, portanto, o problema do conhecimento. Ou melhor, sem um sistema moral, um “modo absoluto”, como pensar em um aprimoramento ético, uma vez que as paixdes podem ser obstéculo ao conhecimento intelectual? Nao se diz, comumente, que as paixdes cegam? Mais precisamente: 0 apaixonado agita- se em torno apenas de um pensamento — amor, 6dio, citime etc. — ¢ obscurece todos os outros objetos que se oferecem aos seus sentidos; ndo é comum tam- bém dizer que a paixao opéc-se a razao €, portanto, torna-se ignorancia de si, porque nao se vé como paixao, ¢ ignorancia de nds mesmos? Distracdo para 0 espirito, ela poe 0 homem fora do estado de sonhar com outro bem. Perde-se 10 a faculdade de julgar. Mas, € preciso reconhecer, as paixdes seduzem e, por se- duzirem, imprimem na alma uma incerteza ¢ a necessidade de uma escolha que Léon Brunschvieg aponta como decisiva, talvez sem volta, para nosso destino moral: entregar-sc por inteiro as paixdes vulgares € arriscar-se a perder a felicidade suprema que pode estar em outro lugar, ou dei- xar escapar essas vantagens, talvez as nicas que o homem possa ter, para con- sagrar a vida a busca de um bem do qual nao se pode afirmar com certeza nao apenas que ele pode ser alcancado, mas até mesmo que ele exista.! Levada as tltimas conseqiiéncias, uma paixio acaba por “esquecer”’ a propria origem: dessa maneira, uma célera ou um 6dio “embriagam-se’’ a si mesmos com © som da propria voz ou com o espetéculo de uma mimica dos quais eles so, apesar de tudo, a causa: exaltam-se ao se escutarem falar ou se verem fazer e, ~~ finalmente, nao se sabe mais, nessa emulacdo infernal de causa ¢ efeito, sea c6- lera s@irrita porque gesticula ou gesticula porque se irrita; os dois juntos, sem dtivida, sio verdadeiros. Como passar de uma relacdo da imanéncia — a virtude ligada as sensagdes do corpo e da alma — a uma relagao de transcendéncia, relagio intelectual? As indicagdes dessa passagem sio dadas por Aristételes em uma frase enigmética €, por isso mesmo, como afirma Pierre Aubenque, “‘ponto de partida de uma Tonga tradigdo de exegese”’: ““O que existe em poténcia s6 passa a0 ato pela ago de algo que j4 é ato”. £ o que, em outras palavras, diz Epicuro: nada se aprende nem se compreende a partir do nada. £ o que afirma também a teoria bergsonia- na da intelec¢ao, para a qual “‘compreender” pressupde um minimo de saber, uma “‘gnose infinitesimal”, Jankélévitch, no seu livro classico As virtudes e 0 amor, sintetiza de forma precisa o problema da passagem: De fato, 0 circulo “vicioso” cra um circulo virtuoso, circulus sanus. Este circu- Jo de nenhuma maneira exclui o progresso. Como tornar-se 0 que se é, uma vez que ja se o era? £ que, na realidade, era-se sem ser. O homem eta € nao era jus- to, sincero ou fiel. Ele sera, pois, intensamente, 0 que era um pouco, seria em ato 0 que era em poténcia. f isso, Fieri ou vir-a-ser: nao vir-a-ser qualquer coisa quando nao se é nada, mas it de um Esse a um Esse, de um ser a outro ser, € do virtual ao consciente, mas sempre de totalidade em totalidade! Pela mesma razo, pode-se continuar a procurar aquilo que jé foi encontrado, mas que tinha sido encontrado vagamente, que apenas se pressentia... Como 0 saber passa no da ignorincia ao saber, da nescidade 3 ciéncia, do vazio ao cheio, mas da cién- cia confusa a ciéncia Idicida e precisa, assim a virtude, segundo Aristoteles, vai da aco 4 aco mediante as regras éticas: a virtude confirmada pelos atos vai a outros atos cada vez mais numerosos e assegurados."! Essa concepgao moral do “vazio-cheio”, carregada, portanto, de negativi- € positividade, trax nela toda a confusio do mundo: ela € a expressao da ; basta interrogar a experiéncia, consultar a memoria da sociedade. Mas é ém expresso de novos valores: de totalidade em totalidade, ela realiza 0 jo do Fausto de Goethe: ‘“no teu nada, espero encontrar o Todo”. Essa mo- i vao do virtual (no duplo sentido do termo) ao consciente é radical que se pode fazer 4 versio da moral teol6gica: o cristianis- exemplo, observa Montaigne, apresenta o homem nu ¢ vazio, reconhecendo sua fragilidade natural, pronto para receber do alto alguma forca estranha, desprovido de toda humana cién- cia, e cada vez mais apto a louvar em si a ciéncia divina, anulando seu julgamen- to para dar mais lugar a fé [...] £ um mapa em branco preparado para assumir, segundo a mio de Deus, formas que agradem a Ele," Esse vazio €, pois, a fonte de ilusdes, quimeras € supersticdes, momento preli- minar no qual se abre espaco para a imaginacdo. Mais ainda, esse.vazio € ocupa- do por dois absolutos: um, divino, na versio religiosa, outro, terreno, na versio da lei e da ordem. Ora, uma moral pensada e constituida a partir da idéia do “vazio- vazio”, isto €, uma moral que abole a experiéncia, a historia presente e a anteci- pagao, que leva em conta apenas uma consciéncia formada de nadas cotidia- nos, de mil lacunas ¢ intervalos desconheciveis ¢ desconhecidos, é 0 ponto de partida para o artificio e as aparéncias. Essa moral constr6i, pois, um outro mun- do, attificio do pensamento dominante. Dé-se a idéia de realidade uma virtude muito propria e peculiar, ligada as concep¢des daqueles que criam essa realida- de. Como diz Valéry, aquele que faz da idéia de realidade um idolo, comunica- Ihe sua propria excitacao. Assim, somos convidados a assistir a0 espetéculo do mundo ¢ a participar dele sem o desejarmos: temos, portanto, pouca coisa ou quase nada de real no que vemos, em particular em um mundo dominado por imagens ¢ espetaculos incoerentes dos novos meios de comunicago — qual- quer coisa € mostrada ou dita, aparece ¢ desaparece por forga de uma vontade estranha a nés, Se lidamos apenas com a nogio de realidade dada, ficamos dian- te de um problema insoliivel, uma vez que 0 dados jamais serdo inteiramente dados e pode-se sempre dizer que hd dados cocultos... A tarefa da inteligéncia € tornar relativo aquilo que o sentido € 0 cor- pO apresentam como absoluto, Ela deve, pois, descobrir ou imaginar as opera- 6es (mudangas de pontos de vista etc.) que tornam as coisas/fendmenos partes de alguma relacao — que deve anular-se.'3 Arealidade €, portanto, aquilo que € dado pela nossa aco, ou 0 que € pressenti- do como estando em nossa poténcia realizar: pensado dessa maneira, visto des- sa maneira pelo olho humano, o mundo da aparéncia, das utopias, das fantasias, que se contrapdem ao “real dado”, € 0 proprio mundo real. Mas a moral moderna fascina exatamente pelo artificio, pela aparéncia, ¢ pelas respostas que ela promete, No livro cléssico Montaigne en mouvement, Jean Sta- robinski adverte que a dentincia das aparéncias nao passa de um lugar‘comum, da mais antiga ret6rica moral. Mas é impossivel fugir dela: por que Montaigne fala em “maleficio do parecer”? Por que, para Rousseau, aparéncia ¢ mal s40,quase sindnimos?:'¥ “© mundo inteiro encena a comédia, o mundo inteiro € upc tro”; “A aparéncia nos engana’’, escreve Montaigne. Ora, 0 que Valéry expde 12 nos Cabiers, 0 que Nietzsche deixa nos textos postumos, ¢ Starobinski analisa ‘em Rousseau € Montaigne, € 0 que se pode chamar de dialética da mascara ou da aparéncia. H4 uma contradicao efetiva no interior da propria aparencia (0 con- tririo da aparéncia nao € 0 real): 0 nao da negacao volta-s¢ contra si mesmo, € funda a contradicao fundando a propriaguperacio. ““Contradicao operante”, diz Merleau-Ponty,!° negacao que nao se esgota ou se limita a excluir 0 positive, mas que “‘o reconstréi além das suas limitages”: € 0 que Valéry atesta a0 dizer que ‘uma obra do espirito € ithportante quando sua existéncia determina, chama, su- prime outras obras jé feitas ou no. O comentario de Bento Prado a questo da aparéncia no livro de Starobinski sobre Rousseau € preciso: ..] 0 tema trivial da diferenca entre a esséncia ¢ a aparéncia € alimentado em Rousseau por uma experiéncia viva que jamais se apagaria (a descoberta do mundo infernal da invistbilidade e da culpabitidade da acusaci0, no epis6dio infantil do pente quebrado... descoberta infantil da injustica c da violéncia, ou a tragica descoberta da impoténcia persuasiva da consciéncia inocente). E 0 esquema dessa experiencia servird de modelo 2 reflexZo te6rica: esse véu que se infiltra entre as almas (e que impede, também, o acesso 4 Natureza, que comeca a aparecer “deserta e sombria [...] coberta de um véu que Ihe escondia as belezas”), € esse mesmo véu que sera invocado no nivel da teoria, para dar conta da passagem da boa natureza 4 essencial perversidade da vida social... Para quem foi acusado injustamente, ndo resta outro recurso seno o de esconder-se. Se s6 as aparén- cias tém peso, € preciso ctiar a aparéncia necessdria, fugindo ao campo da pre- senca imediata.'° Na relagdo com a aparéncia, ndo hd apenas o engodo, a méscara, 0 vazio ou a auséncia que a realidade vai revelar posteriormente. O que ha é uma resposta 4 interrogacdo da propria aparéncia, e, portanto, sempre um comeco, € sempre uma experiéncia do pensamento. Como experiéncia, a dialética nao pertence, pois, 2 ordem fixa e sdlida dos conceitos. Lemos nos textos péstumos de Nietzs- che: “'Sou 0 mais dissimulado de todos os dissimulados”’; “Tudo 0 que € pro- fundo gosta da mascara”, Esse postulado, observa Eugen Fink, revela que a ver- dadeira realidade para Nietzsche € 0 vir-a-ser € nao o ser. Teatro do mundo para Montaigne, dissimulagao ¢ mascara em Nietzsche, experiencia do mundo em Merleau-Ponty, artificio, admirago, encenacio, ilu- Ges ¢ fantasias para os contempordneos, esses so os fundamentos da ética da aréncia que no cessa de desafiar © humano. Do ponto de vista negativo, do to de vista do poder, os homens manipulam ¢ representam os valores, ““des- rem posi¢des axioldgicas € orientam os outros homens, as massas, a titulo legisladores — legisladores ndo por meio de alguns Mandamentos ou de algo género, mas despertando atitudes afetivas em relacao a vida, orientacGes axio- cas. Tratam os homens como joguetes”.!” Mas 0 que € surpreendente para , NO seu comentario a ética da aparéncia em Nietzsche, é que esses senhores certa inocéncia do vir-a-ser, precisamente na medida em que representam: ndo so tiranos, nem Napoledes ou Hitlers etc., mas representam com aquilo ‘os homens tm na mais alta estima: as religides, as morais, a arte, com todas 13 tradicionais da civilizago”.'* E 0 que caracteriza o civilizado, co- ‘observa Alain, € a aceitagao de certa ordem de poténcias © deveres que faz -‘nascer em cada um costumes, opinides, julgamentos. Mas vemos também a contrapartida da ética da aparéncia: os homens no so apenas joguetes, escothem por razes, tém a capacidade de agir intencional- mente, especulam sobre o mundo ¢ sobre o conhecimento, mudam 0 curso das. coisas, em sintese, tém a capacidade de iniciativa,'? 0 que torna muitas vezes impossivel o comércio com os inventores de morais. Nas aparéncias nao ha ape- nas rufnas; hd também a recusa de sc inclinar diante da poténcia, € isso € 0 pr6- prio dominio da liberdade; cindir os valores em dois, permitir que nascam e re- nascam os pensamentos e os valores: € o retorno refletido as aparéncias ¢ aos artificios, f isso o real: agit para que as aparéncias realizem aquilo que prome- tem. Nao quer dizer que se aceitem as aparéncias tais como elas se apresentam: em dois ensaios fundamentais, Exil, satire, tyrannie ¢ Montaigne en mouvement, Starobinski demonstra que 0 retorno as aparéncias nao é, de nenhuma maneira, © resultado de uma atitude convencional nem “quietista’”” em relacao ao poder — Montaigne, como o Montesquieu de Starobinski, dé as aparéncias um sentido inteiramente diferente: recomendando 0 uso das méscaras em circula¢4o, Montaigne entende antes de tudo preservar 0 espaco individual de cada um, €, portanto, sua liberdade. Des- sa maneira, a mascara nio é sendo a garantia que se da ao social, atrés da qual pode exercer-se a inteira liberdade individual: cm sintese, 0 respeito das apa- séncias politicas institui uma nova divisio entre o dominio social ¢ 0 dominio privado, a fim de preservar este ditimo de todas as intromissdes dos poderes.#? £0 “remédio no mal’, como reafirma Starobinski em titulo de um dos mais opor- tunos livros, dedicado, entre outros temas, a moral moderna. Abolir a ilusio ndo consiste em optar por uma “realidade” jé dada, mas em tornar-se de fato e pela aco aquilo que se simulava ser. Se reconhecemos que a aparéncia € 0 outro la- do de uma realidade ¢ nao o seu contrario, € se nos tornamos aquilo que, de inicio, apenas representavamos, abrimos caminho para a autenticidade: a moral deixa de ser apenas objeto de teoria, como criticou Aristételes, ou um simples projeto. O artificio da aparéncia provoca a entrada em cena “do natural que nem mesmo se esperava ver surgir”.?! A aparéncia, levada ao extremo, tende, pois, A contradicao: torna-se natural para aqueles que praticam a autenticidade e a consciéncia. Assim, 0 imagindrio toma corpo, isto é, passa a ter a “aparéncia necessé- ria”: a dissimulagao readquite o sentido original de, literalmente, simulagéo que se perde, para se reencontrar em novos signos, desta vez desejados. NOTAS (1) Valéry, Paul, “Varieté'", em Ogiiires J, Bibliotheque de la Pléiade, Gallimard, p. 1238, (2) Brochard, Victor, “La morale de Platon”, em Etudes de phtlosopbie ancienne et de pbilosophie moderne, Bibliotheque d'histoire de la philosophie, Vsin, 1974. 14 . (3) Brochard, Victor, ‘La morale ancienne et la morale moderne”, em Etudes de philoso- “phie ancionne et de philosopbie moderne, Bibliotheque d'histoire de la philosophic, Vsin, 1974 (4) Idem, ibid, vot. 1, p. 492. (5) Idem, ibid., vol u, p. 493. (6) Aubenque, Pierre, “Aristote et le Lycée”, em Histotre de ta philosopbie I, Encyclopé- die de Ia Pléiade, p. 674. () Idem, ibid., p. 674 (8) Lebrun, Gérard, “O conccito de paixto”, em Os sentidos da paixtio, Companhia das Letras, pp. 19, 20. (9) Aristételes, Ztica @ Nicémaco, livto 1, Editorial Gredos. (0) Brunschvicg, Léon, Spinoza, Félix Alcan, 1894 (11) Jankélévitch, Vladimir, Les vertus et amour, Flamarion, pp. 52. / (12) Citado em J. Stazobinski, "Vide et création”, Magazine littéraire, setembro de 1990, p. Ar. (13) Valéry, Paul, Cablers I (14) Starobinski, Jean, La transparence et Vobstacle, Gallimard. (U5) Merleau-Ponty, Résumés de cours (College de France, 1952/1960), Gallimard, (16) Bento Prado Jr., “Starobinski penetra no silencio de Rousseau”, Folba de S. Paulo, 11/1/1992, caderno “Letras”, p. 3. (17) Fink, Eugen, "Nouvelle expérience du monde chez Nietzsche", em Nietzsche au- jourd’but?, 10/18. (18) Idem, ibid, p. 369, (19) Ricoeur, Paul, “Etique et morale”, em Lectures 1, Autour du politique, Seuil, p. 257. (20) Bollon, Patrice, “Une éthique de 'apparence”, Magazine litéraire, septembre 1990, p57. (2\) Valéry, Paul, Cabiers 11. 15 A TRAGEDIA GREGA E OQ HUMANO Nicole Loraux Aiigumas palavras, inicialmente, para explicar por que ndo vou tratar do na “Tragédia e destino”, que me foi proposto por Adauto Novaes. Senti-me gada pelo simples titulo de um tema to grandioso. Preferi, entdo, tratar de ia grega ¢ o humano”, deslocando a questo para um terreno que me sse uma alternancia mais Licil entre o passado muito antigo que frequen- iduamente ¢ a ética no presente, cuja exigéncia nos concerne a todos, a tratard muito da relacio a uma 6 vez estreita e complexa que o género © mantém com a cidade, nao ¢ imitil lembrar brevemente o que era 0 an- ro da tragédia, Isso pode ser feito em trés tempos. ) Examinada de nosso ponto de vista, a cidade grega aparece descritiva- constituida como uma estrutura de exclusao, j4 que apenas 0s cidadaos, _ jidos como todos iguais entre si no exercicio de seus direitos politicos, todas as decisdes; essa cidade polftica — a nica que conta aos olhos 0s — é, portanto, numericamente, uma minoria no seio de uma socie- que contabiliza também as mulheres, as criangas, os escravos e, em uma 0s outros, a0 integrar no corpo civico o grupo daqueles que deviam tra- ‘para viver, geralmente excluidos da cidadania nas cidades oligarquicas. §) Nao é ento por acaso que a tragédia “‘grega”” é na realidade, de lado a ateniense — entendamos: nascida da democracia. Mas, para se tornar 0 gé- gico ainda atual que é para nés, ela precisou — ¢, a0 menos, a aposta — colocar também questdes que nao fossem cstritamente politicas, no ‘em que a politica € coisa partilhada apenas por uma parte da sociedade. 17 Isso, de saida, significa que a atualidade ateniense do género trégico acompanha-se de uma tendéncia constitutiva 4 inatualidade. B, para dizer as coi- sas em outros termos, se por inatualidade entendo aqui a faculdade de exceder 0s limites de sua época, é a essa essencial inatualidade que deveriamos bic et nunc © fato de ainda podermos ser espectadores de tragédia. “OS PERSAS"" NO TEATRO DE ATENAS Em 1961, a televisto francesa transmitiu uma adaptagio de Os persas de Esquilo? cuja repercussio foi grande ¢ que logo foi qualificada de transmissio “historica’’. Revendo bem recentemente (marco de 1991) essa adaptagao, eu me perguntava: como explicar a amplitude desse impacto? Com certeza, a alta quali- dade da realizacdo, a beleza das tomadas de cena e do som contiibuiram muito Para isso, e, nessa época, as encenagdes de tragédias gregas eram tio raras na Franca — 0 que, hoje, nao é mais 0 caso — que o choque foi bastante forte para © piiblico assim introduzido, no imediato da percepgio, na grandeza da drama- turgia antiga, Mas outras raz6es devem, sem diivida, ser buscadas alhures, nesse ano de 1961 em que a Guerra da Argélia caminhava para o fim sem que se pudes- $¢ na época afirmé-lo ainda com certeza — duas semanas antes dessa transmis- sio, manifestagdes proibidas de argelinos nas ruas de Paris eram todos os dias reprimidas com violéncia.> De minha parte levanto a hipotese de que hd, nessa adaptacao memorivel de Os persas, levada a bom termo por um diretor € por atores de esquerda, uma ligao, sem divida parcial, certamente anacronica mas nfo desprovida, afinal, de pertinéncia, que uma parte do péblico retém: conde- nacag do imperialismo, destinado ao malogro ¢ 4 morte pela transmutagio de suas esperancas em desastre, exaltaco da pequena cidade sublevada por sua in- dependéncia e que enfrentou a imensa exibicaio da expedicdo militar, hino a vi- t6ria necessria das causas justas, Mas, para tirar essa li¢ao, 0 que nao simplifica as coisas, era preciso associat a Atenas os argelinos insurgidos contra a ordem colonial, ndo a Franca, cuja tadigao republicana, centrada no elogio da democracia, constituia, no entanto, uma outra Atenas, mas que sua politica de repressdo colocava do lado do agres- sor injusto, Pelos miiltiplos deslocamentos que supunha, essa identificago era no minimo delicada e, supondo-se que tenha sido consciente, com certeza foi facil apenas de um ponto de vista declaradamente terceiro-mundista: a esse res- peito, a representacdo, quatro anos'mais tarde, em plena Guerra clo Vietna, de As troianas de Euripides em uma adaptagio de Sartre,‘ com os gregos no papel do imperialismo americano € Tréia no da vitima herdica, dependeu de uma iden- tificacdo mais facil — ¢ mais facilmente compartilhavel — para o publico francés. Mas, quando o lamento sobre a grandeza perdida alcanca a acuidade atingi- da em Os persas, trata-se ainda ¢ apenas de identificagao? E, se se trata mesmo disso, seu terreno € apenas politico? Questdes abertas, 4s quais ndo se poderia responder sem té-las antes colocado no longinquo contexto da Atenas antiga. 18 ‘Haveria a possibilidade de que, desde 472, alguns anos apenas depois de Salami- na, a tragédia que Esquilo consagrou a derrota persa tenha dependido, tanto por “seu argumento como por sua forma, de uma recep¢ao em si problematica junto ao puiblico ateniense, pois o objeto de identificag4o proposto aos espectadores nao cra de modo algum evidente. Expliquemo-nos. Cerca de vinte anos antes de Os persas, 0 tragico Frinico, grande predeces- sor de Esquilo, fora multado pela cidade ateniense por ter feito representar uma tragédia intitulada A captura de Mileto. Submetendo os atenienses ao espeticu- - Jo do que estes consideravam como um desastre que Ihes dizia respeito em par- ticular, a tragédia fizera derramar-se em lagrimas 0 teatro inteito — ou seja, a aunidade dos cidaddos —, o que the valeu ser doravante proibida de repre- racdo.> Se Os persas foram, a0 contrério, um grande éxito, € que, diz-se, a acdo ai era inversa, tendo os gregos, € muito especialmente Atenas, triunfado barbaros. Assim, costuma-se afirmar que s6 os infortinios de-outrem podem “se a.uma “encenagio. trdgica, sobretudo quando 0 ito: € barbaro € foi que 0 venceu.® Ao ouvir a lista das ilhas — Lesbos, Samos, Quios, Pa- Naxos (Os persas, 879-87) — que os barbaros perderam e que jé passaram aalta protecdo de Atenas, 20 ouvir Xerxes, 0 rei vencido, evocar esses “des- * que, “para 0 inimigo” (grego) sio “alegrias” (Os persas, 1034), ninguém ida, estima-se, que 0 publico ateniense no tenha sucumbido 20 narcisismo 'yitoria, Se as lamentagdes dos barbaros soam para um ouvido grego como 10s,” como os cidaddos nao teriam sentido antes de tudo 0 orgulho de ouvir car Atenas, “diosa” a0 persa, radiosa para seus soldados? Que seja. Mas, sem falar por ora da resisténcia que pode legitimamente pro- aidéia de uma tragédia que despertasse 0 jtibilo do puiblico, perguntar-se-4 mula de Os persas era tio boa, por que nao fez escola? Por que os trégi- a comegar por Esquilo, se desyiaram:do, que estava em.jogo no presente, mnifestando ‘uma predilecio Sra sel enbe e mito? Para isso também jovda hist6ria. Coma distincia que.o desvio pee ‘origem garanté, o mito per- fia ataques to vigorosos quanto indiretos.® Quem nao vé, entretanto, que raciocinar assim equivale a tratar a wagédia do mais estrito, pois se creditam a tragédia os valores proprios de um dis- oficial, como a oracio fiinebre, para o qual s6 hd dndres (cidadaos-soldados) desse nome em Atenas, oposta ao resto da humanidade — isto é, aos ou- gregos, j4 que os barbaros recuaram no horizonte do discurso ao ponto de derem ocupar a condigao de outro. diivida, pode-se reivindicar o valor civico de semelhante configuracao: eitura de Os persas tem seus titulos de nobreza gregos, ela é, muito precisa- a de AristOfanes em As ras. Para maior seguranca, 0 comico af dé a pala- préprio Esquilo, que, do mundo dos mortos, louva os méritos didaticos’? sas, afirmando que, com essa tragédia, ensinou aos atenienses (¢, mais 19 i 1 | a fe, aos hebOntes, aos homens em idade de combater) “que € preciso _ aspirar continuamente a vencer seus adversérios” (As rds, 1026-7; 1041-2; 1055). ‘Nao ha dtivida também de que se pode, entre outras funcOes, atribuir ao genero trigico um objetivo pedagdgico na Atenas do século v;)! mas 0 fato de que te- nha havido gregos, ¢ nao dos menores, para reduzir seu objetivo a essa nica dimensao nao basta para obrigar os modemos a adotar, sem nuance, tal inter- Pretacdo. Pois nem sempre se deve seguir os gregos quando sugerem o que de- sejariam que a posteridade dissesse deles. Fago pelo menos a aposta de pensar as coisas de outra maneira. Convencida de que cada géneto depende de uma recepgdo que Ihe € prépria, recuso-me 2 analisar a de Os persas em termos que conviriam melhor a de um epitaphios: nao foi, portanto, um elogio de Atenas que os cicadaos reunidos nas arquiban- cadas do teatro de Dioniso escutaram na tragédia de Esquilo. Ou, ao menos, nao apenas. Porque toda tragédia ~ concebo pelo menos essa hipétese —tem mui- toa ver coma encenacdo ‘de um luto; € quase certo-que, em um drarna que se assemelha a um longo thrénos (a unia laméntacio versificada), os cidados de Atenas tenham ouvido, nas queixas do inimigo abatido, algo que lhes dizia res- peito pata além de sua identidade de atenienses.!? Algo que chamatei 0 buma- no. 0 sentimento, embora confuso em cada um, de que se € ircevogavelmente tocado por-outtem. A hipotese €, eno, de que a representacio teatral do recentissimo desastre dos persas podia, sobre aqueles mesmos que tinham vencido 0 barbaro e nao cessavam cle glorificar-se por isso, ter um efeito propriamente tragico. Para me apressar ¢ avancar, resta-me formular sem outra precisio a idéia de que o tragico tem sempre, € em proporgdes variiiveis, cumplicidade com o que chamarei nao tanto de “apolitico”’ (0 que supGe simplesmente o desengajamento, ou mesmo © desinteresse) mas de antipolitico — tudo aquilo que a cidade recusa ¢ que, em Esquilo, Séfocles ou Euripides, recusa de certa maneira a cidade € sua ideologia. E tempo de examinar o que a tragédia grega diz em seu proprio nome sobre © homem e o humano. A investigacdo dird respeito 4s maneiras de designar-lhes a nogdo ¢ as aporias ou, pelo menos, as hesitagdes da elaboracdo tragica de um Pensamento do humano, antes de poder levantar com novos esforcos a questo do género ¢ 0 célebre problema da katharsis QUESTOES DE NOME Brotds, ou o homem enquanto mortal (diz-se também, a partirle uma ou- ra raiz qué significa “morrer”, rhn&t6s); dnthropos, o homem erf sua humani- dade de ser social; an@r, o homem viril. Na cena trdgica, tudo do homem se enun- cia, com pouca diferenga, nesses trés termos. E brotds que prevalece, e de muito longe, pelo numero de suas ocorréncias nos trés tégicos. Assim na Oréstia de Esquilo, do Agamémnon, em que brotés 20 denota a condi¢io de afligdo que caracteriza o homem nas maos dos deuses, até ‘as Euménides, em que se procede solenemente 4 fundacdo da justica civica. Tal- vez cause espanto a recorréncia de brotés nesta tltima pega em que os conflitos do passado encontram sua solucao na cidade, ¢ € verdade que o sintagma polis th’ bomotds ("a cidade assim como 0 mortal”: Euménides, 523-4) sur- de ali onde se esperaria, como no historiador Tucidides, pélis kai ididtés dade e © particular), ou ainda, no modo plat6nico, pélis kai dntbropos (a dade ¢ 0 homem). Mas, além de as Euménides serem uma tragédia entre deu- a propésito de um humand’e de os deuses designarem habitualmente os ho- por sua mortalidade,!3 observar-se-4 que a cidade, assumindo em si ¢ por 120 lembrar aos seus homens que eles s40 mortais; é apenas mais seguramente recurso para isso, a0 garantir a conc6rdia em que “muitos sofrimentos, en- ‘os mortais, encontram seu remédio” (Buménides, 987). E, se, no Prometeu, otés domina ainda incontestavelmente, em detrimento do tema antropoldgi- no entanto esperado, que faz do Tita 0 inventor do regime de vida propria- humano,"* é qué, também ai, a tragédia se passa entre deuses — mesmo por ter sido amada por Zeus € tansformada em novilha, nao tem mais seu ar entre os homens. Conflito entre divindades, acima da cabega dos humanos esto em jogo, tal poderia ser ainda a defini¢ao do Hipélito de Euripides, que broids € recorrente; mas € igualmente verdade que os humanos ai de- mpenham sua parte de infelicidade, de cegueira e de morte, pois o amor, co- em Medéia, € para os mortais, com seu cortejo de sofrimentos, um podero- mo revelador de sua condicdo perpetuamente em sursis. De fato, na tragé- ‘os homens também podem apoderar-se da palavra brotds para designar a iprios, quando sio tomados pelo pensamento de sua essencial mortalidade , em Os persas, a rainha que teme a catastrofe) ou quando querem fazer 2lei um dos seus, perdido no excesso: € a palavra que, como uma censu- da relacio com os deuses ou da confrontacao entre a fraqueza dos homens elevacao de seus ideais de sabedoria —, dnthrdpos em geral denota, na tragé- s” (Euménides, 56) € evocar na mesma ocasido a vida de trocas € de rela- ‘que caracteriza as comunidades humanas, Ocorre mesmo que se ater ao pon- vista dos dntbropoi seja equivalente a negar a onipoténcia dos deuses: afir- ‘como Clitemnestra, que ao caminhar sobre 0 suntuoso tapete estendido dian- Agamémnon nao deve temer ‘‘a reprovagao dos homens" (Agamémnon, ) € esquecer deliberadamente que existem deuses € que a unica cOlera que ta €a deles, Essa é, sem diivida, a significagao que € preciso atribuir 4 recor- fa da palavra dnthrOpos na Antigona de Sofocles: por certo, a heroina ai pro- ‘sua preocupacao com os deuses, mas, 20 supervalorizar 0 mundo dos mor- igona esquece a esfera do bierdn, onde os deuses estio em majestade, 21 -s¢ a do bésion, onde os homens negociam com 0 divino, ¢ o debate ‘a filha de Edipo e Creonte nao afronta, na realidade, mais que escolhas hu- ‘manas, demasiado humanas. Portanto, 0 célebre elogio do dnthrdpos cantado pelo coro deve ser entendido em toda a sua ambigitidade: sem diivida, ai se pro- lama que nada no mundo € mais espantoso (deindieran) do que o homem (S6- focles, Antigona, 332-3), mas, referida ao que esti em jogo na tragédia, essa afir- macio significa igualmente que, entre as coisas terrfueis, o homem é a mais ter- rivel de todas. De fato, em S6focles, a palavra dntbropos deve nao tanto ser co- Jocada em oposi¢ao ao mundo divino (os deuses esto a0 mesmo tempo por de- mais afastados dos homens ¢ s4o demasiado poderosos para formar com eles um par de opostos) quanto pensada em uma perpétua tensa, no interior do homem, entre humano e sobre-humano: a inclinagao dos heréis inflexiveis como Ajax é,com efeito, de se entregar a paixdes que excedem os limites da humanidade, sem querer compreender que, para os homens, a natureza € a uma s6 vez medi- da norma. Anthropes, portanto: o homem entre os homens, mal consigo mes- mo € com seus semelhantes, €, no entanto, estranho a tudo o que nfo é humano. Resta evocar anér, nome do homem viril, onipresente nos textos a ponto de os tradutores decidirem muitas vezes que, por uma aproximacio poética ou por um enfraquecimento do sentido, designa de fato 0 humano considerado na sua maior generalidade. Mas hi af, desconfia-se, um raciocinio excessivamente sumério, Em primeiro lugar porque jamais ocorre que a palavra seja utilizada pa- ra designar, por exemplo, uma mulher'® ow um covarde. No singular, an@r de- signa 0 guerreiro, ou mesmo o heréi — como quando Agamémnon, hesitante em pisar 0 tapete da desmedida, afirma querer “‘ser honrado como heréi (anér), nao como deus" (Agamémnon, 925) —, mas também e sobretudo, nas Supli- cantes de Esquilo ou na Oréstia, na Antigona ou em Hipdlito, o individuo masculino"? em sua rela¢ao conflituosa com a mulher. Quando um herGi viril como Héracles conjuga em si as duas dimensdes de anér ao ser, “de todos os homens fe no: de todos os humanos] sobre a terra o mais valoroso" (S6focles, Traquinias, 811), as coisas se tornam claras, quase demasiado claras. Pois acontece, apesar de tudo, que se possa hesitar. Quando, fugindo do desejo masculino tanto quanto do casamento, as Danaides imploram a Zeus, “guar- dio da morada dos homens piedosos” (bosi6n andrén), que acolha seu “grupo de mulheres” (Esquilo, Suplicantes, 27-8), nao temos enfim um emprego de avr no sentido genérico de “humano’”? Para ser exata, a resposta deve ser nuanga- da; a tradugio de andrén por “os humanos" sO possivel na estrita medida em que sao 0s individuos masculinos que, no mundo grego, acolhem as suplican- tes, tomam as decisdes ¢ fazem a guerra, todos comportamentos que dependem da esfera do hésiGn. Para no multiplicar os exemplos, ditei que, em todos os casos similares, anér confunde-se com o homem genérico apenas na medida em que © sexo masculino é efetivamente paradigmatico de toda humanidade.'® ‘Todavia, esse termo nunca perde sua determinagao sexuada, nem sua co- notacao muito positiva e, quando anthropos ladeia anr, a distancia sempre se reconstitui: por exemplo, em S6focles, quando um importuno designado como 22 dnthrOpos € oposto a um sabio que tem 0 titulo de anér (Traquinias, 434), ou quando Menelau que, frente a frente com 0 cadaver de Ajax, nao se conduz co- mo o an@r que deveria ser, e é vivamente apostrofado pelo irmdo do heréi mor- to: “ei! tu, individuo!” (muito exatamente, “‘humano”; Ajax, 1156) Ainda nao terminamos completamente de separar anthropos e anér: se, en- tre esses dois termos, os transbordamentos s40 mais raros do que alguns acredi- taram, basta a intervengao de uma muther para que as querelas de fronteiras se multipliquem em torno do titulo, de sdbito novamente valorizado, de anthropos. Como fica a mulher como dnthrOpos? Gramaticalmente, 0 grego pode, con- servando a forma masculina dessa palavra, utilizd-ta a propésito de uma mulher, € € assim que a ama-de-leite de Fedra afirma que a mulher, porque é “homem’ (dnthropos oisa), esta sujeita A fraqueza (Hipélito, 473). Acontece mesmo que condutas ditas femininas sejam muito simplesmente humanas: assim, a piedade que Tekmessa manifesta a Ajax € que abranda a inflexibilidade deste nao deve, como afirma 0 her6i, ser posta apeinas na conta de sua feminilidade (Ajax, 580, 650-3); cla é, como veremos, sentimento humano por exceléncia: em outros ter- mos, a companheira de Ajax € mais énthropos que ele. Ora, € bem isso o que esti em jogo: entre homens e mulheres, trata-se da definicao do género humano € de sua extensdo. Em Euripides, essa pendéncia € claramente explicitada: ela coloca Hipélito contra Fedra e preside ao enfrentamento de Jasio ¢ de Medéia. As mulheres so contadas no ntimero dos dnthrBpoi, mas os homens, se pudes- sem, dele as excluiriam, quer, como Hipélito, vejam no outro sexo um suple- mento colonizador (Hipélito, 616-7), quer, como Jasio, sonhem ter filhos sem ajuda das mulheres, pois a “‘raca feminina” nao existiria (Medéia, 573-7). Em su- ma, sobre 0 fundo de conflito entre os sexos, 0 titulo de dnthrBpos é objeto de um fspero debate,'? 0 que significa abalar a assimilacio demasiadamente sere- ‘na do anér ao homem verdadeiramente humano. Por ai revela-se que colocar ulheres na cena ndo significa apenas inquietar os valores cfvicos. E da humani- ide que se trata. De le fabula narratur. Ficaremos surpresos com isso? Responderei que a tragédia sem dtivida mo- liza, assim, uma das exigéncias fundamentais da ética: no colocar como tema humano abstrato antes de ter atribufdo 4 mulher seu lugar no jogo. Assim se arma uma das aporias de anthropos: nao € a tltima, 'AL HUMANIDADE? Pois dnthrDpos ainda nao acabou de nos surpreender na tragédia, e 0 para- 0 mais notavel € sem diivida a distribuigao muito desigual no corpus desse .¢ — to comumente grego, no entanto — do homem entre os homens. As- , procuraremos em vao essa palavra em certos contextos em que inicialmen- _nGs acreditavamos encontré-la com certeza, ¢ isso — circunstancia ainda mais 23 perturbadora — naquele dos trégicos a quem os gregos creditavam precisamen- tc uma obra de contetido antropolégico: penso em Euripides, que, a crer em Aris- tOfanes, gabava'se de ter adaptado para o nivel comum da humanidade a tragé- dia que Esquilo reservava aos dndres.* Ora, se se excetua o Ciclope, em que sao abundantes as ocorréncias de dntbropos — mas, de resto, essa parabola ird- nica sobre sclvageria e civilizagao € drama satirico no tragédia —, fica patente que Buripides, mais ainda do que os outros tragicos, nao emprega essa palavra sem uma certa reserva. Nao apenas dnthrpos se apaga diante de brotds, mas esta singularmente ausente dos contextos mesmos em que a referéncia a huma- nidade pareceria impor-se. Como interpretar essas auséncias dle dnthrOpos? A tragédia teria aversdo pe- Ia vela antropolégica? A hipdtese merece scr formulada; parecera mesmo funda- da, por pouco que se tente, por exemplo, confrontar certos desenvolvimentos de Euripides sobre 0 escravo ou o barbaro com o fragmento do sofista Antifon sobre a unidade natural da humanidade, tio mais explicito em seu propésito Para dizer as coisas de outra maneira, parece que, na tragédia, ndo haveria neces. sidade de precisar que um homem € um homem.?! A menos que, nos siléncios de Euripides, seja preciso adivinhar — mas essa € uma hipotese um pouco sofisticada — uma estratégia muito refletida: o tragico usatia essa evitacdo da palavra dnthrBpos como um indicio capaz de assinalar 0s comportamentos humanos que, fundados em maus recortes do real, pecam Contra esse denominador comur que € a humanidade. Mas divisdes, recortes erréncos:” seria posstvel que, ao agravar todas as di- cotomias no fon, com a oposi¢io do ateniense autéctone e do estrangeiro, do cidado ¢ do intruso, Euripides procurasse invalidé-las tacitamente pelo simples jogo de sua exacerbacio? Questao de interpretagao, sem dtivida, sobre a qual Se poderia discutir longamente. Incontestivel, em compensacio, parece-me a in- tencio de Euripedes quando utiliza paradoxalmente a oposicao entre gregos ¢ birbaros. Presente em Os persas, essa oposicao nao era por isso essencial a significa- 40 da pega de Esquilo, pois a denominagio de “barbaros”, quando nao funcio- fava como uma designagdo neutra, implicava apenas, como 0 quer a sonoridade da palavra bar-bar-os, 0 uso de uma lingua que no é mais que ruido.?’ £ intei- ramente diferente em Euripides com as Troianas, em que 0 conjunto do texto € dominado pela oposi¢ao dos gregos e dos barbaros. Mas, ao usar essa oposicao com tanta insisténcia, Euripides a explora até desconstrué-la por completo. Isso comega com sintagmas como “grego ou batbaro”’, “‘gregos e barbaros” (477, 771); um passo a mais, ¢ aos gregos é creditado terem “inventado suplicios bar- baros’” (764), mas a Gltima palavra ficard com Hécuba a celebrar o renome ani- duilado de Tréia: Tréia, hd pouco tempo grande entre as cidades barbaras, para sempre apagada, mas cuja destruigao impede para sempre os gregos de celebrar sua gloria, depois dos delitos que ali praticaram. Como se, diante de barbaros que ndo merecem esse nome, até mesmo o nome de grego perdesse para sem- Pre todo 0 seu sentido. Restard, nas Bacantes, por em cena o proprio Dioniso, 24 fim de que 0 deus do teatro confirme a profunda inadequacao de tal sistema oposicdes ao universo tragico: se as cidades gregas, a comecar por Tebas, re- tem ao deus, a0 passo que a compreensio dos mistérios de Dioniso se deu dificuldade entre os barbaros, essa ndo €, como bem depressa responde 0 i de Tebas, uma prova de que os gregos valem mais do que os barbaros (Ba- es, 482-3); € simplesmente 0 sinal de sua itreprimivel desmedida. Pois Dio- 10 nao tem o que fazer dos patriotismos de aldeia e dos reflexos de uma logica bindria, que equivalem infalivelmente a opor 0 Mesmo, ornado de todas as vir- tudes, ao outro, repelido para as trevas da pura negatividade. Se o deus ama a Asia que espontaneamente se abriu ao seu culto, é porque, nessas cidades onde -g0s e barbaros esto lado a lado, prevalece a mistura (Bacantes, 17-8), pritica eminentemente dionisiaca. Mas a tragédia € grega, € as oposicées demasiado fortes ai se exacerbam, tais para quem acreditou poder manejé-las sem perigo. Em outros termos, 0 que, na cena tragica,”! consuma-se sob o olhar de Dio- em a nao se dar outro nome que nao o de broto/, outro horizonte que nao mortalidade; em suma, que nenhum deles seja mais definido pelo /ugar que cupa — pois tal concepgao faz inevitavelmente do lugar dos dndres um centro odos concedido. Acrescentemos ainda que tal conversdo certamente no se pro- z por si mesma, mas sob o constrangimento devastador da catéstrofe, ¢ 0 r0- r0 trégico estaré completo. Brotés, portanto: o homem enquanto destinado a morte, esse destino cuja indo-européia comum a todas as linguas romanas se enuncia em seu nome.?> Dafa importancia de uma situacao tragica recorrente, na qual humanos se am contra a proibigao de enterrar um morto, Quer esse morto esteja isola- n sua singularidade, como em S6focles, ¢ seja defendido por sua ima (An- @) ou por seu irmio (Ajax), quer seja preciso arrancar com esforco os cor- © poder de um tirano (cujas raz6es, politicamente, podem ter, alids, certa midade), trata-se da lei que funda a condicao mortal. Pode-se muito bem, o nas Suplicantes, dizé-la comum aos gregos (Suplicantes, 311, 526, 671), O Se apenas os gregos prestassem homenagem aos seus mortos, mas ela € , Mais justamente, chamada lei dos deuses (19, 563), ou mesmo dos mor-. 378). Esse € 0 erro dos tiranos, ao supervalorizarem 0 politico: créem recu- sepultura a um anér que saiu da ordem civica, ¢ € contra um brotds seme- a cles que se encarnicam. Por isso pagam com sua frégil felicidade. Pois 0 outro erro dos tiranos*® é o de se acreditarem imortais, ou felizes no fundo, vem dar mais ou menos no mesmo), e a tragédia se entrega 25 Ge bom grado a dramatizar sua queda; extrai entao mais de uma vez 4 moral co- um 0 adigio em virrude do qual ninguém poderia ser considerado feliz antes de estar morto.7 Deve-se entender com isso que todo favorito da sorte-pode, em um dia, ver sua fortuna aniquilada??® Ou sua interpretagdo deve ser, mais ra- dicalmente, que apenas na morte esté a felicidad? As duas leituras tem seus par- tidarios ¢, se a primeira delas tem em geral a preferencia, nao est ai o esseneial, Pols a logica trdgica nao se limita a essa afirmagdo € se compraz em complicar a temporalidade da mensagem Que a morte habita entre os vivos ndo é apenas a presenga em cena dos mor- tos que o diz sombra insatisfeita de Clitemnestra nas Euménides, sombra et- ante do menino Polidoro em Hécuba,®? sombra gloriosa de Datio solenemen. fe invocada em Os persas; sem divida, por sugerirem 0 quao poroso é o mundo dos humanos em relagio ao dos mortos, tals aparigoes podem impressionar 0 ®spectador modezno, ou, 20 menos, o espectador ocicental, brutalmente lem. brado do que acteditava ter normalizado — a morte — ou ter definitivamente SSquecido, a memsria, Mas a temporalidade trigica é mais complexa ainda, ia que aio homem € uma sombra, antes mesmo de ter descido ao Hades: em pleno coracao da felicidade, como no Agamémnon (1327), na generalidade da cond. S40 mortal, como em Medéia (1224), ou quando a infelicidade se abate sobre © her6l, como Ajax, cuja loucura faz Ulisses dizer que “no passamos/ de fantas- mas, nds, Os vivos, ou de uma leve sombra” (Ajax, 125-6) Uma sombra, nds, os vivos: tal € a licko trdgica que, em seu dio por Ajax, Os dtridas desconhecem quando, presos a defini¢do homética da sombra como figura evanescente do morto, espantam-se de ver Ulisses voar em socorro deum morto, ‘ja uma sombra"” (Ajax, 1257). Que nés, os vivos, 4 estamos mortos, Sobretudo se, diante dos inforttinios, adotamos caminhos extremos, foi Sofocles ahem © TePetiu, sem grandilogtiéncia e sem perspectiva escatol6gica, a qual, da morte, faria a “'verdadeira” vida, e seus het6is tensos disso dio testemunho certamente Antigona € Ajax, mas também Electra, que vive para o luto ¢ a vin. Banga, tem seu lugar “entre dois mortos"’.' Em sua vontade inflexivel, parecem falvez inumanos, mas a logica tragica exige que exercam assim a essencial morta, lidade do homem, no modo do excesso. Situemo-nos: brotds se revela por fim habitado pela morte para a qual ten- Ge, € 4 confianca do vivo em sua vida surge desde entdo como a mais ilusérla clas percep¢des que uma sombra pode experimentat a seu proprio respeito. E, HO entanto, mesmo que em brotds haja toda a fragilidade possivel, até mesmo essa debilidade humana de que, entre cles, os deuses falam com condescendén. cia quando se entretém com coisas humanas, é dessa experiencia sem qualidade auc @ tragedia faz © bem partilhado da humanidade: 0 peculiar do homem, ime- morial, anterior talver a essa vocacao politica que Aristoteles considera origina. Ba nesse scr vivo que vive em cidades. Pois a tragédia, incansavelmente, mostra que nenhuma cidade poderia proteger 0 mortal contra a morte que nele habita.2? Eu diria de bom grado que a tragédia € por isso género “humano”, no sen- tido em que procede ao desnudamento radical do homem, 26 DA TRAGEDIA COMO GENERO “HUMANO” Como género literario, a tragédia entra na categoria do drama. Entendamos, j& que esse substantivo € de forma passiva, que ela é uma acdo, mas uma agio percebida como agida e ndo como atuante, alguma coisa, portanto, que tende a coincidir com 0 pathos como experiéncia tragica primordial. Em um livro recente que teve alguma repercussio no mundo anglo-saxio, Martha Nussbaum mosirou que toda a ética grega articula-se em torno do para- doxo da vida feliz, concebida como necessariamente dominada’e, entretanto, sujeita a todo momento & forca cega € destruidora do acaso (ty'kb@).2 Mas a tra- gédia escapa sem divida paradoxalmente a esse paradoxo ao recusar o dilema do dominio (sempre ilusério) e do acaso (jamais pura contingéncia). Porque pro- cura apresentar a sorte do homem nesse mesmo dia em que *fkb? se pe a setvi- co de um ato a mais — um desses atos que os protagonistas pretendem realizar até 0 fim, com o risco, para o agente, de ele préprio se encontrar, no desfecho do proceso, no papel da vitima —, tykeb@ € af menos 0 acaso que atravessa a vida humana do que a coincidéncia essencial que a estrutura como drama. As- 1, em Edipo rei, 0 antncio da morte de seu pai adotivo, no mesmo dia em procura 0 assassino de Laio, sera para Edlipo o acaso necessario 4 descoberta sua identidade. Se; portanto, o homem é, na tragédia, criatura de um dia — “efémera”’, diz a lingua grega —, no € apenas porque, vista pelos deuses, sua da ndo tem mais amplidao do que um,dia; €.que essa vida se condensa inteira num tinico de seus dias, aquele, decisivo, em que © ato pende para a ruina. pe tempo, esse dia em que pathos ver muito exatamente se sobrepor a drama, No substantivo pathos, no infinitive pathein, € 0 padecer que se enuncia mo lei da condigao mortal (Esquilo, Persas, 293-4; S6focles, Electra, 1169-71). ithos € o que se sofre, 0 softimento, mas também a experiéncia que, para os manos, se adquire somente na dor. Pronunciada, a palavra pathos difere ape- s por uma letra de mdthos, nome do conhecimento adquirido, e, explorando pequena diferenga, Esquilo formou 0 adagio pathei mathos (Agamémnon, of. 249-50), que € como a propria quintesséncia do trigico. “No'soirinen> 0”; ou ainda: “experiéncia da sapiéncia’’. £ por ter softido se PPesmpreendé, mas tarde demais, se € verdade que a revelacao 56 ocorre indo do desastre. B comegamos a nos perguntar: quem tira proveito do en- amento do pathos trgico? O espectador, talvez, embora no seja um herdi; s essa restricdo perde sua importancia se é verdade que, ao submeter 0 her6i pathos, a wagédia atua na reducio de toda distancia entre o homem ordinario Zr de excecao, entre a condigao mortal ¢ a guinada herdica, até dar a en- der que, em seu excesso, o herdi vale por qualquer homem. Perturbador 6, sem nenhuma divvida, esse equacionamento da medida e do esso. Pelo menos, ele se esclarece um pouco se se admite que, sendo a agao+ gica um jogo mortal e muitas vezes um jogo de assassinio, varias 16gicas cons- am para fundar a lei tragica em virtude da qual quem agiu padece: a lei divina 27 “ & (DE FEDERAL DA PARAIBA es gene UNIVERSIDA! | | | | | ) | quer que todo desequilibrio acarrete compensag40;** a lei do sangue, que 0 as- sassino pague seu ato com sua vida; a lei positiva, encarnada nos procedimentos judicidrios, que 0 agente seja submetido a uma pena;** € a légica herdica, que as reviravoltas da forca aniquilem o forte.2? Se a tragédia € a lei de coincidéncia de todas essas leis, € que, ao revestir — exigéncia da encenago — a forma de uma aco (drama) — ¢ Arist6teles, na Poética, passa a designar as personagens tragicas como boi drontes, os agentes —, ela da a entender que 0 padecer é sen- tido auténtico do agir.>* Assim, o pathos de Edipo cego (Edipo rei, 1297) nao nada além do que © ato que ele voltou contra si mesmo, ¢ a aventura mortal de Ajax contra os rebanhos dos gregos sé tinha a forma de uma procza para os seus olhos desorientados: para Ulisses, assim como para o espectador, era lou- cura, isto &, péthos (Ajax, 215). E, desse ponto de vista, pouco importa afinal que Atena seja a instigadora do ato louco; para Ajax o resultado dele é oikeia pdthe, mal que infligiu a si proprio (Ajax, 260-1)” Dizer que, na tragédia, no ha agir que nio va até o fim equivale, portanto, aconstatar que nao ha drama que nao se consuma em pathos. Bis-nos longe do universo civico ateniense, em que a tragédia contribuiria, diz-se, para a educa- do permanente que, sem descanso, reforca € revigora 0 civismo no coragio € no espirito do cidadiio. Diante da distincia que assim se cavou, nds nos repatria- remos precipitadamente, cheios de confusio, para o dogma de um género trigi- co inteiramente politico? Seria preciso, entdo, minimizar a importancia de todo pensamento trégico do humano e incorporar na rubrica dos é6pot (lugares- comuns) 0 que se elabora a partir da definicao do homem como brords. Lugares-comuns, tudo isso? Talvez. Mas no voltaremos atras por isso: nos- so projeto nao era, precisamente, buscar tudo aquilo que, na tragédia, tenta, pa- raalém do onipresente material politico, articular um discurso comum? Um dis- curso que, pelo lado da ficco teatral, sugeriria uma comunidade mais ampla que a dos cidadaos, mais vasta que aquela que ocupa as arquibancadas do teatro. Uma comunidade virtual, ou pelo menos apenas representada, j4 que tio-somente a encenacio Ihe da existéncia por um tempo, mas com forga bastante para que as lamentacGes dos persas por suas cidades despovoadas despertem nos atenien- ses algo diferente da embriaguez da vitoria. Resta tentar compreender de que modo 0 pathos dos persas podia dizer res- peito a espectadores que, a titulo de cidadaos, nao conheciam para si mesmos outra destinagao que nao uma atividade toda devotada a cidade, outra proibigao que nio 0 thrénos € 0 desencorajamento. Com certeza, trata-se da katharsis. Tao célebre quanto finalmente obscura e interminavelmente discutida,*° uma frase de Arist6teles afirma que “por meio do terror ¢ da piedade”’ a tragédia opera “‘a kdtharsis das paixdes dessa ordem” (Poética, 1449-b 26-8) Sem prejulgar por ora a tradugao da propria palavra (“purgacao”, como em medicina, ou “purificagao"’, como por um rito?), admitamos, para comecar, com a maioria dos leitores da Poética, que essa operacao nao se realiza no interior 28 triga, nas personagens da agio,*! mas, na verdade, tem seu lugar.no espec- na medida em que a representacao tragica lhe € destinada. Se se acrescen- gue terror e piedade vao de par com esse sentimento do humano para 0 qual gédia nao tem nome mas que, €m Aristételes, recebe a denominacao de #6 ildnthyOpon,** deduzit-se-A dai que, mesmo entendida no sentido médico de urgacio, a tragédia no é uma medicina especifica, que limitaria seu campo de sfic’cia 4 acao sobre alguns “doentes"' (os “medrosos”*€ os ‘‘lastimaveis”), mas oncerne a todo homem na medida em que, confrontado ¢om a condigao mor- al, experimenta infalivelmente terror ¢ piedade.** O teatro nao é a assembléia, embora sejam os mesmos homens que ocupem arquibancadas da Pnix e assistam as Grandes Dionisias,** ¢ a tragédia libera ‘certo no espectador paixdes as quais o cidadao digno desse nome nao pode- donar-se; mas ela os libera, por assim dizer, sob controle, autorizando jer um a imergir no humano apenas pelo instante limitado de um parénte- tucional: foi assim e tdo-somente assim que os atenienses puderam, nas nisias de 472 antes de nossa era, comover-se com a miséria dos persas. E essa sco € ao mesmo tempo purgacio, pois, ao dar as emogdes ndo civicas um po ¢ um lugar, a representagio dramatica exime periodicamente o cidadao quezas do homem ¢ contribui entao paradoxalmente, distanciando 0 po- eo de si mesmo, para restaurar no tempo por vir um politico depurado, no do quase quimico do termo. Por muito tempo pensei assim, "5 e ainda me atece crer nisso; mas, por mais operatrio que possa parecer tal modelo, pa- aim ele, doravante, se afigura insuficiente. Insuficiente porque puramente fun- € porque € preciso desconfiar das explicages sem resto. Irremediavel- insuficiente ou, pelo menos, parcial. Pois quando, em uma tragédia, Dioniso € dito kathdrsios*® (Antigona, ), € apenas uma questao de “purgacdo”, ou mesmo de “cura’”? Ou se trata s2 temivel purificacao pela catistrofe que confere 3s intrigas tragicas seu fim? ez nos seja objetacio que, nessa vertente dionisfaca, afastamo-nos para bem ge da kaitharsis aristotélica. Mas isso nao € t4o certo: por pouco que aceite- nos ater a questdes de forma, reencontraremos a kdtharsis. Scja, entao, Dio- b katharsios. Se 0 desfecho desastroso da Antfgona, como 0 de muita acio , pode ser posto sob a sua autoridade, o ponto importante nao deixa de que essa invocacao a0 deus figura em um coro: ao pedir assim a vinda de 0, © coro da Antigona, que sem divida acreditava saudar uma esperanca, ia na realidade que, nas catéstrofes finais, € Dioniso purificador — presen- © teatro, ausente da intriga — que sobrevém; e, inteiramente consagrado a car 0 deus como corego césmico, esse canto manifesta no mais alto grau €m outros coros de tragédia, permanece no estado de esbogo ou € apenas ido: o afloramento de uma temitica dionisiaca como auto-apresentacao do ero tragico por ele mesmo,*” maneira de despertar 0 espectador para a ple- asciéncia de sua posi¢ao de espectador-entendedor no teatro. 29 Que haja um prazer nesse encravamento metateatral no coragdo de um mo- mento de espetaculo Iirico € coral nao € algo duvidoso: apostaria de bom grado que tal prazer era, para os atenienses, da mesma natureza que aquele, t40 vivo, que, nas Ras de Arist6fanes, o proprio Dioniso diz ter sentido quando da repre- sentagao dos Persas, no momento da invocacao que o coro dirige a sombra de Dario;“* mas me importa sobretudo que esse momento de reflexividade feliz seja exatamente simultaneo com a explosio da danga ¢ do canto, ao som do aulés, a flauta, que o proprio Aristételes — que nio estava to distante — associa a ca- da instante com um efeito de katharsis.® E Aristételes esclarece, nessa passa- gem do Livro vil da Poiftica a que faco alusio, que 0 auids nto produz nenhum. efeito “moral” ou instrutivo, apenas a pura excitagio que acompanha celebra- G0es como as de Dioniso. Sem diivida, 0 filésofo se abstém ent&o, como 0 fara na Poética, de se explicar sobre essa palavra kdtbarsis que emprega tanto em um texto Como no outro: nds o lamentamos, sem que isso nos impega de tentar dar-Ihe um sentido. Ora, ao esclarecer 0 texto da Politica por esses afloramen- tos do dionisismo nos coros trégicos, compreende-se pelo menos que é preciso teferir a katharsis a duas experiéncias simultdneas ¢ contraditérias: a reflexivi dade metatrégica, que supde um espectador bom entendedor que ndo é inteira- mente possuido por seus afetos, € 0 pressentimento de um mundo cyja lei ten vel e sedutora esté bem distante da moral didética da cidade.°° E chegada a hora de concluir, ainda que, surgindo é” extremis, Dioniso te- nha complicado um pouco 0 argumento. Nesse terreno dificil, tentarei ser 0 mais claro possivel. 1) Como 0 fizeram outros antes de mim,>' distinguitia de bom grado entre ética moral, caracterizando esta como 0 conjunto dos valores e das prescri- des comumente observacos por um grupo, aquela como sempre por construir, no que é um perpétuo esforco por superar a moral, presa em sua estreita depen- déncia em relacio & sociedade. Assim, um dos preceitos mais compartilhados da moral grega aconselha a fazer 0 bem aos amigos, 0 mal aos inimigos, sem que a menor reticéncia venha inguietar essa tranqiiilizadora distribuigao do bom ‘e do mau; desde entéo compreendeu-se que, em sua busca do humano, a tragédia, ao contrario, contri- bui singularmente para perturbar tais certezas. O Ajax de Séfocles poderia ser inteiramente incorporado a esse dossié. Quando Ulisses afirma que lamenta seu inimigo atormentado pelo desastre porque, “em sua sorte, é a minha que vejo” (Ajax, 124), a vagédia proclama soberbamente o laco estrcito que une a piedade a0 sentimento que, no inimigo, esse outro, sabe ver um mesmo de si — ameaca- do, mortal, fragil. Se o préprio her6i actedita ironizar ao anunciar que acaba de compreender “que nao se deve odiar seu inimigo com a idéia de que o amare- mos mais tarde’ (Ajax, 678-82), a sequencia da tragédia se encarregard de verifi- car esse preceito ja que, para esse morto no qual Agamémnon nao vé mais que um “cadaver odiado” (4jax, 1356), € Ulisses quem sabera conseguir a homena- 30 Sepultura, ¢ eu abriria de bom grado um paréntese shakespeariano para , nas tiltimas honras prestadas ao adversario morto, chame-se ele Ajax t, Coriolano, Ricardo 11, Brutus, hd talvez algo como um invariante do ento trégico. Enfim, /ast but not least, importa que Ulisses tenha, de saf- gxado a Atena, deusa vingativa, a responsabilidade de enunciar em seu pro- ome a moral comum em virtude da qual € doce rir de um inimigo (Ajax, Ivez.se deduza dai que construir um pensamento trégico do humano equi- mente a deixar apenas aos deuses os recortes maniqueistas. -ato no efeito que exerceu sobre o ptiblico: que essa longa lamentacao de Os rsas por aqueles que Xerxes conduziu e que Xerxes perdeu pode ser entendi- pelos cidadaos de Atenas como um treno dramatizado, antes de soar aos seus vidos como um hino 3) Isso supde, contudo, que eu ndo me atenha 4 primeira interpretacio da tharsis, parcialmente justa talvez, mas redutora porque demasiado pacificada demasiado funcional: 0 que, na tragédia, falaria ainda a espectadores moder- os, se fosse preciso supor simplesmente que a cidade tirava proveito de repre- entagdes dramaticas a safda das quais recuperaria seus cidadaos recém-“purga- :”? Formulo entao a hipétese de que 2 tragédia jamais conseguiria purgar com- tamente 0 cidadao do homem, o que implica que 0 efeito tragico atua sobre nienses experimentaram um efeito de kdtharsts, seria possivel que apenas uma titude distanciada (0 sentimento de que, encenada, a historia se tornara fic¢ao?) \¢s tenha permitido prestar ao treno a atengao recolhida que convém. Na falta so, seria preciso imagind-los oscilantes entie a alegria € as lagrimas, sujeitos *a um singular movimento de vaivém, ora... levados a identificar-se com esses omens que, sob os seus ofhos, s40 oprimidos por uma dor to pavorosa... ora -onstrangidos a] passar 4 hostilidade que esses persas deviam inspirar-hes”.%? Ja que, para imaginar a recepcao de Os persas, € preciso proceder a uma cons- cdo, tentei substituir, em todo esse percurso, essa hipdtese de um “jogo de identificagdo alternada” por aquela de espectadores ativos ou, pelo menos, aten- tos a0 que, no teatro civico, Ihes era proposto de perfeitamente desconcertant um universo onde, sobre si mesmo, aprende-se mais com 0 inimigo do que com © amigo, porque 0 terrivel ¢ a morte so os lugares obrigat6rios do humano. Se me seguiram até aqui, entio talvez me seja concedido que a ética grega no nasce toda montada quando Sécrates comega a entreter-se com tal ou qual dos sofistas: no teatro de Dioniso, entre Pnix e Acrépole, era uma ética do hu- mano enquanto mortal que, na tragédia, se buscava ¢ se xperimentava Tradugdo de Maria Licia Machado Consultoria de Mary Lafer para os termos gregos 31 5 sr suena Matheus de Naren ME NOTAS (1) Ver N. Loraux, “La démocratie 4 I'épreuve de I’étranger (Athénes, Paris)", em R. P. Droit (ed.), Les grecs, les romains et nous. L’Antiquité est-elle moderne?, Patis, Le Monde Edi- tions, 1991, pp. 164-88. (2) Les perses: oratdrio dramatico a partir de Esquito, de Jean Prodomides, texto de Jean Prat, transmitido pela televisdo francesa em 31 de outubro de 1961. Essa transmissio constituiu a primcita experiéncia de estereofonia na televisto francesa. (3) Ver 0 livro secentemente publicado de J. L. Einaudi, La bataille de Paris. 17 octobre 1961, Paris, Le Seuil, 1991 (@ Primeira representacio no Teatro Nacional Popular, em 10 de marco de 1965. (5) Herddoto, vi, 21; ver N. Loraux, “De 'amnistie ct de son contraire”, em Usages de Voubli, Patis, Le Scuil, 1988, pp. 246, (6) “Os fatos podiam dar lugar a uma tragédia apenas se 0 drama fosse persa”, escreve C. Meier, De la tragédie grecque comme art politique, traducio francesa de M. Carlier, Patis, Les Belles Lettres, 1991, p. 93. (7) Ver N. Lozaux, L invention d'Athenes. Histoire de l’oraison funébre dans la "cité clas- sigue”, Paris-Haia, Mouton-Ed. de V'EHEss, 1981, p. 50. Deve-se lembrar que, para Gorgias (Er. 5 b) “os troféus ganhos sobre os barbaros pedem hinos de alegria, mas aqueles ganhos sobre ‘08 gregos, cantos fiincbres”. (8) E j4 0 ponto de vista de Isécrates, a0 evocar, no Panathénatque (121-5), “as violéncias Wo numerosas [entre os outros gregos] que jamais 0 embaraco toma os escritores que tém oe a cada ano, de levar para o teatro as calamidades desse tempo”. (9) Sobre a assimilagao dos gregos aos "outros homens”, ver, por exemplo, Lisias, Epitd- ‘bios, 26 ¢ 67; sobre a distancia entre andreia (ateniense) e condigo humana, L invention d’Athe- nes, p. 337. (10) O texto explora os dois sentidos do verbo diddskein: “ensinat/fazer representar uma peca de teatro” (11) Ver C. Meier, De Ja tragédie grecque comme art politique, pp. 9-10, € M. Vegetti, Letica degli anticbi, Roma-Bati, Laterza, 1989, pp. 49-50 (para citar dois livros recentes cujas anilises ndo sfio de modo algum convergentes, mas que concordam nesse ponto). (12) A hipétese, baseada na especificidade do género, é estrutural ¢ no depende apenas do bom senso que faz C. Meier (op. cit., p. 95) escrever que ‘se tem dificuldade de crer que 08 atenicnses tenham podido ali encontrar matéria para essa alegria proporcionada pela infelici- dade dos outros”. (13) As Erinias empregam quinze vezes esse termo, Atena oito vezes ¢ Apolo trés, Quanto 4 Orestes, tinico mortal em cena ¢, ademais, aposta do conflito entre os deuses, jamais recorre a essa palavra (14) Em Aristofanes, a0 contririo, Prometeu se diz, de saida, "bencvolente com os homens” (etinous dnthrOpots: As aves, 1545), bm Esquilo, hi apenas cinco ocorréncias de dmtbropos con tra dezesseis de brotds © treze de thnb1ds, 0 que quase duplica a expressio da mortalidade. (45) A vulgata antropolégica grega, que situa dntbrOpos no centro de uma taxinomia, en: tre animals ¢ deuses (ver especialmente os trabalhos de J. P. Vernant ¢ M. Detienne), no est ausente da tragédia (ver, por exemplo, Fuménides, 70), mas ai nao é de modo algum dominan- te, € ocorre que dnthropos tenha antes lugar entre Imortais e este mundo (Euménides, 950-5) (16) Nos versos 1019-20 de Agamemnon, trata-sc do sangue negro de um ber6f (de um gucrrciro, de um individuo mascutino) € nao, como traduz Paul Mazon na edi¢io das Belles Lettres, “‘de um ser humano”; em apoio a essa traducZo, uma nota sugere uma confusio entre andre anthropos, acrescentando: “0 coro pensa sobretudo om Ifigénia”. Ora, ant jamals po- deria fazer alusdo a uma terna virgem, e € preciso compreender que 0 coro, profeta sem 0 sa- ber, fala de Agamémnon, objeto inconsciente de sua angiistia 32 (17) No grande coro das Coéforas, brotds designa normalmente 0 mortal, nos versos 588 601, mas em 594-5, andrés, associado a gunaikon (596), nao poderia ser compreendido co- ‘a criatura humana” (Mazon): © coro pensa cm Agamemnon ¢ em Egisto (18) Ver N. Loraux, Les expériences de Tirésias. Le féminin et Ubomme grec, Paris, Galli |, 1989, p. 16. (19) Na tradicdo grega, isso comega desde o aparecimento da primeira mulher, contado Hisiodo: ver N. Loraux, Les enfants d'Athéna, ldées athéniennes sur la citoyenneté et la jon des sexes, Patis, Maspero, 1981, pp. 80-1 (20) Euripides deu a palavra a mulher e ao escravo (As rs, 949), determina como objetivo tragédia tornar melhores os homens (toils dntbrBpous) nas cidades (1010), critica Esquilo no saber exprimir-se de mancira humana (pbrazein dntbropet®s: 1058y; mas Esquilo 0 cen- ca por ter totniado os ris lastimaveis aos othos dos humanos (1064). Esquilo pensa apenas termos de andr € de dndres (1024, 1030, 1041). (21) Oporemos aqui o genero tragico, em que os protagonistas 86 podem ser humanos deuses, 20 drama satfrico, cm que 0 misto e a bestialidade tém seu lugar: assim, 0 Ciclope € contado no nimero dos homens (Cictope, 116-8); ele se dliz deus (230), os satiros fazem ‘um animal (658) € Ulisses o chama de anér (199, 348, 429, 591, 605). (22) O mais belo exemplo grego disso € dado por Plato, em O pofitico, 263 4 (23) Notarse-4 que, no relato da Batalha de Salamina pelo mensagciro persa, do lado gre- tudo € canto ¢ discurso articulado (388-402), 0 passo que os persas respondem por um. do confuso (406-7); a lingua barbara do coro é clara para o ouvido de Dario (633), maneira dizer que nao € grega. Ver também Esquilo, Suplicantes, 128 (24) E apenas rdgico: a oposigto do brotds € do Imortal ¢ constitutiva do géncro; os Zpoi tém seu lugar mais evidentemente na comédia ¢ no drama satirico, entre animais ses (25) Brotos pertence 2 mesma saiz que mors. (26) O erro dos tiranos € o de se igualar a um deus (ver J. P. Vernant, “Ambiguité et ren- ersement. Sur la structure énigmatique d’Oedipe rof’, em J. P. Vernant e P. Vidal-Naquet, Myihe sédie en Gréce ancienne, Paris, Maspero, 1972, pp. 107-9), mas apenas sao imortais os és, 0U a cidade, que nio se deixa identificar com um humano; Creso representa em Her6- oto a ilusio tirdnica de possuir a felicidade (0 Livro 1 das Investigagdes apresenta a ilusio, © o desmentido que Ihe fot forneci¢o) 27) Ver, por exemplo, Séfocles, Traquinias, 1-2; Euripides, Blectra, 953-6. (28) Sofocies, Faipo ref, 1524-30, assim como Esquilo, Agamemnon, 928-9, € Euripides, Is srofanas, 509-10; 0 enunciado candnico se encontra em Herddoro, 1, 86. Note-se que, em exédoto, 0 exemplum de Cléobis € Biton apresenta igualmente a idéia de que a felicidade esta morte, se se morte feliz (1, 31). (29)M. Nussbaum (The fragility of goodness. Luck and ethics in Greek tragedy and philo- , Cambridge, Cambridge University Press, 1986, p. 397) sublinha o carater excepcional do logo da Hécuba de Euripides, pronunciado por uma sombeae uma sombra que é uma crianca, (30) Nao ha, nos gregos da época clissica, nenhum além a promover, € a morte ndo tem or em si: ver N. Loraux, “Le point de vue du mort”, Poésie, 57 (1991), pp. 67-74. G1) Segundo a expresso de Lacan em Le séminaire, vn. L’stbique de la psychanalyse, s, Le Seuil, 1986, pp. 307, 316-7, 332 (62) A polis como remédio pata 2 fragilidade: ver H. Arendt, Condition de Vbomme mo- Paris, Calmann-Lévy, 1983, p. 256, Tal idéia anima muito particularmente o mito do Pro- cit, nota 29. tema é muito particularmente desenvolvido em Ajax, um dia destz6i as coisas ‘Atena (131-2); 08 homens sio ditos “de um dia” (399-400), ¢ em um tinico dia perder ou se salvar (756-7, 78-9, 801-2) 33 (35) Sobre 0 jogo dessa lei em Hexédoto, vet C, Darbo-Peschanski, Le discours du parti- culier, Essai sur Venquéte bérodotéenne, Paris, Le Seuil, 1987, pp. 43-74, (36) A cena judiciaria do escudo de Aquiles, no canto xvi da /Mada, apresenta o conflito entre essas duas leis. Note-se que 0 velho nome juridico do assassino ¢ ho drdsas ou bo érxas, aquele que fez: ver Edipo rei, 246, 296 €, quanto a oposi¢ao do pathein e do dran, Agamém. non, 1526, 1564, 1658, € Antigona, 927-8. G7) Ver Les expériences de Tirésias (cit. nota 18), pp. 142-70. (38) Assim a tragédia encontraria sem dificuldade seu lugar na reflexio sobre a ética de um Bernard Williams que, contra Arist6teles, faz questio de relativizar a perspectiva do agente (C'ethique et les timites de la pbilosopbie, tradugio francesa, Paris, Gallimard, 1990, p. 62) 89) Note-se que no verso 836 € dito que as Brinias vigiam panta tan brotois patbe: todos | 08 sofrimentos dos mortais enquanto avesso dos delitos dos mortais. (40) A multiplicidade dos problemas ¢ das interpretagdes foi repertoriada no livro de J Pigeaud, Folie et cures de la folie cbez les médecins de l'Antiquité gréco-romaine, Paris, Les Belles Lettres, 1987, pp. 163-83. 4 Essa hipdtese foi defendida (ver J. Pigeaud, op. cit., p. 164); ela permite a Lacan fixar toda atengao apenas em Antigona, porque s6 ela est além do terror ¢ da piedade (op. cit., ' nota 31). (42) Ver aqui mesmo 0 texto de Catherine Peschanski, “Humanidade ¢ justica na historio- grafia grega (v1 a.C.)” (43) Sigo aqui a demonstracéo de J. Pigeaud (op. cit., p. 173), criticando a interpretacao puramente médica de Jacob Bernays. (44) C. Méier certamente tem razio em escrever (0p. cit., nota 6, p. 12) que, “em uma medida apreciivel, os cidadaos assistiram 20 espetaculo das tragédias nao apenas como especta dores, mas também como cidadios”, mas essa “descoberta’ foi fcita ha muito tempo, € 0 pro- blema agora seria antes voltar do cidadao-espectador para o espectador... (45) Ver N. Loraux, Manetras irdgicas de matar uma mulber, Rio de Janeiro, Zahar, 1988, p14, (46) De fato, katbarsios caracteriza 0 pé ou 0 passo de Dioniso, por hipalage; cura": trad. P. Mazon (Belles Lettres), (£7) Sobre Dioniso, “‘corego dos astros”, ver M. Nussbaum, op. cit., nota 29, p. 82; sobre i a auto-referéncia tragica, ver N. Loraux, “La métaphore sans.métaphore. A propos de 'Ores- tie”, Revue Philosopbique, 1990, pp. 263-7. (48) Como observam os escoliastas das Ras (1028-9), 0 coro dos persas no entoa o grito iauoi, de que Dioniso o credita: seria porque ele ai pretende ter ouvido um eco do ewo? dioni- staco? (49) Arist6teles, Polftica, vut, 1341 a 21-4, assim como 1342 a 4-16, com as observacdes de J, Pigeaud, op. cit., nota 40, p. 171. (50) f “uma coisa diferente de uma licio de moral” que, no semindrio sobre a Ethique de la psychanalyse (p. 292), Lacan busca € encontra em Antigona. Gl) M. Vegett, op, cit., nota 11, p. 3; ver também B. Williams, op. cit., nota 38, pp. 12:3, opondo a especificidade da ética 4 moralidade, “termo que deverfamos tratar com certo ceticismo”. (52) Citagao de C. Meier, op. cit., nota 6, p. 93. 34 HUMANIDADE E JUSTICA NA HISTORIOGRAFIA GREGA (VI ac.) Catherine Darbo-Peschanski jas primeiras linhas da Etica a Nicmaco, Atist6teles introduz com desta- definicao da ética ¢ de seus fins, as nogdes de ciéncia politica (epistme em (10 agathén), de belo (t0 kalOn), de justo (ta dikaia), assim co- mano (anthropeion) std subordinada 4 politica, ciéncia pritica arquitetonica que tem por m propriamente humano (to agathon anthropinon). Se este tlti- da politica, € porque a humanidade do homem prende-se a sua vin- omunidade (koindnia) ea cidade (pélis) constitui-o fim de toda Segue-se que o ser incapaz de fazer parte de uma koindnia e, com fazio, de uma cidade, ou o ser que ndo tem nenhuma necessidade porque se basta a si mesmo, classifica-se seja entre os deuses seja gmais.' A ética, entretanto, nao di mais que um conhecimento apro- belo (ta kala) ¢ doxjusto (ta dikaia), 0 qual a politica toma sob sua dade visando o bem ¢ se afasta da ciéncia de que depende, em parti- examina individuos imersos em comunidades que nao sao exclusi- icas, como, por exemplo, 0 povo (éthnos), brar, de modo breve e por alto, certos componentes da defini¢o da do Aristteles a fim de introduzir uma reflexao sobre o tema da huma- “Ga justica na historiografia grega, no tenho absolutamente a intengio ‘prefiguracdes ou influéncias do pensamento aristotélico nos autores entre o século v € 0 século 1 antes de Cristo. Antes, importa ob- ra um grego antigo — e ndo dos menos importantes —, a ética, a s mUltiplas formas,? a politica e a defini¢ao do ser humano estao Certo, trata-se aqui do grande sistema aristotélico, mas a leitura de snatureza e de época diferentes tende a mostrar que este elabora e fixa ‘que Ihe so proprios toda uma constelagao de nogoes de que se en- ihures, antes ¢ depois, os correspondentes, mesmo que se trate, pro- Gllando, de homénimos, organizados segundo outras relagdes.> ‘9s historiadores gregos, com efeito, a politica nao tem nada da cién- a definir 0 bem da cidade, concebida como a comunidade na qual 35 HUMANIDADE EF JUSTICA NA HISTORIOGRAFIA GREGA (VI ac) Catherine Darbo-Peschanski linhas da Etica a Nicémaco, Arist6teles introduz com desta- da ética e de seus fins, as nogGes de ciéncia politica (epistéme bem (10 agath6n), de belo (t8 kalén), de justo (ta dikaia), assim co- mano (anthrOpeion). ica est subordinada & politica, ciéncia pratica arquitetonica que tem por i?los) 0 Bem propriamente humano (td agathon anthrdpinon). Se este ulti- \de da politica, é porque a humanidade do homem prende-se a sua vin- 0.4 uma comunidade (koindnia) € a cidade (polis) constitui o fim de toda mnidade. Segue-se que o ser incapaz de fazer parte de uma koindnia e, com forte razio, de uma cidade, ou o ser que ndo tem nenhuma necessidade ‘cdo porque se basta a si mesmo, classifica-se seja entre os deuses seja animais. A ética, entretanto, no d4 mais que um conhecimento apro- Go do belo (1a kald) € do justo (ta dfkaia), 0 qual a politica toma sob sua idade visando 0 bem ¢ se afasta da ciéncia de que depende, em parti- individuos imersos em comunidades que nao so exclusi- como, por exemplo, 0 povo (éthnos) de modo breve ¢ por alto, certos componentes da definigao da stételes a fim de introduzir uma reflexao sobre o tema da huma- G2 na historiografia grega, nao tenho absolutamente a inteng3o urac6es ou influéncias do pensamento aristotélico nos autores entre 0 século v ¢ 0 século : antes de Cristo. Antes, importa ob- pum grego antigo — e nao dos menos importantes —, a ética, a itsplas formas,’ a politica ¢ a defini¢ao do ser humano éstao D, trata-se aqui do grande sistema aristotélico, mas a leitura de =zac de €poca diferentes tende a mostrar que este elabora e fixa sao préprios toda uma constelagao de nogdes de que se en- antes ¢ depois, os correspondentes, mesmo que se trate, pro- de hom6nimos, organizados segundo outras relagdes.* adores gregos, com efeito, a politica ndo tem nada da cién- o bem da cidade, concebida como a comunidade na qual ae se realiza a humanidade do homem, Trata-se, de maneira mais trivial, da gesto passo a passo dos assuntos das cidades ou dos outros tipos de comunidades, e das relagdes que estas mantém, Relacdes essencialmente belicosas, tanto € ver- dade que € a guerra, defensiva ou de conquista, que ocupa o centro dos relatos dos historiadores. A ética; alids, nao poderia neles se definir como a ciéncia dos valores que contribuem para determinar.o bem da cidade, mas aparece como um Conjunto de reflexdes esparsas, pouco sistematicas'¢ de alcance mais ou me- nos geral, sobre os principio que supostamente guiaram.a conduta dos agentes em circunstincias singulares. A nogao de homem (4nshrBpos), além de exigir do leitor que este a componha a partir de observacées breves e dispersas, ou, muito simplesmente, a extraia do relato de acontecimentos particulares, revela contor- nos méveis ¢ constitui 0 objeto de intimeros deslocamentos. A justica, enfim, ainda que 0s historiadores se situem muitas vezes, como veremos, do lado do ‘pensamento comum, é apenas marginalmente marcada, neles, por essas ‘‘diver- géncias € incertezas”” que, segundo Aristoteles,* cercam geralmente a defini- Gao do belo ¢ do justo, ¢ tornam necessarios os esclarecimentos da ciéncia ética, Muito ligada @ idéia de ordem do mundo, ela oferece, ao contrario, na maior parte do tempo, e apesar de alguns estremecimentos introduzidos pela confrontacao das nogdes de dikaion e de epieikés,? uma evidéncia mui- to sélida. gee Aqistedio-e Se os historiadores atribuem 4 politica, a ética, a justiga ¢ a humanidade Ambitos particulares, organizam-nas também em uma configuracio ela pro- pria original. Assim, gostaria de tentar mostrar aqui que a maneira pela qual concebem a justica vai de par com as oscilagdes de sua definigao do ser hu- mano a fim de limitar 0 desenvolvimento de uma ética enquanto reflexao sobre os principios que regem a conduta dos protagonistas dos acontecimen- tos politico-militares relatados em suas obras. Tal estudo pode parecer muito distante dos problemas contemporaneos, em especial, mas no exclusivamente, brasileiros, que levaram os organiza- dores deste ciclo de conferéncias a propor aos seus convidados refletir so- bre as relagoes da ética € da politica. De fato, seria indtil procurar reduzix a distancia cronol6gica € cultural que nos separa radicalmente dos gregos antigos. Assim, esse afastamento mesmo deve constituir 0 objeto de nossa atengdo e € nas diferengas que podemos buscar alguns elementos de andlise para fenémenos terrivelmente atuais. Hoje, com efeito, enquanto ouvimos falar, e talvez nés mesmos falemos, de nova ordem juridica internacional, de guerra justa, de causas humanitarias que implicam 0 direito de ingerén- cia, talvez no seja totalmente desprovido de sentido observar que, 4 sua ma- neira, os historiadores gregos tentaram pensar a ordem do mundo e sua jus- tiga, procuraram conferit um lugar a guerra na economia desta dltima ¢ se depararam muitas vezes com a espinhosa questo da conduta a adotar diante de outros seres humanos na gestao concreta dos assuntos politico-militares. £0 modo como analisaram esse conjunto complexo de nogdes € de proble- mas que eu gostaria agora de tentar descrever. 36 ates de entrar definitivamente no cerne do assunto, algumas palavras ain- ra apresentar os historiadores nos quais apoiarei meu discurso. ‘Trata-se, em primeiro lugar, por ordem cronolégica, de Herédoto, contem- neo de Péricles, o grande estratego ateniense da segunda metade do século , mas também de S6focles, 0 tragico, ou de Protagoras, 0 sofista. Me- ce uma vasta descricdo dos costumes dos povos da terra habitada, Her6- 0 evoca as causas € os antecedentes das guerras médicas, assim como ¢s- guerras mesmas, dois conflitos que, em 490 € 480 a.C., opuseram os gre- coligados em torno de Esparta, aos exércitos dos Grandes Reis persas, nente Dario 1, em seguida seu filho Xerxes. Tucidides, uma geracao depois de Herddoto, atém-se, no essencial, 2 Guer- do Peloponeso ¢ a seus prédromos. De 431 a 403 a.C., essa guerra opés Es- ta, Atenas € seus respectivos aliados. Ela tomou todo o mundo grego, orien- ocidental, implicando, aqui € ali, populagdes periféricas. Tucidides consa- 2 foi palco durante esse perfodo, pois é na degradacio da politica interna des- cidade que cle vé a causa essencial da derrota que sofreu. No século wv a.C., Xenofonte, nas Helénicas, prossegue até a Batalha de tinéia (362 a.C.) 0 relato dos confrontos, aliancas e reviravoltas de alian- que, de sua parte, Tucidides interrompeu em 411 a.C. Por outro lado, mesmo historiador consagra a Andbase 4 evocacio da expedicao dos ez Mil, esses mercenarios gregos que foram lutar ao lado do satrapa persa © contra o irmao deste Ultimo, o Grande Rei Artaxerxes. E preciso acres- da vida de Ciro, o Grande), Agesilau (monografia consagrada ao rei de Es- arta Agesilau u, que reinou de 399 a 360 a.C.) ou nas Memorabilia ¢ no Eco- ‘ico (que poem em cena S6crates), € mesmo em seus tratados ditos técnicos, ofonte nao cessa de interrogar-se sobre a atte de governar (70 archetikin) = sobre 0 exercicio do comando (drchein), que, segundo cle, é a uma $6 vez 0 o chefe militar diante de seus soldados, 0 do dono da casa diante de seus escra- € de sua mulher, o exercicio do poder politico enquanto magistrado (archon) em Atenas, ¢, enfim, para um Estado, cidade ou reino, a reunido ¢ a manutengao outros Estados em posicio de stiditos em um império (arché) que se quer sem- em expansio. Polibio, por sua vez, escreve no século ma.C. ¢ se atribui como tarefa rela- como Roma chegou a dominar quase toda a terra habitada ea sujeitar a maior parte dos povos (bypékooi).® Evocarei, enfim, dois historiadores do século 1 a.C., Diodoro de Sicilia ¢ Dionisio de Halicarnasso, que escrevem ambos histOrias universais no momento que a Grécia passou a dominagio romana. Os historiadores acima enumerados me parecem partilhar uma mesma con- pedo fundamental da ordem do mundo. Para eles, ha ordem se ha estabilida- € tudo 0 que se aparenta a solidez (t0 bébaion), a seguranga (b2 asphéileia) ou 4 perenidade se acha, por isso mesmo, valorizado, Pensemos, por exemplo, 37 no interesse que Herddoto tem pelos egipcios, porque conservaram sempre os ‘mesMmos usos ¢ esto ld, imutaveis, desde que os homens sao homens.” Para Tu- cidides, € 0 habito que faz das palavras 0 veiculo dos valores que € preciso res- peitar. Dai provém o cardter escandaloso da guerra civil na qual 0s cidadaos, re- partidos em dois campos encarnicados em perder-se, esforcam-se, por um uso petverso da linguagem, em “trocar as avaliacdes usuais dadas pelas palavras aos atos”,® em transformar 0 positive em negativo e vice-versa. Xenofonte, por seu lado, vé na estabilidade (asphdieia),? ou na seguranca, concebida como salva- guarda (sdi2rfa),"° 0 fim para o qual tendem todos os governantes e todos os impérios, assim como a prova suprema de seu valor." Encontrar-se-4 ainda, sub- jacente a andlise que Polibio faz da Constituicio romana como mescla harmo- niosa ¢ equilibrada de varios regimes, a idéia de que € daf que ela tira sua forca € seu carater admirAvel.!? A estabilidade que constitui a ordem do mundo chama-se também justica ou justo (Dike, dike, dikaion). Mas nao se wata absolutamente, no caso, de uma partilha estritamente igualitaria ou proporcional! dos bens, dos poderes ¢ das condiges. £ antes um estado de equilibrio no qual cada um e cada coisa ocu- pam um lugar determinado: 0 justo, a justia consistem em manter esse lugar, qualquer que seja. Compreende-se, a partir daf, que os historiadores manifestem uma unani- me desconfianga, ou mesmo reprovacao, em relagdo ao que muda, ao que se transforma, ao que evolui, todas coisas que, para eles, aparentam-se fundamen- talmente @ injustica. Assim, a guerra, que Tucfdides qualifica de senhor violen- to,"4 traz igualmente em seu texto o nome de kfn@sis: muito exatamente, “movimento”.!5 Pode-se igualmente explicar por af, 20 menos em parte, aatitude muito par- ticular, para nao dizer paradoxal aos nossos olhos, dos historiadores gregos em relacdo ao tempo. Eles parecem aceitar realmente apenas 0 tempo biolégico, o das geragdes humanas que se sucedem no ritmo dos nascimentos € das mortes, © tempo astrondmico marcado pelo curso das estages e calculado pelos calen- datios lunares e solares ou 0 tempo oficial, politico-religioso, ritmado pela su- cessio dos arcontes, das sacerdotisas ou dos consules, segundo 0 casos. Em com- pensagao, uns como outros, ao relatar 0s acontecimentos, esforcam-se em pen- Sar como poderia abolir-se 0 que, quanto a nds, consideramos como 0 tempo propriamente hist6rico, aquele que se traduz pela mudanca das situacdes ¢ dos poderes no mundo.1 Ou envio, para falar em outros termos, encaram os acon- tecimentos ¢ as mudangas que localizam apenas como a ruptura de um justo equi- librio ou como a progressio para esse estado. Em todos 0s casos, 0 tempo histé- rico tem, pois, ligac&o com a injustica, seja porque faca sair da estabilidade do justo, seja porque prove, por seu proprio movimento, que ainda nao atingimos tal estabilidade e que o mundo est4 abalado por injustica. O historiador dirige, portanto, um olhar normativo sobre a matéria de sua obra, 0 curso dos aconteci- mentos, ¢ se coloca sempre em posicao de resisténcia critica diante dela, em no- me é do ponto de vista da justica-ordem do mundo.!7 38 justica assim concebida apresenta varios componentes, & feita, em pri- lugar, da reparticdo dos seres em diversos reinos ou categorias que se in- jualizam por diferengas € oposigdes. Assim se desenha o Anthropos: o ser nO, Ou, mais Correntemente, o grupo concreto dos dtbrdpoi: os homens excegao de Tucidides, que, como veremos, singulariza-se ao elaborar uma pcao psicoldgica da natureza humana e insiste pouco'* na posi¢ao diferen- do reino humano em relagdo aos outros reinos, em outras palavras, na defi- jo antropolégica do homem, os historiadores fazem deste iltimo © que nao m Deus nem animal, segundo uma triparticlo dominante no pensamento 0,9 Os homens dos historiadores se definem pelo que est além ou aquém de- Isso significa que ndo s4o deuses, que nao tém os atributos destes. Para comecar, eles nao o sao em relagdo ao tempo, como mostra Herédoto esbocar muito brevemente uma antropogonia, por ocasido de um desenvol- \ento sobre a talassocracia do tirano de Samos, Policrates.”” O autor das Histdrias observa, com efeito, que em certo ponto da sucessao geracdes, justamente antes daquela do rei de Creta, Minos, ndo houve mais homens para engendrar homens. Estes tiltimos aparecem, ent&o, como o que ta no curso do tempo biolégico quando os deuses deles se abstrairam para stringir-se a rodear e a penetrar o mundo com sua eterna presenga. Os homens também nao sao deuses em relagao a felicidade, a beleza, a0 po- ler € ao conhecimento. Apenas os deuses tém a plena posse desses bens ¢ amea- am constantemente com sua inveja a parte que cabe aos homens, desde que sta parega demasiado vasta ou demasiado florescente.’! Com excegao dos delineamentos de antropogonia que assinalei anteriormen- te em Herédoto e de uma observacio de Ciro, 0 Grande, na Ciropedia de Xeno- fonte, quando, a ponto de morrer, 0 rei agraaece a Zeus € 20s outros deuses por ndo 0 terem feito conceber, nos sucessos que balizaram constantemente sua vi- da, pensamentos que ultrapassassem a condigdo humana,” € a transgressao, in- justica que causa desordem, que torna sensivel o lugar que define a humanida- de: fora ¢ aquém do campo divino. Transgressio de Creso,” de Policrates,”* dos soberanos persas’* em Herédoto; de Filipe v da Macedonia em Polibio,’° para tomar apenas alguns exemplos. © homem se diferencia igualmente do animal Polibio € um dos historiadores que se exprime mais claramente a esse res- peito, quando, julgando as atrocidades cometidas pelos mercenarios de Cartago em revolta, chega a formular uma reflexao geral sobre o homem (1, 81, 8-9). Ele diz: © espirito humano [hai psychai] pode ser atingido por gangrenas tais que ndo hd ser vivo [z8/on] que se mostre mais impio nem mais cruel [6mdteros] que © homem (dntbropos). Se lhes € aplicada a indulgencia [syggrOme] € a humani- dade [philanthropia], acreditam que € uma armadilha ¢ um embuste [epiboulé. paralogisméds} ¢ com isso se tornam ainda mais desconfiados [apistéteroi] e mais ‘malévolos [dysneenésierof] em relagao aos seus benfeitores (philanthrOpointes}. ae Se sio castigados, seu furor resiste € nao hid infimias (apetreména] nem crimes [deindn) a que ndo se entreguem, fazendo dessa audacia [s6/ma] um mérito. Fi- nalmente, tornando-se animais [aporh@riothéntes], saem [exiénai] da natureza humana (b2 anthrOpin® physis) Como se vé, Polibio esboca uma psicologia da natureza humana, masa faz depender de uma definigéo diferencial do homem em relacdo ao animal. O ho- mem € cruel; 0 rego diz “cru” Gmés). Ora, 0 cru € 0 regime alimentar do ani- mal, para um grego: que o homem deixe entio o cru tomar todo o lugar nele, € eito animal. Contudo, sem deixar de proceder por oposi¢des entre os seres, 0s historia- dores pintam em grandes pinceladas 0 quadro a uma s6 vez mais complexo e mais mvel da humanidade ao fazer intervir varias outras linhas divis6rias que distribuem bem diversamente os lugares. Uma delas, vigorosamente afirmada em Her6doto, Tucidides e Xenofonte, passa entre os gregos ¢ os barbaros. Para um grego da época classica, 0 sintagma “os gregos e os barbaros”” € uma mancira de designar 0 conjunto dos homens, a humanidade concreta. As- sim, Tucidides?” exprime a idéia de que a Guerra do Peloponeso atingiu a maior parte da humanidade ao dizer que afctou os gregos ¢ uma parte dos barbaros. ‘Mas, para Herédoto, por exemplo, nos confins da terra habitada, os poyos nao gregos se animalizam, como esses homens de pés de cabra que vivem ao norte do Ponto Buxino,”® ou s¢ divinizam, como os etiopes-longa-vida que devem a Agua de uma fonte da juventude viver mais tempo que a média dos humanos € cujo senso de justica excede também o do comum dos mortais.2? Quanto aos povos da Asia sujeitos a0 Grande Rei e que para ele fazem figura de barbaros por exceléncia, so semelhantes a escravos que avangam sob 0 chicote como, bestas de carga. Embora a polaridade gregos/barbaros sirva para designar o gru- po dos homens, a humanidade em Herédoto tem tendéncia, portanto, a desfazer- se do lado dos barbaros. Xenofonte, por sua vez, compée diferentemente 0 quadro. A distingao fun- damental que ele opera separa aquele que comanda (arcbn, bégemin, basiletis, despétes) dos scus comandados. Neste \iltimo conjunto, homens e animais se con- fundem na categoria dos seres vivos (dzoia) caracterizados por um trago comum: © de serem assimildveis aos animais dos rebanhos (agélai) que sio impelidos pa- raa frente (dgein) pelo pastor. O homem s6 se diferencia do animal por sua in- disciplina, por seu temperamento teimoso que o impede de obedecer de bom grado (bekOn peithesthai).’ No entanto, pode obedecer a quem sabe agir com ele, €€ ai que reside o essencial da arte de comandar, cujos componentes Xeno- fonte procura ao longo de toda a sua obra determinar.>! Nessa humanidade gre- giria, separada por pouco da espécie animal, vém agrupar-se tanto os homens livres como os escravos € as mulheres; tanto é verdade que, do ponto de vista do chefe, formam todos a massa daqueles que convém fazer obedecer quando nio so levados naturalmente a isso, 40 do a discussio sobre a diferenca entre a ret6rica sofistica e a ret6rica filos6fica (esta, como diz jcrates no Fedro, pretendendo persuadir os proprios deuses). Enquanto a palavea setia wtiliza- dda pelos sofistas em fungao do prazer conferido 20 audit6rio, bajulado num territ6rio regido 10 ageadavel, 0 phdrmakon filos6fico € discurso terapéutico mas nem sempre imediatamente wzer0s0. Desenvolve-se sob o principio do bem, no do agradavel, rege-se pelo senso de po- logia e fundamenta-se numa metrética (arte da medida) que visa, em tiltima instancta, ao justo- si. N4o procura necessariamente agradar 20 auditor, interlocutor ou discipulo, mas conduzi-lo curarse. Nesse sentido, para Plato, a oposicio fildsofo/sofista reproduz a oposicdo remédio/ve- sno, médico/charlatao. (4) P. Nizan, Les matérialistes de'l'Antiquité, Paris, Frangois Maspero, 1965, p. 47. (5) Tito Lucrécio Caro, Da natureza, trad. Agostinho da Silva; v. Epicuro, Lucrécto, Cice- Séneca, Marco Aurélio, Si0 Paulo, Abril Cultural, 1980, p. 97, col. Os Pensadores. (6) Idem, ibidem, p. 63. (7M. Foucault, “O uso dos prazeres”, em Historia da sexualidade, Rio de Janeiro, Graal, 4, vu; J. A. Motta Pessanha, “Plato: as vérlas faces do amor”, em Os sentidos da paixdio, jos autorcs, S40 Paulo, Companhia das Letras, 1987. (8) Epicuro, Antologia de textos, trad. Agostinho da Silva; v. Epicuro, Lucrécio, Cicero, ¥eca, Marco Aurétio, S40 Paulo, Abril Cultural, 1980, p. 13, col. Os pensadores. (9) K. Marx, Diferenga entre as filosofias da natureza em Demécrito e Epicuro, trad. Bd Bini € Atmandina Venancio, $40 Paulo, Global, 1979. (10) A. Cornu, Karl Marx et Friedrich Engels, Paris, pur, 1955, v.1, pp. 154 58.5 J. M. Ga- de, Le jeune Marx et le matérialisme antique, Toulouse, Editions Privat, 1970; F. Marko- , Marx dans le Jardin d’Epicure, Patis, Les Editions de Minuit, 1974; J. A. Motta Pessanha, © 08 atomistas gregos”, in Karl Marx, Diferenca entre as filosofias da natureza em De- ito e Epicttro, Sao Paulo, Global, 1979. (11)J. Brun, L'épiourisme, Patis, eur, 1959, pp. 6-7, (12) Sobre Lucrécio e sua verso das idéias de Epicuro, além das obras gerais sobte o epi- 10, so particularmente importantes: P. Boyancé, Lucréce, sa vie, son oeuvre, Parts, PUF ; M. Conche, Lucréce etl expérience, Paris, Editions Seghers, 1967; G. Cogniot, “Lucréce, ‘oeuvre et s2 philosophie”, introdueao a edigao de De la nature des choses, Patis, Editions ales, 1954; A. J. Capelletti, Lucrecio: ta filosofia como liberacion, Caracas, Monte Avila Bdi- , 1987. (13) Epicuro, op. cit., p. 17 (14) A.J. Festugiére, Epicure et ses dieux, Paris, pur, 1946, p. 28. (5) B. Farrington, A doutrina de kpicuro, Rio de Janeiro, Zahar, 1968, pp. 26-7. (16) Didgenes Laércio, Vie, doctrines et sentences des philosopbes illustres, Livro X, 15, 16. (17) P. Nizan, op. cit., p. 11 (18) Platio, Fédon, 84e-85b, v. Platio, trad. Jorge Paleikat ¢ Jo30 Cruz Costa, Si0 Paulo, Cultural, 1978, col. Os pensadores. (19) J. A. Motta Pessanha, “A dgua € 0 mel’, in O desejo, varios autores, S40 Paulo, Com- das Letras, 1990. (20) N. W. DoWitt, Epicurus and his philosophy, University of Minnesota, 1954, apud ington, op. cit., p. 27. 1) £, particularmente, o caso de Empédocles de Agrigento (século v a. C.), lider do 0 democratico em sua cidade, quem explica a constituigio do cosmos atual pelas contrarias € complementares de dois principios sobre as quatto rafzes (Agua, At, Terra 9) de todas as coisas. Os principios moventes, Philia ¢ Neikos (Amor € Odio), so res- pela jungao e separacao das raizes. O duplo movimento de jungto-separacto esta e uma tensio inerente a0 cosmos € explica a exisiéncia dos diferentes seres, todos sujci- dois impulsos simultineos ¢ eternos que, divergentes, tendem “heracliticamente”” 40 Malliplo. F. M. Cornford (From religion to philosophy, Nova York, Harper & Bro- sblishers, 1957) mostra que © modelo subjacente 4 cosmogonia € & cosmologia de 81 Empédocles ¢ inspiraco no jogo das forgas sociais € politicas, no constituindo, como se afirma, a antecipacio de um modelo mecanicista. (22) P. Petit, La ctvdlisation hellénistique, Paris, pur, 1962, p. 5 (23) Idem, ibidem, p. 8. (24) Idem, ibidem, pp. 9-10. (25) Hesiodo, Les travaux et tes jours (Os trabalbos @ os dias], 109-202 (mito das Paris, Les Belles Lettres, 1951, pp. 90-3. (26) Empédocles de Agrigento, “ Purificagdes", 117; v-Os pré-socraticos, $0 Paulo, Cultural, 1973, p. 242, col. Os Pensadores. (27) Para Empédocles, as quatro raizes — Agua, Ar, Terra ¢ Fogo — e 0s dois pri ‘motores — Philia e Neikos — sao paritatios, “todos sdo iguais e de mesma idade” (Empéd de Agrigento, “Sobre a natureza”, 25, op. cit., p. 230). Nenhum antecede os demais ou € fundamental que os demais; a physis plural constitui uma espécie de assembléia regida isonomia. (28) A dialética ascendente é uma das vertentes da dialética platonica, predominando primeira fase da construgio do platonismo. Toma como modelo 0 "'método dos geomet estabelecendo vinculos ascensionais entre condicionado ¢ condicionante: entre hipoteses se encadciam € que, no limite, perseguem 0 nao-hipotético, 0 incondicionado. Do ponto vista teorético, resulta na hip6tese da existéncta das idéias, paradigmas eternos ¢ incorp6: copiados imperfeitamente pelas coisas sensiveis e corpdreas (hipétese por sua ve7. susten Por outras hipdteses, como a da imortalidade da alma, da reminiscéncia etc). Do ponto de vi erdtico (O banquete), representa a busca da beleza absoluta, por meio de trajetoria que dos belos corpos progressivamente se ditige a objetos de beleza cada vez mais plena ¢ esti (como 08 belos oficios); essa ¢ uma operacio comandada por Eros, mediador insactivel e ar loso que tece a sucesso de liames ascendentes. O impeto ascensional da dialética platOnica complementado pela vertente descendente da dialética, que se impde principalmente na f inal do platonismo (ex. 0 soyista, Filebo), Entdo nio se trata de afirmar a existéncia de paradi mas eternos ¢, acima deles, do Bem ou do Um, mas de estabelecer os vinculos essenciais entre as idéias entre estas © as coisas, numa descese que parte dos “géneros supremos” e retorna Jogico-ontologicamente 0 plano dos objetos concretos € singulares 29) Platio, Ménon 82 a-86 c, Paris, Les Belles Lettres, 1963. Nessa passagem, Sécrates exercita a maiéutica com o escéavo de Ménon, propondo-lhe uma questo matematica referen- te A equivaléncia de areas e que remete & consideragao da irracionalidade da raiz.de 8, Conduzi- do pelas perguntas habeis de Socrates, 0 escravo acaba encontrando a solucio do problema, revelando inteligencia que seu amo, Ménon, no mostrara na anterior discussio com S6crates sobre a questo da virtude. Sécrates pretende, com esse exercicio, demonstrar a doutrina da reminiscéncia: a alma conteria em si verdades apreendidas em existéncia anterior, supraterre- na, quando contemplara as esséncias 20 acompanhar 0 cortejo dos deuses (nem todas as almas conseguem contemplar adequadamente as idéias); essas verdades, adormecidas pela ligaco da alma 20 corpo, podem ser despectadas, sc para isso se utiliza método adequado (a maiéutica, ‘etapa construtiva da dialética socratica). Mas 0 exercicio maiutico com o escravo prova mais demonstra a injustica que pode se esconder sob a relacdo senhor/escravo. A organizacao s6cio- politica cria uma situacio apenas de fato, ndo de direito. E, cm nome da justiga, essa situacdo Pode e deve ser corrigida. O magistério filos6fico existe, inclusive, para repor o justo no lugar Uusurpado pela provisoria injustica. A subversio socratica, de fundo pitagérico, possui, assim, conotacio fortemente politica ¢ nao apenas psicol6gica e religiosa. E é cssa repercussio na or. dem politica instituida — e indiretamente denunciada como injusta — que certamente justifica 4 posterior condenagio do fil6sofo 4 morte pela Assembleia de heliastas. No é 0 que Platio sugere no Afénon, 20 fazer irromper em cena, irado, ap6s 0 exercicio de libertacio e valoriza- io do escravo, a personagem Anitos, justamente um dos acusadores de S6crates? (30) Platio, La république (A republica, Liveo v1, tltima parte, Oeuvres completes, trad. € notas Lén Robin, Paris, Gallimard, Bibliothéque de La Pléiade, 1950, pp. 1091-101) 82 G1) P. Nizan, op. cit, p. 14., 2) Idem, ibidem, p. 13, (83) Idem, ibidem, p. 12 G4) P. Petit, op. cit, p. 101 5) Epicuro, op. cit, p. 19 G6) Tito Lucrécio Caro, op. cit., Livro 1, 39-40, p. 31 87) P. Nizan, op. cit., p. 40. 8) Tito Lucrécio Caro, op. cit., Livro 11, 15-35, p. 47. G9) Bpicuro, op. cit., p. 13 (40) Idem, ibidem, p. 13. (41) L. Robin, La pensée grecque et les origines de l'esprit scientifique, Paris, Editions Al- Michel, 1948, pp. 388-90 (42) Epicuro, op. cit, p. 14. (43) Idem, ibidem, p. 14. (44) Idem, ibidem, p. 15. (45) Tito Lucrécio Caro, op. cit., Livro 1, 160, p. 33. (46) Idem, ibidem, 161-8, p. 33. (47) Como assinalaJ. Burnet (Harly Greek philosophy, trad. franc. L’aurore de la phitoso- grecque, Patis, Payot, 1952), 0 pensamento filoséfico grego se desenvolve inicialmente variages sobre o tema da corporcidade, Mesmo os pitagoricos, em sua aritmo-geometria, ‘arem que hd um intervalo separando as unidades descontinuas que compoem a exten- -consiceram que esse intervalo € preenchido pela corporeidade ténue do pneuma, que se wz em todas as coisas devido a respiragdo do cosmos, que é vivo. Cria-se, dese modo, contradicio que as aporias de Zenao de Eléia contra os partidarios da multiplicidade ¢ mento explicitam: contradigio entre a afirmagio da descontinuidade da extensao € es- tinuidade do corpéreo rcintroduzida pela natureza do intervalo. De fato, € 0 eleatismo aflorar €, a0 mesmo tempo, esgota 0 pressuposto, comum as diversas doutrinas fisicas, 1ol6gicas anteriores, de que a corporeidade € a tinica categoria a explicar os mais variados ¢ fendmenos. O principio de unidade l6gico-ontolégico expresso por Parmenides — “o €; 0 que nao 6, nao é” — pode, assim, scr explicitado sob a forma: “'o que € (corpéreo), ‘existe; 0 que nfo € (corpéteo), no é, ndo existe’’. A grande contzibuigdo do atomismo, Leucipo ¢ Deméctito, esti em tornar flextvet esse principio, pela afirmaglo da existén- vazio. Com 0s atomistas 0 principio pode ser assim reformulado: ‘‘o que & (corpéreo), ste (enquanto corpéteo: os tomes); 0 que nao € (corpéreo), também € ou existe (en- outro, enquanto incorporeo: 0 vazio)”. A solucao platénica, contrapasta ao mecanicis- fisica atomista, segue noutra direcZo: também afitma a existéncia da alteridade como com- to l6gico-ontoldgico indispensavel a afirmacio do "'o que é” (0 ser, 0 mesmo), mas co- incorporiedade das idéias ou csséncias a chave para a compreensio do corpéreo (as sensivcis) ¢ até para a sustentagio ontol6gica desses objetos fisicos (vistos como cépias tas das esséncias). Desse modo, em Plato o incorpérco nio € 0 vazio, a extenso que ce resistencia € existe enquanto espaco onde os 4tomos se movimentam: €, 20 contra ‘pleno, o essencialmente pleno, pois é “mundo das idéias”, conjunto hierarquizado de as puramente formais, Esse plano incorpéreo € regido pela finalidadc, representada, grau supremo, pelo Um que é também Belo e Bem. H4, assim, na incorporeidade das ‘uma “resisténcia”” de natureza l6gico-ontoldgica, nao fisica, que permite, inclusive, se fundamente 0 justo, que deve nortear a ago ética e politica. Em Epicuro, a susten- ética € feita sem se ultrapassar 0 plano da corporeidade: pela introducio, no seio do smo determinista, do clinamen. 3) Epicuro, op. cit., p. 15. ) Plato, Fédon, 97 d-99 d (v. Plato, S40 Paulo, Abril Cultural, 1978, col. Os Pensadores). ))J. A. Motta Pessanha, "Marx € os atomistas gregos”, in K. Marx, Diferenca entre as da natureza em Demcrito e Epicuro, $30 Paulo, Global, 1979, pp. 7-8. 83 (51) Tito Lucrécio Caro, op. cit., Livro 1, 216-24, p. 50. (52) A tentativa de Deméctito parece movida pela necessidade de combater a proposta relativista de seu conterrineo Protigoras, o grande sofista de Abdera. (Vefa-se V. Brochard, “Pro- tagoras et Démocrite”, in Etudes de philosopbie anctenne et de philosopbfe moderne, Patis, J. Vein, 1954, p. 23.) (53) Epicuro, op. cit., p. 13 (54) Idem, ibidem, pp. 13-4. (55) Tito Lucrécio Caro, op. cit., Livro 1, 830-41, p. 73. (56) O surgimento das primeiras teorias cientifico-filos6iicas, na Grécia, a partir do século y1a.C., altera a concepgio do divino, questionando 0 divino antropomérfico da tradicio ho- mérica ¢ que perdura na religito oficial, de cunho politico. Para os filésofos, a physis ¢ divina, 6 que levard, a partir sobretudo de Xen6fanes de Colofio, & explicita rejeigao das caracteristicas atribuidas ao divino pela celigido tradicional e pela mentalidade popular. (Veja-se, particulac- mente, W, Jaeger, La teologia de los primeros fildsofos griegos, Buenos Aires, Fondo de Cultu- ra Economica, 1952.) (57) D. Babut, La religion des philosopbes grecs, Patis, PvF, 1974, pp. 149-50. (58) Idem, ibidem, p. 159, (59) A doutrina nos simulacros € desenvolvida por Lucrécio no Livro 1 do De rerum na- tura. Hles si0 ai descritos “como peliculas arrancadas da supesficie dos objetos € que voejam de um lado e de outro pelos ares; indo a0 nosso encontro quando estamos acordados, aterram- nos 0 espirito, exatamente como em sonhos, quando muitas vezes contemplamos figuras es- pantosas ¢ imagens daqueles que ja nao tém luz" (35-40, op. cit., p. 79). Veja-se, particularmen- te, G. Deleuze, “Lucrécio e o simulacro”, apéndice de Légica do sentido, trad. Luiz Roberto Salinas Fortes, $40 Paulo, Perspectiva, 1982, p. 273 ss, (60) 0 coisismo € vicio comum apontado por JP. Sartre nas mais diferentes concep¢des sobre a imagem, ao longo de séculos. Escreve: ‘“Essa metafisica consiste em fazer da imagem ‘uma c6pia da coisa, existindo cla propria como uma coisa”. E acrescenta, mais adiante: “Uma bela ilustragdo desse coisismo ingeénuo das imagens nos ¢ fornecida pela teoria epicurista dos simulacros"’ (L'imagination, Patis, Pur, 1956, pp. 4-5). (61) D. Babut, op. cit,, pp. 162-3. Seria interessante cotejar a concepgao epicurista da per- pétua renovagao dos deuses com a concepgio cartesiana de “‘eriagao contintada’” (62) Idem, ibidem, p. 160. (63) Idem, ibidem, p. 166, (64) Idem, ibidem, p. 168. (65) 0 albures soctatico-plat6nico € de outra natureza ¢ estd ligado & concepcio de alma que, habitando sucessivas moradas corpéteas, retorna ao plano supraterrestre, como procura- ‘mos mostrar em “A agua ¢ o mel” (O desejo, Si0 Paulo, Companhia das Letras, 1990). (66) D. Babut, op. cit., pp. 149-50. (67) Epicuro, op. cit., p. 20 (68) Idem, ibidem, p. 17. (69) Idem, ibidem, p. 17. (70) Idem, ibidem, p. 17. O combate ao hedonismo cirenaico € central no pensamento de Epicuro, que busca insistentemente ressaltar a diferenga entre seu hedonismo dirigido & con- quista da ataraxia e os partidirios da voluptas in motu. Veja-se, em particular, B. Bréhier, “Les ceyrenaiques contre Spicure — remarques sur le Livre u du ‘De finibus bonorum’ de Cieéron” (in Etudes de phitosophie antique, Paris, Pur, 1855, pp. 179-84); G. Giannantoni, J cirenaici, Florenca, Sansoni Editore, 1958. * (7) Epicuro, op. cit., p. 18. (72) L. Robin, “Sur la conception épicurienne du progres”, in La pensée hellénique des origines a Epicure, Patis, pur, 1967, p. 531 (73) Idem, ibidem, p. 530. (74) Epicuro, op. cit., p. 18. 84 (75) M. Foucault, op. cit (76) Epicuro, op. cit., p. 18. (77) Idem, ibidem, p. 18. (78) V. Brochard, ‘La morale d'fpicure”, in Etudes de philosopbie ancienne et de pbilo- jie moderne, Paris, J. Vrin, 1954, p. 297. (79) Idem, ibidem, p. 296, (80) Em Platio (Filebo), todo prazer é da alma; em Epicuro, a0 contrario, mesmo 0s praze- da alma so corp6re0s (por exemplo, as sensagdes — corpéreas — rememoradas ou antect- ). A posicao platonica € coerente com sua concep¢ao de desejo, associada a questio do 1 ¢ da dor, como procuramos esclarecer em "A Agua e o mel” (em O desejo). (81) Epicuro, op. cit., p. 19 (82) Idem, ibidem, p. 20. (83) J-C. Fraisse, Philia — La notion d’amitié dans la philosophie antique, Patis, Librai- ilosophique J. Vrin, 1984, p. 288. (84) Bpicuro, op. cit., p. 20. (85) J-C. Fraisse, op. cit., p. 305. (86) Epicuro, op. cit., p. 13. 85 A CULPA DOS REIS: MANDO E TRANSGRESSAO NO “RICARDO IT” Antonio Candido O ponto de apoio desta palestra talvez pudesse ser expresso pela frase: nao se manda impunemente. Mandar é uma atividade que envolve atos, relages ¢ sentimentos muito complicados, afetando a humanidade de quem manda € de quem obedece. Aqui me limitarei ao mando de natureza politica, isto €, 0 man- do considerado como elemento inerente ao exercicio do poder. No entanto, nao abordarei os seus aspectos especificos, que constituem 0 mecanismo necessario para esse exercicio, porque estou interessado na sua representacdo figurada nu- ‘ma obra literaria de fundo histérico, 4 tragédia do rei Ricardo I, de William Shakespeare. Ela € o primeiro de um conjunto de quatro dramas conhecidos co- mo Segunda tetralogia. (Os dramas de Shakespeare sobre a hist6ria da Inglaterra so em mimero de dez, formando um vasto afresco, sendo que oito deles se articulam em dois mo- vimentos que descrevem 0 governo de seis reis imediatamente sucessivos. Mas akespeare comecou pelo fim, escrevendo primeiro trés pegas sobre Henrique uma sobre Ricardo ut. Depois escreveu as que cronologicamente viriam an- tes; uma sobre Ricardo u, duas sobre Henrique iv ¢ uma sobre Henrique v. S40 chamadas respectivamente Primeira e Segunda tetralogias, que formam um do coeso cobrindo desde as origens mais remotas da Guerra das Duas Rosas 10s anos de 1390 até o seu desfecho, nos anos de 1480. E uma incrivel sucessio assassinios ¢ traigdes, de usurpagdes, atrocidades e conflitos de toda a espé- ie, envolvendo diversos ramos da Casa Real inglesa, oriunda de Henrique u no :culo xil, até a sua extingdo praticamente completa, pois sobrou apenas uma ybre princesinha que serviu para legitimar a ascensao a0 trono de seu matido, primeiro rei da dinastia arrivista dos Tudor. © nascedouro disso so os acontecimentos dramatizados na pega sobre Ri- do 1, na qual ocorre a transgressio basica: usurpacao da coroa seguida de re- icidio, configurando um conflito entre mando € obediéncia, que envolve o pro- lema da culpa. Mas vamos ao resumo da pega, da qual s6 analisarei alguns pectos. 87 Ela comeca pela troca de acusagbes entre Tomas Mowbray, duque de Nor- folk, e um principe de sangue real, Henrique Bolingbroke, duque de Hereford, que lhe imputa entre outras coisas 0 assassinio do duque de Gloster, tio dele ¢ do rei. A solugio seria verificar quem € culpado por meio do duelo judiciario, equi- valente ao “‘juizo de Deus”, que, no entanto, € suspenso a ultima hora por Ricar- do. Entrementes, a duquesa vitiva de Gloster fizéra um apelo ao cunhiado Joao de Gand, duque de Lencastre, pai de Bolingbroke, para vingar a morte do marido, assassinado anos antes. Jodo de Gand se escusou dizendo que, como 0 mandante (no declarado) fora o rei, nada poderia fazer, pois seria levantar a mao contra o ungido de Deus. Vé-se que Ricardo nao tinha mesmo condigées de deixar o duelo realizar-se, pois todos sabiam que era o principal responsavel. Por isso, escapa pe- Ja tangente, banindo 0 primo por seis anos € Norfolk por toda a vida ‘A preocupacao de Ricardo no momento era a guerra que tencionava mover na Irlanda. Para obter os recursos necessarios manda levantar tributos, efetwar con- fiscos € arrenda os bens da Coroa a um de seus asseclas, o conde de Wiltshire. Seu tio Jodo de Gand, moribundo, censura asperamente esses atos, mas depois de sua morte Ricardo amplia o arbitrio, apropriando-se pata as despesas militares dos scus bens, que por direito cabiam ao filho exilado. © descontentamento dos nobres leva-os revolta, que encorpa com a noticia de que este desembarcara na Inglaterra com tropa numerosa para reclamar a heranga. Crescem as adesOes, cul- minadas pela do fraco duque de York, tio dele ¢ do rei, que 6 deixara como regen- te quando partiu para a Irlanda em campanha. Informado da rebelido Ricardo vol ta, confiando na forca do seu poder de origem divina, mas dé de frente com uma situagao calamitosa: amigos executados, defecgdes macigas, vazio em torno da sua pessoa. Sem elementos de resisténcia ¢ sem capacidade para isso, entrega-se ao primo; depois, abdica numa cena pungente. O novo rei manda prendé-lo ¢ su- foca uma tentativa de rebelido, que s6 serve para mostrar como o seu poder € in- seguro enquanto viver 0 rei legitimo. Entao insinua 0 desejo de vé-lo morto, reali- zado por um adulador. O assassinio de Ricardo faz Henrique sentir a enormidade da usurpacdo seguida de regicidio, que nio apenas compromete a sua legitimida- de, mas abre um precedente perigoso. Por isso, procura redimir-se, fazendo a pro- messa, que nunca cumpriu, de empreender uma cruzada na Terra Santa. fieste o esqueleto da ac4o, que nao pretendo analisar em face da verdade his- t6rica, que Ihe € externa. Tratando-se de uma tealeza de teatro, 0 meu material de exame serio algumas situacOes dramaticas e as imagens que constituem o subs- trato simbélico da peca, transfigurando a realidade dos interesses politicos. Mes- ‘mo porque, como diz um especialista, ‘no Ricardo I/as imagens se tornam a ma- neifa caracteristica de expresso da personagem principal”! Antes de entrar na anilise, convém lembrar que a transgressdo politica € um, ato que pode pér em risco a ordem estabelecida, porque consiste basicamente. ‘em desmanchar a relagdo entre mandar ¢ obedecer, indispensavel em qualquer 88 era da sociedade. O transgressor pode ser um salvador ou um criminoso, de apenas perturbar as relagdes normais da sociedade ou pode criar condi- para a sua transformacio, e sera avaliado moralmente conforme o resulta- p final do seu ato, Mas, em qualquer caso, transgredir consiste no desmancho gue aludi, podendo ser uma perturbagio duradoura ou passageira dos equili- ios aceitos. Para esquematizar, podemos dizer que a estrutura do mando pressupoe trés ementos: um principio geral que o justifica; uma fun¢ao que o encarna; uma essoa que 0 exerce. No caso desta pega, 0 principio € 0 dircito divino dos reis, ato € de ordem biolégica, pois € hereditério e se transmite pelo sangue; a fun- 0 € a realeza, que depende de uma ungo no momento da investidura e é de 4ter religioso; a pessoa € Ricardo Plantageneta (chamado, antes de ser rei, Ri- Mas imediatamente entra 0 jogo metaférico, misturando a vida humana com vida vegetal: “Os sete filhos/ de Eduardo, ¢ tu és um deles, eram como/ sete 10s do seu sagrado sangue,/ ou sete ramos que de um tronco viessem’’ £ facil perceber que a série humana e a série vegetal se fundem por meio uma metéfora unificadora implicita, a 4rvore genealogica, que dinamiza a com- aco. De fato, ela implica a idéia de transmissio pela heranga, de movimento itinuo que perpetua a legitimidade do mando c d4 normas ao comportamen- . Na medida em que sao vasos contendo o sangue real de Eduardo m, seus fi- so apenas virtualidades; mas, sendo ao mesmo tempo ramos vivos que saem Arvore genealdgica, eles crescem, produzem outros galhos aos quais ttansmi- a seiva, isto é, o sangue portador dos direitos e das prerrogativas, que assim dura no tempo. A duquesa prossegue: Destes, alguns secaram pelo proprio curso da natureza; outros cortados foram pelo destino antes do tempo. ‘Mas Toms, minha vida, meu querido senhor, meu Gloster, vaso do sagrado sangue de Eduardo, ramo florescente de seu real tronco, foi despedacado, tendo-se derramado toda a seiva preciosa, foi cortado, emurchecendo-se as folhas estivais, pela mio dura da Inveja € a foice rubra do assassino. Do mesmo modo que, segundo a crenga medieval, 2 héstia podia sangrar Mo No Milagre de Bolsena, pintado por Rafael nas logge do Vaticano), por- continha realmente o sangue de Cristo, 0s galhos metaf6ricos da arvore real a sangram, porque neles circula a seiva-sangue do antepassado comum. Tanto sim que, quando a limina assassina corta figuradamente o galho-Gloster, este s gra, como se infere da metonimia “‘foice rubra do assassino” (isto é, a lami é ensangiientada pela seiva-sangue manada do galho-Gloster) A tazo de ser das metforas “vaso” e “‘galho"’, ordenadas em torno de “san gue” e “Arvore”’, € politica neste contexto, porque se baseia na idéia de trans missao hereditéria, simbolizada na 4rvore genealdgica, legitimadora das qualida- des que sancionam a autoridade, requerem obediéncia e criam direitos. Note-se a reciprocidade das duas metéforas, que figuram e reforcam o direito heredititio. A ligacao da idéia de sangue a idéia de planta alerta para as conexdes que Shakespeare estabelecerd entre a vida politica e a vida vegetal, centralizadas pela relagdo mistica do rei com a terra ea natureza, H4 uma cena modelar a este res- peito, na qual a seiva é assimilada ao sangue: a cena 4 do 3° ato, uma das mais famosas, segundo alguns a chave da pega, localizada num jardim onde a rainha escuta os jardineizos compararem o respectivo trabalho a administragao do rei- no. Na verdade a cena € muito importante como alegoria, mas penso que meta- foricamente pobre, comparada a maioria das outras. Ela consta de analogias f4- ceis entre os cuidados de um jardineiro competente (que escora os galhos sobre- cartegados, poda e faz enxertos na hora certa, arranca as ervas daninhas) e a in- sensatez de Ricardo, que deixou os parasitas sugarem 0 erario € nao soube des- truf-los. Esta cena interessa como exemplo a mais da referida tendéncia do Poe- ta, isto €, construir a peca com um movimento de comunicacdo entre as diferen- tes esferas que compdem e dio unidade ao universo dramatico, ilustrando sim- bolicamente 0 jogo do poder: sua formacao, sua transformacdo, seus mecanis- ‘mos de justificagao. Portanto, Shakespeare faz do rei e do seu poder um fulcro de relacdes sim- bolicas entre o sangue, a seiva, a terra; entre o homem, a planta, a natureza; en- tre o poder € a vegetacdo; entre satide-ordem social e doenga-desordem. B atra- vés desse vasto relacionamento, dessas intercomunicagdes, que se configura 0 problema do mando e da obediéncia, da transgressio, da culpa, do legitimo € do ilegitimo. Vejamos a cena 1 do 22 ato, em que Joao de Gand, na hora da morte, censu- 1a.0 comportamento do rei seu sobrinho. Cena de importancia maxima, porque desvenda o mecanismo real das agGes e reaces politicas, ela se baseia numa me- tafora mais simples como contetido ¢ menos claborada como forma que a da arvore genealdgica, Essencialmente é a comparacio entre a doenga de um velho (Joao de Gand) ¢ o descalabro do reino, equiparado a uma doenga figurada, Eis um trecho: Gand: Nao; tu mortes, embora eu esteja doente. Ricardo: Estou forte, respiro; tu definhas. Gand: Deus, que me fez, me diz que de mezinhas tu precisas e que j4 te avizinhas, como eu, do fim da vida. Tens por leito 92 de morte a propria patria, onde agoniza tua reputagdo. E tu, por seres um doente negligente, 0 ungido corpo 0s cuidados confiaste dos que tantas feridas te causaram. Joao de Gand joga com as acepgdes de “doenga" e “morte” no sentido pré- io e no figurado, sugerindo que politicamente o rei est tio doente € to perto morte (destronamento) quanto ele. Esta comparagio é esclarecida a seguir por io de duas consideragGes aparentemente desligadas, mas de fato interdepen- sntes, que trazem de volta o tema fundamental do sangue. Prosseguindo, diz io de Gand que os bajuladores do rei s40 como os maus médicos, que o levam 108 prejudiciais a ele proprio ¢, portanto, ao pais, porque rei e reino formam corpo: ] 08 milhares de aduladores que se abrigam dentro da coroa, cujo mbito, contudo, se mede apenas pela tua cabega. Mas com ser to pequeno 0 ninho deles, estende-se a devastacio por toda tua terra. Neste ¢ em mais dois trechos a coroa funciona como elemento figutado im- rtante. Ela € simbolo da monarquia, de modo que os parasitas esto realmente talados no Ambito do pais; por isso dispdem do reino, isto é, dos bens que integram. © jogo de palavras permite passar da pessoa do rei a totalidade da laterra: os que © exploram, exploram-na. A continuagao do tiltimo verso parece a primeira vista desligada do que pre- a Ah! se teu avo pudesse ter sabido que o filho de seu filho viria a ser a ruina de seus filhos, longe de ti ele teria posto tua grande desonra e te haveria deposto antes de seres empossado na posse que depor te ameaga agora. Qual a relagdo entre a doenca politica do rei ea do reino (devida a agao exploradores) ¢ a afirmacdo de que Ricardo destréi os seus parentes? A se- encia fornece a chave: Sim, primo,® embora fosses rei do mundo, seria vergonhoso hipotecares este pais, Cingindo-se o teu mundo a ele somente, é mais que vergonha 93 desonrélo a esse ponto. Bs 0 intendente da Inglaterra, tio-s6, no seu monarca O Estado soberano 4 lei se curva; mas tu. Aqui Ricardo interrompe violentamente 0 tio, dizendo que o castigaria nao estivesse para morrer; Joao de Gand, rasgando afinal 0 jogo, replica que qu. mandou matar seu irmao Tomis, duque de Gloster, nao deve ter escrapulos derramar uma vez mais o sangue da estirpe de Eduardo mt, Cémparando a i vectiva sobre o arrendamento dos bens da Coroa por influéncia dos parasit com a invectiva sobre 0 assassinio de Gloster, lembremos que este ato precedet de muito tempo o outro. Por que Jodo de Gand nao o denunciou entao? P que nao o denunciou também quando instado pela viva? Esta pergunta tem c mo resposta uma das chaves da pega; dai a importdncia decisiva da cena. Ui principe de sangue real como Joao de Gand se cala ante 0 assassinio de outr seu irmo, porque o mandante € ungido de Deus. Mas, quando este ungido meca a por em risco os direitos que o sangue real da sobre as fontes de ren ele protesta, como preambulo a rebelido do filho, Henrique Bolingbroke, qu chega as conseqincias priticas do protesto, destronando e mandando matar tei, ou seja, nos termos do texto, vertendo o sangue precioso e sagrado de Eduar- do 1, Talvez, se 0 arrendamento e os confiscos tivessem sido feitos em benefi- cio de membros da familia real ou seus parentes, a intangibilidade do monarca pudesse ser mantida. Conclui-se que a satide do reino é a sua exploracao econd- mica em beneficio daqueles cujo sangue legitima os privilégios. Quando 0 rei contraria esta norma, € como se ficasse doente € a sua doenga se estendesse a0 reino, com © qual ele forma um corpo. A intangibilidade dos privilégios ligados ao sangue esta implicita numa fala do duque de York, que duplica e amplia a do irmao mais velho Jodo de Gand, deixando claro que também ele agiientou os desmandos de Ricardo, inclusive a morte do outro irmao, mas nao pode aceitar a espoliagio do sobrinho Boling- broke, que importa em romper 0 carter legitimo das transmiss6es: Desse modo impedis que 0 dia de hoje tenha por sucessor o de amanha. Por que sois rei, senao por descendéncia legal € sucess’o? Digo, portanto, diante de Deus — nao queira Ele que seja verdade quanto eu falo! — se espoliares, sem razio, Hereford de seus direitos, € no quiserdes receber as cartas Patentes com que o seu representante reclamar sua posse e vassalagem, sobre vos mesmo chamareis milhares de perigos, vireis a perder muitos coragdes afetuosos, obrigando minha terna paciéncia a pensar coisas que a honra ¢ a obediéncia me proibem. 94 Vemos entdo que por baixo do sistema simbélico dos fluidos, por baixo da unio magica entre o rei ea terra, esta efetivamente a realidade da posse desta terra, por meio da agao legitimadora da realeza. O sangue é importante, em boa parte, porque define essas relagdes de apropriacao. Seria, pois, 0 caso de dizer "que no mundo feudal sangue € dinheiro, como mais tarde, no mundo da bur- sia triunfante, o tempo sera dinheiro, segundo a formula famosa e expressi- “Time is money”. O feudal ndo leva o tempo em conta, porque teoricamen- e 0 seu direito sobre o bem econémico bisico, a terra, provém de uma norma intemporal ¢ depende do ritmo perene das estagdes. Mas 0 burgués se faz, num, empo relativamente curto, o da sua vida individual util, que por isso mesmo ecisa ser aproveitado num ritmo acelerado de acumulagio € produgao ra- mal, Portanto, o rei € um ente privilegiado gragas a0 que representa. Recebeu 9 nascer um fluido vital sagrado, 0 sangue, que circula como seiva na sua arvo- geneal6gica. Sendo galho desta 4rvore simbélica ele planta as raizes na terra se liga misteriosamente ao seu ritmo, de tal modo que ela é saudavel quando sua satide € boa, e doentia quando ele adoece, como 0 rei ferido ea terra deso- nas lendas do Santo Graal. Entende-se que metaforicamente sade € organi- Jo segundo as normas, ¢ doenga, desordem devida a violagao destas. No Ricardo II ha uma cena situada bem no meio da ago dramética, a cena ‘do 32 ato, construida como uma espécie de demonstracao desse vinculo pro- ndo entre o rei € 0 reino, entre a pessoa sagrada pela uncao carismatica ¢ 0 imo da vida politica e social, simbolizada pelos aspectos da natureza. E um dos omentos mais altos da peca e um dos melhores exemplos do senso ritmico com Shakespeare compunha a marcha da catdstrofe pelo acimulo de ocorrén- gs infaustas, a exemplo do que se vé nas partes finais de Macbeth ou de Ricar- AIT. Estamos no Pafs de Gales. Pelas cenas anteriores ficamos sabendo que Bo- sbroke ndo s6 desembarcou na Inglaterra de volta do exilio, mas j4 obteve jas, conquistou para a sua rebelido elementos decisivos da alta nobreza, fi- dou a maioria dos amigos mais chegados de Ricardo ¢, finalmente, obteve so relutante do tio de ambos, o duque de York, regente durante a expedi- 9 da Irlanda. Sabemos também que a principal forca com que Ricardo conta- ‘0s galeses, ja 0 abandonou. Mas (¢ esta é a mola dramatica usada por Shakes- sre a fim de criar o ritmo da cena) ele nao sabe nada disso. Esté chegando da npanha irlandesa certo de que sua autoridade € absoluta em virtude da un- € bastaré por repor tudo em ordem. ‘A cena € construida segundo a alternancia das noticias (cada vez mais de- trosas) ¢ das reagOes do rei, que oscila entre euforia ¢ desalento, afundando- ' isaemarina ea ae ee a a Como sangue real € seiva, Ricardo se identifica 4 terra ¢ no acredita 0s inimigos possam prosperar, pois o pais nao os favorecerd. E 0 bispo de Carli le confirma: “Milorde, nao temais; a mesma forca/ que vos fez rei tera poder by tante/ para vos conservar no yosso posto/ contra todas as forcas””. A compenetrago com a natureza se exprime entre outras imagens pela ide tificagdo do rei ao sol, principio de vida. No caso, vida como ordem do cor} social: Ricardo afirma que ao ir para a Irlanda deixara a Inglaterra nas trevas, fa voraveis 4 proliferagdo do mal; mas bastava a sua volta para dissipa-las. Num: imagem que seria retomada mais tarde noutro sentido pelo Poeta em Macbeth, ele sintetiza deste modo a forga invencivel do poder sagrado que a uncio reli giosa the deu na investidura: “Toda a 4gua do mar dspero c selvagem/ 0 dle: santo nao tira que foi posto/ na fronte de um monarca”’. ‘Mas 0 acimulo de noticias ruins mostra o predominio crescente do rebelde, Bolingbroke, como s¢ 0 pais preferisse 0 contrario. Ricardo sente entao pela pri- meira vez que a uncio ritual no abole a fragilidade da condi¢do humana ¢ que h4 no mando aspectos contingentes decisivos, ligados as caracteristicas da pes- soa que exerce a funcdo € que sabe usar com maior eficiéncia os instrumentos efetivos do poder, agora nas maos do primo a caminho da usurpacio, porque, como reconhece com amargura, “soube obté-lo pela estrada/ segura da violén. cia’”’, Neste meio da pega o rei est comecando a reduzir-se a sua escala de indivi duo, despojando-se aos poucos do papel social e comegando a descida para a abdicagio € a morte, “Ricardo i & a tragédia do destronamento. Mas nao é apenas o destrona- mento de Ricardo, é o destronamento do rei, da idéia do poder monarquico [...] No Ricardo IT, 0 ungido do Senhor, 0 rei, a quem arrancaram a coroa da cabega, se torna um simples mortal.""7 A partir desse momento presenciamos a desarticulagdo da estrutura de po- der, € 0 Poeta passa a dar maior relevo personalidade de Ricardo, porque a partir desse momento o homem vai separar-se do rei. Nesta cena ja acontece de maneira simbélica a perda da capacidade de mandar, que se dard oficialmente no 4° ato. Por isso, na famosa tirada em que Ricardo emuncia este fato, o sangue aparece pela primeira vez como traco comum a todos, nao como fluido privilegiado: cra uma vez um rei! Ponde os chapéus; nado zombeis, com solenes reveréncias, do que s6 carne € sangue. Despojai-vos do respeito, das formas, dos costumes tradicionais, dos gestos exteriores, que equivocados todos estivestes a meu respeito. Como vés, eu vivo também de pio, padego privagoes, necessito de amigos, sou sensivel as dores. Se, a tal ponto, eu sou escravo, como ousais vir dizer-me que eu sou um rei? 96 E a cena acaba com uma tirada de dolorosa rentincia, em que as posicbes invertem, pois o sol se transforma em sombra, ¢ a sombra em sol: “Mandai -mbora/ todos 0s meus soldados, sem demora;/ saiam da noite de Ricardo, fria,/ ra 0 de Bolingbroke excelso dia” Até aqui houvera uma espécie de expansio do sangue, principio de legiti- idade ¢ fluido magico equiparado a seiva. A partir daqui ha uma retracio do gue, ¢ 0 exercicio da forca funcionard como transferéncia da sua virtude legi- adora a outro galho da drvore real, Henrique Bolingbroke. Daf um desloca- nto do sistema figurative, Como o rei deixa de identificar-se a natureza ¢ se 1uz a condi¢ao de individuo, as imagens césmicas e vegetais cedem primazia mundo humilde dos artefatos, destacando-se primeiro, na cena da abdicacdo, ica do 4° ato, os dois baldes a que Ricardo compara os movimentos contras- tes dele do primo: Assemelha-se agora esta coroa de ouro a um pogo profundo com dois baldes que em tempo diferente se enchem de agua’ danga no ar 0 vazio; 0 outro, no fundo, cheio de agua, € invisivel. O de légrimas cheio, sou eu, que bebo as minhas dores; ascende o vosso: € todo riso ¢ flores Este balde no fundo do pogo nao € mais o rei Ricardo u: € 0 individuo Ri- io de Bordéus, reduzido a sua singularidade de homem. E para encertar 0 -esso de despojamento, de privacao do papel politico, surge a tiltima grande cio simbélica da pega: o espelho, que Ricardo pede a Bolingbroke e repre- a esséncia da abdicacao, pois permite separar a fungao do individuo que .erce: “Manda vir um espelho, para que cle/ a minha propria imagem me apre- / desde que a Majestade abriu faléncia”. - “A minha propria imagem” € a imagem do homem que perdeu a fungio sstitica € aparece de repente insignificante sem cla: Dé-me o espelho. Vou ler nele. ‘Como! Sem rugas, ainda, mais profundas? ‘Tao grandes bofetadas a tristeza me aplicou, sem deixar marcas mais sétias? © espelho adulador! Como as pessoas que na prosperidade me seguiam, tu me estés enganando. Serdo estas as feigses de quem tinha diariamente dez mil pessoas Sob 0 seu teto ea todas alimentava? Sera esta a face que, a maneira do sol, deixava cego quem a olhasse de frente? Era esta a face que fez face a loucuras incontéveis 97 para, afinal, ter de baixar os olhos diante de Bolingbroke? Muito frégil €.a glria que irradia desta face: Go fragil quanto a gl6ria € a propria face. Goga o espelbo no chao) Ei-la af, reduzida a cem pedagos Nao deixes de anotar, rei silencioso, a moral do meu gesto: como as magoas em pouco tempo a face me destrufram. Portanto, nesse momento o homem se separa do monarca € nés perceb mos que este era um outro, revestido do direito de mandar. Quando alguém sume papel politico, incorpora esse outro, que € quem precisa dos critérios legitimagdo do mando. Mandar € té-lo em si; quando ele se anula a pessoa fi reduzida a condigao comum, O espelho materializa esta divisdo, porque Ricard homem ve destacar-se dele, na hora em que abdica, a imagem de Ricardo rei, desgastada pelo exercicio do poder, que passa ao usurpador. No final da pe¢: cena 5 do 5° ato, Ricardo na prisio se analisa apenas como homem, no mai como rei, Despojado do ourro, € agora cle proprio, impotente mas hicido, capa: de perceber 0 jogo da realidade e da fantasia. O prego que paga pela recupera- 40 da sua humanidade ¢ a morte, Entio 0 assassino entra ¢ sela o triunfo de Bolingbroke, titular da legitimidade baseada na eficiéncia. © modo de ser da personagem Ricardo parece elaborado para ilustrar a oscilagdo entre a pessoa € a sua funcio politica. Ao mesmo tempo arrogante ¢ bumilhado, Ricardo alterna a prepoténcia com a submissio ¢ passa da confianga cega ao desalento, a ponto de abdicar antes que a abdicacio lhe seja imposta. Em Bolingbroke, “rei silencioso”, a afetada humildade € apenas truque, substi- tuido rapidamente pela realidade inteiriga da prepoténcia. Mas em Ricardo a di- visio interior é consubstancial, isto é, algo inerente a0 seu modo de ser, poden- do representar com maior clareza a dicotomia entre 0 eu € 0 outro, pressuposta na estrutura do mando, Dai o cunho antitético do seu raciocinio e até das ima- gens com que 0 traduz: o sol € a treva, 0 balde cheio ¢ 0 balde vazio, 0 trono € 0 tmulo. © processo se resolve na cena da abdicacio, porque a dualidade da face e do seu reflexo é desfeita pela destruigao do espelho, © homem absorveu © rei, como antes o rei absorvera o homem. A partir da cena 2 do 3° ato Ricardo passara a falar é atuar com certa ironia isto é, de um modo favoravel 4 ambigiiidade, que the permite relativizar a gran- deza do mando ¢, ao mesmo tempo, a degradagao da queda. Gracas 3 ironia, po- de quebrar o significado aparente, conferindo dubiedade a tudo o que diz e faz, a ponto de ficar uma dtvida: estamos diante da verdade ou de uma farsa? Este — recurso instaura um fermento perturbador no processo do destronamento, su- gerindo que na estrutura do mando e da obediéncia h4 muito de ilusio. Quem pensa mandar pode estar sendo joguete, ¢ © joguete pode ser poderoso na es- séncia. No 4° ato ha uma espécie de prefigurag’o de Pirandello, baralhando o que € com o que parece ser. Mas, como vimos, 0 5° ato traz a morte, forma su- 98 -ma de mandar, para quem a determina; ¢ também de se submeter, para quem sofre. Além da ironia pessoal ha a ironia dos fatos, que envolve tudo, faz o poder submissio, transforma o fraco em forte € o forte em fraco, mostra como ono pode ser caminho para 0 timulo e zomba das grandezas. Por isso, nada \or para terminar estas consideracdes do que um pedaco da fala de Ricardo cena 2 do 32 ato, cujo fecho ja citei: E que, no centro da vazia coroa que circunda a real cabeca, tem a Morte a sua corte, e, entronizada ai, como os jograis, sempre escarnece da majestade e os dentes arreganha para as suas pompas, dando-lhes existéncia fugaz, somente o tempo necessitio para cena pequena, porque possa representar de rei, infundir medo, matar apenas com o olhar, inflada de ilus6rio conceito de si mesma, como se a carne que nos empareda na vida fosse de aco inquebrantavel. Talvez seja esta uma imagem pertinente do poder, sempre transitorio re- (0, mas indispensdvel e pesado, tendo como sécio constante, de maneira os- iva ou técita, a destruicdo, cujo limite € a morte. AS (Q) Wolfgang Clemen, The development of Shakespeare's imagery, Nova York, Hill and 5. dL, p. 54 Q)E. M. W, Tillyard, Shakespeare's history plays, Nova York, The Macmillan Company, 2? Parte, cap. 4(2): “Richard 1”. Em sentido parecido, um estudioso norte-americano mos- ‘maneita sugestiva como até a fala de ambos € diferente: a de Ricardo, metafbrica e ce! ; a de Bolingbroke, simples e dircta. Maynard Mack Jr., “This royal throne unkinged”, ling the king. Three studies in Shakespeare's tragic structure, New Haven ¢ Londres, University Press, 1973 (3) Barbara Heliodora, A expressdo dramética do bomem politico em Sbakespeare, Rio ito, Paz e Tetra, 1978, 3 Parte, cap. 4: “A Segunda tetralogia’’. Antes a autora havia “Nada € tio notavel na cria¢do do personagem Richard 1 quanto a impressionante reale- seu comportamento ¢ sua igualmente impressionante incompeténcia como monarca, sua ida nogio de privilégio e sua clamorosa imesponsabilidade”, p. 118 @) Caroline Spurgeon, Shakespeare's imagery and what it tells us, Boston, Beacon Press, (1? ed., 1935), cap. xit: “Leading motives in the histories” ) As citagdes so feitas na traducao de Carlos Alberto Nunes, Obras compleras de Sha- Vv. XVI, Vida e morte do rei Jodo — A tragédia do rei Ricardo 1, Rio dc Janciro, Ediou- ‘A palavra primo (cousin) em contextos como este equivale a “parente”. Jan Kot, Shakespeare notre contemporain (trad.), Paris, Marabout Université, 1965, Be O RETORNO DO BOM GOVERNO Renato Janine Ribeiro Sabemos que a modernidade principia em politica com o fim das catego- medievais — melhor dizendo, da epistéme medieval — que se organizavam, 10 pensamento tomista, em torno da idéia de buon governo, admiravelmente scrita por Kantorowicz a propésito dos afrescos de Lorenzetti em Siena. Sa- mos igualmente que ninguém, como Maquiavel e Hobbes, tio bem abriu este ovo mundo em que a politica se liberta da moral e da religido, Repassemos, orém, estas batalhas que se travam nos séculos xvi € xvu, para depois chegar nossa questo: serd que realmente faleceu 0 “bom governo”’? Sera que a forma la qual a maior parte de nossos concidadaos pensam o poder nao é, justamen- ., por essas Categorias que nds, tedricos do politico, tao celeremente descarta- ‘como sendo superadas, medievais? Um bom comeco pode estar na Inglaterra da Reforma. Reginald Pole, em 1a Apologia a Carlos V, atribui a Thomas Cromwell, principal arquiteto da Re- rma anglicana, a tese de que o rei est acima da lei, assim como da distingéo \tre certo e errado. O conselheiro deveria entao estudar “quo tendtt voluntas incipis”’, a que tende a vontade do principe, captando até seus desejos ocul- , em vez de procurar moderé-lo, E actescenta 0 severo Pole — primo do rei, jue s6 conseguiu salvar a cabeca por ter fugido a tempo da Inglaterra, ¢ que se nou cardeal e presidiu o concilio de Trento: Cromwell era discipulo de Ma- iavel, tendo recomendado a leitura de seu Principe 20 proprio Pole. Como -monstrou 0 comentador Van Dyke, isto seria dificil, porque o Principe s6 foi presso em 1532 e a conversa de Cromwell € Pole dataria de 1528. Mas é inte- sssante ver Como se constitui a imagem catélica desse primeiro Cromwell (de cm Oliver era'sobrinho-bisneto). Stephen Gardiner, bispo de Winchester, an- licano moderado e que quando da restauragao do catolicismo sob a rainha Ma- ia cooperaré com o cardeal Pole na repressdio — sanguindria — aos protestan- es, conta (em 1547) que Cromwell Ihe teria perguntado: ‘“Dizei-me, monsenhor spo de Winchester... a lei nao € 0 que apraz ao rei? Em vosso direito civil nao diz quod principt placutt etc.?... Nao me lembro bem agora”. Finalmente, ‘homas Morus, ao demitir-se da chancelaria, aconselhara Cromwell, seu suces- 101 UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAIBA BIBLIOTECA VANILDO BRITO sor: “‘Senhor Cromwell, se quiserdes seguir minha humilde opinido, em conselhos a Sua Alteza o rei sempre Ihe direis 0 que deve fazer porém, © que est em seu poder. Pois, se o led conhecesse a sua forca, muita di de sentiria qualquer homem em governé-lo”’.> Assim, Cromwell nao seguiu os conselhos de Morus por ler Maq segundo pelo menos os dois primeiros dos trés catdlicos que citamos; na de, Van Dyke pensa que Cromwell se referia mais a O cortesao de Casti que a O principe, ¢ € certo que o ministro mandou traduzit em inglés, a do-0, 0 Defensor pacts de Marsilio de Padua. A alusio a Maquiavel tah equivocada mas, justamente por isso, é significativa do papel demoniaco atribufa, tanto ao pensador florentino quanto ao ministro reformador.* Até porque por essa época Thomas Morus ja escreveu nao s6 a Utopia, também alguns poemas latinos que, se ndo engrandecem sua reputacio lite nos interessam aqui. S40 rigorosamente conformes tradig¢io moral ¢ cat da politica, Opdem o bom rei ao tirano; aquele governa pelo amor que com seus stiditos; por isso também pode ser comparado 4 cabega, € eles aos bros. So as duas imagens tradicionais do corpo politico, uma que o faz j mente corpo, com todas as implicag6es organicas que disso decorrem, outra © faz familia, e acentua 0 amor entre suas partes (amor este que j4 estava pr te na propria articulacao corporea, porque liga os membros A cabeca € entre J4 0 tirano, sabemos, pode sé-lo por defcito de titulo (o usurpador) ou exercicio (aquele que, mesmo sendo legitimo por heranga, ou aceito por el cdo, governa cruelmente), mas essas duas categorias tendem a se opor me do que a primeira vista pareceria. O usurpador tem de ser cruel, porque nao afeto entre cle € aqueles cujo mando ele adquiriu pela via da forca; 0 gover: cruel, ainda que legitimo ou eleito, perde sua legitimidade porque governar um mandato que implica deveres, ¢ no os respeitando ele se desqualifica. Ni dois casos falta 0 afeto, sobra a forca bruta. Daf que o tirano mande pelo me morra ele proprio de medo.* Isto fica claro na questo do sono. Em outro lugar’ sugeri que as formas de governo se hierarquizam, e1 Hobbes, conforme lidam, melhor ou menos bem, com o sono do soberano. Di Hobbes que o intervalo entre as sessdes do 6rgio soberano, numa democraci ou aristocracia, € como, na monarquia, 0 sono do rei: o poder permanece, set exercicio est4 porém suspenso.® A vantagem da realeza est4 em que nela o sono da persona ficta coincide com o da pessoa fisica, 20 passo que nos demais regi- mes a pessoa artificial dorme muito mais que as pessoas naturais que a compe, Ora, Morus também fala do sono, no caso, do tirano, Este precisa de pretorianos para protegé-lo, e quando dorme é como uma tora, um cadaver; entdo € ficil maté-lo. Dai que nado durma duas noites seguidas na mesma cama.° Ou seja, seu sono € conturbado, nao s6 pelos pesadelos que 0 acometem, como pela ameaca to efetiva de ser morto por aqueles em quem manda como se fossem escravos. ou animais, ¢ nao cidadaos, isto é, filhos. Em suma, a questo do sono diz respeito aos limites naturais do governar — ou a0s limites que 0 suporte natural, fisico, coloca a persona ficta, aqui o 102 Quanto ao chefe, acha-se em uma relacZo de proximidade particular com deuses, dos quais se encarrega de interpretar as vontades ¢ de obter o assenti- 10,2? € isso ao ponto de precisar, por vezes, fazer esforcos para se ater A sua dicio de homem.* ‘Mas, aprofundando a descrigdo do exercicio do poder, Xenofonte se vé le- 0 a retocar a linha divis6ria assim estabelecida. Parece, de fato, que o gover- trata com duas categorias de homens: os vencidos, com quem ndo se preo- € 08 poderosos, cuja colaboragao the € necessiria para assegurar seu pro- 0 poder, Destes tiltimos, esforca-se em garantir a fidelidade e, para consegui- -se a eles por beneficios, essencialmente materiais, pois se supde que aquele recebe pague em troca, como quer 0 lago social da philfa.4 Encontra-se, de um lado 0 chefe ¢ seus philo?, ocupados em uma relagio de troca en- dom ¢ contradom, do outro o resto da humanidade, os dnthropot, cujo no- pode a partir dai adquirir eventualmente a tonalidade mais social de pléhos assa) ou de dchios (a populaca).%° Ora, como a Andibase o mostra desde que re do grosso do exército,>° quem fala de populaca e de massa nao tarda de bestialidade. Eo caso de Polfbio, em um episédio notavel do Livro xv,5” que conta co- egipcios expulsaram Agitocles, companheito de Prolomeu 1 Filopator. ocles tornou-se todo-poderoso com a morte deste tiltimo, aproveitando-se o de Ptolomeu v Epifinio ser somente uma crianga. Estamos em 260 a.C ultidao (bos pollof, t0 pléthos, bo dcblos) € toda arcebatamento (orgé), toda also, toda tendéncia (bormé), mas falta-lhe a razao (Jdgos). Ela no sabe anali- sentimentos e, sobretudo, nao sabe fixar objetivo para os seus impul- rmanece encerrada em sua exasperacio: € uma onda, um fogo, ela urra, ir tem necessidade de um princfpio de conduta ( présdpon) que nao pos- Jevem-Ihe 0 jovem rei que este dé a autorizacao do castigo ou que um, ocador se designe involuntariamente como alvo para que ela aja. ocando assim a multidao, Polibio utiliza um vocabulério ¢ introduz uma sentacdo que devem muito a antropologia estéica. © homem ai € ao me: npo hormé, tendéncia natural, e /6gos. Ademais, no médio estoicismo — no 0 podemos recompor a partir dos Livros 1€ 1 de De officiis de Cicero GsOpon (em latim, persona) constitui “o principio interior de conduta ribui, a cada um, um papel em suas relagdes com seus semelhantes”’.35 © aos animais, ndo tém nem /dgos nem présdpon; estio reduzidos a bor- ra, a multido de Polibio aparece bem assim: € animal. De fato, uma vez ‘na agio, depois de “ter provado do sangue”, diz 0 autor, enfurece-se por “atacar violentamente” ¢ “dilacerar” suas vitimas. « mulheres, que por seu lado, Xenofonte classifica no grupo dos anthro- is do momento cm que sio isoladas em um grupo homogéneo, véem-se, clas, atraiclas para o lado da animalidade. Polibio consagra-lhes uma par- episédio egipcio. Retomando, em uma tonalidade que Ihes € pro- tada pela multidao, elas prometem provar do sangue de 41 __ Seus proprios filhos, tratam-se umas as outras de bestas selvagens (théréa) e, pre- ‘sas em uma massa j4 animal, vao ainda mais longe em todos os transbordamen- tos desta. Assim, por meio dos diferentes tipos de oposicao que acabam de ser evoca- dos, os historiadores apresentam uma humanidade cujo trago constante € que estd estruturalmente sempre prestes a sair de si mesma na acao, sempre em vias de tornar-se outra €, com isso, de romper a ordem da reparticao entre os seres que € uma forma da justica Ha, contudo, um historiador, Tucidides, que pensa a ordem nio tanto co- mo 0 respeito de certas diferencas entre o homem € o que nao € ele, mas como uma disposigao interna a propria natureza humana, que constitui entdo 0 objeto de uma definicao psicologica.*? No homem coexistem faculdades opostas: de um lado, 0 que € da ordem do racional, do /0gos, que governa a boa decisio (gndmé) ¢ inspira a capacidade de prever os acontecimentos ( prénoia); do outro, o impulso (orgé) eas paixdes (epithymiai) que movem o desejo (60s) e a esperanca (elpis), aliando-se para le- vat 0 homem a agir inconsideradamente e a tornar-se 0 joguete do acaso (fyleb2) no dominio do que escapa a raz0 (pardlogon). A ordem que, no individuo, faz teinar a dominagio do logos sobre as outras faculdades tem ‘como correspon- dente, na cidade, 0 controle da agio assegurado pelo conselheiro politico 20 con- ter os impulsos desarrazoados da massa dos cidadaos. Se é assim, os valores da tradic4o podem perpetuar-se*! ¢, num plano inteiramente diferente ainda, as re- lagdes entre as cidades podem escapar as mudangas caprichosas. O encaixe que, do individuo, passa a vida interna da cidade, depois as suas relagdes externas, desenha uma ordem do mundo grego que Tucidides deixa perceber apenas por meio de seu malogro, as guerras, externas e civis, e que, para 0 historiador, tal- vez jamais tenha tido outra realidade. Além da reparticao diferencial dos seres, além da dominagio de certas fa- culdades no homem e, além disso, na cidade e depois entre as cidades, € ainda a separagao dos povos das culturas que confere a0 mundo sua ordem, em ou- tras palavras, sua justica. Herddoto testemunha isso em primeiro lugar. Conce- de, com efeito, uma grande atengio a reparticZo das diversas comunidades cul- turais na superficie da Terra, ela propria bem dividida. Os gregos ocupam uma Parte da Europa € se repartem em cidades que tém cada uma suas leis e costu- mes. © mesmo se dé com os citas, no Norte da Europa, com os povos da Libia, ‘no Sul, ¢ com aqueles que partilham o territ6rio da Asia, Nesse quadro, as con- quistas imperialistas como as dos soberanos persas, que visam transgredit as fron- teiras geograficas ¢ colocar os povos sob uma mesma dominacao, sio da alcada da mistura* e da desordem, portanto da injusti¢a. O que se denomina corren- temente como a etnografia ¢ a geografia de Herédoto pode entao ser interpreta- do como uma maneira de definir 0s povos ¢ de fixar, para cada um, um lugar em um espaco fisico ele proprio bem dividido.? Inversamente, para Xenofonte, Polibio, assim como para Diodoro de Sicilia € Dionisio de Halicarnasso, a ordem € sinénimo de reunio dos povos sob uma 42 le, uma tinica arch, uma tinica dominagao (hyperoché). Por certo, idera que isso vale essencialmente para a Asia, pois, esclarece ele, os povos, “diz-se, so auténomos ¢ independents uns dos outros” ;** erdade que, aos seus olhos, permanece intangivel a fronteira que separa dos barbaros. Mas, para Polibio, por exemplo, essa separacio jé nao pelo menos nao mais de maneira absolutamente estruturante para a © mundo, que doravante cortesponde a coincidéncia entre a extensio jo romana e a da terra habitada. A Fortuna, que € também Justica,*? anos seus instrumentos para unificar assim 0 mundo. agao a ordem do mundo concebida sob a tripla forma da separacio dos seres vivos em primeiro lugar, da hierarquia das faculdades ps do homem, com seus corolatios na organizacio da cidade e das rela- as cidades no mundo grego em seguida, da reparti¢ao dos povos na da Terra enfim, 2 guerra revela-se, nos historiadores, de uma profun- léncia dos limites da Asia para ir submeter outros povos pelas armas e fundir it6rio no do Império Persa. Quanto a Guerra do Peloponeso, segundo es, se mo conhece trégua, a despeito do que acre: etes que o historiador contradiz,*® se suscita, atiga guerras civis e delas enta a0 mesmo tempo, € porque a parte desejante do homem escapou lade da razdo para aderir a da esperanga desarrazoada ¢ da violencia. E, 2 vez, 0 que vale para os individuos vale também para as cidades. Pense- que diz Tucidides 20 meditar sobre a guerra civil que, gracas a guerra tae Atenas, eclodiu na cidade de Gorcira (1m, 82, 2 na guerra civil, viram-se muitos males abater-se sobre as cidades, como ocorre mo ocorrer4 sempre enquanto a natureza humana permanecer a mesma, 0S . todavia, aumentam ou se abrandam e mudam de forma segundo cada va- lo que intervém nas conjunturas. Em tempo de paz ¢ de prosperidade, as e os particulares tém um espirito melhor porque nao se chocam com idades constrangedoras; a guerra que suprime as facilidades da vida coti- na € um senbor de maneiras violentas (biaios diddskafos) que modela sobre acdo as paixGes (orgé) da maioria. por outro lado, a guerra se encontra também intimamente ligada a jus- om efeito, ela vem restabelecer a ordem ultrajada. Assim, € pela guerra, da em seu prdprio remédio, que os belicosos soberanos persas so re- dos aos limites da Asia €, com isso, aos limites da condi¢ao humana que nedida os levou a ultrapassar. entio, outra maneira de a guerra trabalhar pela justica, ela constitui o co privilegiado no qual se realiza a humanidade do homem tal como a Xenofonte. Ai se vé, com efeito, o chefe exercer a arte do comando na os soldados obedientes. Se ela dura, multiplica-se, amplia-se, propor- UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAIBA| SGT a Gelier, aires, ciona entio a prova de que a ordem reina no par fundamental formado por esse homem quase-deus que é 0 bom chefe € por esses dnthrOpoi que so as suas tropas. Enfim, motor da unificacao do mundo sob a égide do poder romano, ela serve aos designios da Fortuna/justica segundo Polibio ou & realizacdo de uma grande ¢ nobre empresa a qual vale a pena consagrar uma obra (Dionisio de Hali carnasso).*” ‘Compreender-se-4 facilmente que tal concepgao do mundo est4 apta a sus- citar uma ética da agio guerreira ¢ do comando militar-politico. Mas nao deve- ‘mos nos apressar muito em falar de ética, Pois 0 qué 0 leitor destes historiadores gregos encontra em primeiro lugar em seus textos depende mais do c6digo de conduta cristalizado em uma espécie de etiqueta do que de uma problematiza- cio vigorosa ¢ explicita dos princfpios da acto, Varios cédigos se deixam identificar. ‘Trata-se em primeiro lugar do cédigo de conduta militar que pode reduzir- se a uma exigéncia perfeitamente simples: “fazer 0 bem aos amigos € o mal aos inimigos’'; aquela mesma que, no comego da Reptiblica,'® Socrates se recusa a admitir como definicao da virtude. Ciro a invoca ao longo de toda a Ciropedia de Xenofonte,*® ¢ nao nos surpreenderemos, depois de ter examinado os lacos da guerra com a justica, de que tal regra possa ser, aos olhos de Polibio, “con forme as leis da guerra”.5° Mas 0s limites que convém dar aos maus tratamen- tos previstos nunca sao claramente fixados. “Reserva'se aos inimigos", diz seca mente Polibio,>! “o castigo que Ihes € devido."” Em outra parte, 0 historiador ndo se faz muito mais explicito. E declara: (..J tirar-Ihe fortalezas, portos, cidades, soldados [andras], barcos, colheitas, ¢ destrui-los € enfraquecer 0 adversario, reforgar sua propria situacao e sua agao: € 0 que as leis da guerra ¢ seus direitos (boi toi polemou ndmoi kai ta. touitou dikaia| nos obrigam a fazer.> Assim, tenta-se, como Alexandre, Grande, estar “exasperado” (exorgis- theis) contra o inimigo; eis que se destroem suas cidades, que se reduzem os ha- bitantes 4 escravidio. E, quando se esta colocado em circunstancias particular- mente dificeis, como Amilcar diante dos mercendrios revoltados, vai-se bem mais longe. “Todos os inimigos que cafam em seu poder”, conta ainda Polibio, “mandava-os matar em combate ou, se Ihcs cram trazidos vivos, fazia-os esma- gar por seus clefantes, nao vendo outra solugao para fazer desaparecer [apha- nisai] os rebeldes.’"> Uma tinica atitude permanece expressamente proibida: ata- car os deuses, seus santudtios ¢ seus suplicantes, quando se esta assim inteira- mente ocupado em “fazer mal aos inimigos”, pois s¢ sai do dominio reservado aos homens para avangar no dominio divino.*# ‘Tucidides, por sua vez, apresenta os lincamentos de um outro cédigo de conduta: 0 do homem politico, utilizando 0 caso bem particular de Péricles da democracia ateniense do fim do século v a.C. para examiné-lo. Ele se com- poe essencialmente de duas regras: nao se deixar corromper € gerir sua fortuna com toda a clareza, de um lado; postar-se firmemente na posigao que consiste 44 a linguagem da razdo € da coeréncia, reprimindo nos cidadaos o livre nto dos desejos € das esperancas inconsideradas que entregariam rapi- ¢ a cidade as reviravoltas da fortuna, de outro lado. nofonte aplica-se principalmente em definir a conduta do chefe, aja es- esfera militar, politica ou doméstica, € esforca-se em destacar os princi- suscetiveis de Ihe proporcionar a obediéncia voluntaria de seus subordi- ds, condi¢ao sine qua non do éxito de suas empresas, Moral € sucesso dem-se, entdo, ¢ algam a utilidade 4 condigao de valor cardeal.55 © tratamento que © historiador reserva a philanthrOpia se revela, a esse ito, muito significativo. Faz dela, com efeito, menos** um sentimento de ‘oléncia, e de simpatia em relagdo ao humano, como 0 encontraremos, ‘compensagao, atestado sem ambigiiidade na obra de Diodoro de Sicilia,>” que um meio de instaurar a pbilfa, em outras palavras, 0 laco social criado pela troca dom/contradom. O soberano usa, entio, da philanthrOpia para de seus préximos, dotados de uma forga suscetivel de ameacar seu po- , seus devedores ©, em troca de sua liberalidade, espera deles obediéncia -votamento, Se hé benevoléncia em relagdo ao humano, cla adquire entao ic4o bem especifica de reduzir a humanidade aos poderosos de que o rei necessidade € de se reduzir ela propria a um bem trocado segundo uma jlante contabilidade.>* Seriamos tentados a conferit a dimensio de um pensamento ético, no tan- 4s poucas regras evocadas no momento, mas 3 especulagio viva que se orga- mais ou menos amplamente, entre os historiadores, em torno de alguns va- s. Trata-se da epieikés, a uma 6 vez 0 eqilitativo, 0 racional ¢ 0 convenien- °° ao qual se encontram associados muitas vezes a picdade (éleos, ofktos), a \ciliago conclufda ao termo de negociagdes (bomologéa), a humanidade (pbi- ‘brOpta), no sentido de simpatia em relagao aos seres humanos, 0 perdio (sugg- mé), a docura (bemerétes, praidtes), a medida (metriotes). Arist6teles, na Etica a NicOmaco,® aplica-se em fixar o sentido da epieikés relagao ao do dikaion, assim constatando que, para o pensamento comum, eqilitativo se distingue do justo por dele designar uma forma superior, ¢ se na sindnimo de bom. Ora, isso, explica ele, nado deixa de colocar problema, pois, de duas, uma: ou o eqiiitativo ¢ 0 justo so diferentes ¢, nesse caso, um dos dois nao € bom, ou entio so ambos bons ¢ sio idénticos. Por isso, Aristote- les propde ver no eqilitativo 0 justo que vem completar o justo legal, porque a Ici, cnunciado geral, nao diz nada dos casos particulares. Assim, a definicao que a Retérica da do julgamento eqiitativo manifesta toda a complexidade de uma apreciacio que faz intervir parametros por certo claramente repertoriados, mas to numerosos quanto sutis, se elabora sem guia explicito, em uma cons- tante preocupagao com a nuance € com o esforgo sobre si mesmo.*! Nao sera de surpreender o fato de que os historiadores se situem delibera- damente do lado do pensamento comum que Arist6teles tenta elucidar e retifi- car; € isso tanto antes como depois dele; neles, a marca do advento ¢ da difusao do pensamento aristotélico se traduz, essencialmente, por referéncias mais nu- 45 merosas 4 epieikés nas obras pOs-aristotélicas do que nas obras anteriores, mas nd muito por levar em conta a definicdo que este apresenta da eqitidade em relagdo ao justo legal. Para eles, a eqiiidade sempre foi® e continua a ser uma forma superior do justo (dikaion), 0 qual nao se reduz, ao justo legal, em que conviria distinguir um justo proporcional ¢ um justo corretivo, mas que perma- nece majoritariamente 0 que o autor da Ktica chama a reciprocidade (to antipe- ponthds) ou justica de Radamanto, citando para defini-la um fragmento de He- siodo: “Sofrer 0 que se faz aos outros sera uma reta justica [dtke itheia)". Em compensagao, a nogao de philanthropia, enquanto sentimento de be- nevoléncia em relacao aos seus semelhantes humanos, que, a partir de Polibio, vem ocupar um lugar notavel nas reflexdes dos historiadores sobre a acio, € muito fugidiamente atestada no pensamento anterior ¢ se deixa identificar como um dado mais recente da ética enquanto disciplina filos6fica. Arist6teles, com efeito, consagra-Ihe apenas um espaco bastante reduzido,® mas a escola peripatética e, em particular, Teofrasto® contribuem para elaboré-la a partir do século ut a.C : Em torno desses dois polos que so 0s valores de eqiiidade em primeiro lugar, depois de simpatia em relagdo 4 espécie humana, os historiadores esbo- cam uma reflex3o sobre a moderacdo que eu ficaria tentada a relacionar, a titulo de hipétese, com a ambivaléncia que conferem 4 guerra em relacdo a justiga € asua concep¢ao do dikaion. Ao fazer a guerra, corre-se sempre 0 risco de passar da ordem do justo desordem do injusto, porque a guerra € da competéncia tanto de um como do outro ¢ porque 0 dikaion do historiador se pretende ma- joritariamente uma exata retribuicdo, uma estrita compensacio, uma resposta 20 mesmo pelo mesmo, ao passo que tal equilibrio se mostra de uma extrema fragi- lidade. A partir dai a ago politico-militar pode tornar-se problematica na histo- riografia, ainda que 0s autores considerados permanecam sempre bastante lacé- nicos sobre as questdes assim levantadas. Desse modo, ocorre que eles proprios ou personagens de seus relatos con- testem a lei demasiado estrita e brutal de taliao em nome da eqiiidade que, esta sim, deixa lugar as explicacdes, aos compromissos, 4 piedade € ao perdio. Heré- doto, por exemplo, relata o didlogo entre Periandro, tirano de Corinto que quer ceder 0 poder a seu filho, € este, Licofron, que 0 recusa, ameacando assim 0 futuro do poder das Kypsélides, Licofron pretende, desse modo, punir seu pai por ter matado sua mie, Melissa. Periandro, por seu lado, no nega seu crime; contenta-se em pedir a Licofron que prefira (protithénai) a estrita justiga (On dikaion) uma conduta mais eqiiitativa (ta epieikéstata), em suma, que se mostre tratavel e, com isso, chegue a uma justica mais perfeita. Em Tucidides, véem-se os mitilénios, que quiseram emancipar-se da tutela de Atenas € se encontram em mi posi¢ao diante dos navios desta, propor aos estrategos “‘negociacées, se possivel, eqiitativas” (homologiai tin’ epieikoi). Os revoltados esto vencicos ou a ponto de sé-lo; um acordo segundo a eqitidade viria oportunamente abrandar 0 rigoroso mecanismo das represdlias que, na as- sembléia, 0 dirigente popular Cleon nao deixa de reclamar, em seguida, em no- me do justo (dfkaion).©” 46 €o proprio historiador que, claramente, indigna-se com o fa- G2 MacedOnia queira pagar na mesma moeda (tos bomofois) dos pelos etdlios, a partir do momento em que levou van- MHsso o rei € seus prOximos dizem agir justamente (dikaids) p (atbedntos), mas o autor opde-lhes o exemplo de Filipe u da wencido os atenienses na batalha de Queronéia, ele nao agiu tanto quanto pela mansuetude [epietkeia] e pela generosidade (philanth- smaneiras, Nao acrescentava a cOlera as suas facanhas ¢ conduzia ‘25 querelas apenas até © momento em que podia aproveitar oca- ar sua docura (praifiés| ¢ sua nobreza [kalokagathial.* sesclarece: de bem no devem fazer a guerra a seus ofensores para os destruir smas para os corrigir ¢ fazé-los emendar-se de suas faltas, nem atingir fempo os inocentes € os culpados... £ proprio de um rei comandar © bem [etd pofoiinta] a todos,° amado por sua beneficéncia € por sua benevoléncia [philantbropia). ‘enfim, entre outras referéncias, o grande discurso que Diodoro a0 siracusano Nicolaus, pai de dois filhos que os atenienses, do- 2 mercé de seus inimigos sicilianos, mataram. Contra toda ‘yelho nao se deixa levar a exigir a punicao rigorosa dos culpados, mansuetude dos siracusanos. Com efeito, eles partilham com os condigio dos homens, sujeitos aos caprichos da Fortuna.”! em, Nicolaus opGe a estrita vinganca (tim@rfa), que seria uma, resposta a uma injustica (adikfa), e a mansuetude (epiefkeia), a s) ¢ 2 humanidade (philantbropfa) inspiradas pela consciéncia de como 0 inimigo que mantemos em nosso poder. Diodoro, falando proprio nome, nao deixa, por scu lado, de tratar muitas vezes desse mes- a. Outro caminho parece aberto 20 questionamento ético pela aspiracio ma- estada As vezes pelo historiador de destacar seu pensamento e sua pratica dos profano e dos protagonistas dos acontecimentos que relata, de encontrar em a defasagem em relagio a eles uma forma de autoridade. Enquanto 0 cédigo oral mais compartilhado pretende que se faca o bem aos amigos ¢ 0 mal aos gos, Polibio atribui a historia um carater proprio (hos), que consiste em esquecer esse tipo de preceito para detectar 0 elogio ou a condenagao nao em cao dos protagonistas, sejam eles amigos ou inimigos, mas de scus atos. Para so a verdade € tio util ao historiador quanto a visio aos seres vivos. Mas, se, \ramente, tanto nele quanto nos outros historiadores, a verdade nao consti- ‘tui o objeto de uma reflexio epistemoldgica, nem mesmo de exposigdes meto- dolégicas sistematicas,” Polibio acrescenta as observacées de método, com que semeia sua obra a fim de apoiar suas pretens6es de dizer a verdade, uma espécie 47 bio, € o proprio historiador que, claramente, indigna-se com o fa- v da Maced6nia queira pagar na mesma moeda (tois homoiois) petrados pelos etdlios, a partir do momento em que levou van- eles. Nisso o rei € sus préximos dizem agir justamente (dikaids) 0 (kathedntos), mas o autor opde-Ihes o exemplo de Filipe u da de ter vencido os atenienses na batalha de Queronéia, ele nao agiu tanto quanto pela mansuewude [epierketa] € pela generosidade [philanth- de suas maneiras. Nao acrescentava a célera s suas facanhas e conduzia eas querelas apenas até 0 momento em que podia aproveitar oca- de mostrar sua docura [prailes] e sua nobreza [kalokagathia). bio esclarece:® ns de bem nao devem fazer a guerra a seus ofensores para os destruir ilar, mas para os corrigir ¢ fazé-los emendar-se de suas faltas, nem atingir smo tempo os inocentes ¢ os culpados... E proprio de um rei comandar irigir fazendo o bem (ei! potodinta] a todos,” amado por sua beneficéncia ‘gesfa] ¢ por sua benevoléncia (philanthropia). 10s, enfim, entre outras referencias, o grande discurso que Diodoro ia atribui ao siracusano Nicolaus, pai de dois filhos que 0s atenienses, do- vencidos ¢ 4 mercé de seus inimigos sicilianos, mataram. Contra toda ctativa, o velho nao se deixa levar a exigir a punicao rigorosa dos culpados, aa mansuctude dos siracusanos. Com efeito, eles partilham com os es a rude condicZo dos homens, sujeitos aos caprichos da Fortuna.7! Jonga passagem, Nicolaus opde a estrita vinganca (tim@réa), que seria uma (dékaion) resposta a uma injustica (adikéa), e a mansuetude (epierkeia), a (éleos) € a humanidade (pbilanthropia) inspiradas pela consciéncia de em, Como 0 inimigo que mantemos em nosso poder. Diodoro, falando prdprio nome, nao deixa, por seu lado, de tratar muitas vezes desse mes- ‘ma, ‘Outro caminho parece aberto a0 questionamento ético pela aspiragio ma- estada 4s vezes pelo historiador de destacar seu pensamento e sua pratica dos -profano € dos protagonistas dos acontecimentos que relata, de encontrar em sta defasagem em relacao a eles uma forma de autoridade. Enquanto 0 cédigo mais compartilhado pretende que se faga o bem aos amigos ¢ 0 mal aos migos, Polibio atribui a historia um carater proprio (thos), que consiste em quecer esse tipo de preceito para detectar 0 elogio ou a condenagao nao em Jo dos protagonistas, sejam eles amigos ou inimigos, mas de seus atos. Para a verdade € to itil a0 historiador quanto a visio aos seres vivos. Mas, se, iramente, tanto nele quanto nos outros historiadores, a verdade nao consti- © objeto de uma reflexdo epistemolégica, nem mesmo de exposig6es meto- oldgicas sistematicas,”? Polibio acrescenta as observagdes de método, com que ia sua obra a fim de apoiar suas pretensdes de dizer a verdade, uma espécie 47 de moral da verdade, da qual ndo mostrard como extrair os preceitos, mas que tem como resultado colocé-lo acima da matéria de sua obra ¢ dos outros historiadores.73 Problematicos, porque reversiveis e instiveis, os mecanismos do justo ¢, especialmente, seu movimento pela ¢ na guerra cieixam entrever no seio das obras, hist6ricas a possibilidade de uma reflexdo ética sobre os principios da agio ‘politico-militar, Mas ai ha apenas um timido esbogo: a pregnancia da justiga da reciprocida- de, dos cédigos morais estabelecidos e a estruturac3o dominante da nocao de homem impedem os historiadores de penetrar plenamente nesse caminho. A fraqueza do questionamento do dikaion como reciprocidade € de seu co- rolério, a guerra, aparece como traco dominante das obras que estudamos. O episédio de Periandro e de seu filho Licofron é, salvo erro de nossa par- te, 0 Unico desse registro que se possa citar em todas as Histérias de Herédoto. Xenofonte, como vimos, distingue muito fugidiamente a nogdo de pbilanthrd- pla da idéia de mansuetude. Além disso, ignora completamente a de epieikés ¢ acritica do dikaion que ela eventualmente permitiria fazer. Dionisio de Halicar- asso, por s¢u lado, referindo-se abundantemente a eqiiidade e a humanidade, nao Ihes confere muito maior funcao na intriga de seu relato, contrariamente ao que faz Diodoro. Ademais, se nao ocupa mais que uma posigAo marginal na maior parte dos historiadores, a ética da moderagao que se desenha timidamente em torno da epieikés ¢ da philanthropia encontra-se, por uma reviravolta r4pida, recuperada pelos outros historiadores na légica da reciprocidade que rege a concep¢ao do- minante do dfkaion ¢ acaba por confundit-se, como este iiltimo, com a idéia de ordem e de estabilidade do mundo, em detrimento da de eqitidade. Diodoro de Sicilia testemunha claramente esse retorno da eqilidade 3 esfera do justo quan- do, tentando fazer a distingao entre infelicidade (atychia) e injustica (adikia), declara:”* Ha uma grande diferenca, em minha opiniao, entre a infelicidade e a injustica ¢ deve-se adotar, diante de cada uma, uma conduta apropriada, como convém a homens de bom conselho. Assim, um homem que falhou sem ter cometido nenhuma falta grave pode, com justica (dieaios}, encontrar refiigio na compai- io [éleos] que cabe a todos os desafortunados. Mas aquele que deu provas de uma cnorme impiedade ¢ que cometeu atos de violencia ¢ de crueldade “que se deve calar”’, para empregar a expresso consagrada, coloca a si proprio fora do alcance de tal humanidade [pbilanthrOpia). Pois é impossivel que aquele que se mostrou cruel em relacdo aos outros possa encontrar a piedade quando, por sua vez, acontece-the de falhar, ou que aquele que se esforcou por destruir a compaixdo dos homens possa encontrar refiigio na cleméncia (epiefeia] dos outros, £ justiga, com efeito [dikaion gar esti], aplicar a cada um a lei [n6mos] que ele estabeleceu para os outros.”> Tal tendencia esbogou-se desde Tucidides, nas palayras de Cleon. Diz este iltimo a propésito dos mitilenios: 48 iedade (éleos], € justo [dfkaios] que com ela se paguem os seus semelhantes, homens que nio retribuirZo essa compaix4o [antotkoiintas] e cuja hostili- nos € conhecida desde sempre... A clemencia [epiekeia}, enfim, aplica-se cs com quem se pode contar no futuro...” hante (0 que faz da guerra a melhor resposta a guerra), tudo para que wrada a situaco anterior ¢ se permanega, assim, na ordem do semelhante. epieikés, que parecia uma contestagio da estrita contabilidade do dikaion, mbém por entrar na esfera da troca homogénea, de maneira que a consi- 9 da eqilidade que levaria a cleméncia ndo poderia manifestar-se sem con- sem introduzir, assim, algum desequilibrio. ‘© que, em Tucidides, nao é mais que a reflexdo fugidia de uma persona- resto contestada, torna-se um tema fundamental, amplamente assumido 6prio historiador, em Diodoro de Sicilia: dar demonstragio de eqitidade, de um senso da justiga que sabe levar em conta a cleméncia, com 0 risco ficar a exata retribuigdo, tem sempre um efeito benéfico. Assim como thrOpia de Xenofonte, ela assegura ao vencedor a adesao € a fidelidade cidos € dé mostras de constituir uma til operacao politica, que permite onomia de combates destruidores.”” lém disso, a estabilidade do mundo nao se ressente mais do desequilibrio qual que poderia ser provocado pela auséncia de resposta a agressao ou a ofen- partir do momento em que o uso da cleméncia se torna um dos mecanis- essenciais da constituicao ¢ da conservagao dos impérios com isso contri- a unificagao do mundo sob uma mesma autoridade. Os lacedeménios m a prova disso pela negativa. Enquanto seus ancestrais haviam mantido sua emonia tratando honrosamente (epicik0s) ¢ humanamente (philantbropds) ‘stiditos, diz Diodoro, eles se conduziram dura e violentamente em relacdo saliados, empreenderam guerras injustas contra os gregos, de modo que, ora dos reveses, aqueles a quem haviam causado dano ajudaram em sua der- 78 Antes deles, os atenienses haviam feito o mesmo.” A grandeza de Ale- 0s que se mostrou € se mostra mais eficaz.*! mesmo a ética propria ao historiador, de que Polibio mostra 0 cami- deixa de estar, ela também, integrada, em Diodoro, ao sistema em que a : da reciprocidade e da eqitidade se confundem com a eficdcia, para asse- forca e a grandeza dos impérios, A historia deve consagrar-se a conferir Os clogios ¢ justas condena¢des (dikaios), diz Diodoro, mas, a esse titulo, a de agora o historiador se ocupa em saber em que medida os protagonistas acontecimentos, no caso os lacedeménios, mostraram-se suficientemente itativos” ¢ “humanos” para conservar sua hegemonia, Disso nao foram ca- ; So, portanto, condenaveis 49 E que a justica constitui uma ordem superior que nao se discute. Sc diferen- tes apreciagdes das situacdes vém a luz, se aparece a possibilidade de um confli- to no justo, este tende a resolver-se por outros caminhos que nao a problemati- zagio ética, Em Tucidides, por exemplo, os incessantes debates que opdem os protago- nistas dos acontecimentos em torno do que é preciso entender por conduta jus- ‘a sio classificados sob a rubrica dos fatos de discurso nos quais a linguagem ¢ 08 raciocinios capciosos tém livre curso. O historiador nao coloca o justo em debate, é a perversao do ldgos que ele poe em cena. Herédoto € Polibio nao podem, por seu lado, fazer entrar radicalmente a justica/ordem em conflito com outras formas do justo, pois tudo, mesmo 0 que, tomado isolacamente, poderia eventualmente se prestar A discussio, concorre para o término desta. Assim, nas palavras do préprio Polibio, o Senado romano nao age segundo o justo mas segundo o titil, a0 privar o jovem Demétrio, filho de Seleuco, da realeza que Ihe cabe.*’ Nao € menos verdade que, na escala do mundo, os romanos sao 0 instrumento da Fortuna, que € também Justica em sua obra de unificacao. © questionamento se mostra tanto mais dificil quanto o historiador deve a uma s6 vez sua capacidade de dar sentido ao curso dos acontecimentos ¢ a autoridade da leitura que faz destes a posicao que ele se atribui, do lado da justi- ¢a que ordena o mundo Herddoto acompanha a troca das ofensas € das reparagdes que balizam 0 curso da historia das relagdes dos soberanos ¢ dos povos barbaros entre sie com 0S gregos € se poe a escuta dos ordculos que anunciam que as derrotas persas, por ocasiao das guerras médicas, saldaro a conta de todas as injusticas que per- maneceram impunes. Tucidides adota 0 ponto de vista do tinico poder unifica- dor de seu tempo, a guerra, mas esta, como vimos, nunca faz mais do que dese- nhar em negativo o que deveria ser o pleno triunfo da justica, isto €, das leis assim como dos valores comuns dos gregos vivendo enfim em boa inteligéncia, Xenofonte vé tudo com 0 olhar do chefe, esse ser prdximo dos deuses que, so- zinho em um mundo ademais em pleno tumulto,™ € capaz de criar em torno de si, gracas aos recursos de sua arte do comando, zonas de ordem e de estabili- dade. Polibio, enfim, abre o caminho para todos aqueles que, assimilando a For- tuna a Justiga, fazem dos romanos que unificaram 0 mundo sob seu dominio o instrumento da realizagao de seus designios, e calcam toda a légica de sua obra naquela que atribuem a essas poténcias de ordem.® Se nao se apéia na justica/or- dem do mundo, com efeito, o historiador nada pode compreender nem afirmar que nao seja imediatamente contestavel; ndo poderia, portanto, it muito longe em uma reflexao sobre os valores da acio humana que se arriscasse a solapar os fundamentos de uma autoridade da qual tira toda a sua Enfim, outro obstaculo a desenvolvimento de uma reflexao ética na parte da historiografia grega aqui estudaca me parece residir na maneira pela qual a natureza humana af € definida; entendamos; por uma série de oposigdes (ho- mem/deus, homem/animal, homens/chefe, amigos/homens ou multid’o) ou, co- 50 na psicologia de Tucidides, pela dualidade entre as faculdades racionais ¢ jos, esperancas ou impulsos irracionais. Segue-se, com efeito, que todo plema levantado pela conduta dos agentes da hist6ria nao sera colocado, de- olvido e estudado como inerente a natureza humana, mas imediatamente wido pela eviccao do agente para fora da natureza humana ou, outra solu- pela sibita redugao desta a parte desejante e potencialmente ma desse agente. Assim, os mercenarios ou a multidio de Polibio, a partir do momento em © cometem atrocidades, massacres ou torturas, tornam-se animais. Por outro 0, Tucidides, que d4 a ver um mundo grego em plena crise, tende a fazer coin- anatureza humana com as pulsdes incontroladas da alma, desde que se tra- de evocar as violéncias, os distirbios e as perversées que tém livre curso na ra, exterior ou civil No texto dos historiadores, a natureza humana € estruturada de tal maneira nao pode encerrar um questionamento ético sobre os principios da ac4o homens. No lugar de uma ética, encontra-se entio um jogo de evicgdes se- ado o qual o agente humano que age mal deixa de ser humano ou, versio de idides, 0 agente humano que age bem nao o € mais inteiramente. Tal me parece ser a maneira pela qual os historiadores gregos elaboram e abinam as nogoes de humanidade, de justica, de politica e de guerra para dar ma ética suas caracterfsticas € seus limites. Nese conjunto, como se tera ob- do, nao hd lugar para um pensamento dos direitos do homem concebidos no um corpo de principios destinados a reconhecer e a proteger a humanida- do homem, quer ele seja agente da hist6ria, como se viu, quer esteja em posi- » de padecer. Os historiadores guardam, com efeito, um siléncio total sobre jtimas, mortos dos combates, torturados, massacrados, que afloram constan- nte 4 superficie do relato sem jamais ai serem levados em conta. Por outro lado, adotando o ponto de vista da justia de reciprocidade, os storiadorcs compreendem 0 mundo ¢ nele véem uma ordem. Por certo, no fazer com que esta diltima nao remeta aos valores de justia tais como em ser interiorizados como epieikés ou como dikaiosyne** ¢ com que nao bra, no proprio coragao da nogao de justo, a falha que separa a compreensio justifica¢do, Mas parecem escolher deliberadamente ignorar essa falha. Tradugdo de Maria Lticia Machado Consuttoria de Mary Lafer para os termos gregos Arist6teles, Politica 1, 1253 a 29. B) Etica a Nicémaco, livto v. G)M. Vegetti, L'etica degli antici, Roma-Bati, Laterza, 1989, observa (p. x) que Aristéte- Senece [...] um pofito de vista filos6fico nitido sobre temas morais, inclusive de origem ex- pséfica, ¢ uma clara referencia analftica na complexidade ¢ no fervor muitas vezes constata- os debates éticos. Seri justo, portanto”’, afirma o autor, “atribuir-the um papel de alguma a-hist6rico, ainda que, naturalmente, essa meta-historicidade deva set interpretada”... ‘Si (4) Btica a Nicomaco, 1, 1094 b 15-6. (5) Que se pode traduzit aproximadamente por (61,2, 154,2,7 (9) Ver, 2 © 144 para a Antiglidade; 1, 77, 91 para a permanéncia dos usos ¢ a recusa de qualquer novidade na matéria {& Citamos aqui tadugio que N. Loraux, “Thucydide et la sedition dans les moss", Ov dernt di Storia 23, 1986, p. 103, di de uma frase de Tucidides m, 82, 4, de acordo com 25 cn Glustes de J, T. Hogan e J. Wilson, e que ela comenta assim: “Em qualquer circunstancia, 08 facciosos truncaram a boa avaliacdo contra a ma” (p. 104) (9) Giropedia, vit, 1, 45. (10) Fosa palavea traduz 0s lagos da estabilidade com a guerra, que a assegura seja de rncira defensiva, seja, no mais das vezes, pela ofensiva e pela conquista. Ver, por exemplo, discurso de Crisantas, Ciropedia, vit, 1, 2-4. (11) Ciropedia, 1, 1, 3, $8.5 Yul, 7,7, (02) Polibio, Histérias, vi, 1, 1-35 18, 1-2. (13) Aristoteles, Etica a NicOmaco, 1130 b 65s. (14) Guerra do Peloponeso, 1, 82, 2. (15) Ibidem, 1, 1, 2 (16) R. Koselleck, Le futur passé. Contribution @ la sémantique des temps bistorian fiditions de Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, Paris, 1990, dedica um capftul Hlistoria magistea vitae” (pp. 37-62), a mostrar como, na época moderna, “‘o substrato natu do tempo desaparece’ (p. 48) ¢, com ele, aidéia de que, em virtude da permanéncia da nate ca bumana e da semelhanga potencial de todos os acontecimentos, © passado contém { oe meios de compreensio do que ocorte, A filosofia contribui para fazer apreendet a hist como Geschichte, isto €, como processo singular, que apenas em seu progresso contém aq om que educar 0 genero humano, enquanto o passado, uma vez tornado passado, perde forca. Mas, na hist6ria asim concebida, a experiénela presente "sc decompOe em uma infin de de unidades temporais distintas” (p. 49). Pode-se acrescentar que trabalho do historias ‘consiste entio em compé-las, em busca, se no do processo global, pelo menos de proc fparcais mais amplos, Daf um deslocamento da atengao para o que muda diante de nds © 6 que R. K. chama de “uma qualidade temporal pr6pria" (p. 42) da histéria nova (17) Voltaremos a coineldéncia que o historiador se esforga em estabelecer entze seu to de vista e © dessa justiga (18)Note-se, entretanto, que o autor da Guerra do Peloponeso pode, eventualmente, di por exemplo evoca populagdes barbaras como os tracios (v1, 29), sugerir enfaricaments 6 gosto destas pelo sangue ¢ pelo massacre as faz transpor 0 limiar que separa os homes animais. (19) J P. Vernant a colocou em evidéncia no campo religioso ao estudar 0 sacxficio s grento de consumo alimentar. (20) 1, 122. (21) O tema da Némesis, vinganca clumenta dos deuses,€ ilustrado em Herédot0 pelo. episodio da morte de Aus, filho preferido de Creso, esse rei lidio que queria ser proclamado cinals feliz dos homens, especialmente porque era muito rico (1, 34). Ele se esfuma em Tuctdi Ges e Xenofonte, mas renasce na obra de Polibio e de Diodoro de Sicflia em ligagdo com a preg: nancia do tema da Fortuna (tykb@) € de suas imprevisivels reviravoltas (22) Hyper antbropon: “‘acima de um homem" (Vl, 7, 3). (23) 1, 34 (24) m, 39 ss. 5) 1, 207 sss 26) v, 8, 1-12, 7. @7 11,2, 28) w, 23. "0 justo” € “o equitativo”. |, 27-34; Vu, 33 88. 52 (29) mt, 23. 0) Giropedia, t, 1 ss. G1) Ver, por exemplo, Ciropedia, 1, 1, 3, Econdmico, xxi, 1 88. ou Andbase, it, 1, 38, (32) Andbase, m, 2, 9; v, 2, 8; 3, 4 (Xenofonte); Helenicas, m, 4, 15 (Agestlau). G3) Vimo-lo anteriormente na prece que Ciro dirige a Zeus antes de morzer. 34) Sobre esse valor de philos ¢ de seus derivados, ver 0 attigo clissico de E. Benveniste, ibulaire des institutions indo-européennes 1, Editions de Minuit, Paris, 1969, pp. 335-53. (35) Ciropedia, vi, 1, 45; vin, 2, 1 (36) Andbase, v, 7, 32. 7) xv, 2436. G8) B. Brehier, “Une des origines de ’humanisme moderne”, Etudes de philosopbie an- e, p. 133 (39) xv, 29, 7, (40) Se quisermos apreendé-la, € preciso proceder a uma montagem de textos entre os s figuram principalmente as andlises que 0 historiador faz da atividade de Péricles, 0 diri- tc politico gue ele louva com menos teserva, as reflexdes que Ihe s4o inspiradas pela guerra fl de Corcira e 0 discurso que atribui a Diodoro na justa que opde este tiltimo a Cleon, lider [povo, a propésito do tratamento 2 infligir as mitilénios que tentaram escapar a0 dominio Atenas. (41) Pensemos no que Péricles diz no discurso de adverténcia que ditige aos atenienses is da segunda invasio da Atica pelos peloponesos (n, 62). (42) Ver a evocagio do ex€zcito de Xerxes transpondo o Helesponto (v1, 40. 41, 14) 0u, riormente (iit, 88 58.), 2 enumeracio das provincias do império de Dario. (43) Esse € um dos sentidos que é preciso dar, parece-me, 3 polémica que Her6doto esbo- (a, 16) contra aqueles que, equivocando-se sobre a natureza do delta do Nilo, procedem a ‘m4 partilha do espaco terrestre (44) Giropedia, 1, 1, 4. (45) Polibio, xv, 20, 6; xt, 10, 2-4. (46) ¥, 26. (47)1, 3. Ver a esse respeito o preficio de F, Hartog a Dionisio de Halicarnasso, Les Anti- romaines, livros 1 ¢ 11, trad. V. Fromentin e J. Schabele, Les Belles Lettres, Paris, 1990, icio retomado em uma versio mais longa em “Rome ct la Gréce. Les choix de Denys d’Ha- nase", Actes du Colloque de Strasbourg, 25-27, out. 1989, pp. 149-67. (48) Repuibtica, 332 0 ss. (49) 1, 6, 24 s5., por explo. (50) v, 9,1 (Dv, 10,8 (52) v, 11, 3. (53) 1, 182, 2. (54) Polibio, v, 9. (35) Ciropedia, vu, 5, 25; vu, 7, 45; vi, 2, 1, por exemplo, (56) Uma tnica passagem (Giropedia, vi, 5, 73) pode aparecet como uma excegao. Ape- . a philanthrBpia ai adquire a acepcio de humanidade sem que o episddio confira a essa sigio a menor necessidade ¢ sem que, ademais, a obra de Xenofonte Ihe conceda também menor valor operatério. Ciro acaba de tomar Babildnia € ceclara: “Amigos ¢ aliados, expri- 108 20s deuses nossa maior gratidZo por nas ter dado o que julgivamos digno obter. Pois, jentc, {mos UM vasto € rico territério €, Com ele, uma populacdo que, trabalhando-o, alimentard. Além disso, temos casas e, nessas casas, todo um mobiliério. F que nenhum ‘v6s vi pensar que com isso detém os bens de outrem; com feito, € uma lel eterna entre ‘0s homens que, quando uma cidade ¢ tomada na guerra, as pessoas ¢ os bens da cidade -ncem aqueles que a tomaram, Portanto, néo é injustamente que conservareis 0 que con- eis, mas, se permitirdes aos habitantes guardar seus bens, é por benevoléncia que nao tirareis deles” (57) Cf. infra, 5S (58) Ver, por exemplo, Ciropedia, vi, 1, 45; 2, 1 56. (59) Reencontra-se nessa palavra a raiz de efkon: a imagem, a aparencia, (60) ¥, 1337 @ 31 ss. (61) “Ser eqditativo é ser indulgente com as fraquezas humanas; € considerar nao a lei mas o legislador; nao a letra da lei, mas 0 espirito daquele que a fez; nao a aco, mas a intengo; ndo a parte, mas o todo; no 0 que o acusado € atualmente, mas o que foi sempre ou 2 maior parte do tempo. £ também se lembrar o bem que nos foi feito, de preferéncia ao mal; os benefi- cios que recebemos, de preferéncia aos servigos que prestamos. F saber suportar a injustica. E consentic que uma desavenca seja resolvida antes pela palavra que pela acio”... (Retdrica, 1374 b 10-20). (62) A nogao é apenas fracamente atestada em Polibio (nove ocorréncias). E preciso espe- rar Diodoro de Sicilia para que ela intervenha macigamente. (63) Pelo menos desde Her6doto, que tame como ponto de partida de meu estudo, (64) Politica, n, 1263 b 15; Poética, 53 a 2, 56 a 21 (65) Cicero tet-se-ia inspirado em seu per? philfas no De amicitia. Os dois trechos dele transmitidos por Porfirio concedem um amplo lugar a idéia de parentesco entre os homens, quaisquer que sejam, ¢ 0 resumo da ética peripatética do est6ico Arius Didimo igualmente, Ver a esse respcito A. -J. Voelke, Les rapports avec autrui dans la peilosophie grecque d’Aristote @ Panétius, Vrin, Paris, 1961, pp. 70-1 (66) Historias, m, 53. (67) Guerra do Petoponeso, m, 4, 3. Pata o discurso de Cleon exigindo 0 castigo dos mi- Uilénios, ver mi, 40, 3: 0 dikaion ¢ a epiefkeia ai s40 claramente opostos. Mas € preciso apressar-se em assinalar que, no debate que opde Cleon € Diodoro sobre a sorte a ser reservada aos mitilé- nnios, ndo € o problema ético, inutilmente sugetido pelos vencidos, que € discutido, mas o do interesse de Atenas € de seu império. (68) ¥, 9, 6: ¥, 10,1 9) v, U1, 5. (70) © cédigo guerreiro que pretende que se faca o bem (e® pofeir ) aos amigos e o mal 05 inimigos € aqui inegavelmente questtonado. 7) xm, 19-27. (72) Atese de P. Pedech, La méthode historique de Polybe, Les Belles Lettres, Paris, 1964, constitui uma importante tentativa de encontrar a coeréncia das observagoes de método acu- ‘muladas por Polibio, mas isso ndo significa que estas se apresentem de imediato ou mesmo que sejam concebidas como “um método”. (73) “Em qualquer outta circunstancia, nao se desaprovaria, sem dtivida, esse genero de honestidade (epieikeia) (a que leva Fabio Pictor ¢ Filinos a escrever histérias parciais): € um dever para um homem de bem amar seus amigos ¢ sua patria, partilhar os Odios de seus amigos em relaclo 20s seus inimigos. Mas, se se tem a consciéncia do carter proprio da histérka, € pre- cciso esquecer todos os sentimentos desse género e freqientemente cobrir de elogios os seus inimigos, quando seus atos 0 exigem, ¢ muitas vezes também criticar e condenar severamente aqueles de seu partido quando seus ecros de conduta o justifiquem (1, 14, 45)... £ preciso en- Wo, fazendo abstragio dos protagonistas, pautar apenas pelos atos, nas obras hist6ricas, as ob- setvagies ¢ os julgamentos que sc impdcm (1, 14, 8)... Pois da mesma maneira que um animal privado da visio nao serve absohutamente para nada, assim também a histéria privada da verda- de se reduz a um relato sem utilidade fi, 14, 6.” (24) xxv, 18, 1 (75) Ver também xxv, 15, 3. (76) Guerra do Peloponeso, wt, 40, 3, 1 € 7. (77) Aiidéia adquire tal forca na Bébltoteca bistérica que se exprime em uma forma quase cristalizada; ““comandando (governando), conduzindo-se com eqitidade/cleméncia, cle/cla con- quistou 0 reconhecimento (apodoché) ¢, conseqtientemente, a obediéncia de tal povo, de tal cidade”. Ver, entre outros exemplos: tt, 28, 5; 46, 2; 10, 54, 5; m1, 61, 45 mm, 65, 1:1, 44, 45 v, 8, 2; B1, 6; 1%, 67, 2; 71, 2; XIV, 105, 3; XV, 15, 1; xVH, 76, 2; 91, B; xVM, 14, 2; 18, 8; 28, 6... (78) xv, 1, 3. 54 x, 70, 3; xn, 76, 2. xvtt, 76, 2 p) xXIX, 10, 1; xxx, 23, 25 xxK1, 3, 1; 7, 1; 9, 4-7 € sobretudo xn, 2, 1 )N. Loraur, '“Thucydide et a sédition dans les mots”, p. 96: “[...]a historia das vicissi- um subtexto de A Guerra do Peloponeso t) Helénicas, vt, 5, 26-7. 5) Polibio, 1, 4, 1: “Da mesma maneira que a Fortuna inclinou para um tinico lado ¢ for- \caminharem-se para um iinico € mesmo fim quase todos 0s acontecimentos da Terra, ibém € preciso, por meio da hist6ria, concentrar em uma mesma visdo sintética para fs 0 plano que a Fortuna aplicou pata uma série universal de acontecimentos”. Para © histotiador autoriza-se da providencia divina: ele combina a sua obra como ela orde- indo (Biblioteca bistOrica, t, 1, 3). Para uma apresentacao mais ampla da obra de Dio- Sicilia, ver 0 preficio de P. Vidal-Naquet a Diodore de Sicile. Naissance des Diewx et es, Les Belles Lettres, Paris, 1991 ) A palavra aparece j4 em Herédoto. AS DELICIAS DO JARDIM José Américo Motia Pessanba uma vez, ao menos, vivi como os deuses: é quanto basta. Hélderlin, As Parcas.* (0 final do século x1x, arquedlogos franceses descobriram em Enoanda, décia (Turquia central), pedras contendo curiosa inscri¢ao: uma mensa- filos6fica mandada gravar por certo Diégenes, no século 1 d.C. Na verda- mensagem que esse cidadao de Enoanda e professor em Rodes procurou no muro de um dos pérticos de sua cidade é constituida por teses fun- tais da ética de Epicuro, filésofo grego que vivera cérca de quinhentos antes (século i a.C.). Testemunho comovente da admiragao de um disci ‘por seu mestre, o texto inscrito nas pedras da muralha parece conter uma ‘que Epicuro enderecara a mae,! mas que Didgenes considera de imensa s para qualquer pessoa, de qualquer época. Assim, movido pelo amor aos , procura partilhar indiscriminadamente os ensinamentos do mestre com sum que passe diante da muralha de Enoanda, Justifica-se Digenes, na inicial da inscricao: ‘Se uma pessoa, ou duas, ou tr@s, ou quatro, ou © nimero que queiram, estiver ‘em aflicao, ¢ se cu fosse chamado a ajudé-ta, faria tudo que estivesse em meu ‘poder para oferecer meu mélhor conselho. Hoje, a maioria dos homens esta doen- te, como que de uma epidemia, em fungao das falsas crencas a respeito do mus- "do, € 0 mal se agrava porque, por imitacdo, transmitem 0 mal uns aos outros, ‘como carneiros. Além disso, € justo levar socorro Aqueles que nos sucederao. Eles também s40 nossos, embora ainda no tenham nascido. © amor aos ho- “mens nos leva a ajudar os estrangciros que venham a passar por aqui, Como a boa mensagem do livro ja foi difundida, resolvi utilizar esta muralha para ex- por em pubblico o remédio da humanidade. (() Friedrich Halderlin, Poemas, trad. ¢ introd. José Paulo Paes, Companhia das Letras, Sao Paulo, p87. 67 Doente, a humanidade transformada em rebanho precisa de tratamento. A fonte do mal, que se alastra pelo contagio do mimetismo, esta detectada: as fal- sas crencas. O que move a acto curativa é 0 generoso sentimento de philia que, além de sustentar intrinsecamente a filosofia, transborda — enquanto amor a sa- bedoria — em amor 4 humanidade. A agio do médico-filésofo ou do filésofo- médico — ressaltada desde Empédocles e Sécrates/Platio ~ nfo conhece, po- rém, na linhagem epicurista, qualquer tipo de restri¢ao quanto a escolha do paciente-discipulo: todos tém direito a cura, sem limitagdes sociais, econdmicas, étnicas.” Por isso, a mais ampla publicidade deve ser dada ao tratamento: 0 re- médio ¢ oferecido a qualquer um, a qualquer passante, mesmo aos estrangeiros, pois seu valor e beneficio sio universais, acima das contingéncias de espaco ¢ tempo. E sua preservacéo em pedra é justamente para que os pésteros — que “também so nossos” — dele possam usufruir. Mas, afinal, que remédio é esse, capaz de livrar a humanidade de aflig6es € tormentos? O remédio é 0 logos filos6fico enquanto portador da verdade acla- radora, © discurso enquanto phdrmakon, enquanto curative porque discurso- razAo que espanca as trevas das crendices, expulsando os males da alma.3 $6 que na inscrigao de Enoanda ele aparece sob a forma de tetrapharmakon, 0 quadru- plo remédio composto por ingredientes das Doutrinas principats de Epicuro.4 Eilo: Nao bd 0 que temer quanto aos deuses. " Nao bd nada a temer quanto & morte. Pode-se alcangar a felicidade, Pode-se suportar a dor. Cerca de dois séculos antes de Diégenes de Enoanda ter tentado perenizar ¢ difundir as idéias de Epicuro, utilizando as pedras de uma muralha, outro epi- curista, 0 romano Tito Lucrécio Caro (¢. 97 a.C, — c. 55 a.C,), movido por idén- tica admiragao ao mestre, j4 enaltecera sua doutrina usando as estrofes de longo € magnifico poema filos6fico, muralha 86 de palavras: 0 De rerum natura [So- bre a natureza das coisas], Nas aberturas dos varios livros que compdem 0 poema, Epicuro é repetid mente exaltado como glorioso libertador da humanidade, descobridor da ver- dade que afasta os terrores da alma, deus portador de luz salvadora. Escreve 0 poeta-filésofo na abertura do Livro v: “Foi um deus, um deus, aquele que pri- meiro descobriu a regra da existncia que se chama agora sabedoria, aquele que trazendo nossa vida, por meio de sua arte, de to grandes ondas ¢ de tio grandes trevas, colocou-a em lugar tio tranquiilo ¢ em tao clara fuz””.> Na abertura do Livro mi, Lucrécio reveste de luxuosas imagens sua inconti- da admiragio: © tu que primeiro pudeste, de tao grandes trevas, fazer sair tao claro esplendor, esclarecendo-nos sobre 0s bens da vida, a ti eu sigo, 6 gloria do povo grego, 58 aho agora meus pés sobre os sinais deixados pelos teus, ndo por qualquer o de rivalizar contigo, mas porque por amor me lanco a imitar-te. De fato, poderia a andorinha bater-se com o cisne, que poderiam fazer de seme- em carreira os cabritos de trémulos membros ¢ os fortes, vigorosos cava- 6 pai, és © descobricior da verdade, tu me ofereces ligdes paternais, ¢ teus livros que nés, semelhantes 3s abelhas que nos prados flotidos tudo vamos de igual modo recolhendo as palavras de ouro, de ouro mesmo, ais dignas que houve desde que o tempo € tempo. Logo que tua doutrina, de um genio divino, comeca a proclamar a natureza das coisas, dispersam- terrores do 4nimo, apartam-se as muralhas do mundo, € vejo como tudo az pelo espaco inteiro.® cebe-se: tanto quanto o vinculo intelectual, liga fortemente os discfpu- jestre — mesmo 05 dlistanciados no tempo, como Didgenes de Enoanda 0 —aphilia, vinculo afetivo, devotado ¢ grato amor. A relaco mestre- sparece no epicurismo como modalidade do erotismo docente-discente arcara a mesma relacdo entre pitagéricos € socraticos. Eros, 0 media- 0 mostra 0 Banquete de Plata, patrocina o magistério filos6fico, pois -€ conquistada em dupla ascese, teorética ¢ erdtica, O mestte, por isso, que fonte de informacao e ensinamentos: enquanto um dos pélos vel bindmio erasta/erémeno, € amado exemplo de vida sabia, a ser divulgado,” O discipulo, mesmo nao pretendendo rivalizar com ele, de imité-lo, Quer ser © que a andorinha é para o cisne, © cabrito para na assimetria que sustenta a ligacdo entre c6pia e modelo. Mais: a phi- imenta essa relacao baseia-se no amor a verdade ¢ é a mesma que impe- isso da doutrina, pois, se a difusdo das idéias é propagacio de luz ra, constitui também a expansio de trama amorosa a se ampliar inces- 20 longo do tempo, buscando envolver os homens de todas as natureza da proposta epicurista — aliar raz4o iluminadora ¢ amor dade, lticida compreensao dos fendmenos naturais e procura da felici- , ciéncia e ética — justifica, em parte, a aparéncia de seita, o cariter assumido por essa corrente filos6fica. Trata-se, porém, de confraria a na valorizagdo do humano, nao na transcendéncia do divino; con- migos da verdade alcancada pelos sentidos e pela razio; confraria que -salvacdo, sim, mas por meio do conhecimento, ndo da crenca, por meio i2 enquanto compreensio clara € comprovavel, nao da adesio ao mis- Jectual ¢ empiricamente insondavel, O preceito “deves servir a filo- -que possas aleancar a verdadeira liberdade’'® , por isso, uma de suas es fundamentais. ismo radical e 0 propésito de colocar a verdade a servigo da felici- aa, a indole “iluminista”. que induz ao combate de toda forma de obs- pe crendice, o projeto salvacionista alicergado na ciéncia, a defesa do 59 prazer com fundamento materialista fazem do epicurismo um modelo de pensa- mento capaz de sobreviver ¢ ressurgir, mesmo parcialmente, no decorrer dos séculos. Essa vitalidade ¢ esses ressurgimentos manifestam-se apesar do acirrado combate que, desde a Antigilidade, recebe de adversirios — em particular est6i- cos € cristdos. Com efeito, idéias epicuristas reaparecem em Pierre Gassendi (1592-1655), critico de Descartes e um dos fundadores do materialismo moder- no, No inicio da Modernidade, também o materialismo mecanicista de Thomas Hobbes (1588-1679) remonta a Epicuro. Mais tarde, Lenin alia-se ao epicurismo ao polemizar com Hegel. Porém, é sobretudo Marx — 0 jovem Marx — que mais profundamente mergutha na filosofia do mestre grego, reinterpretando-a na tese com que pretende obter lugar de dozent em Bonn: Diferencas entre as filo fias da natureza em Deméocrito e Epicuro? Iniciada em 1839, a tese € construida com instrumental teérico que Mar: herda da filosofia classica alema ¢ de Hegel. Na verdade, faz parte de um projeto mais ambicioso (¢ no completado): descobrir, pela andlise dos sistemas filos6fi- cos pés-aristotélicos — epicurismo, estoicismo, cepticismo —, a “forma subjeti- a", 0 “carter” da filosofia, cla que faz a mesma “‘profissio de fé de Prome- teu", 0 patrono da rebeldia ¢ da libertacdo humanas “que ocupa o primeiro lu- gar entre os santos c os martires”’. Afinal, essa indole prometéica, libertdria, rea- parece, naquele momento, na filosofia cultivada pelo Doktorklub, 0 Clube de Doutores idealistas ¢ liberais que Marx, enquanto jovem hegeliano de esquerda, freqiienta em Berlim ¢ cujo programa consiste em realizar a sintese entre hege- lianismo e liberalismo, criando 0 ideario que permita, em termos alemaes, con- cluir a tarefa libertadora esbogada na Aufkidrung ¢ levada 4 pratica pela Revolu- cdo Francesa. E € justamente em Epicuro — “primeiro tedlogo da morte de Deus”” — que Marx vai encontrar 0 combate desalienador 4 ética e 3 religio tradicio- nais, © mesmo combate que reencontra ao ler, no come¢o de 1842, A esséncia do cristianismo, de seu amigo Feuerbach. Tanto em Epicuro quanto em Feuer- bach, Marx se defronta com um materialismo que sustenta uma filosofia libert4- tia, permanecendo, todavia, nos limites da liberdade apenas interior. Ultrapass4- Ja e forjar armas te6ricas para a a¢do libertadora no nivel social e politico exigir4 a reformulagao do proprio materialismo, exigira a construgao do marxismo. Mas, de qualquer modo, parece claro: € na companhia de Epicuro que Marx esgota as possibilidades de uma dimensio da liberdade e chega 4 fronteira além da qual prosseguir significa criar suas proprias idéias.'° O CISNE E A ANDORINHA Das numerosas obras de Epicuro — Didgenes Laércio afirma que eram cer- ca de trezentos titulos — muito pouco se conservou. Chegaram até nés ues car- tas — uma a Pitocles, de autenticidade duvidosa ¢ tratando de fendmenos celes- tes, outra a Herddoto, sobre fisica, e uma terceira a Meneceu, sobre ética —, além das chamadas Mdximas principais, quarenta sentencas possivelmente extraidas 60 obras. A esse parco conjunto acrescentaram-se, em 1888, as 81 senten- bertas em manuscrito da Biblioteca do Vaticano, algumas porém repro- conhecidos. Posteriormente, foram encontrados, cm escava- Herculano, os restos de uma biblioteca epicurista,-contendo inclusive extremamente mutiladas da obra Sobre a natureza, de Epicuro. E, com- ado 0 escasso legado, foram descobertas, no final do século passado, as ins- es da muralha de Enoanda.!! & bem verdade que muitas citagdes de Epi- parecem nos escritos de autores antigos, como Cicero, Plutarco ou Cle- de Alexandria, Mas essas fontes devem ser utilizadas com cuidado, pois marcadas pela inten¢ao polémica ¢ critica de adversarios da doutrina epi- empenhados em combaté-la em nome do estoicismo, do ecletismo ou janismo. iis por que © poema Sobre a natureza das coisas (De rerum natura), de , adquire tanta importincia para o resgate das doutrinas epicuristas. Real- seria muito dificil reconstituir as idéias de Epicuro — 0 cisne — se no éssemos da mediagao que seu discfpulo latino — a andorinha — realiza, pretender equiparar-se ao mestre grego, antes seguir, com apaixonada fide- as pegadas que delineiam o percurso de scu pensamento.'* 0 contririo do que se poderia supor, o hedonismo epicurista — que nos finalidade da vida humana — é uma doutrina defendida por homens que dos os motivos para desistir da felicidade e que, no entanto, afirmam: “‘Cha- ao prazer principio ¢ fim da vida feliz”. Epicuro e Lucrécio vivem vi- ficeis em tempos dificeis. UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAIBA| 4 YANILDO RRITO BIBLIOTEC, uro nasce em 341 a.C., em Samos ou em Atenas, mas seguramente de ja ateniense. Seu pai € modesto mestre-escola, a mae uma espécie de reza- que o menino as vezes acompanha quando cla exerce sua funcao. Assim, cedo, Epicuro pode verificar como as pessoas esto geralmente domina- or temores € crendices. Aos catorze anos € mandado para Téos, onde passa mpanhar as ligdes de Nausifanes, discipulo do atomista Demécrito de Ab- © cosmos com todos os seres lhe é entio apresentado como resultando omos que se movem desde sempre no vazio infinito € que se aglutinam se- o leis estritamente mecanicas, sem intervengao de qualquer finalismo. Po- nigrante ¢ com satide extremamente frigil, Epicuro vive, a partir de 322 em diversas cidades da Asia Menor, enquanto elabora sua filosofia: “menos ma de pensamento do que um sistema de vida”. Finalmente, em 306 i para Atenas, onde funda sua escola filos6fica, o Jardim, na verdade uma raria ou comunidade que admite entre seus membros também mulheres ¢ os. fostram os historiadores: Epicuro compra primeiro uma casa, em seguida , a certa distancia, um jardim. Da Casa passam a sair, abundantemente, panfletos.e cartas, enquanto no Jardim (Kepos) acomodam-sc os discipu- or

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