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CAPITULO V A identidade e a representacao Elementos para uma reflexdo critica Sobre a ideia de regiao A intengao de submeter os instrumentos de uso mais comum nas ciéncias sociais a uma critica epistemolégica alicerpada na historia social da sua génese e da sua utilizagdo encontra no conceito de regiao uma justificagao particular'. Com efeito, Aqueles que vissem neste projecto de tomar para objecto os instrumentos de construcdo do objecto, de fazer a histéria social das categorias de pensamento do mundo social, uma espécie de desvio perverso da intengdo cientifica, podet-se-ia objectar que a certeza em nome da qual eles privilegiam o conhecimento da «realidade» em relacgéo ao conhecimento dos ' Este texto é 0 resultado de um trabalho empreendido, com 0 apoio da DGRST, no quadro de um grupo composto por economistas, etndlogos, historiadores e socidlogos. $6 um conjunto de estudos de caso orientados pela intencao de apreender a génese do conceito de regio e das representa- des que Ihe estdo associadas, de descrever os processos em jogo nos quais e por meio dos quais aquele conceito é produzido — o campo literdrio no caso do estereétipo elaborado pelos romancistas regionalistas, 0 campo universi- tério no caso da unidade fisica e social delimicada pelos historiadores, pelos gedgrafos ou pelos politélogos, o campo social no seu conjunto no caso da unidade politica reivindicada pelos movimentos regionalistas — podia dar uma ideia do universo de pressupostos, mais ou menos dissimulados, que se acham envolvidos em cada um dos usos do conceito. E por isso que, a estes estudos, se juntarao mais tarde o de Rémi Ponton sobre os romancistas regionalistas e sobre a evolugao da tematica dos romances regionais (em relacgéo com as transformacées do campo literdrio e do sistema escolar) e 0 de Jean-Louis Fabiani sobre o mercado dos bens culturais regionais (no caso da Cérsega), e também o artigo de Enrico Castelnuovo e de Carlo Ginzburg sobre os efeitos da dominacgao simbélica na produc&o pictérica em Italia depois do Renascimento. [Este ultimo estudo sera publicado em versao portuguesa na obra intitulada A Micro-histéria de C. Ginzburg, que sairé na colecgio Meméria ¢ Sociedade]. 108 A IDEIA DE REGIAO instrumentos de conhecimento nunca é, indubitavelmente, tio pouco fundamentada como no caso de uma «realidade» que, sendo em primeiro lugar, representagao, depende tio profunda- mente do conhecimento e do reconhecimento. As lutas pelo poder de di-visdo Primeira observagdo: a regido é o que esta em jogo como objecto de lutas entre os cientistas, nao sé gedgrafos é claro, que, por terem que ver com 0 espa¢o, aspiram ao monopélio da definicgéo legitima, mas também historiadores, etndlogos e, sobretudo desde que existe uma politica de «regionalizagao» e€ movimentos «regionalistas», economistas e socidlogos. Basta- ra um exemplo, colhido dos acasos da leitura: «E preciso prestar homenagem aos gedgrafos, eles foram os primeiros a interessarem-se pela economia regional. Por vezes mesmo eles tendem a reivindicé-la como uma coutada». A este respeito, escreve Maurice Le Lannou: «Admito que deixemos ao cuidado do sociélogo e do economista a descoberta das regras gerais — se as ha — a partir do comportamento das sociedades humanas e do mecanismo das produgdes e das trocas. A nos, pertence-nos 0 concreto presente e diversificado que é a manta de retalhos multicolor das economias regionais (...). Os inqué- ritos regionais dos gedégrafos apresentam-se frequentemente como estudos extremamente minuciosos, extremamente apro- fundados de um espaco determinado. Em geral, estes trabalhos tém o aspecto de monografias descritivas de pequenas regides; a sua multiplicidade, a abundancia dos pormenores impedem que se compreendam os grandes fendmenos que levam ao progresso ou ao declinio das regides consideradas. Da-se igual- mente demasiada importancia aos fenédmenos fisicos, como se 0 Estado nao interviesse, como se os movimentos de capitais ou as decisdes dos grupos nao produzissem efeitos. O gedgrafo prende-se talvez demasiado ao que se vé, enquanto 0 economis- ta se deve prender ao que se nado vé. O gedgrafo limita-se frequentemente a andlise do contetido do espago; ele olha muito pouco para além das fronteiras politicas ou administrativas da CAPITULO V 109 regiao. Daqui, a tendéncia que ele tem para tratar a economia de uma regiao como uma entidade em que as relacGes internas sao preponderantes. Para o economista, pelo contrario, a regido seria tributaria de outros espacos, tanto no que diz respeito aos seus aprovisionamentos como no que diz respeito aos seus escoamentos; a natureza dos fluxos e a importancia quantitativa destes, por acentuarem a interdependéncia das regides, seriam um aspecto a privilegiar. Se o gedgrafo considera a localizacao das actividades numa regiao como um fendédmeno espontaneo e comandado pelo meio natural, o economista introduz nos seus estudos um instrumento de andlise particular — 0 custo». Este texto, que merecia ser citado mais longamente ainda, mostra bem que a relacgdo propriamente cientifica entre as duas ciéncias tem as suas raizes na relagao social entre as duas disciplinas e os seus representantes*. Com efeito, na luta para anexar uma vegido do espaco cientifico j4 ocupada pela geografia, o economista — que reconhece aquela 0 mérito de primeiro ocupante — designa de modo inseparavel os limites das estratégias cientificas do gedgrafo (a sua tendéncia para o «internalismo» e a sua inclinagao para aceitar o determinismo «geografico») e os fundamentos sociais destas estratégias. Isto é feito por meio das qualidades e dos limites que ele atribui a geografia e que sao claramente reconhecidos pelo porta-voz desta disciplina dominada e dada a contentar-se «modestamente» com aquilo que lhe é concedido, a isolar-se na regiao que as disciplinas mais «ambiciosas», sociologia e economia, ihe dao em partilha, quer dizer, 0 pequeno, o particular, 0 concreto, 0 real, o visivel, a mintcia, o pormenor, a monografia, a descrigaéo —— por oposi¢gao ao grande, ao geral, ao abstracto, a teoria, etc. Assim, por um efeito que caracteriza, de modo ?R. Gendarme, L'analyse économique régionale, Paris, Cujas, 1976, pp. 12-13 (e M. Le Lannou, La Géographie Humaine, Paris, Flammarion, 1949, p. 244). > Sabe-se que os gedgrafos e a geografia se acham no nivel mais baixo da hierarquia social (medida por indices como a origem social € regional dos professores) das disciplinas das faculdades de Letras, enquanto a economia ocupa uma posicao elevada nas faculdades de Direico, globalmente situadas em niveis mais altos do que as faculdades de Letras nesta hieratquia. 110 A IDEIA DE REGIAO proprio, as relacdes de (mal)conhecimento* e de reconhecimen- to, os defensores da identidade dominada aceitam, quase sem- pre tacitamente, por vezes explicitamente, os principios de identificagéo de que a sua identidade é produto. Outra observacéo importante: esta luta pela autoridade cientifica € menos auténoma do que querem crer os que nela se acham envolvidos e verificar-se-ia facilmente que as grandes etapas da concorréncia entre as disciplinas a respeito da nogao correspondem, através de diferentes mediagdes — entre as quais os contratos de pesquisa nao sao das menos importantes —~ a momentos da politica governamental em matéria de «ordenamento do territério» ou de «regionalizacgéo» e a fase da acco «regionalista» *. E assim que a concorréncia entre os gedgrafos, até entéo em situacéo de quase monopdlio, e os economistas parece ter-se fortemente desenvolvido a partir do momento em que a «regiao» (no sentido administrativo do termo — mas haveré-outro?) comegou a revestir-se de interesse para os economistas os quais, na Alemanha com August Loesch, e nos Estados Unidos com a regional science, e depois em Franca com a voga do «ordenamento do territério», «aplicaram a realidade regional a sua aptidao especifica de generalizacio», como diz um gedgrafo com a «modestia» estatutariamente atribuida a profissao*. A irrupcdo dos socidlogos que, de modo * (mé)connaissance» no texto original (N.T.). * Encontram-se elementos uteis para uma historia social da politica oficial em matéria de regionalizagao e dos debates que a rodearam no seio do pessoal politico, a pat de uma evocacéo das teses dos regionalistas, em P. Lagarde, La régionalisation, Paris, Seghers, 1977. SE. Juillard, «La région, essai de définition», Annales de géographie, Ser./Out., 1962, pp. 483-499. Seria preciso analisar as diferentes estraté- Bias que o corpo dos gedgrafos opés as tentativas de anexacao da economia, disciplina socialmente mais poderosa e capaz, por exemplo, de dar um fundamento empirico, se nao uma justificacao tedrica, 4 regiao dos gedgra- fos, com a anilise estatistica dos efeitos de contiguidade (cf. J.R. Boudeville, Aménagement du territoire et polarisation, Paris, Ed. M. Th. Génin, 1972, pp. 25-27). Como sempre acontece no caso das lutas simbélicas, os gedgrafos parecem ter-se visto divididos entre estratégias que, perfeitamente opostas na aparéncia (como a recusa irredentista pela politizaciéo e a acumulagao sincrética das tradigdes proprias e das tradigées alégenas, da baisagem dos antigos e dos espacos funcionais dos economistas), tinham de CAPITULO V 111 diferente do dos etnélogos — suspeitos de passadismo e de localismo —- estavam interessados no transregional, e até mesmo no transnacional — e de modo tanto mais claro quanto mais preocupados se mostravam com a sua identidade — parece ter coincidido com o aparecimento (e foi mesmo um aspecto deste) em 1968 e depois, dos movimentos «regionalis- tas» de novo tipo que, gracas a uma politica de contratos, ofereciam ao investigador, mediante uma redefinigao laxiorista da observacao participante, 0 papel de companheiro de viagem que analisa 0 movimento no movimento. Estas poucas indicagées, que nao sao apresentadas com a pretensdo de servirem de analise metédica das relagdes entre as diferentes ciéncias sociais, deveriam ser suficientes para dar a ideia de que o objecto da ciéncia, a saber a concorréncia pelo monopdlio da divisao * legitima também pertence ao dominio da ciéncia, isto é, esta também no campo cientifico e em cada um dos que nele se acham envolvidos. Isto néo implica de forma alguma — antes pelo contrario — que este facto esteja claramente presente na consciéncia dos investigadores. Ora, a ciéncia social, que é obri- gada a classificar para conhecer, s6 tem alguma probabilidade, nao jé de resolver, mas de, pelo menos, p6r correctamente o pro- blema das classificagdes sociais e de conhecer tudo o que, no seu objecto, é produto de actos de classificagao se fizer entrar na sua pesquisa da verdade das classificacées o conhecimento da verdade dos seus préprios actos de classificagao. O que quer dizer que nao é possivel dispensar, neste caso menos que em qualquer outro, uma andlise da relacdo entre a légica da ciéncia e a légica da pratica®. facto de comum a aceitagdo da definic¢ao dominante na sua forma directa ou inversa. ° A respeito das relagdes entre a nocgdo de regiao dos gedgrafos e a nocio de regido tal como funciona na pratica e, em particular, no discurso regionalista, dit-se-iam renovar as andlises por nds propostas em outro trabalho acerca do desvio entre 0 parentesco pratico ¢ o parentesco tedrico, registado na genealogia (ou entre o esquema tedrico das oposigées miticas € os esquemas praticos da accao ritual) e acerca dos efeitos cientificos da ignorancia deste desvio inultrapassavel, cf. P. Bourdieu, Le sens pratique, Paris, Minuit, 1980, especialmente, pp. 59-60. * adécoupagen no texto original (N.T.). 112 A IDEIA DE REGIAO Com efeito, a confusio dos debates em torno da nogdo de regiao e, mais geralmente, de «etnia» ou de «etnicidade» (eufemismos eruditos para substituir a nogéo de «raga», con- tudo, sempre presente na pratica) resulta, em parte, de que a preocupacéo de submeter 4 critica légica os categoremas do senso comum, emblemas ou estigmas, e de substituir os principios praticos do juizo quotidiano pelos critérios logica- mente controlados e empiricamente fundamentados da ciéncia, faz esquecer que as classificagdes praticas estao sempre subordi- nadas a funcoes prdticas e orientadas para a produgao de efeitos sociais; ¢, ainda, que as representagdes praticas mais expostas 4 critica cientifica (por exemplo, os discursos dos militantes regionalistas sobre a unidade da lingua occitanica) podem contribuir para produzir aquilo por elas descrito ou designado, quer dizer, a realidade objectiva 4 qual a critica objectivista as refere para fazer aparecer as ilusdes € as incoeréncias delas. “Mas, mais profundamente, a procura dos critérios «objecti- vos» de identidade «regional» ou «étnica» nao deve fazer esquecer que, na pratica social, estes critérios (por exemplo, a lingua, o dialecto ou o sotaque) sao objecto de representacies mentais, quer dizer, de actos de percepcao e de apreciacio, de conhecimento e de reconhecimento em que os agentes investem os seus interesses e os seus pressupostos, e de representacies objectais, em coisas (emblemas, bandeiras, insignias, etc.) ou em actos, estratégias interessadas de manipulagdo simbélica que tém em vista determinar a representagéo mental que os outros podem ter destas propriedades e dos seus portadores. Por outras palavras, as caracteristicas que os etndlogos e os socidlogos objectivistas arrolam funcionam como sinais, emble- mas ou estigmas, logo que sao percebidas e apreciadas como 0 séo na pratica. Porque assim é e porque nao ha sujeito social que possa ignord-lo praticamente, as propriedades (objectiva- mente) simbélicas, mesmo as mais negativas, podem ser utili- zadas estrategicamente em fungao dos interesses materiais € também simbélicos do seu portador’. ” A dificuldade em pensar adequadamente a economia do simbélico vé-se, por exemplo, em certo autor (O. Patterson, «Context and Choice in Ethnic Allegiance: A Theoretical Framework and Caribbean Case Study», CAPITULO V 113 S6 se pode comprender esta forma particular de luta das classificagdes que é a luta pela definigio da identidade «regio- nal» ou «étnica» com a condi¢ao de se passar para além da oposi- Go que a ciéncia deve primeiro operar, para romper com as pré-nogées da sociologia espontanea, entre a representacdo e a realidade, e com a condic¢ao de se incluir no real a representacdo do real ou, mais exactamente, a luta das representagdes, no sen- tido de imagens mentais e também de manifestagGes sociais des- tinadas a manipular as imagens mentais (e até mesmo no sentido de delegacdes encarregadas de organizar as representagdes como manifestagdes capazes de modificar as representagdes mentais). As lutas a respeito da identidade étnica ou regional, quer dizer, a respeito de propriedades (estigmas ou emblemas) ligadas & origem através do /ugar de origem e dos sinais duradoiros que lhes sao correlativos, como 0 sotaque, séo um caso particular das lutas das classificagdes, lutas pelo monopélio de fazer ver e fazer crer, de dar a conhecer e de fazer reconhe- cer, de impor a definigao legitima das divisdes do mundo social e, por este meio, de fazer e de desfazer os grupos. Com efeito, © que nelas esta em jogo é o poder de impor uma viséo do mundo social através dos principios de di-visio que, quando se impGem ao conjunto do grupo, realizam o sentido e 0 consenso sobre o sentido e, em particular, sobre a identidade e a unidade do grupo, que fazem a realidade da unidade e da identidade do grupo. A etimologia da palavra regiao (regio), tal como a descreve Emile Benveniste, conduz ao principio da di-visao, acto magico, quer dizer, propriamente social, de diacrisis que introduz por decreto uma descontinuidade deciséria na continui- dade natural (ndo sé entre as regides do espago mas também entre as idades, os sexos, etc.). Regere fines, 0 acto que consiste Ethnicity. Theory and Experience, ed. by N. Glazer and D.P. Moynihan, Cambridge, Mass., Harvard University Press, 1975, pp. 305-349) que, escapando por excepcéo ao idealismo culturalista o qual é de regra nestas matérias, di lugar 4 manipulacao estratégica das caracteristicas «étnicas» € teduz o interesse por si atribuido & origem destas estratégias ao interesse estriramente econdémico, ignorando assim tudo o que, nas lutas das classifi- cagoes, obedece A procura da maximizagao do ganho simbélico. 114 A IDEIA DE REGIAO em «tragar as fronteitas em linhas rectas», em separar «o interior do exterior, 0 reino do sagrado do reino do profano, o territério nacional do territério estrangeiro», € um acto re/igioso realizado pela personagem investida da mais alta autoridade, o rex, encarregado de regere sacra, de fixar as regras que trazem a existéncia aquilo por elas prescrito, de falar com autoridade, de pré-dizer no sentido de chamar ao ser, por um dizer executério, © que se diz, de fazer sobrevir 0 porvir enunciado*. A regio e as suas fronteiras (fies) nao passam do vestigio apagado do acto de autoridade que consiste em circunscrever a regiao, 0 territdrio (que também se diz fines), em impor a definigdo (outro sentido de finis) legitima, conhecida e reconhecida, das fronteiras e do territorio, em suma, o principio de di-visdo legitima do mundo social, Este acto de direito que consiste em afirmar com autoridade uma verdade que tem forca de lei € um acto de conhecimento, 0 qual, por estar firmado, como todo o poder simbélico, no reconhecimento, produz a existéncia daquilo que enuncia (a auctoritas, como lembra Benveniste, é a capacidade de produzir que cabe em partilha ao auctor)?. O auctor, mesmo quando sé diz com autoridade aquilo que é, mesmo quando se limita a enunciar 0 ser, produz uma mudanga no ser: ao dizer as coisas com autoridade, quer dizer, 4 vista de todos e em nome de todos, publicamente e oficialmente, ele subtrai-as ao arbitrario, sanciona-as, santifica-as, consagra-as, fazendo-as existir como dignas de existir, como conformes 4 natureza das coisas, «naturais». Ninguém poderia hoje sustentar que existem critérios capa- zes de fundamentar classificagdes «naturais» em regides «natu- rais», separadas por fronteiras «naturais». A fronteira nunca é mais do que o produto de uma divisdo a que se atribuird maior ou menor fundamento na «realidade» segundo os elementos que ela retine, tenham entre si semelhancas mais ou menos numerosas e mais ou menos fortes (dando-se por entendido que se pode discutir sempre acerca dos limites de variacio entre os *E. Benveniste, Le vocabulaire des institutions indo-européennes, U1, Pou- voir, droit, religion, Paris, Minuit, 1969, pp. 14-15 (e também, a respeito de hrainein, como poder de predizet, p. 41). °E. Benveniste, op. cit., pp. 150-151. CAPITULO V 115 elementos nao idénticos que a taxinomia trata como seme- thantes). Cada um esta de acordo em notar que as «regides» delimitadas em fungao dos diferentes critérios concebiveis (lingua, Aahitat, amanho da terra, etc.) nunca coincidem perfeitamente. Mas nao é tudo: a «realidade», neste caso, € social de parte a parte e as classificagdes mais «naturais» apoiam-se em caracteristicas que nada tém de natural e que sAo, em grande parte, produto de uma imposicao arbitraria, quer dizer, de um estado anterior da relagao de forgas no campo das lutas pela delimitacdo legitima. A fronteira, esse produto de um acto juridico de delimitagaéo, produz a diferenga cultural do mesmo modo que é produto desta: basta pensar na acgao do sistema escolar em matéria de lingua para ver que a vontade politica pode desfazer o que a histéria tinha feito '®. Assim, a ciéncia que pretende propor os critérios mais bem alicergados na realjdade nao deve esquecer que se limita a registar um estado da Juta das classificagdes, quer dizer, um estado da relagao de forgas materiais ou simbédlicas entre os que tém interesse num ou noutro modo de classificag&éo e que, como ela, invocam frequentemente a autoridade cientifica para funda- mentarem na realidade ¢ na razio a divisdo arbitraria que querem impor. ' A diferenga cultural € sem duvida produto de uma dialéctica hist6rica da diferenciago cumulativa. Como mostrou Paul Bois a respeito dos camponescs do Oeste cujas opgdes politicas desafiavam a geografia eleitoral, o que faz a regido nao é 0 espago, mas sim o tempo, a histéria (P. Bois, Payians de /'Ouest, des structures economiques et sociales aux options politiques depuis Péjmque vévolutionnaire, Paris-Haia, Mouton, 1960). Poder-se- -ia fazer uma demonstragdo semelhante a respeito das «regiéess ' - rétonas que, ao cabo de uma historia diferente, eram suficienten«uce «diferentes» das «regides» arabdfonas para suscitarem da parte do coloniza- dor tratamentos diferentes (em matéria de escolarizagéo, por exemplo), logo, prdprios para reforcar as diferencas que Ihe tinham servido de pretexto © para produzir novas diferengas (as que esto ligadas A emigragdo para Franca, por exemplo) ¢ assim sucessivamente. Nada ha, nem mesmo as «paisagens» ou os «solos», caros aos gedgrafos, que nado seja heranga, quer dizer, produtos histéricos das determinantes sociais (cf. C. Reboul, «Déter- minanes sociaux de la fertilice des sols», Acter de La recherche en sciences suciales, 17-18, Nov. 197/, pp 88112. Na mesma Iégica e para além do uso Inpenuamente «patinlixtas da nogia de «pa em», seria preciso analisar a Lantribaigae dos bitites saciae part os processos de «desertificagion. 116 A IDEIA DE REGIAO O discurso regionalista é um discurso performativo, que tem em vista impor como legitima uma nova definigao das frontei- ras e dar a conhecer e fazer reconhecer a regido assim delimita- da — e, como tal, desconhecida — contra a definicéo domi- nante, portanto, reconhecida e legitima, que a ignora. O acto de categorizagéo, quando consegue fazer-se reconhecer ou quando é exercido por uma autoridade reconhecida, exerce poder por si: as categorias «étnicas» ou «regidonais», como as categorias de parentesco, instituem uma realidade usando do poder de revelagéo e de construgao exercido pela vbjectivagao no discurso. N3o é uma ficgdo sem eficacia chamar-se «occitani- co» '' a lingua que falam os que sao chamados «Occitanicos» porque falam esta lingua (que ninguém fala, propriamente dito, pois ela nao passa da soma de um grande numero de falares diferentes) e nomear-se «Occitdnia» a regiao (no sen- tido de espaco fisico) onde esta lingua é falada, preten- dendo-se assim fazé-la existir como «regido» ou como «nagio» (com todas as implicagées historicamente constituidas que estas nogdes encerram no momento considerado) '*. O acto da magia social que consiste em tentar trazer 4 existéncia a coisa nomea- da pode resultar se aquele que o realiza for capaz de fazer reconhecer a sua palavra o poder que ela se arroga por uma usurpagao provisoria ou definitiva, o de impor uma nova visio a uma nova divisio do mundo social: regere fines, regere sacra, consagrar um novo limite. A eficacia do discurso performativo que pretende fazer sobrevir 0 que ele enuncia no prdéprio acto de o enunciar é proporcional a autoridade daquele que o enuncia: a formula «eu autorizo-vos a partir» s6 é 4 ipso uma autorizagio se aquele que pronuncia esta autorizado a autorizar, "© adjective «occitan» e, a fortiori, 0 substantive «Occitanie» sao palavras eruditas ¢ recentes (forjadas pela latinizagio da lingua de oc, lingua ocitana), destinadas a designar realidades eruditas que, pelo menos de momento, s6 existem no papel. "2 De facto, esta lingua €, ela mesma, um artefacto social, inventado a custa de uma indiferenca deciséria para com as diferengas, que reproduz ao nivel da «regio» a imposicao arbirraria de uma norma tinica contra a qual se levanta 0 regionalismo e que 86 poderia tornar-se em principio real das priticas linguisticas mediante uma inculcagio sistemarion anatup: impos © uso generalizado do francés. aque CAPITULO V 117 tem autoridade para autorizar. Mas o efeito de conhecimento que o facto da objectivacéo no discurso exerce néo depende apenas do reconhecimento consentido aquele que o detém, ele depende também do grau em que o discurso, que anuncia ao grupo a sua identidade, esta fundamentado na objectividade do grupo a que ele se dirige, isto é, no reconhecimento e na crencga que lhe concedem os membros deste grupo assim como nas propriedades econémicas ou culturais que eles tem em comum, pois € somente em fungéo de um principio determinado de pertinéncia que pode aparecer a relaco entre estas proprieda- des. O poder sobre o grupo que se trata de trazer 4 existéncia enquanto grupo é, a um tempo, um poder de fazer o grupo im- pondo-lhe principios de visio e de divisio comuns, portanto, uma visao Unica da sua identidade, e uma visdo idéntica da sua unidade '*. O facto de estar em jogo, nas lutas pela identidade — esse ser percebido que existe fundamentalmente pelo reco- nhecimento dos outros —, a imposigéo de percepgées e de categorias de percepcao explica o lugar determinante que, como a estratégia do manifesto nos movimentos artisticos, a dialéctica da manifestacgéo detém em todos os movimentos regionalistas ou nacionais '“: 0 poder quase magico das palavras resulta do efeito que tém a objectivacio e a oficializagéo de facto que a nomea- ¢4o publica realiza 4 vista de todos, de subtrair ao impensado e até mesmo ao impensavel a particularidade que esta na origem do particularismo (é 0 caso quando a «algaravia» sem nome se afirma como lingua susceptivel de ser falada publicamente); e a 'S Como tentei mostrar em outro trabalho: (cf. Bourdieu e L. Bolcanski, «Le fétichisme de la langue», Actes de la recherche em sciences sociales, n.° 4, 1975, pp. 2-33), os fundadores da Escola republicana tinham por finalidade explicita inculcar, entre outras coisas pela imposigao da lingua «nacional», © sistema comum de categorias de percepcao e de apreciacéo capaz de fundamentar uma visdéo unitdria do mundo social '* © liame, geralmente atestado, entre os movimentos regionalistas € os movimentos feminiscas (e também ecoldégicos) resulta de que, dirigidos contra formas de dominacio simbélica, estes movimentos supdem disposi- ces étnicas ¢ comperéncias culturais (visiveis nas estratégias utilizadas) que se encontram mais propriamente na intelligentsia e na nova pequena burguesia (cf. Bourdieu, las dadttion, Paris, Minuit, 1979, especialmente pp. 405-43), 118 A IDEIA DE REGIAO oficializagao tem a sua completa realizacdo na manifestagao, acto tipicamente magico (0 que nao quer dizer desprovido de eficacia) pelo qual o grupo pratico, virtual, ignorado, negado, se torna visivel, manifesto, para os outros grupos e para ele préprio, atestando assim a sua existéncia como grupo conhecido e reconhecido, que aspira 4 institucionalizagéo. O mundo social é também representacdo e vontade, e existir socialmente é também ser percebido como distinto. De facto, nao ha que escolher entre a arbitragem objectivis- ta, que mede as representagoes (em todos os sentidos do termo) pela «realidade» esquecendo que elas podem acontecer na realidade, pela eficdcia propria da evocagao, o que elas represen- tam, e 0 empenhamento subjectivista que, privilegiando a representacdo, confirma no terreno da ciéncia a falsificagéo na escrita sociolégica pela qual os militantes passam da representa- ¢4o da realidade a realidade da representagdo. Pode-se escapar a alternativa tomando-a para objecto ou, mais precisamente, levando em linha de conta na cténcia do objecto os fundamen- tos objectivos da alternativa do objectivismo e do subjectivismo que divide a ciéncia, impedindo que apreenda a Iégica especifi- ca do mundo social, essa «tealidade» que é 0 lugar de uma luta permanente para definir a «realidade». Apreender ao mesmo tempo 0 que é instituido, sem esquécer que se trata somente da resultante, num dado momento, da luta para fazer existir ou «inexistir» 0 que existe, e as representagies, enunciados perfor- mativos que pretendem que acontega aquilo que enunciam, restituit a0 mesmo tempo as estruturas objectivas“e a relagdo com estas estruturas, a comecar pela pretensao a transforma-las, é munir-se de um meio de explicar mais completamente a «reali- dade», logo, de compreender e de prever mais exactamente as potencialidades que ela encerra ou, mais precisamente, as possibi- lidades que ela oferece as diferentes pretensdes subjectivistas '° ‘5 Sem deixar por isso de estar sujeito a aparecer como censor ou cumplice. Quando o discurso cientifico é retomado nas lutas das classifica- gGes que se esforga por objectivar — e, salvo a interdiggo da sua divul- gacao, nao se vé como impedir este uso —, passa a funcionar como na realidade das luras de classificacao, isto €é, como um discurio de comagragio que diz, por um dizer autorizado que autoriza, que o que é deve ser: cle esta CAPITULO V 119 Compreende-se melhor a necessidade de explicitar comple- tamente a relacao entre as lutas pelo principio e di-viséo legitima que se desenrolam no campo cientifico e as que se situam no campo social (e que, pela sua légica especifica, concedem um lugar preponderante aos intelectuais). Toda a tomada de posigéo que aspire 4 «objectividade» acerca da existéncia actual e potencial, real ou previsivel, de uma regiao, de uma etnia ou de uma classe social e, por esse meio, acerca da pretensdo a instituicao que se afirma nas representacoes «partida- rias», constitui um certificado de realismo ou um veredicto de utopismo o qual contribui para determinar as probabilidades objectivas que tem esta entidade social de ter acesso a existén- cia'*. O efeito simbdlico exercido pelo discurso cientifico ao consagrar um estado das divisdes e da visio das divisdes, é por isso, condenado a aparecer como critico ou cimplice conforme a relagao cumplice ou critica que o préprio leitor mantém com a realidade descrita. E assim que o simples facto de mostrar pode funcionar como uma maneira de mostrar com 9 dedo, de pér no index, de acusar (Rategorein), ou, inversa- mente, como uma maneira de fazer ver e de fazer valer. Isto tanto vale para a classificagao em classes sociais como para a classificago em *regides» ou em «etnias», O socidlogo expde-se, a partir do momento em que aceita tornar piblicos os resultados das suas pesquisas, a que lhe atribuam (na proporcio do reconhecimento que se lhe concede) 0 papel do censor romano, responsavel pelo census («justa estimagao publica» do valor e do nivel atribuidos as pessoas — G. Dumézil, Servius et la’ Fortune, Paris, Gallimard, 1943, p.188 — e, mais tarde, recenseamento das fortunas) ou, 0 que € o mesmo, a despeito das aparéncias, o do censor (idanoviano) que reduz as pessoas classificadas a ver- dade objectiva que a classificacao thes determina. (Esta leitura é ao mesmo tempo provavel, porque nao basta objectivar a luta das classificagdes para a suspender e antecipadamente a desmentir: com efeito, a objectivacao desta luta e, em particular, na forma especifica que ela assume no seio do campo cientifico, atesta que é possivel apartar-se da luta pelo monopdlio da definigao do principio da classificagao legitima pelo menos quanto baste para a compre- ender e para controlar os efeitos associados aos interesses envolvidos nesta luta). '© Como compreender, a ndo ser como outras tantas afirmacgées compulsivas da pretensao 4 auctoritas magica do censor duméziliano que se inscreve na ambicdo do socidlogo, as recitacdes rituais dos textos candénicos sobre as classes sociais (ritualmente confrontadas com o census estatistico) ou, em grau de ambigao superior e em estilo menos classico, as profecias anunciadoras das «novas classes» e das «novas lutas» (ou o declinio inclurivel das «vethas classes» e@ das «velhas» lutas); dois géneros que ocupam grade lugar na produgio dita socialégica? 120 A IDEIA DE REGIAO inevitavel na medida em que os critérios ditos «objectivos», precisamente os que os doutos conhecem, sao utilizados como armas nas lutas simbdlicas pelo conhecimento e pelo reconheci- mento: eles designam as caracteristicas em que pode firmar-se a ac¢do simbdélica de mobilizagéo para produzir a unidade real ou a crenga na unicade (tanto no seio do préprio grupo como nos outros grupos), que — a prazo, e em particular por intermédio das accdes de imposicao e de inculcacao da identidade legitima (como as que a escola e 0 exército exercem) — tende a gerar a unidade real. Em suma, os veredictos mais «neutros» da ciéncia contribuem para modificar 0 objecto da ciéncia: logo que a questao regional ou nacional é objectivamente posta na realidade social, embora seja por uma minoria actuante (que pode tirar partido da sua prdpria fraqueza jogando com a estratégia propriamente simbélica da provocagao e do testemunho para arrancar réplicas, simbélicas ou nao, que impliquem um reconhecimento), qualquer enunciado sobre a regio funciona como um argumento que contribui — tanto mais largamente quanto mais largamente é reconhecido — para favorecer ou desfavorecer o acesso. da regido ao reconhecimento e, por este meio, 4 existéncia. Nada ha de menos inocente do que a quest4o, que divide o mundo douto de saber se se devem incluir no sistema dos critérios pertinentes nao sé as propriedades ditas «objectivas» (como a ascendéncia, o territério, a lingua, a religido, a actividade econémica, etc.), mas também as propriedades ditas «subjectivas» (como sentimento de pertenga, etc.), quer dizer, as representacoes que os agentes sociais tém das divisées da realidade e que contribuem para a realidade das divisdes '’. "” As razées da repugnancia espontanea dos «doutos» em relagao aos critérios «subjectivos» mereceria uma longa andlise: ha o realismo ingénuo que leva a ignorar tudo o que se nado pode mostrar ou tocar com o dedo; ha © economismo que leva a nao reconhecer outras determinantes da accdo social a nao ser as que estado visivelmente inscritas nas condigdes materiais de existéncia; ha os interesses ligados as aparéncias da «neutralidade axioldégi- ca» que, em mais de um caso, constituem toda a diferenga entre 0 «douto» eo militante e que impedem a introduc&o no discurso «douto» de questées e de nogédes contrdrias 4 decéncia; ha, enfim e sobretudo, 0 punto de honra cientifico que leva os observadores — e de modo tanto mais enérgico quanto CAPITULO V 121 Quando os investigadores entendem erigir-se em juizes de todos os juizos e em criticos de todos os critérios, com a sua formagao e os seus interesses especificos a isso os impelem, ficam privados de apreender a légica propria de uma luta em que a forca social das representagdes nao est4 necessariamente proporcionada ao seu valor de verdade (medido pelo grau em que elas exprimem 0 estado da relacdo de forcas materiais no momento considerado). Com efeito, enquanto pré-visdes, estas mitologias «cientificas» podem produzir a sua prépria verificacdo se conseguirem impor- -se a crenca colectiva a criar, pela sua energia mobilizadora, as condigées da sua prdpria realizacéo. A regiao que se torna em Nagao aparece retrospectivamente na sua verdade, quer dizer, a maneira da religido segundo Durkheim, como «uma ilusao bem fundamentada». Mas esses investigadores nao fazem melhor quando, abdicando da distancia do observador, retomam a sua propria conta a representacéo dos agentes, num discurso que, a falta de meios para descrever 0 jogo em que se produz esta representacao e a crenca que a fundamenta, nao passa de uma contribuigéo entre outras para a producgdo da crenga acerca da qual haveria que descrever os fundamentos e os efeitos sociais '*. menos seguros estao da sua ciéncia e do seu estatuto — a multiplicarem os sinais de rtptura com as representagdes do senso comum e que os condena a um objectivismo redutor, perfeitamente inadequado a fazer entrar a realidade das representagdes comuns na representacao cientifica da realidade. '® Pode admitir-se que os socidlogos, enquanto nao submetem a sua pracica @ critica sociolégica, estéo sempre determinados, na sua orientacdo para um pélo ou para outro, objectivista ou subjectivista, do universo das relagGes possiveis com o objecto, por factores sociais tais como a sua posicao na hierarquia social da sua disciplina, quer dizer, do seu nivel de competén- cia estatutaria que, num espaco geografico socialmnte hierarquizado, se traduz frequentemente por uma posicao central ou local, factor particular- mente importante se se trata de regido ou de regionalismo; mas também na hierarquia técnica: pois que estratégias «epistemolégicas» tao opostas como o dogmatismo dos guardiaes da ortodoxia teérica e 0 espontaneismo dos apéstolos da participagao no movimento podem ter de comum o fornecer uma maneira de escapar as exigéncias do trabalho cientifico sem renunciar as pretenses a auctoritar, quando se nado pode ou se nao quer satisfazer estas exigéncias ou simplesmente as mais aparentes, quer dizer, as mais escolares de entre cias (como a familiaridade com os textos canédnicos). Mas eles 122 A IDEIA DE REGIAO Em suma, neste caso como em outros, trata-se de escapar a alternativa do registo «desmistificador» dos critérios objectivos e da ratificacéo mistificada e mistificadora das representacdes ¢ das vontades para se manter junto o que esta junto na realida- de, a saber, ) as classificagdes objectivas, quer dizer, incorpora- das ou objectivadas, por vezes em forma de instituigdo (como as fronteiras juridicas) e a relagéo pratica, «actuada» ou represen- tada, com essas classificagdes e, em particular, as estratégias individuais colectivas (como as teivindicacgées regionalistas) pelas quais 0s agentes procuram pé-las ao servico dos seus interesses, podem também oscilar, ao acaso da relagao directamente experimentada para com 0 objecto, entre o objectivismo e 0 subjectivismo, a censura € 0 elogio, a cumplicidade mistificada e mistificadora e a desmistificacdo redutora, porque aceitam a problematica objectiva, quer dizer a propria estructura do campo de luta no qual a regiao e 0 regionalismo estao em jogo, em vez de 0 objectivar; porque eles encram no debate acerca dos critérios que permitem dizer o senti- do do movimento regionalista ou de Ihe predizer o futuro sem se interroga- rem sobre a légica de uma luta que incide precisamente sobre a determinagao do sentido do movimento (regional ou nacional, progressivo ou regressivo, de direita ou de esquerda) e sobre os critérios que possam determinar este sentido — como a referéncia ao movimento operario: «Pode-se falar neste sentido de libertagdo nacional no caso dos movimentos regionalistas? Quanto aos que estudei, a resposta € negativa. Por um lado, o contetido da reivindicagao de “nagao” — quando é explicitamente formulado — assenta frequentemente na manutencio ou no restabelecimento de relagées sociais pré-capitalistas. Isto pode, de resto, passar-se sob a palavra de ordem de autogestao que, tomada neste contexto, nega a realidade da estrutura actual do processo de produgao € de troca (...). Que o projecto destes movimentos seja o de ter uma base popular, nao 0 esqueco, mas 0 caso do Languedoc exposto por Louis Quéré ai esté para nos mostrar que a accdo dos movimentos de produtores de palavras de ordem regionalistas se processa com desvios ¢ retardamentos, e mesmo em oposigaéo, em relagao aos intelectuais emissores da ideologia nacionalitaria. Sera desvalorizar os movimentos regionalistas o traté-los assim? Nao, é somente reconhecer que o que neles esta em jogo nao é dado por aquilo que deles dizem os militantes, que a sua significacdo est em outra parte, € que o seu impacto sobre a evolugao do sistema social esta longe do contetdo reivindicati- vo explicito destes movimentos» (R. Dulong, Intervengdo em Deuxtéme rencontre européenne sur les problimes régionanx, (roneotipado) Paris, MSH, 1976). «O problema essencial € pois 0 dos critérios que nos permitirao que creditemos este tipo de movimento com esta ou aquela significagao social» (L. Quéré, 4). cit. p. 63 — poder-se-do ler também as paginas 67 ¢ 68, em que 0 autor toca de passagem na objectivacdo da alternativa da participagao ¢ do objectivisnia) CAPITULO V 123 materiais ou simbélicos, ou conserva-las e transforma-las; 4) as relacdes de forcgas objectivas, materiais e simbélicas, e os esquemas praticos (quer dizer, implicitos, confusos, e mais ou menos contraditérios) gracas aos quais os agentes classificam os outros agentes € apreciam a sua posigdo nestas relagdes objecti- vas e, simultaneamente, as estratégias simbdlicas de apresenta- ¢4o e de representacgéo de si que eles opdem as classificagdes e as representagdes (deles préprios) que os outros Ihes impdem. Em resumo, é com a condicéo de exorcizar 0 sonho da «ciéncia régia» investida da regalia de regere fines e-de regere sacra, do poder nomotético de decretar a uniado e a separacao, que a ciéncia pode eleger como objecto 0 préprio jogo em que se disputa o poder de rager as fronteiras sagradas, quer dizer, 0 poder quase divino sobre a visio do mundo, e em que nao ha outra escolha para quem pretende joga-lo (e nao resignar-se a ele) a nao ser mistificar ou desmistificar '? "A pesquisa marxista acerca da questo nacional ou regional viu-se bloqueada, sem diivida desde a origem, pelo efeito conjugado do utopismo internacionalista (sutentado por um evolucionismo ingénuo) ¢ «lo economis- mo, sem falar dos efeitos das preocupagées estratégicas do momento que frequentemente predeterminaram os veredictos de uma «ciéncia» voltada para a pracica (e desprovida de uma ciéncia verdadeira quer da ciéncia quer das relagées entre a pratica ¢ a ciéncia), Nao ha duvida de que a eficacia do conjunto destes factores se vé particularmente bem na tese, cipicamente petformativa, do primado, embora muitas vezes desmentido pelos factos, das solidariedades «étnicasy ou nacionais em relagio as solidariedades de classe. Mas a incapacidade de historicizar este problema (que, ao mesmo titulo que o primado das relacdes espaciais ou das relacgSes sociais e genealdgicas, é posto e resolvido na histéria) e a pretensio teoreticista, incessantemente afirmada, para designar as «nacGes viaveis» ou para produzir os critérios Cientificamente validos da identidade nacional (cf. G. Haupt, M. Lowry, C. Weill, Les marxistes et la question nationale, Paris, Maspero, 1974) parecem depender directamente do grau em que a intencao realenga de reger ¢ de dirigic orienta a ciéncia régia das fronteiras ¢ dos limites: nao é por acaso que Estaline é © autor da «definigéo» mais dogmatica e mais cuenniliste da nagio. 124 A IDEIA DE REGIAO Dominacao simbélica e lutas regionais O regionalismo (ou o nacionalismo) é apenas um caso particular das lutas propriamente simbélicas em que os agentes estao envolvidos quer individualmente e em estado de disper- s4o, quer colectivamente e em estado de organizacao, e em que esta em jogo a conservacdo ou a transformacao das relagées de forcas simbdélicas e das vantagens correlativas, tanto econémicas como simbdlicas; ou, se se prefere, a conservaca4o ou a trans- formagao das leis de formacdo dos precos materiais ou sirnbdli- cos ligados as manifestacdes simbélicas (objectivas ou intencio- nais) da identidade social. Nesta luta pelos critérios de avalia- ¢4o legitima, os agentes empenham interesses poderosos, vitais por vezes, na medida em que é o valor da pessoa enquanto reduzida socialmente 4 sua identidade social que est4 em jogo’. Quando os dominados nas relagdes de forgas simbdlicas entram na Juta em estado isolado, como € 0 caso nas interacgdes da vida quotidiana, néo tém outra escolha a nao ser a da aceitacio (resignada ou provocante, submissa ou revoltada) da definigéo dominante da sua identidade ou da busca da assimila- ga0 a qual supde um trabalho que facga desaparecer todos os sinais destinados a lembrar o estigma (no estilo de vida, no vestudrio, na prontncia, etc.) e que tenha em vista propor, por meio de estratégias de dissimulagio ou de embuste, a imagem de si o menos afastada possivel da identidade legitima. Dife- rente destas estratégias que encerram o reconhecimento da identidade dominante e portanto dos critérios de apreciagao apropriados a constituf-la como legitima, a luta colectiva pela subversdo das relacdes de forcas simbdlicas -—— que tem em vista nao a supressao das caracteristicas estigmatizadas mas a destrui- cao da tabua dos valores que as constitui como estigmas —, >" Sabe-se que os individuos ¢ os grupos invescem nas lutas de classificagéo todo o seu ser social, tudo o que define a ideia que eles tém deles proprios, todo o impensado pelo qual eles se constituem como «nds» por oposicao a «eles», aos «outros» e ao qual estdo ligados por uma adesio quase corporal. E isto que explica a forca mobilizadora excepcional de tudo o que toca & identidade. CAPITULO V 125 que pfocura impor sendo novos principios de di-visao, pelo menos uma inversdo dos sinais atribuidos as classes produzidas segundo os antigos principios, é um esforgo pela autonomia, entendida como poder de definir os principios de definicgéo do mundo social em conformidade com os seus préprios interesses (nomos, a partilha legal, a atribuicdo legal, a lei, liga-se a nemo, partilhar segundo a lei). O que esta nela em jogo é 0 poder de se apropriar, se nao de todas as vantagens simbédlicas associadas 4 posse de uma identidade legitima, quer dizer, susceptivel de ser publicamente ¢ oficialmente afirmada e reconhecida (identi- dade nacional), pelo menos as vantagens negativas implicadas no facto de jd se nao estar sujeito a ser-se avaliado ou a avaliar-se (pondo-se a prova na vergonba ou na timidez ou procurando acabar com o velho homem mediante um esforco incessante de correcgav) em funcgdo dos critérios mais desfavora- veis. A revolucao simbolica contra a dominacao simbédlica e os efeitos de intimidacdo que ela exerce tem em jogo nao, como se diz, a conquista ou a reconquista de uma identidade, mas a reapropriacgaéo colectiva deste poder sobre os principios de construgao e de avaliagio da sua prdpria identidade de que o dominado abdica em proveito do dominante enquanto aceita ser negado ou negar-se (e negar os que, entre os seus, nao querem ou ndo podem negar-se) para se fazer reconhecer*'. O estigma produz a revolta contra o estigma, que comega pela reivindicagéo publica do estigma, constituido assim em emblema — segundo o paradigma «black is beautiful» — e que termina na institucionalizagio do grupo produzido (mais ou menos totalmente) pelos efeitos econédmicos e sociais da estigmatizacio. E, com efeito, o estigma que da a revolta regionalista ou nacionalista, mao sé as suas determinantes simbélicas mas também os seus fundamentos econémicos € sociais, princtpios de unificagio do grupo e pontos de apoio objectivos da acgao de mobilizagdo. Os que julgam poder condenar 0 sionismo ao condenarem o racismo esquecem que 0 °! Esta alternativa impoe-se cambém aos membros das classes domina- das, na medida cm que a dominagio econémica é acompanhada quase imevitavelmente de unit dominagie simbolica. 126 A IDEIA DE REGIAO sionismo é, na sua origem, o produto histérico do racismo (e também que, como mostram, por exemplo, as ficgdes da politica que tém em vista reconhecer a «identidade cultural» dos emigrados sem lhes conceder a sangio juridica deste reconhecimento, se tem o direito de perguntar se uma identi- dade cultural inicialmente firmada no estigma pode ser real- mente assegurada sem a garantia de um Estado independente). E assim, embora se possa deplorar que, por uma espécie de desforra da histéria, aqueles que foram as primeiras vitimas das ideologias reaccionarias da terra e do sangue cenham sido obrigados a criar inteiramente, para realizarem a sua identida- de, a terra e a lingua que servem geralmente de justificagéo «objectiva» a reivindicagao da identidade. A reivindicagéo regionalista, por muito longinqua que parega deste nacionalismo sem territério, € também uma res- posta 4 estigmatizacao que produz o territério de que, aparen- temente, ela é produto. E, de facto, se a regiao nao existisse como espaco estigmatizado, como «provincia» definida pela distancia econémica e social (e nao geografica) em relagéo ao «centro», quer dizer, pela privagdéo do capital (material e simbélico) que a capital concentra®’, nao teria que reivindicar a existéncia*®: é porque existe como unidade negativamente definida pela dominacdo simbélica e econémica que alguns dos que nela participam podem ser levados a lutar (e com probabilidades objectivas de sucesso e de ganho) para alte- rarem a sua definigaéo, para inverterem o sentido e o valor *2 © espaco propriamente politico de dominagao define-se pela relagio que se estabelece entre a distribuigao dos poderes e dos bens no espaco geografico e a discribuigio dos agentes neste espaco, sendo a distancia geografica em relagdo aos bens e aos poderes um bom indice de poder. ** © argumento mobilizador «viver na regiao» deve a sua forca real —~ mesmo junto dos «burgueses» — a que, além dos desenraizamentos afec- tivos, 0 exilio imposto pela procura de trabalho é acompanhado da experién- cia da desvalorizacio simbdlica, da desqualificagao ligada ao facto de ser-se levado praticamente a oferecer directamente no mercado linguistico domi- nante produgdes nao conformes (dai, a fungao que cabe aos submercados protegidos que se reconstituem no coracgao do mercado dominante, como ¢ 0 caso do frontao de Paris frequentado por Courréges ou o da Amiale dos Basco-bearneses no que diz respeito aos empregados dos cheques postis) CAPITULO V 127 das caracteristicas estigmatizadas, e que a revolta contra a dominagio em todos os seus aspectos — até mesmo econdmicos — assume a forma da reivindicagéo regionalista™. A fé universalista, que leva a recusar 0 reconhecimento dos efeitos particulares e particularizantes da reivindicagao nacioria- lista, ainda que aceitando a reivindicagao autconomista*®, encontra uma justificagio no facto de, como mostram entre outros casos o destino do sionismo ou os efeitos paradoxais da autonomizagao (inacabada) dos cantées jurassianos**, a auto- determinacao, que € apenas a negacaéo de uma hetero-determi- nagdo, nao fazer mais do que reproduzir o estigma, mas em forma invertida. Abolir o estigma realmente (e nao magica- mente, quer dizer, por uma simples inverséo simbélica dos sinais de distingio que pode levar até uma redefini /imites no interior dos quais a legitimidade da identidade assim definida se acha garantida) implicaria que se destruissem os proprios fundamentos do jogo que, ao produzir 0 estigma, gera a procura de uma reabilitagao baseada na auto-afirmagio exclu- siva que esta na propria origem do estigma, e¢ que se fagam desaparecer os mecanismos por meio dos quais se exerce a dominagdo simbélica e, ao mesmo tempo, os fundamentos subjectivos e objectivos da reivindicagio da diferenga por ela gerados. Ora, 0 paradoxo esta em que, por uma espécic de desafio lancgado a combinagao de racionalismo universalista ¢ de econo- mismo evolucionista que fazia esperar dos efeitos universalizan- tes da unificagio da economia o desaparccimento das nagées € dos nacionalismos, estes mecanismos sao, com toda a evidén- cia, produto de um comego de universalizagio (hiscoricamente encarnada pela cradigéo jacobina). De modo que o separatismo Pode compreende se ne} légica por que tazéo a oposigio entre 0 Norte eo Sul se encontra na atitude assumida a respeito da regiio ¢ do regionalismo: as regio domin: > aquelas onde os efeitos da dominagio econdmica sto mais nitidamente acrescidos dos ¢ s onde a reivindicagio econémica ¢ a lura contra a cio tomam a forma regionalista tos da domi- nacgio simbolica (prontincia estigmatizada, ete.). EB, Hobsbawin, -Some Reflections on The Break-up of Britain», New Left Rerai, (OS, Set/Oue, 1977, pp. 3-24. “OA. Charpillas, be Dane avtandis’, Vew Bercil, Galland, 1976. 128 A IDEIA DE REGIAO aparece bem como o unico meio realista de combater ou de anular os efeitos de dominag3o que est4o implicitos, inevitavel- mente, na unificagéo do mercado dos bens culturais e simbéli- cos, desde que uma categoria de produtores esteja em condicgdes de impor as suas préprias normas de percep¢ao e de apreciagao. E 0 que se vé bem no caso da lingua na qual todos os efeitos de dominagao estao ligados a unificaydo do mercado que, a0 invés de abolir os particularismos, os constituiu em estigmas negati- vos*’. Assim, o verdadeiro suporte objectivo do regionalismo occitaénico reside nao nos falares locais que, ja heterogéneos, foram desnaturados e desenraizados pela confrontagéo com a lingua dominante, mas sim no francés meridional, bastante diferente do francés legitimo na sua sintaxe, no seu vocabulario e€ na sua pronuncia para servir de base a uma depreciagio sistematica de todos os seus utilizadores, independentemente da classe a que pertengam (se bem que a propensio ¢ a aptiddo para a «correccéo» aumente 4 medida que se sobe na hierarquia social), e a uma forma doce e larvada de racismo (firmada na oposicéo mitica do Norte e do Sul)**. *7 P. Bourdieu ¢ L. Boltanski, op. cit. wta 13. ** Pode pensar-se que, além dos cfeitos da transmissio directa das vantagens sociais que estao ligadas ao capital social, a pronuncia legicima desempenha um papel nao descurivel no privilégio de que beneficiam, para © acesso a classe dominance, as pessoas nascidas na regio parisiense ou que fizeram nela os seus estudos — (privilégio que vai aumentando a medida que se sobe na hierarquia das fungées, desde os bispos, os prefeitos ou os generais até aos directores de ministérios, aos inspectores de finangas ou aos PDG * das grandes sociedades, todos colocados no centro do poder central), Esta hipdtese acha uma confirmagio no facto de a caxa de parisienses (nas- cidos em Paris ou residentes em Paris no momento da entrada em Géme) entre os alunos das escolas superiores crescer segundo 0 mesmo principio, quer dizer, segundo a hierarquia seguinte: Ecole des P. et T., Mines de Saint-Etienne e Saint-Cloud, Fontenay, Ulm, Sévres, Agro, Mines de Nan- cy, Mines de Paris, Polytechnique e, enfim, HEC, ENA ¢ Ciéncias PO em que existcem mais de 50% dos alunos naquelas condigdes. Vé-se que as vantagens associadas 4 prontincia legitima, elemento do capital associado ao nascimento na capital, vém acrescer 4s vantagens associadas a uma origem social elevada. E assim que a oposigaéo é ainda mais marcada entre as cscolas superiores se se levar em linha de conta ao mesmo tempo o ligir de residéncia dos pais no momento de entrada em Gime va origem social tém-se assim, de um lado, as escolas que recrutam uma grande parte dos CAPITULO V 129 Em resumc, © mercado dos bens simbélicos tem as suas leis, que nao as da comunicac&o universal entre sujeitos universais: a tendéncia para a partilha indefinida das nagdes que impressionou todos os observadores compreende-se se se vir que, na logica propriamente simbélica da distingéo — em que existir nao é somente ser diferente mas também ser reconhecido legitimamente diferente e em que, por outras palavras, a existéncia real da identidade supée a possibilidade real, juridi- camente e politicamente garantida, de afirmar oficialmente a diferenca — qualquer unificagéo, que assimile aquilo que é diferente, encerra 0 principio da dominacao de uma identidade sobre outra, da negagéo de uma identidade por outra. E preciso, pois, romper com 0 economismo — marxista ou qualquer outro — que reduz o regionalismo a paixdo, ou mesmo a patologia, porque, por nao reconhecer a contribuigao dada 4 construgao do real pela representagio que os agentes tém do real, ele nao pode compreender a real contribuicao que a transformacado colectiva da representacao colectiva da 4 trans- formagao da realidade. Mas ser esquecer por isso que ha uma economia do simbdélico que é irredutivel & economia (em sentido restrito) e que as lutas simbdlicas tém fundamentos ¢ efeitos econdmicos (em sentido restrito) efectivamente reais. F assim que, como bem mostra Eric Hobsbawm *’, a mundializa- cao da economia, de que se poderia ter esperado fize desaparecer os nacionalismos, poderia ter permitido caminho livre a ldgica da diferenciagio simbdlica, criando assim as condicdes que tornassem possivel um separatismo quase sem se seus alunos na burguesia parisiense, quer dizer, cias PO, HEC, ENA c Mines de Paris, ¢ por outro lacto, as escolas que recrutam sobretudo na burgue- sia de provincia, quer dizer, ULM, Sévres, Polycechinique ¢ Agro. Tudo parece pois indicar que 0 peso crescente no universo das via dominantes de Ciéncias PO, HEC ou ENA, que, sob a aparéncia de considerar apenas critérios de seleccdo universais, concede um reconhecimento especial- mente marcado as propriedades mais caracteristicas do habitus legitimo, quer dizer, parisiense (como a prondncia e sem diivida muitas outras caracteristicas}, tem contribuido para reforgar a interioridade da burguesia de provincia. * PDG = Président directeur général “TEL Hobsbawn, fa ci de acesso as posicées 130 A IDEIA DE REGIAO limites econdmicos. Com efeito, 0 c‘itério do tamanho do territério a que se referiam os tedricos (marxistas, em especial) para determinarem os «Estados viaveis», quer dizer, capazes de oferecer um mercado suficientemente extenso ¢ diversificado e, secundariamente, capazes de se protegerem contra as agressdes exteriores, perde uma grande parte da sua significagio desde que se generalize a dependéncia dos Estados (e das nagdes) em relagéo 4 economia internacional e em relagéo as empresas transnacionais e isto na medida em que o equilibrio das forcas entre as grandes poténcias militares tende a assegurar uma protecgio de facto aos pequenos paises, A nova divisio internacional do trabalho néo sé nao condena os pequenos Estados isolados, como também se acomoda muito bem a essas unidades oficialmente auténomas e incapazes de impor constrangimentos aos capitais estrangeiros (visto que os poderes locais podem encontrar ganhos evidentes em cederem a sua dependéncia as grandes poténcias econdmicas). Mas, simulta- neamente, a redistribuigéo dos investimentos no espaco, em fungio apenas da ldgica das taxas diferenciais de lucro, ¢ a deslocalizagéo do poder, que daf resulta, tendem a estimular a revolta contra o Estado. Uma economia das lutas regionalistas deveria assim determi- nar os principios segundo os quais as diferentes categorias de agentes activamente ou passivamente envolvidos nas lutas regio- nalistas se distribuem entre partidarios e adversarios do poder local. Se todos os observadores estado de acordo em notar que os intelectuais desempenham um papel determinante no trabalho simbélico que é necessario para contrariar as forgas tendent unificagao do mercado dos bens culturais € simbdlicos € os efeitos de desconhecimento* por elas imposto avs defensores das linguas e das culturas locais, nao se interessam por situar a posigéo desses intelectuais no campo intelectual nacional que poderia estar na origem das suas tomadas de posicdo sobre as relagdes entre o nacional ¢ o regional: tudo parece, com efeito, indicar que, tanto no caso dos romancistas regionalisras, estu- dados por Rémi Ponton como no caso dos inspiradores dos * «méconnaissance» (ignorancia, n4o-reconhecimento) (N 1) CAPITULO V 131 movimentos regionalistas 0 empenhamento pelo regional, pelo local, pelo provincial, fornece aos detentores de um capital cultural e simbdlico, cujos limites sio, muitas vezes, objectiva- mente imputaveis (e quase sempre subjectivamente imputados) ao efeito da estigmatizacao regional, um meio de obterem um rendimento mais elevado deste capital nacional investindo-o num mercado mais restrito, em que a concorréncia é mais fraca*". No caso oposto, segundo uma légica que se observa no conjunto da classe dominante e, em particular, entre os diri- gentes da industria, os agentes activamente envolvidos na luta parecem tanto mais voltados para o transregional quanto mais ligado esta ao poder central, nacional ou internacional o seu capital econémico € cultural"! > “Esta légica observa-se no campo cientifico em que a fissio* das disciplinas permite que se assegure uma dominacao mais completa sobre um dominio mais restrito: ¢ 0 que descreve, por exemplo, Ernst Kantorowicz que mostra como os juristas de Bolonha conseguiram garantic, no século XII, 0 monopslio do direito por meio de uma diviséo dos poderes, em relagdo ao rei, ¢ de uma diferenciagdo funcional das atribuigdes das diferen- tes instituigées encarregadas de administrar o direito (cf. E. Kantorowicz, «Kinship under the Impact of Scientific Jurisprudence», in Twelfth-Century Enrope and the Foundations af Modern Society, M. Clagett, G. Post e€ R. Reynolds eds., Madison, University of Wisconsin Press, 1961, pp. 89-111). * «fission» no texto original (N.T.). “! Quanto aos que, nesta luta, estéo condenados ao papel passivo de coisas em jogo, tudo permite supor que, além dos factores ordinarios da propensao para aceitar a transformagao ou ~ conservagao (quer dizer, essen- cialmente, 2 posigdo na estrutura social e a trajectéria, ascendente ou descendente, que conduz a esta posigéo), é o balango dos ganhos actuais e dos ganhos esperados, quer dizer, dos ganhos proporcionados pelo nacional (salarios, reformas, etc.) e dos ganhos prometidos pelo regional, que determina as opgdes. Ao suspender a eficicia assimiladora da instituigéo escolar como via privilegiada de ascensio — e de integracéo — social, a cleselassificagao (cf. P. Bourdieu, «Classement, déclassement, reclassemenc», Actes de la recherche em sciences sociales, n.° 24, Nov. 1978, p. 2-22) favorece as atitudes anti-institucionais, dirigidas contra a Escola, o Estado ¢ a amilia, e¢ leva a pequena nova burguesia a recusar o papel de correia de transmissio que ela desempenhava na luta de concorréncia integradora € a entrar numa contestagae Gambigua) do central que é acompanhada por uma reivinicagio dit partictaae nos poderes locais. 132 A IDEIA DE REGIAO E reencontrariamos assim o ponto de partida, quer dizer, as determinagdes que a posicgao, central ou local, no espaco de jogo faz pesar sobre a visio do jogo, e que sé a construcéo do jogo enquanto tal pode permitir neutralizar, pelo menos duran- te o tempo de uma anilise.

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